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3. Dois Carecas Brigando Pelo Mesmo Pente (II Samuel 2:1-3:39)

Introdução

Anos atrás, participei de uma conferência para líderes cristãos em Dalas em que Luis Palau, evangelista e professor muito abençoado, foi o orador. A conferência ocorreu não muito depois da Guerra das Malvinas entre Inglaterra e Argentina. Luis havia liderado campanhas evangelísticas naqueles dois países pouco antes da guerra estourar; por isso, provavelmente, deve ter falado do evangelho tanto para soldados argentinos, quanto para soldados ingleses. Aquela guerra intrigava o Sr. Palau. Em certa ocasião, quando teve uma oportunidade de se encontrar com um membro do Parlamento britânico, o Sr. Palau perguntou a ele qual a razão daquele conflito, tendo recebido uma resposta curta e breve: “Dois carecas brigando pelo mesmo pente”. Ao ler os dois primeiros capítulos de II Samuel, o diagnóstico daquele parlamentar parece se ajustar perfeitamente à guerra entre o exército de Davi, parcialmente liderado por Joabe, e o exército de Isbosete, liderado por Abner. Veremos que, muito embora a origem desse conflito possa ter sido banal, suas consequências vão muito além da banalidade. Os acontecimentos de nosso texto não são nem de longe “coisa de um passado remoto e distante”, como poderíamos pensar; na verdade, discutiremos nesta mensagem que eles são muito relevantes para os cristãos e para a igreja de nossos dias.

Você (e eu também) talvez esteja ansioso para ver Davi no trono de Israel, mas ainda é cedo. Isso só acontecerá no capítulo cinco. Até lá, devemos voltar nossa atenção para o texto e suas lições. Estes capítulos têm muito a nos dizer sobre Davi, mas iremos considerar sua dimensão na próxima lição. Por enquanto, é preciso observar que eles se concentram, principalmente, em dois homens: Abner e Joabe. Esses dois militares têm grande impacto sobre a vida de Davi, seu reino e a história de Israel. Suas vidas se cruzam nos capítulos dois e três. Nosso texto mostra em detalhes o final da vida de Abner e o início da liderança de Joabe sob o governo de Davi.

Nesta lição, tentaremos retroceder um pouco na história de ambos para ver os acontecimentos desta passagem a partir de um contexto mais abrangente de suas vidas. Os dois homens têm algo a nos ensinar. A vida pessoal de cada um, seu relacionamento um com o outro e com os reis de Israel também têm muito a nos dizer; assim, vamos começar com um esboço biográfico dos dois, Abner e Joabe.

Abner Está Em Toda Parte: Breve Esboço Biográfico

Quando as jumentas de Quis se extraviam, ele envia seu filho Saul para encontrá-las e levá-las de volta, com o auxílio de um servo (I Sm. 9:3 e ss). Durante sua busca pelas jumentas, Saul e o servo encontram Samuel, o qual unge secretamente Saul, designando-o como o primeiro rei de Israel. Quando retornam para casa, um tio não-identificado de Saul vai ao seu encontro, sondando-o com algumas perguntas:

“Perguntou o tio de Saul, a ele e ao seu moço: Aonde fostes? Respondeu ele: A buscar as jumentas e, vendo que não apareciam, fomos a Samuel. Então, disse o tio de Saul: Conta-me, peço-te, que é o que vos disse Samuel? Respondeu Saul a seu tio: Informou-nos de que as jumentas foram encontradas. Porém, com respeito ao reino, de que Samuel falara, não lho declarou.” (I Samuel 10:14-16)

Há uma boa chance desse “tio” ser Ner, irmão de Quis, pai de Saul. É facil perceber porque talvez ele esteja interessado no encontro de Saul com Samuel. Israel exigiu um rei como o das demais nações e Deus atendeu seu pedido por intermédio de Samuel (I Samuel 8). Samuel é também aquele que irá designar esse rei e isso ainda não aconteceu. Ner não deixaria esse encontro passar despercebido. O êxito de Saul (como rei) provavelmente significará o êxito de toda a “família”. É bastante razoável que Abner, filho de Ner e primo de Saul, seja o futuro comandante das forças armadas de Israel.

Abner não aparece na história até o encontro de Davi com Golias, conforme registrado no capítulo 17 de I Samuel. Se esperamos que Saul enfrente Golias, o que ele não faz, certamente o próximo da fila para encarar o gigante é o comandante de seu exército. No entanto, Abner está sentado a seu lado, aparentemente assistindo a batalha de uma distância segura:

“Quando Saul viu sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o comandante do exército: De quem é filho este jovem, Abner? Respondeu Abner: Tão certo como tu vives, ó rei, não o sei. Disse o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este jovem. Voltando Davi de haver ferido o filisteu, Abner o tomou e o levou à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu.” (I Samuel 17:55-57)

Embora isso possa parecer demasiadamente cruel, entendo que o texto está dizendo que o primo Abner, comandante militar de Israel, está tão apavorado com Golias quanto o resto de seus homens, e Saul:

“Ouvindo Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito.” (I Samuel 17:11)

“Todos os israelitas, vendo aquele homem, fugiam de diante dele, e temiam grandemente.” (I Samuel 17:24)

Covardia nas fileiras sugere covardia também nos altos escalões.

Davi e Abner devem se conhecer razoavelmente bem. Abner é o comandante do exército israelita e Davi um herói de guerra designado como comandante de mil (I Samuel 18:13) que ganha o respeito de seus homens em razão de suas vitórias militares (18:30). Além disso, Abner (como Davi) é convidado regular à mesa de Saul (20:25).

A princípio, certamente Abner não conhece Davi tão bem; mas tudo muda rapidamente depois da vitória de Davi sobre Golias. Ele é promovido a comandante de mil (I Samuel 18:13), o que não deve escapar à observação de Abner. Quando Saul se volta contra Davi, Abner apoia seu primo e rei. E, tendo em vista que Saul emprega seu exército para buscar e matar Davi, seu comandante deve estar envolvido nisso (ver I Samuel 26:3-5, 13-16). Talvez o envolvimento de Abner na vida de Davi seja muito maior do que gostaríamos de saber:

“Acampou-se Saul no outeiro de Haquila, defronte de Jesimom, junto ao caminho; porém Davi ficou no deserto, e, sabendo que Saul vinha para ali à sua procura, enviou espias, e soube que Saul tinha vindo. Davi se levantou, e veio ao lugar onde Saul acampara, e viu o lugar onde se deitaram Saul e Abner, filho de Ner, comandante do seu exército. Saul estava deitado no acampamento, e o povo, ao redor dele. ...Tendo Davi passado ao outro lado, pôs-se no cimo do monte ao longe, de maneira que entre eles havia grande distância. Bradou ao povo e a Abner, filho de Ner, dizendo: Não respondes, Abner? Então, Abner acudiu e disse: Quem és tu, que bradas ao rei? Então, disse Davi a Abner: Porventura, não és homem? E quem há em Israel como tu? Por que, pois, não guardaste o rei, teu senhor? Porque veio um do povo para destruir o rei, teu senhor. Não é bom isso que fizeste; tão certo como vive o SENHOR, deveis morrer, vós que não guardastes a vosso senhor, o ungido do SENHOR; vede, agora, onde está a lança do rei e a bilha da água, que tinha à sua cabeceira. Então, reconheceu Saul a voz de Davi e disse: Não é a tua voz, meu filho Davi? Respondeu Davi: Sim, a minha, ó rei, meu senhor. Disse mais: Por que persegue o meu senhor assim seu servo? Pois que fiz eu? E que maldade se acha nas minhas mãos? Ouve, pois, agora, te rogo, ó rei, meu senhor, as palavras de teu servo: se é o SENHOR que te incita contra mim, aceite ele a oferta de manjares; porém, se são os filhos dos homens, malditos sejam perante o SENHOR; pois eles me expulsaram hoje, para que eu não tenha parte na herança do SENHOR, como que dizendo: Vai, serve a outros deuses. Agora, pois, não se derrame o meu sangue longe desta terra do SENHOR; pois saiu o rei de Israel em busca de uma pulga, como quem persegue uma perdiz nos montes.” (I Samuel 26:3-5; 13-20)

Abner não é só o comandante do exército de Saul, ele é também o chefe de sua segurança. Quando estava em perseguição a Davi, Saul dormiu cercado por suas tropas, com Abner ao seu lado. Se qualquer pessoa tentasse fazer algum mal a Saul, teria de passar primeiro pelos soldados espalhados ao seu redor e depois por seu primo. Sabemos que, nessa ocasião, eles são divinamente anestesiados (26:12). Por isso, depois de pegar a lança e o jarro d’água de Saul, Davi se dirige especificamente a Abner, acusando-o de abandono do dever, sendo assim digno de morte (26:14-16). As palavras de Davi, com certeza, devem tê-lo humilhado publicamente.

A acusação vai muito além do desempenho de Abner em serviço. Afinal, a culpa realmente não é dele. Se Deus fez todo o exército adormecer, como ele poderia ter permanecido acordado? O que, então, Davi tem contra ele em especial? O que Abner, de modo pessoal e particular, fez de errado? A resposta é sugerida no verso 9, onde Davi pergunta a Saul por que ele o persegue. Foi Deus quem o mandou fazer isso ou foi alguém próximo a ele, alguém que lhe tinha acesso e também um ouvido atento? A seguir, Davi amaldiçoa quem estiver enganando o rei, fazendo-o pensar injustamente que ele é uma ameaça ao seu trono. Isso é coerente com suas palavras anteriores no capítulo 24:

“Depois, também Davi se levantou e, saindo da caverna, gritou a Saul, dizendo: Ó rei, meu senhor! Olhando Saul para trás, inclinou-se Davi e fez-lhe reverência, com o rosto em terra. Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal? Os teus próprios olhos viram, hoje, que o SENHOR te pôs em minhas mãos nesta caverna, e alguns disseram que eu te matasse; porém a minha mão te poupou; porque disse: Não estenderei a mão contra o meu senhor, pois é o ungido de Deus.” (I Samuel 24:8-10)

Quando juntamos todos estes elementos, percebemos que Abner é realmente culpado por não ter protegido seu rei, sendo, por isso, digno de morte. Embora de origem divina (por Deus ter feito todos dormir), a falha de Abner tornou Saul vulnerável a Abisai, o qual estava determinado a matá-lo caso não fosse impedido por Davi. Davi prova que é um protetor da vida Saul bem mais eficaz do que Abner. A seguir, ele amaldiçoa quem estiver jogando Saul contra ele. Quem parece ser o maior culpado? É ou não é Abner?

Davi diz que alguém está envenenando a cabeça de Saul contra ele, retratando-o como um inimigo determinado a prejudicar o rei. Quem tem mais a perder? Se Davi é o melhor guerreiro e líder militar de Israel, quem deveria estar no comando das forças de Saul? Quem tem mais intimidade com o rei e maior acesso a ele do que Abner? Abner é o comandante do exército, mas, muito mais do que isso, ele é também primo de Saul. Da mesma forma que ele tinha muito a ganhar com a designação de Saul como rei, ele tem muito a perder com sua destituição. Abner sabe que Davi é aquele que foi ungido por Samuel para substituir Saul. Quando Saul morre, é Abner quem levanta maior oposição à nomeação de Davi como rei. Não seria nenhuma surpresa saber que ele está alimentando Saul com falsas informações, informações que fazem Davi parecer um adversário que precisa ser caçado e morto. Abner não é amigo de Davi; nem mesmo um bom amigo de seu primo Saul.

É estranho que Abner não seja mencionado desde o capítulo 26 de I Samuel até o capítulo 2 de II Samuel, uma vez que, afinal de contas, ele é o comandante das forças de Israel. Onde está Abner nos capítulos intermediários, quando os israelitas lutam contra os filisteus? Onde está Abner quando Israel sofre grande derrota e muita gente foge para se salvar (31:7)? Onde está Abner, o homem sempre à direita de Saul, quando os filhos do rei são assassinados e Saul e seu escudeiro se suicidam? Dá até para perguntar: Onde está Abner quando as coisas se complicam? (Este parece ser o lema de Abner: “Quando as coisas se complicam, é hora de eu me mandar... para o outro lado”). Quando a poeira assenta, Abner ainda está vivo, bem como Isbosete, um dos filhos de Saul. Nosso texto recomeça aqui, logo após o lamento de Davi pelas mortes de Saul e Jônatas. Daremos primeiro uma olhada na vida de Joabe e depois nas consequências de seu confronto com Abner.

Joabe

Joabe é mencionado pela primeira vez em I Samuel 26:6. Na verdade, a passagem se refere a seu irmão mais velho, Abisai, o qual vai com Davi ao acampamento de Saul (enquanto Abner está dormindo ao lado dele para protegê-lo). Abisai se oferece para acompanhar Davi no que parece ser uma missão suicida: dois homens tentando chegar ao rei passando por 3.000 soldados de suas tropas especiais (26:2). A intenção de Abisai é matar Saul de um só golpe (26:8). Tudo indica que ele o fará se não for impedido por Davi e, provavelmente, ainda matará Abner de lambuja! A questão, porém, é que aqui Abisai, o irmão mais velho (ao que parece - ver I Crônicas 2:16), é referido como “o irmão de Joabe” (I Samuel 26:6). Isso parece sugerir que Joabe seja o mais conhecido dos dois.

Joabe não entra em cena até aparecer novamente em nosso texto (II Samuel 2:13 e ss), o que não quer dizer que este seja seu primeiro encontro com Davi. Eles são parentes. A mãe de Joabe, Zeruia, é irmã de Davi, e Abigail é outra irmã, a qual, por sua vez, é mãe de Amasa (I Crônicas 2:12-17). Amasa aparece na história um pouco depois (II Samuel 19-20). Sabemos que Asael é sepultado no túmulo de seu pai, em Belém (II Samuel 2:32). Abisai, Joabe e Asael estão com Davi desde que se juntaram a ele na caverna de Adulão:

“Davi retirou-se dali e se refugiou na caverna de Adulão; quando ouviram isso seus irmãos e toda a casa de seu pai, desceram ali para ter com ele. Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens.” (I Samuel 22:1-2)

Creio que, quando os sentimentos de Saul com relação a Davi (e a qualquer um que o apoie - ver 22:6-19) se tornam conhecidos, Abisai, Joabe e Asael fogem de Belém, junto com os outros membros da família de Davi, sabendo (ou, pelo menos, temendo) que Saul pode despejar sua raiva sobre eles. A estes familiares juntam-se muitas outras pessoas que também haviam caído no desfavor de Saul. Boa parte desse grupo vai formar o bando de guerreiros de Davi, onde Abisai e Joabe se sobressaem como soldados e líderes militares devido à sua coragem e habilidade.

Inicialmente Davi é o comandante de seu pequeno bando. Isso ocorre durante os anos em que ele foge de Saul até a época em que deixa Ziclague e volta para Hebrom (I Samuel 30:8, 10, 17-25). Antes de Davi se tornar rei, Joabe é um de seus comandantes. Só depois que Davi começa a governar sobre Israel e Judá é que Joabe se torna o comandante do exército de Israel. Ele ganha esse posto por aceitar o desafio de subir contra Jebus (Jerusalém) e atacá-la (I Crônicas 11:6).

Deixaremos por alguns instantes os fatos ocorridos em II Samuel 2 e 3 para dar uma olhada nos acontecimentos posteriores da vida de Joabe. De maneira geral, podemos dizer que ele é um líder militar forte e corajoso. Isso pode ser visto na batalha travada contra os amonitas, sírios e outros povos em II Samuel 10 (observe especialmente os versos 9-14). Além de grande guerreiro e líder militar, ele é também um homem de qualidades notáveis. Quando a cidade real amonita de Rabá está praticamente derrotada, em vez de tomar para si o crédito pela vitória, ele inisiste para que Davi vá até lá e receba a glória ele mesmo (II Samuel 12:26-31). Quando Davi imprudentemente ordena que ele faça o censo de Israel, Joabe protesta veementemente, mas sem sucesso (II Samuel 24:2-4).

Joabe demonstra também grande discernimento e força de caráter em suas relações com Davi e Absalão. Ele é quem serve de mediador entre os dois. Ele percebe que Davi quer se reencontrar com o filho exilado, Absalão (13:39), e arranja uma mulher sábia de Tekoa para encernar uma história para Davi (14:2 e ss). Quando Davi julga a causa da mulher, ela o aconselha a lidar com Absalão da mesma forma. Ele entende o recado e também percebe que Joabe deve estar por trás da trama (14:19); contudo, o plano de Joabe não parece ser interesseiro. O que ele pretende é reconciliar Davi com o filho. Ele tenta fazer com que Davi lide com Absalão da mesma forma com que faria com qualquer outra pessoa. Joabe parece genuinamente gratificado e satisfeito com a reação de Davi (14:22). Depois que Absalão se rebela contra o próprio pai e tenta usurpar seu trono, Joabe o trata com muito mais severidade, enquanto Davi parece ter um coração mais mole e complacente. Davi ordena que seus soldados tratem Absalão sem muito rigor, o que é uma grande tolice. Quando surge uma oportunidade, Joabe pessoalmente dá cabo de Absalão, auxiliado por alguns de seus homens (II Samuel 18:14-15). Quando Davi envergonha o povo com sua conduta pela morte de Absalão, Joabe o repreende severamente (19:5 e ss) e Davi acata sua admoestação (19:8).

Apesar de todos esses pontos favoráveis, Joabe é também um homem violento, cujas ações, muitas vezes, são impensadas e totalmente condenáveis. Quando Davi comete adultério com Bate-Seba e tenta se livrar do marido dela, Urias - o Hitita, ele encontra em Joabe um cúmplice pronto a executar suas ordens (ver II Samuel 11:6). Joabe parece não levantar nenhuma objeção ao pedido de Davi; ele simplesmente o obedece. Quando Absalão temporariamente se apossa do trono de Davi, ele substitui Joabe por Amasa. Mais tarde, Absalão é derrotado e Davi recupera o trono, designando Amasa como comandante do exército em lugar de Joabe (II Samuel 19:13). Quando Seba, outro benjamita (como Saul, Jônatas e Isbosete) se rebela contra Davi, Davi ordena que Amasa faça o censo das tropas de Judá. Quando Amasa não aparece no tempo determinado, Davi manda Abisai (irmão mais velho de Joabe) sair e capturar Seba (II Samuel 20:4-7). Abisai sai junto com Joabe e seus homens. Ao encontrar Amasa, Joabe o mata quase da mesma maneira como matou Abner (II Samuel 20:8-10). Joabe e Abisai, então, saem em perseguição de Seba (20:10). Depois que a cabeça de Seba é jogada por cima do muro para ele, Joabe desiste da perseguição e volta a ser o comandate de todo o exército (20:23).

Quando Davi envelhece e não consegue mais governar eficazmente, ele demora em designar e empossar Salomão como seu sucessor. Adonias procura tirar vantagem da situação, dando início a um plano para usurpar o trono de Salomão e proclamar-se rei (I Reis 1:5 e ss). Adonias é um rapaz muito bonito, nascido depois da morte de Absalão (1:6). Aparentemente, ele nunca recebeu um “não” de Davi (1:6). Joabe e Abiatar, o sacerdote, juntam-se a ele em sua conspiração. Davi, por fim, é persuadido por Bate-Seba e Natã, o profeta, a ungir publicamente Salomão como seu sucessor. Ao assumir o trono de seu pai, Salomão permite que Adonias continue vivo (durante algum tempo); no entanto, Adonias acaba finalmente sendo executado quanto tenta uma vez mais depor Salomão e assumir o governo de Israel (pedindo para si Abisague, concubina de Davi). Joabe, igualmente, é executado, não só por ter tomado parte na conspiração contra Salomão, mas também por ter assassinado Abner e Amasa (ver I Reis 2:5-6, 28-35).

“Meus Três Filhos... E Abner”
(2-3)

Esta mensagem não é, de forma alguma, uma ampla exposição destes dois capítulos. Tenho mais um sermão no qual tento juntar todas as partes desta passagem. Aqui, meu objetivo é mostrar algumas ocasiões em que Abner e Joabe se confrontam. Tentarei me concentrar nos acontecimentos que levaram à guerra entre os homens de Judá e os de Israel e nas consequências desse conflito.

Davi busca orientação divina e é dirigido por Deus à cidade de Hebrom. Logo depois, chegam ali suas esposas e o restante de seus seguidores com suas famílias; os homens de Judá ungem Davi como rei - rei de Judá (2:1-4a). A bondade de Davi para com os homens de Jabes-Gileade (2:4b-7) dá ao povo de Israel excelente oportunidade para também fazê-lo seu rei. Pelas palavras de Abner em 3:17-19, parece que os homens de Israel não apenas sabem que Davi foi designado como substituto de Saul, mas também o querem como rei. O problema está em Abner. Ele se opõe ao reinado de Davi em lugar de Saul, seu primo, e orquestra as coisas para que Isbosete, o filho sobrevivente de Saul, reine em Israel. Isso adia o reinado de Davi sobre todo Israel por vários anos (2:8-11).

Hoje em dia, as gangues são um dos principais problemas das grandes cidades. Elas oferecem senso de identidade e inclusão, um certo tipo de camaradagem e uma sensação distorcida, embora falsa, de segurança. Os atentados são cada vez mais frequentes e, quando ocorrem, uma das primeiras coisas em que pensamos é que deve ser coisa de gangue. Quando um membro de determinada gangue é morto por um membro de outra, com certeza mais sangue será derramado em retaliação. Uma gangue matará um membro de outra só para elevar seu “status” (“a gente é tão durão que pode matar quem quiser, na hora que quiser!”). As gangues não fazem nenhum sentido para nós, mas fazem para quem pensa como membro delas; tudo parece muito lógico, prá não dizer correto.

Nós achamos que as gangues são um fenômeno da nossa época. Ao lermos sobre essa “competição” entre os 12 servos de Isbosete e os 12 servos de Davi, achamos também que seja algum tipo de disputa tribal antiga, sem nenhuma relação com os tempos atuais. Gostaria de dizer que há bem poucas diferenças entre as guerras de gangues de nossos dias e a “competição” descrita em II Samuel 2:12-17. Rivalidade entre gangues e rivalidade entre tribos é quase a mesma coisa.

Pense por alguns instantes nessa competição em termos de século vinte. As gangues são os Judes e os Benjies. Os líderes são Abner (benjamitas/israelitas) e Joabe (judeus). Corre a notícia de que haverá uma briga entre as gangues rivais. Lugar e hora são marcados. Os Benjies tomam posição e os Judes também, uma gangue de frente para a outra. Abner e Joabe começam a exibir seus músculos e a desmoralizar seu adversário. Finalmente, ambos concordam que deveria haver uma competição para mostrar qual gangue é a melhor. Cada lado seleciona doze lutadores. O vencedor tem a melhor gangue. O problema é que cada lutador está determinado a matar seu oponente e, quando a luta começa, eles se agarram pelos cabelos, enfiando a lâmina da espada um no peito do outro. Todos os 24 morrem, o que leva todo mundo a entrar na briga no mesmo instante, resultando em muitas outras mortes.

O combate é inútil e desnecessário, nada mais fazendo do que intensificar o já existente senso de rivalidade e competição entre a tribo de Judá e as demais tribos de Israel, especialmente a de Benjamim (a tribo de Abner, Saul e Isbosete). Enquanto Joabe rapidamente aceita o desafio, Abner parece orquestrar o malfadado evento (será que é esse mesmo o seu propósito?). Caso um dos lados tivesse vencido, o outro só teria ficado mais ansioso por lutar novamente para tentar lavar sua honra. O resultado dessa competição é a vitória momentânea dos servos de Davi e a derrota inicial dos servos de Isbosete. Estes, no entanto, conseguem se reagrupar e continuar lutando (ver 2:25; 3:1, 6).

A coisa fica preta e Joabe sofre as maiores consequências pessoais. No confronto inicial, seus homens prevalecem sobre os servos de Abner e Isbosete. Abner bate em retirada junto com seus soldados e Asael inicia intensa perseguição contra ele. Parece que Asael é o caçula dos três irmãos e está determinado a alcançar Abner. Ele está bem atrás dele, o que confirma que Asael realmente tem asas nos pés. Será esta a oportunidade para ele provar a si mesmo que é um homem, um guerreiro de valor, como seus irmãos mais velhos? Pode ser que sim. Abner sabe que é Asael ou ele. Ele insiste para que Asael desista da perseguição e vá atrás de algum outro israelita, se quiser. Parece que Abner também sabe que o único jeito de parar Asael é matando-o, o que ele é mais do que capaz de fazer. No entanto, ele não está muito disposto a isso, pois sabe que depois terá de enfrentar Joabe, o irmão mais velho de Asael (sem falar em Abisai). Quando Asael se recusa a desistir da perseguição, Abner o atravessa com sua lança, não com a ponta, mas com o cabo. Isso deve demandar grande força e habilidade, o que Abner parece ter de sobra e saber muito bem disso.

Joabe e seu irmão mais velho, Abisai, não vão deixar a morte de seu irmão passar em branco, sem aquilo que consideram uma resposta apropriada: matar Abner, o qual matou Asael. Se eles matarem Abner em tempo de guerra, isso não será visto como assassinato, mas como instância de guerra (ver 3:28-34; I Reis 3:30-33). O problema parece ser que, embora a primeira vitória tenha sido dos homens de Judá, servos de Davi, Abner e seus homens conseguem tomar posição no cume de um outeiro, de onde podem se defender e observar o território inimigo (II Samuel 2:25). Quando Abner apela para Joabe ordenar um cessar-fogo, este concorda, afirmando que isso é realmente inevitável (2:26-28).

Ainda há estado de guerra entre os homens de Judá e os de Israel (3:1). Se Joabe ou Abisai conseguirem por as mãos em Abner, eles poderão matá-lo de forma legítima. O que Joabe não percebe é que sua oportunidade para tal está prestes a passar. Abner está tirando proveito do estado de guerra (3:6). Dá para perceber o que ele está fazendo. Ao longo da história de Israel, muitas guerras foram iniciadas ou prolongadas por causa daqueles que se beneficiaram delas. No capítulo três acontecem duas coisas que fazem Abner mudar não só de ideia, mas também de lado.

Primeiro, embora a posição de Abner esteja se fortalecendo em Israel, a casa de Saul está perdendo terreno para a casa de Davi. Abner está com a maior fatia do bolo, mas o bolo mesmo está diminuindo. Segundo, ele está mais ousado, tomando para si Rispa, uma das concubinas de Saul. Esse não é um ato meramente passional ou afetivo, nem mesmo uma tentativa de casamento; é um ato simbólico, que declara publicamente seu direito de governar em lugar de Saul (ver II Samuel 16:20-23; I Reis 2:19-25). Ele pessoalmente instalou Isbosete como rei, mas agora parece ter intenção de deixar de lado o fingimento e tornar-se o rei. Isbosete fica aborrecido com a atitude de Abner e lhe pede explicações. Abner fica furioso. Como é que Isbosete, um rei-fantoche, ousa questioná-lo? Abner relembra-o de que o fez rei e o protegeu de Davi. Como, então, Isbosete ousa contestar qualquer atitude sua? Isbosete fica em silêncio, pois sabe o suficiente de Abner para temê-lo. Para todos os fins, quem agora está no comando de Israel é Abner.

O que antes era uma verdade não afirmada, agora é uma realidade cristalina: Abner está no comando, não Isbosete. A renúncia de Isbosete é justamente o que Abner está esperando. Agora ele pode negociar um acordo com Davi, algo que permita que ele tenha uma fatia melhor de um bolo cada vez maior. Ele está prestes a mudar de lado. Ele sabe que é da vontade de Deus que Davi reine sobre Israel. Sabe que isso é inevitável. No entanto, ele é quem será o articulador, e isso está para acontecer. Por isso, ele vai até Davi e se oferece para fazê-lo rei sobre sobre todo Israel. Davi aceita sua oferta com uma condição (3:13): Abner terá de ir aos líderes de ambos os lados para negociar um acordo. Parece que, finalmente, Davi irá governar sobre Israel inteiro.

Preciso parar e sorrir diante da oferta de Abner, pois ela me faz lembrar de algo que me aconteceu alguns meses atrás. Eu tentava consertar o escapamento do carro da minha filha e resolvi que o melhor a fazer seria soldar o silencioso no cano do escapamento. O problema é que eu não tinha o tipo certo de liga para a solda. Eu conhecia um soldador das imediações que provavelmente saberia do que eu precisava e poderia me vender um pedaço de liga. No entanto, naquele dia, sua oficina estava fechada. A caminho de casa, passei por uma loja de escapamentos que estava aberta. Além de colocarem escapamentos, eles também faziam reparos em transmissões. Entrei na recepção, onde vários clientes aguardavam para serem atendidos. Não vi nenhum funcionário. Fui ao saguão de vendas e um rapaz me disse que eu estava na seção de “reparo de transmissões” e teria de ir à seção de “reparo de escapamentos”, no outro lado do prédio. Fui até lá, mas não encontrei ninguém que pudesse me ajudar. Finalmente, veio um homem dos fundos da loja, o qual vestia uma roupa que me levou a crer que trabalhasse lá. Fui até ele e lhe disse que estava fazendo um pequeno reparo e precisava de um pedaço de liga para solda para usar no cano do escapamento. Abaixando-se, ele pegou uma pedacinho de liga que estava no chão. “É disso que o senhor precisa?”, disse ele. “Sim”, respondi, “quanto lhe devo?” “Não sei”, respondeu ele, “por que não o leva? De qualquer forma, não trabalho mesmo aqui.”

Enfim, acabei indo ao escritório do gerente, onde paguei a quantia de US$ 1,00 e fui embora, com a consciência em paz. Antes de mais nada, o que gostaria de enfatizar com essa história é que o homem me ofereceu uma coisa que realmente não era dele. Em nosso texto, Abner “dá” o reino de Israel a Isbosete, um dos filhos sobreviventes de Saul. Ele dá o que não é dele, pois é Davi quem deve ser o rei, não Isbosete. Em seguida, para tornar as coisas ainda piores, quando há uma desavença entre ele e Isbosete, Abner “oferece” o reino a Davi. Novamente ele oferece aquilo que não é dele. Abner me lembra um pouco Satanás, que tenta “dar” ao Senhor o Seu próprio reino (ver Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-12).

Imagine a surpresa e a angústia de Joabe ao voltar de uma investida e ficar sabendo que Davi acabou de receber Abner e sua delegação, e que os deixou ir em paz (3:22-23). Enquanto Joabe está fora fazendo a guerra, Davi está em casa fazendo a paz. Entendo que a expressão “em paz”, duplamente usada, é empregada para indicar que a guerra já acabou.

Estas não são boas notícias para Joabe ou para seu irmão Abisai. A guerra não estará terminada para eles enquanto Abner não estiver morto. Joabe repreende duramente Davi por ter deixado Abner ir embora, insistindo que as intenções dele não podiam ser nobres (3:24-25). Aparentemente, as palavras de Joabe não encontram em Davi um bom ouvinte, pois este deseja que sua decisão prevaleça. Joabe perde as esperanças de fazer Davi mudar de ideia. Assim, em vez de acatar sua decisão, Abner secretamente ordena a alguns mensageiros de confiança que, sob pretexto, tragam Abner de volta a Hebrom. Em seguida, quando consegue ficar a sós com ele, Joabe o mata (3:27). Uma vez que, oficialmente, é tempo de paz, não de guerra, a morte de Abner se torna assassinato. Davi se apressa a dizer que não tomou parte na conspiração e desaprova o que aconteceu (3:28 e ss).

O Que Podemos Aprender Com Abner E Joabe?

1) Podemos aprender algumas coisas sobre homens. Sempre fui uma pessoa do tipo “chapéu branco, chapéu preto”. Isso começou na minha infância, quando costumava assistir aos filmes de cowboy (faroeste). Era muito fácil distinguir os mocinhos dos bandidos: os mocinhos sempre usavam chapéu branco e os bandidos, chapéu preto (pelo menos é assim que eu me lembro). Normalmente vejo as pessoas dessa forma: com chapéu branco ou preto. Só não acho que isso aconteça muito na Bíblia. Davi usa “chapéu branco” a maior parte do tempo, mas há também uma porção de vezes em que usa “chapéu preto”. O mesmo pode ser dito de quase todos os nossos heróis bíblicos.

Quando vejo um personagem como Joabe percebo que o meu padrão “chapéu branco, chapéu preto” vai por água abaixo. Joabe é um homem extremamente violento. Ele mata dois homens a sangue frio e temos boas razões para crer que ele tenha matado muitos outros na guerra. Sabemos, por exemplo, que seu irmão Abisai matou 300 homens numa única batalha, sem nenhuma ajuda (II Samuel 23:18), e que estava determinado a matar Saul (I Samuel 26:6-12). No entanto, apesar dessas mortes, a Bíblia também fala que Joabe tem atitudes e qualidades louváveis. O que importa é que homens como Joabe não são do tipo “chapéu branco” ou “chapéu preto”; ele é um pouco de cada coisa.

Quando paro para pensar, vejo que isso também se aplica à maioria de nós. O fato puro e simples é que só há uma pessoa do tipo “chapéu branco” que viveu sem pecado - nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é único que não teve pecado e damos graças a Deus por isso, pois é isso o que torna a Sua morte na cruz eficaz para nós. Sua morte não foi pelos Seus pecados, mas pelos nossos. Ele suportou o castigo pelos nossos pecados na cruz do Calvário. Ele nos dá a Sua justiça em lugar da nossa injustiça. E isso se torna possível pelo simples reconhecimento de que somos pecadores e precisamos de salvação, confiando na obra da cruz feita por Ele em nosso favor.

Se de fato apenas um homem do tipo “chapéu branco” já viveu, então temos de reconhecer que Deus normalmente realiza Seus propósitos por meio de pessoas que, de forma alguma, são perfeitas. Deus não Se limita a usar aqueles que podem ser usados. Ele pode nos usar para alcançar Seus fins mesmo quando somos rebeldes e estamos em pecado, como fez com os irmãos de José (Gênesis 50:20) ou com o próprio Faraó (Romanos 9:17-18), ou como Ele fará com cada incrédulo (Romanos 9:19-24). Que pensamento encorajador. Nada que façamos poderá prejudicar os planos e propósitos soberanos de Deus. Ele pode usar nossa rebelião e desobediência para atingir Seus propósitos com a mesma facilidade com que pode usar nossa obediência. Seremos usados por Deus para a Sua glória e até mesmo para o nosso próprio bem, de uma maneira ou de outra. Soberania significa que Deus pode e vai usar pessoas imperfeitas para alcançar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Graças a Ele por isso.

Entretanto, precisamos tomar cuidado para não dizer que, se não vivermos à altura de determinado padrão, se não tivermos uma vida espiritual plena, Deus não poderá e não nos usará. Ele nos usará sim, de uma maneira ou de outra. Contudo, isso não deve ser desculpa para uma vida negligente e pecaminosa; muito pelo contrário, deve ser motivo de nos entregarmos de todo coração ao Seu serviço, sabendo que, mesmo quando deixamos de ser ou de fazer o que deveríamos, os propósitos e as promessas de Deus serão cumpridos.

Vamos tomar cuidado também para não idolatrar pessoas, como se algumas delas realmente pudessem ter uma vida maravilhosa, impecável. Talvez elas queiram que pensemos que estão um pouco acima do padrão, que são mais piedosas, mais espirituais e, portanto, mais bem sucedidas. Quanto mais eu vivo, e mais líderes cristãos eu conheço, mais percebo que Deus usa vasos quebrados, instrumentos imperfeitos, para realizar Seus propósitos. É preciso muito cuidado para não idolatrar outras pessoas, confiando demasiadamente nelas e dependendo delas. Homens sempre falham. Deus nunca falha. Devemos manter nossos olhos fixos Nele, não nos homens. Dessa forma, quando os homens falharem, não ficaremos desiludidos, como se o próprio Deus, de alguma maneira, tivesse falhado. Só Deus é infalível.

2) Em nosso texto aprendemos algumas coisas sobre assassinato. A lei do Antigo Testamento fazia clara distinção entre aquilo que podemos chamar de morte na guerra, homicídio e assassinato. Em nosso texto, Abner não é considerado culpado por matar Asael, nem Asael teria sido assim considerado se tivesse matado Abner. Joabe também não seria culpado se tivesse matado Abner na guerra. No entanto, a morte de Abner em tempo de paz, bem como a morte traiçoeira de Amasa tempos depois, são consideradas claramente como assassinato. O assassinato é muito bem definido e, por isso, inequívoco, como fica claro para Davi e Israel quando Joabe mata Abner.

Se para um homem como Joabe matar Abner é assassinato, mesmo que este tenha matado o irmão dele, com toda a certeza também deve ser errado para uma mãe matar o próprio filho ainda eu seu ventre. Essa criança (com raras exceções) não ameaça a vida da mãe (caso em que o aborto poderia ser justificado), só sua liberdade. Se Deus levou tão a sério o assassinato de Abner (um homem violento e interesseiro), quanto mais levará a morte de uma criança indefesa, que espera que sua mãe a proteja, não que acabe com sua vida?

Anos atrás, num debate para eleição presidencial, perguntaram a George Bush (pai) se ele achava que aborto era crime. Sua resposta foi fraca e inconclusiva. Creio que a pergunta deveria ter sido respondida desta maneira: “Aborto é tirar uma vida humana. Nem sempre tirar a vida de outra pessoa é assassinato. Às vezes é um acidente. Às vezes é em defesa própria. No entanto, quando a vida de outra pessoa é tirada por motivos egoístas, às custas de um feto, então é assassinato.” Quando passarmos a ver o aborto como a retirada de uma vida humana, o debate terá terminado antes mesmo de ter começado. A Bíblia justifica a retirada de uma vida humana em raras e específicas circunstâncias, e a condena em outras, tais como no assassinato. Vamos dar nome aos bois: o feto é uma pessoa, uma vida humana. “Interromper” a gravidez é tirar uma vida humana; e aborto, pelos motivos mais frequentes com que é praticado em nossos dias, é assassinato. Se a indignação de Davi com a morte de Abner é justa, muito maior deve ser a nossa com a matança de crianças inocentes ainda no ventre de suas mães.

3) Os leitores contemporâneos, da mesma forma que os leitores israelitas da época de Samuel, devem aprender com texto como acontecem as divisões. O que Deus queria que os primeiros leitores deste texto aprendessem? Qual foi a mensagem para eles? Não sabemos ao certo quem foi o autor humano do texto, nem a data exata em que foi escrito. É possível que I e II Samuel tenham sido escritos logo após o Reino Unido (de Israel, sob os governos de Saul, Davi e Salomão)ter sido dividido por Reoboão e Jeroboão (ver I Reis 12).

Aqueles primeiros leitores devem ter se perguntado: “Como é que já fomos uma única nação e agora somos duas?” Embora a história da divisão ocorrida sob o reinado de Reoboão deva ter sido um fato bem conhecido, as raízes dessa divisão estão no passado. Na verdade, elas retrocedem à época de Davi e ao próprio texto que estamos estudando em II Samuel. Involuntariamente, Abner abre caminho para um reino dividido quando instala Isbosete como rei de Israel em lugar de Saul. Tanto ele quanto Joabe facilitam a futura divisão do reino quando consentem com a disputa entre os dois lados. E, quando essa disputa se transforma numa guerra prolongada, a dissensão entre eles se torna ainda maior. Poderíamos dizer que nosso texto descreve a origem da “rachadura” no alicerce da nação de Israel, e que essa rachadura aumentará com o tempo até transformar-se num abismo quase instransponível.

A facilidade com que o reino rapidamente se divide demonstra que as linhas divisórias já estavam traçadas, a rachadura no alicerce já estava lá. Não demora muito para que essa rachadura se transforme em abismo. Contudo, o que a causou? Nosso texto nos diz. Foram dois homens liderando exércitos oponentes. Tanto Abner quanto Joabe têm suas próprias agendas e nenhuma delas é digna de elogios. É como se ambos estivessem tentando provar que são homens de verdade. O cenário é tal que cada lado se sente na obrigação de se por à prova, e a idéia de uma disputa parece providenciar a oportunidade ideal; mas não prova nada. Só faz surgir uma tremenda guerra, a qual custará vidas preciosas, culminando em assassinato e demora para Davi assumir o governo de Israel.

Creio que essa disputa, bem como o conflito e a divisão subsequentes, é uma espécie de paradigma de muitas rixas e dissensões que vemos atualmente nos lares, no mundo e na igreja. Antes de refletirmos sobre isso, vamos dar uma olhada na igreja de Corinto. Será que não vemos um paralelo entre nosso texto e as rixas e dissensões daquela igreja? Não são os coríntios seguidores de homens, em vez de Cristo, justamente como os homens de nosso texto são seguidores de Abner e de Joabe? Há rivalidade e discórdia com base no grupo a que cada um pertence; e os líderes das facções são homens que buscam construir seus próprios impérios às custas dos outros. Como resultado, a liderança instituída por Deus é rejeitada por muitos. Não quero me estender nessa analogia, mas gostaria que percebessem que, na verdade, “não nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9).

Hoje em dia acontece a mesma coisa. Ocorrem separações nos casamentos porque homens e mulheres estão mais preocupados com seu próprio ego do que em satisfazer seus parceiros. Pequenos “desentendimentos” crescem ao ponto de se tornar uma verdadeira guerra. Homens e mulheres vão à igreja determinados a promover seus próprios interesses, construir seus próprios impérios e ganhar (e impressionar) seus próprios seguidores. Isso parece forçar as pessoas a tomar partido e se engajar nas batalhas que resultam disso.

Essas separações e os conflitos quase sempre começam com coisas pequenas, que parecem uma competição amistosa (o que, todos sabemos, é admitido e incentivado em nossos dias, mesmo dentro da igreja). Nem sempre as pessoas têm intenção de causar grandes problemas ou de magoar outras pessoas. É só uma “brincadeirinha inocente”, dizemos a nós mesmos. E assim é que, dois adolescentes, cada qual com seu carrão envenenado, param no farol vermelho e cruzam seus olhares. Os dois aceleram suas máquinas, um tentando impressionar o outro (e talvez alguma garota a seu lado). Quando o farol fica verde, ambos “se mandam”. Nenhum deles tem intenção de causar algum dano. É só uma brincadeira inocente. No entanto, nenhum dos dois quer dirigir dentro dos limites de velocidade, nem dar passagem ao outro e passar por bobo. Por isso, correm cada vez mais até chegarem a outro farol vermelho; mas nenhum deles quer, ou consegue, parar. E então, uma jovem mãe, com três crianças no banco traseiro, atravessa o farol verde, para ela... Ninguém queria que alguém se machucasse; só que, quando o nosso ego fala mais alto e a disputa começa, os problemas não ficam muito longe.

Quantos relacionamentos não são destruídos por causa do ego e da competição? Quantos casamentos arruinados? Quantas igrejas divididas? Talvez achemos que, porque é tudo uma brincadeira, com boa intenção, está tudo bem. A grande maioria dos pecados começa com coisas aparentemente inofensivas, até mesmo inocentes. É assim que o pecado começa: um pouquinho de ego, uma competiçãozinha, uma brincadeirinha... Alguns provérbios fazem referência a isso:

“Apanhai-me as raposas, as raposinhas, que devastam os vinhedos, porque as nossas vinhas estão em flor.” (Cantares de Salomão 2:15)

“assim é o homem que engana a seu próximo e diz: Fiz isso por brincadeira.” (Provérbios 26:19)

Dizem que as “raposinhas” devastam os vinhedos. Esse provérbio é muito comum hoje em dia. Não são as grandes coisas que nos destroem, mas as pequenas, que se tornam grandes. Dar uma mordida numa fruta parecia algo bem insignificante; desobecer uma ordem direta de Deus era outro assunto. Que mal pode haver numa “pequena disputa”? Nós sabemos, não sabemos?

Tenho observado que muitas vezes brincamos com coisas que seriam inadequadas em outro contexto. Sei que há piadas limpas, mas acho que contamos piadas sujas porque, de alguma forma, as palavras ditas soam diferentes - mais aceitáveis. Creio que homens e mulheres brincam um com o outro no trabalho porque esta é uma maneira de falar de coisas proibidas que são aceitáveis. Muitas vezes, brincamos com alguma coisa como uma espécie de teste, para ver qual será a reação das pessoas. Se a reção for negativa, podemos dizer: “Foi brincadeirinha...” Mas, se for positiva, insistimos no assunto com mais determinação. Sejamos cautelosos com as “coisinhas pequenas” que levam a grandes pecados.

Só mais uma palavrinha sobre “coisinhas pequenas”. Com bastante frequência, essas coisinhas também são a causa do romprimento do nosso relacionamento com Deus. Nossa preocupação com os perdidos e nosso zelo pela sua salvação começam a diminuir. Parece uma coisinha de nada, tão pequena que nem mesmo percebemos. Nossa vida de oração vai minguando imperceptivelmente. O tempo que dedicamos à Palavra de Deus, ou o quanto lemos dela, vai diminuindo. É só uma coisinha de nada. De repente, a rachadura está lá. Pode não aparecer durante meses, ou até mesmo anos. Entretanto, quando a crise chega, a rachadura se abre transformando-se em total separação. Tomemos cuidado com as rachaduras que aparecem devido a nossa fraqueza e negligência.

Dirijo-me principalmente aos cristãos, os quais, pela fé em Jesus Cristo, têm um relacionamento pactual com Deus. As rachaduras podem aparecer e elas enfraquecem esse relacionamento. Elas não enfraquecem a realidade da salvação dos pecados ou a segurança dos santos em Cristo, mas podem enfraquecer a comunhão e a intimidade desse relacionamento. Contudo, é possível também que você não seja cristão. Pode ainda não ter reconhecido seu pecado e a necessidade de perdão. Talvez não saiba com certeza que seus pecados são perdoados e que você está destinado a viver por toda a eternidade na presença de Deus. Se é assim, seu problema não é uma pequena rachadura, mas um abismo enorme - um abismo que seus pecados criaram entre você e Deus. Jesus Cristo veio ao mundo como o inculpável filho de Deus - totalmente Deus, totalmente homem - para revelar o Pai aos homens e morrer na cruz do Calvário, suportando o castigo pelos nossos pecados. Ele veio remover a separação existente entre Deus e os homens. Tudo o que você precisa é reconhecer seu pecado, sua necessidade de perdão e então confiar na morte sacrificial de Jesus Cristo na cruz do Calvário em seu favor. É na vida, morte e ressurreição de Jesus que Deus torna possível a você a salvação. E é pela fé em Jesus que você recebe essa salvação. Se você ainda não confia Nele, oro para que o faça agora.

Tradução: Mariza Regina de Souza

4. Esperando No Senhor (II Samuel 2:1-5:5)

Introdução

O período mais longo e mais difícil de minha vida foi enquanto esperava para poder dirigir... legalmente. O problema era que comecei a dirigir muito cedo, mais ou menos aos 12 anos. Antes que os garotos dessa idade fiquem muito animados, preciso dizer que cresci num lugar onde podia dirigir muito, ainda que não fosse por ruas ou estradas. Mesmo sabendo dirigir, eu não podia sentir aquela emoção de cruzar as ruas de Shelton, uma cidadezinha de aproximadamente 6.000 habitantes. Eu achava a espera por esse grande momento a mais difícil de minha vida. Quando pregadores falavam sobre o arrebatamento e a “volta iminente de nosso Senhor”, eu ficava apavorado - não porque fosse um pecador perdido - mas porque, como crente, eu poderia ser arrebatado antes de poder dirigir legalmente.

Devo confessar que não mudei muito no que se refere a esperar. Estou escrevendo este sermão num computador relativamente rápido (embora não tão rápido quanto eu gostaria - mal posso esperar por um melhor). Tendo em vista que o processador principal é muito rápido, os outros componentes demoram mais para rodar; assim, algumas coisas ficam em “estado de espera”. Esse “estado de espera” (em minha compreensão limitada do funcionamento de um computador) é como “passar a vez” num jogo de cartas quando você não tem nada para descartar. Quando eu comprar mais memória RAM (memória principal do computador), não vou querer uma de 70 bilionésimos de segundo; quero uma de 60. Se não, isso vai me causar um “estado de espera” que redundará numa demora de uma pequena fração de segundo.

Tendo admitido que não gosto de esperar, também posso dizer que ninguém mais gosta. Por que será que temos tantas redes de fast food? Por que comida de microondas é tão popular? É porque não gostamos de esperar. Anos atrás alguém teve a brilhante ideia de tentar melhorar o congestionamento da Via North Central. Instalaram um sistema computacional para monitorar o fluxo de veículos e colocaram registradores nos acessos da autoestrada. No início da rampa de acesso havia um pequeno semáforo que ficava verde quando a via estava livre. Isso não tinha nada a ver com a existência de espaço para entrar, só que o computador pensava que você poderia ficar preso no trânsito. Hoje, os semáforos não estão mais lá. Talvez haja outras razões, como obras na rodovia, mas creio que uma delas é que as pessoas simplesmente não queriam esperar. Se o caminho estivesse livre e o farol vermelho, as pessoas acabavam entrando na autoestrada do mesmo jeito. Prá que esperar? Temos de confessar que não somos um país que sabe esperar.

Ao estudar a vida de Davi, descubro que ele passou grande parte dela esperando. Ele teve que esperar mais ou menos quinze anos desde que foi ungido por Samuel até se tornar o rei de Judá (conforme está em nosso texto). E teve que esperar mais outros sete anos para ser ungido rei sobre todo Israel. Isso significa que ele esperou mais de vinte anos para ser rei. Como Davi lidou com mais de duas décadas de espera é o tema desta mensagem. Estudar a sua vida durante esse período pode nos ensinar muitas coisas sobre “esperar no Senhor”.

As duas primeiras mensagens em nosso texto enfocaram dois importantes líderes: 1) Abner, primo de Saul e comandante dos exércitos de Saul, de Isbosete, e portanto, de Israel; e 2) Joabe, sobrinho de Davi, irmão de Abisai e Asael e comandante do exército de Davi, o exército de Judá. Esta mensagem se concentrará em Davi, em seu longo, e muitas vezes conturbado, caminho para se tornar o rei de todo Israel. As lições anteriores cobriram os capítulos 2 e 3 de II Samuel. Esta mensagem cobre os mesmos capítulos, só que agora com ênfase em Davi. Acrescentei mais um trecho: o capítulo 4 e mais cinco versículos do capítulo 5, porque é neles que Davi realmente se torna o rei de todo Israel.  

Do Aprisco De Belém À Cidade De Hebrom: Breve Revisão De I Samuel 15:1 A II Samuel 1:27

Deus está de relações cortadas com Saul. Saul O desobedeceu pela última vez. Seu reinado está condenado. Por isso, Samuel é despachado por Deus para Belém para ungir o substituto de Saul. Quando Samuel chega, Davi nem está lá, pois ninguém nunca imaginou que ele pudesse ser candidato a rei. Davi está fazendo o que os jovenzinhos de sua idade faziam: guardando o pequeno rebanho de ovelhas de seu pai (I Samuel 16:11, 17:28). Quando Samuel convoca Davi à sua presença e o unge, Davi deve se perguntar quanto tempo ainda levará para se tornar rei. A resposta é que levará muito tempo mais do que ele imagina, e será muito mais difícil também.

Estamos ainda em I Samuel 16, quando lemos que Saul escolhe Davi como seu músico particular e escudeiro (16:14-23). Davi está no palácio do rei. Com certeza, agora não deve demorar muito para ele governar Israel. Ele ainda é muito novo para ir para a frente de batalha e lutar contra os filisteus (pelo menos é o que parece), por isso, ele continua cuidando das ovelhas de seu pai e também confortando o rei Saul com sua música. Quando os filisteus atacam Israel, Golias, o campeão filisteu, desafia qualquer um a lutar com ele. Ele promete que o vencedor deste combate corpo a corpo levará tudo. E é assim que Davi chega para enfrentar Golias e o mata. Isso faz de Davi herói nacional num piscar de olhos.  O povo o ama, e o rei também (16:21, 19:5). Se é a música de Davi que acalma o espírito atribulado de Saul, é outra música, sobre Davi, que tira Saul do sério. Depois da vitória de Davi sobre Golias, as mulheres entoam esta canção:

“Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.” (I Samuel 18:7)

A princípio, Saul guarda seu furor ciumento só para si. Ele procura causar a morte de Davi de modo que pareça um acidente. Ele atira a lança em Davi, mas as pessoas provavelmente atribuem isso a uma “insanidade temporária”. Depois ele procura se livrar de Davi fazendo com que ele seja morto em batalha. Ele designa Davi como comandante de mil (18:13), achando que o mesmo zelo que levou Davi a enfrentar Golias também o levará a se engajar em manobras militares “além da sua capacidade”, ocasionando assim a sua morte (sem mencionar a de seus homens). Tudo que Saul faz para destruir Davi só serve para aumentar o poder e a popularidade deste. Saul também oferece a ele uma de suas filhas por um pequeno dote de 100 prepúcios de filisteus. Ao invés de ser morto, Davi mata 200 filisteus, ganha uma esposa que o ama (mais do que o pai dela) e mais respeito e admiração de todos, menos de Saul.

Depois, o ciúme de Saul se torna público. Ele ordena a Jônatas e a todos os seus servos que Davi seja morto (19:1). Jônatas apela para Saul e Davi ganha uma pequena trégua (19:2-7); no entanto, quando surge outro conflito com os filisteus e Davi alcança novamente grande êxito em batalha, Saul tenta encravá-lo na parede com sua lança (19:8-10). Depois, ele manda seus homens à casa de Davi para prendê-lo, mas seus esforços são frustrados, principalmente por sua própria filha (19:11-17). Daí em diante, Davi mantém distância de Saul, recorrendo primeiramente a Samuel (19:18-24) e depois a Jônatas (20:1-42).

Fica muito claro para Davi que ele não deve mais tentar ficar perto de Saul, vivendo e trabalhando ao seu lado. Ele deve fugir e viver como fugitivo até que Deus resolva o problema. Por isso, ele foge primeiro para Nobe, onde recebe auxílio de Aimeleque, o sacerdote (21:1-9). Esse gesto de bondade custa a Aimeleque a própria vida e também a dos demais sacerdotes de Nobe e de suas famílias (22:6-19). Em seguida, Davi foge para Gate e depois para a caverna de Adulão, onde sua família, seus amigos e outras pessoas que caíram no desfavor de Saul se juntam a ele (22:1-5). Por diversas vezes Davi se vê em apuros, mas Deus sempre o livra das mãos de Saul. Durante esse tempo, em duas ocasiões, ele se arrisca para tentar uma reconciliação com Saul. Apesar de temporariamente arrependido, Saul continua a persegui-lo como inimigo. Embora Saul não mantenha as promessas feitas a Davi, Davi assume um compromisso que irá cumprir:

“Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. Disse a Davi: Mais justo és do que eu; pois tu me recompensaste com bem, e eu te paguei com mal. Mostraste, hoje, que me fizeste bem; pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. Portanto, jura-me pelo SENHOR que não eliminarás a minha descendência, nem desfarás o meu nome da casa de meu pai. Então, jurou Davi a Saul, e este se foi para sua casa; porém Davi e os seus homens subiram ao lugar seguro.”

Poderíamos pensar que enquanto fugia de Saul, Davi não poderia servir a seu povo, mas isso não é verdade. Ele livra o povo de Queila do ataque dos filisteus (23:1-5). Enquanto está em Ziclague, ele faz contínuas investidas contra os inimigos de Israel; e também reparte os despojos com o povo das cidades de Judá (27:1-12; 30:26-31). Não é de admirar que a tribo de Judá seja a primeira a aceitar Davi como rei.

Embora pareça que Davi vai acabar lutando a favor dos filisteus e contra o seu próprio povo, Deus o tira de cena no último minuto (29:1-11). Ele volta a Ziclague e descobre que a cidade foi assaltada por um bando de saqueadores, suas esposas e suas famílias foram sequestradas e seus bens foram roubados. Isso o leva em missão para o sul, onde derrota os amalequitas e recupera tudo o que havia sido perdido. Davi e seus homens estão bem ao sul, enquanto a guerra dos filisteus com Saul e o exército de Israel está ao norte. É nessa batalha que Israel é derrotado e Saul e seus três filhos são mortos (30:1-31:13).

Davi e seus homens estão em Ziclague há dois dias, quando um amalequita chega ofegante do acampamento de Israel, de onde conseguiu escapar dos filisteus. Ele conta a Davi as más notícias da derrota de Israel e da morte de Saul e Jônatas. Quando Davi o pressiona para saber mais detalhes, o jovem afirma ter sido ele mesmo quem “misericordiosamente” deu fim ao sofrimento de Saul. Ele dá a Davi a coroa e o bracelete do rei, esperando sua gratidão e generosidade. Depois que Davi e seus homens lamentam a derrota e a morte de seus compatriotas, Davi manda executar o jovem por ele ter levantado a mão contra o ungido do Senhor (II Samuel 1:1-16). Depois, ele compõe um salmo de lamento que celebra o heroísmo de Saul e Jônatas. A canção deve ser ensinada a todos os filhos de Judá, os quais devem cantá-la em honra de seu rei e de seu filho Jônatas.

A Reação De Davi Aos Acontecimentos De II Samuel 2:1 A 5:5

Assim é, que Davi é designado substituto de Saul — como futuro rei de Israel — aproximadamente 15 anos antes dos acontecimentos de nosso texto. De humilde pastorzinho, guardador das ovelhas de seu pai, Davi passa a membro estimado da família e da casa de Saul, um homem de grande coragem e feitos militares. Isso não ocasiona a imediata morte de Saul ou a nomeação de Davi como seu substituto. Davi cai no desfavor do rei simplesmente devido à sua confiança em Deus, a sua lealdade ao rei e ao seu sucesso. Ele deixa de ser a “estrela em ascensão” de Israel, com quem todos desejam se associar, e se torna um fugitivo, com quem a maioria dos israelitas tem medo de andar para não incorrer na ira do rei. Davi passa por muitas experiências diferentes, as quais farão dele um rei melhor por tê-las enfrentado. Agora, ele está bem mais preparado para reinar em Israel. No entanto, Deus ainda não está disposto a torná-lo rei. Nesse sentido, Davi é muito parecido com Jacó, que ficou feliz quando conseguiu sua esposa depois de trabalhar para Labão, mas ficou sabendo que ainda tinha outros sete anos de serviço antes de poder ter tudo pelo que tanto esperara. Mesmo depois de ser ungido rei de Judá, Davi ainda tem de esperar mais sete anos inteiros para ser ungido rei de todo Israel. Vamos meditar nos acontecimentos que levaram ao cumprimento da unção profética feita por Samuel muitos anos antes e ver como Davi aprendeu a “esperar no Senhor”.

Após quase 15 anos de espera, a maior parte deles fugindo de Saul, Davi fica sabendo da morte do rei e de seus três filhos. Depois de lamentar suas mortes, Davi consulta o Senhor, procurando saber o que deve fazer em relação à morte de Saul. Deus indica que ele e seus homens devem retornar à cidade de Hebrom, no território de Judá. É lá que os homens daquela tribo ungem Davi como rei de Judá (II Samuel 2:1-4a).

O primeiro ato de Davi como rei de Judá é descrito em 2:4b-7. Talvez ele esteja procurando mais informações sobre a batalha contra os filisteus e sobre a morte de Saul. De uma forma ou de outra, dizem a ele que os homens de Jabes-Gileade agiram corajosamente resgatando o corpo de Saul, dando-lhe um sepultamento adequado. Davi reage como um rei deve reagir. Ele executa o amalequita que, por sua própria admissão, levantou a mão contra o ungido do Senhor. Agora, ele elogia os homens de Jabes-Gileade por arriscarem a vida para honrar Saul. Os feitos valorosos desses valentes são recompensados com o equivalente à concessão de uma medalha presidencial de honra ao mérito.

Preciso ressaltar também que Davi inclui na mensagem aos homens de Jabes-Gileade que ele foi ungido como rei pelo povo de Judá (2:7). Pode ser que isso seja uma forma indireta de mostrar sua disponibilidade para ser ungido em Israel também. Duvido que esse pensamento seja ofensivo ao povo de Jabes, ou a qualquer pessoa em Israel (exceto Abner - ver 3:17-19). Contudo, Davi não tenta forçar a situação, e realmente nada acontece.

A razão de Davi não ser ungido rei sobre todo Israel é Abner, primo de Saul e comandande das forças armadas de Israel (2:8-11). As ações de Abner sequer têm uma justificativa. Ele sabe que Deus designou Davi como o próximo rei de Israel, e o povo também (3:8-10, 17-19). Por isso, ou ele está tentando evitar ou está tentando retardar o reinado de Davi em lugar de Saul (e dos descendentes deste). Abner instala Isbosete como rei. Poucas pessoas tentariam discutir a questão com ele, um homem pessoalmente intimidador, sem mencionar as forças armadas sob seu comando. Quem ousaria se opor a ele ou a Isbosete?

Davi também não se opõe, não porque esteja com medo, ou porque não seja capaz. Ele não se opõe porque não quer, por princípio. Isbosete é descendente de Saul. Parece que ele adota o princípio estabelecido séculos depois pelo apóstolo Paulo:

“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação.” (Romanos 13:1-2)

É difícil dizer que Isbosete tenha sido instalado como rei por exigência popular ou por razões e intenções piedosas de Abner. Parece que Abner está buscando seus próprios interesses com a nomeação de Isbosete. Davi, no entanto, admite que o filho de Saul seja de fato o rei e, por isso, que foi Deus, no final das contas, quem o colocou nessa posição de poder e autoridade. Davi não se oporá ao rei, nem mesmo para reinar em seu lugar. Além do mais, Davi fez uma promessa a Saul: a de não eliminar seus descendentes e não apagar seu nome da casa de seu pai. Ele não afastará Isbosete porque não poderá fazê-lo e continuar mantendo a palavra dada a Saul. Eis um homem de princípios, um homem que esperará mais sete anos só para manter sua palavra, só para esperar no Senhor.

Davi não aparece nenhuma vez dos versículos 2:12 a 3:11. Seu nome pode ser mencionado, mas ele não é um dos personagens principais. Os destaques são para Abner, comandante do exército de Israel, e Joabe, um dos homens de Davi e um dos comandantes das forças militares de Judá. Os dois concordam com um “embate” que leva não só 24 combatentes à morte, mas que também acarreta uma guerra declarada entre o povo de Judá e o povo de Israel. Ao que tudo indica, esse embate é totalmente despropositado, uma projeção egocêntrica da competitividade de Abner e Joabe. A guerra se arrasta, minando a unidade de Israel, causando morte e sofrimento desnecessários e culminando com o assassinato de Abner por Joabe.

Em muitos sentidos, esta é uma história bem sórdida. Os dois lados se encontram para um embate e muito sangue é derramado, levando à guerra declarada. Durante a batalha, Asael, irmão de Abisai e Joabe, está nos calcanhares de Abner. Abner não quer matá-lo, mas sabe que o jovem não vai desistir de sua perseguição. Finalmente, depois de não conseguir convencer Asael a deixar seu intento, Abner o mata. Isso não é considerado assassinato, pois é algo que ocorre durante a guerra. É quase um ato em defesa própria, mas Joabe jamais aceitará esse fato. Ele pretende se vingar.

O problema é que Davi e Abner põem fim à guerra. Abner está ficando cada vez mais ousado. Ele sempre foi o verdadeiro poder por trás dos bastidores, mas deixa todos os pretextos de lado quando toma para si a concubina de Saul. Este é um ato simbólico, virtualmente anunciando que ele está assumindo o lugar de Saul (ver I Reis 2:13-25; compare com Gênesis 35:22; 49:3-4). Isbosete considera essa atitude insuportável; por isso, reúne coragem para enfrentar Abner. Quando censurado por Isbosete, Abner explode. Ele acusa Isbosete de ingratidão e lhe diz que é ele, Abner, quem realmente está no comando. E aproveita a oportunidade para mudar de lado. A casa de Davi prevalece cada vez mais sobre a casa de Saul (3:1); na cabeça de Abner, já é tempo de mudar para o lado vencedor. Ele diz a Isbosete que agora vai dar seu apoio a Davi, para torná-lo rei. Abner, o articulador, fez Isbosete rei; agora, fará rei a Davi. Isbosete fica devidamente impressionado e amedrontado. Este é último protesto que fará contra Abner (3:6-11).

Abner, então, vai até Davi e se oferece para torná-lo rei. Ele afirma que está “no comando” e que, na verdade, o país é seu. Se Davi fizer aliança com ele, Abner fará o resto. Ele promete trazer todo Israel a Davi. Parece que, se tivesse vivido, Abner teria cumprido sua promessa. Antes de sua morte, ele se encontra com os líderes de ambos os lados. Em princípio, há um acordo. Tudo o que é preciso fazer é concluí-lo.

A morte “prematura” de Abner dá uma parada brusca nas coisas. Ele iria cumprir o que prometeu a Davi, e o que ele parece ter quase conseguido é subitamente interrompido por sua própria morte. Ele vai a Davi acompanhado de uma delegação. O acordo é feito. O cessar-fogo é declarado e a guerra entre Israel e Judá está formalmente encerrada. Por duas vezes em nosso texto é dito que Abner parte “em paz” (3:22, 23). Para mim, isso quer dizer que a guerra está terminada. Isso significa que Joabe não pode matar Abner de forma legítima; matá-lo agora será assassinato, pois não é mais tempo de guerra (ver I Reis 2:5).

Enquanto Davi está “fazendo a paz” com Abner, Joabe está fora “fazendo a guerra”. Ele conduz uma investida bem sucedida. Não está escrito contra quem é a ofensiva, mas é muito provável que seja contra os israelitas. Ao voltar, ele é informado de que Abner esteve lá, numa reunião com Davi, e que o deixaram ir embora em paz. Joabe fica furioso. Como Davi pode ser tão tolo a ponto de ser enganado por Abner? Será que ele não sabe que isso é um truque? Davi não dá ouvidos a Joabe e, depois de deixar Davi, Joabe manda seus soldados trazerem secretamente Abner à sua presença. Traiçoeiramente, ele dá um jeito de levar Abner a um lugar afastado e o mata.

Quando Davi fica sabendo do assassinato de Abner por Joabe, age com rapidez e determinação. Ele repudia publicamente a atitude de Joabe como algo execrável. Não há desculpas para o que ele fez. Davi condena o assassinato e invoca o juízo divino sobre Joabe e sua família (3:28-29). A seguir, ele lamenta a morte de Abner e cuida para que seu sepultamento seja honroso, mesmo que sua morte não tenha sido (sua morte foi como a de um perverso). Davi não só acompanha o féretro, chorando e entoando um cântico de lamento por Abner, mas também se recusa a comer durante o dia todo. Fica muito claro a todos que Davi não tem participação na morte de Abner. Todos sabem disso e aprovam sua atitude (3:31-39). O relacionamento entre Davi e o povo continua crescendo.

Creio que Deus providencialmente retira Abner de cena para que Davi não se torne rei graças a ele, um articulador, mas sim graças ao Rei Criador. As razões de Abner para trocar sua lealdade de Isbosete para Davi são questionáveis. Em alguns aspectos, parece que ele aborda Davi da mesma maneira que Satanás aborda nosso Senhor em Sua tentação (Mateus 4:1-11, Lucas 4:1-12). Como Satanás, Abner afirma que o reino que está oferecendo é realmente dele (compare II Samuel 3:12 com Lucas 4:5-7). Abner quer que Davi faça aliança com ele (II Samuel 3:12), mas quando Davi realmente se torna o rei de todo Israel, ele faz aliança com eles (o povo) “perante o Senhor” (II Samuel 5:3). De certo modo, vejo a oferta de Abner como um atalho, um caminho mais fácil para aquilo que Deus quer dar a Davi de outro jeito. Se é assim, a morte de Abner, e a consequente demora para Davi se tornar rei, faz sentido.

Quando Davi inicialmente aceita oferta de Abner, ele impõe uma condição: que Mical, sua esposa, lhe seja devolvida (II Samuel 3:13-15). A primeira esposa oferecida por Saul a Davi foi Merabe, mas Davi não aceitou a oferta. No entanto, a Mical ele aceitou. Ela lhe foi dada e, com certeza, o casamento foi consumado. Entretanto, depois que Davi cai em desgraça com o rei e foge para se salvar, Saul toma Mical e a dá por esposa a um homem chamado Palti (ver I Samuel 25:44).

Por que será que Davi quer tanto o retorno de sua esposa? Antes de mais nada, creio que seja por ela ser sua esposa. Davi não a leva junto com ele quando foge de Saul, mas ele se casou e viveu com ela como esposa. O fato de Saul a ter dado a outro homem não significa que ela deixa de ser esposa de Davi. Davi acredita na indissolução do casamento. Ela ainda é sua esposa e ele a quer de volta. Segundo, ele insiste para que Isbosete a devolva para ele. O pai de Isbosete, o rei Saul, tirou Mical de Davi; e já que Isbosete é quem governa em lugar de Saul, que concerte esse erro. Terceiro, se o embate entre os 12 homens de Abner e os 12 de Joabe dá início à guerra, a reunião de Davi e Mical unirá simbolicamente a casa de Davi e a casa de Saul. Davi quer Mical de volta porque ela ainda é sua esposa e ele a ama, e também porque isso é o melhor para seu próprio povo.

Com a morte de Abner, Isbosete perde totalmente a coragem. Se ele mal conseguia enfrentar Abner, enfrentar Davi, então, nem pensar. Agora, ele está por sua própria conta, sabedor de que Abner já instituiu Davi para reinar em seu lugar. Como informa nosso autor, Isbosete fica “tremendo na base” (como a gente costuma dizer) e Israel fica atônito. O que acontecerá agora?

Dois homens acham que são a solução para o problema. Ambos são da tribo de Benjamim e capitães de tropa de Israel (4:2). Seus nomes são Baaná e Recabe, filhos de Rimom. Para deixar as coisas bem claras: Isbosete é apenas um governante interino. Na verdade, ele não consegue governar sozinho, pois Abner era o cérebro e os músculos (soldados) de sua administração fantoche. No entanto, ei-lo aqui, um rei simbólico e fraco, governando uma nação cada vez mais enfraquecida. Davi já foi designado para reinar em todo Israel, e todos sabem disso, mas ninguém sabe como fazer para isso acontecer. E assim, os dois líderes chegam confiadamente à casa do rei em pleno meio-dia, fingindo estar à procura de trigo. O rei está tirando uma soneca quando eles entram no quarto e o matam. A seguir, eles cortam sua cabeça e viajam a noite toda até Hebrom para falar com Davi. Orgulhosamente, eles lhe mostram a cabeça do rei, filho de Saul, “inimigo de Davi”.

Eles não entendem nada. Não entendem a submissão de Davi a Deus e sua recusa em levantar a mão contra o ungido do Senhor (ou mesmo contra alguém feito rei de maneira não tão honrosa). Eles não entendem o amor de Davi por Saul ou seu compromisso de preservar a vida de seus descendentes e honrar seu nome (I Samuel 24:16-22). Eles não ouviram falar, pelas atitudes anteriores de Davi, que ele não está tão ansioso para se sentar trono a ponto tolerar a maldade daqueles que procuram matar o ungido de Deus.

“Porém Davi, respondendo a Recabe e a Baaná, seu irmão, filhos de Rimom, o beerotita, disse-lhes: Tão certo como vive o SENHOR, que remiu a minha alma de toda a angústia, se eu logo lancei mão daquele que me trouxe notícia, dizendo: Eis que Saul é morto, parecendo-lhe porém aos seus olhos que era como quem trazia boas-novas, e como recompensa o matei em Ziclague,  muito mais a perversos, que mataram a um homem justo em sua casa, no seu leito; agora, pois, não requereria eu o seu sangue de vossas mãos e não vos exterminaria da terra? Deu Davi ordem aos seus moços; eles, pois, os mataram e, tendo-lhes cortado as mãos e os pés, os penduraram junto ao açude em Hebrom; tomaram, porém, a cabeça de Isbosete, e a enterraram na sepultura de Abner, em Hebrom.” (II Samuel 4:9-12)

Novamente, Davi não é nenhum oportunista que irá usar de quaisquer meios para assentar-se no trono prometido por Deus. Nem fará vistas grossas quando outros intentarem o mal para facilitar sua ascendência ao trono. Davi é um homem que entende o que significa ser o rei de Deus:

“Nos lábios do rei se acham decisões autorizadas; no julgar não transgrida, pois, a sua boca.” (Provérbios 16:10)

“Assentando-se o rei no trono do juízo, com os seus olhos dissipa todo mal.” (Provérbios 20:8)

“O rei sábio joeira os perversos e faz passar sobre eles a roda.” (Provérbios 20:26)

“tira o perverso da presença do rei, e o seu trono se firmará na justiça” (Provérbios 25:5)

Nos primeiros cinco versículos de II Samuel 5, Davi é ungido rei de todo Israel. Finalmente! Finalmente mesmo! Tudo começou muitos anos antes, quando Davi ainda devia ser um adolescente. Para seu espanto, e para o de sua família, ele é ungido como o futuro rei de Israel. Quase 15 anos antes de ser ungido rei de Judá, e outros sete de todo Israel. No entanto, agora, finalmente, ele é rei. Na parte final desta mensagem, gostaria de deixar os detalhes de lado e dar uma olhada no cenário mais abrangente dado pelo autor desde I Samuel 16 até II Samuel 5.

Lições A Serem Aprendidas Com A Demora Do Reinado De Davi

1) Devemos começar observando que a promessa feita por Deus a Israel e a Davi (implícita na época em que Davi foi ungido por Samuel) levou muito tempo para ser cumprida. Davi se torna rei de Israel depois de uma considerável demora, e de muita adversidade. Esse é o tema de I Samuel 16:1 a II Samuel 5:5. Esse período da vida de Davi pode ser resumido em duas palavras: “tempo” e “problema”.

2) A demora para Davi se tornar rei de Israel não é incomum, mas é o jeito típico de Deus cumprir Suas promessas e Seus propósitos. Para ser mais sucinto: Deus não está com pressa. Deus tem todo o tempo do mundo. Na verdade, Deus é muito maior que o tempo e com certeza não é limitado por ele. Em toda a Bíblia vejo Deus prometendo coisas que os homens precisam esperar para receber:

·         Deus prometeu um filho a Abrão e Sarai, mas eles tiverem de esperar 25 anos para tê-lo.

·         Deus prometeu a Noé que haveria um dilúvio, mas isso demorou muito para acontecer.

·         Deus fez Jacó esperar durante 14 anos para ter a mulher que ele queria.

·         José teve de esperar um tempo considerável para ver seus irmãos e sua família, e não conseguiu voltar para sua terra senão depois de sua morte (seus ossos foram carregados para a terra prometida).

·         Os israelitas tiveram de esperar 430 anos no Egito, antes de voltarem para a terra prometida.

·         O escritor de Hebreus nos conta que todos os santos do Antigo Testamento tiveram de esperar por nós (os gentios?) antes de poderem ver o reino prometido (Hebreus 11:39-40).

·         Durante 2.000 anos os santos têm esperado a volta de nosso Senhor e a vinda do Seu reino.

Esperar é parte do desígnio divino. A espera não é um acidente, é um propósito.

3) Muitas pessoas fracassam na e obediência a Deus enquanto esperam: Esperar é uma forma de adversidade, um teste para nossa fé e perseverança.

“Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.” (Hebreus 11:13-16)

“Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus.” (I Pedro 2:20)

Muitas das falhas que vemos na Bíblia estão relacionadas a espera. Tenho a impressão de que tudo começou bem no princípio, com Adão e Eva. Quanto mais penso na história da queda, mais concordo com a interpretação que vê a tentação e o pecado como tomar um atalho para alcançar uma coisa boa. O conhecimento do bem e do mal, em si mesmo, não é uma coisa ruim. Se Adão e Eva iriam se tornar “como Deus” conhecendo o bem e do mal, como, então, isso poderia ser ruim? É ruim ser como Deus? Não é isso o que Deus está fazendo conosco, conformando-nos a imagem de Cristo (Romanos 8:29)? Não seremos “como Ele” quando “O virmos como Ele é” (I João 3:2)? Davi não foi elogiado por “conhecer o bem e o mal” (II Samuel 14:17)? Salomão orou pedindo sabedoria para discernir entre “o bem e o mal” (I Reis 3:9). Os cristãos, pela obediência à Palavra de Deus, “têm a faculdade exercitada para discernir o bem e o mal” (Hebreus 5:14). Creio, no entanto, que Deus queria que Adão e Eva tivessem esse conhecimento, mas não pelo meio fácil e rápido de pegar às escondidas o fruto proibido. Não era errado conhecer o bem e o mal, mas sim conhecê-lo de uma forma que Deus havia proibido. Creio que Deus tinha um jeito melhor e mais lento para isso, mas eles preferiram o atalho. Eles não quiseram esperar no Senhor por esse conhecimento.

Abraão e Sara tinham de esperar pelo filho prometido e, pelo menos uma de suas falhas foi no campo da paciência, de esperar em Deus pelo cumprimento de Sua promessa. Não foi por isso que Abrão disse ser o damasceno Eliézer seu herdeiro (Gênesis 15:2)? Não foi por isso também que Abrão anuiu ao conselho de Sarai para ter o descendente prometido por meio de sua serva Agar (Gênesis 16:1-2)? Conforme descrito em Êxodo 32, os israelitas pecaram ao fazer o bezerro de ouro. Isto não ocorreu porque eles não quiseram esperar 40 dias pelo retorno de Moisés do Monte Sinai? Em I Samuel 13, o pecado de Saul não foi porque ele não quis esperar por Samuel? Não estavam os discípulos de nosso Senhor sempre perguntando pela vinda do Seu reino e tentando apressá-la? Não foi por não quererem esperar, que os onze apóstolos e outras pessoas se adiantaram e elegeram Matias em lugar de Judas, quando Jesus os tinha instruído a esperar “pela promessa do Pai” (Atos 1:4)?

A igreja de Corinto tinha muitos problemas. Um deles era no campo da espera. Eles não podiam esperar que Deus fizesse justiça, por isso, levavam uns aos outros ao tribunal (I Coríntios 6). Eles não podiam esperar pela chegada dos irmãos, por isso se adiantavam e se excediam na comida e na bebida durante as refeições, transformando a Ceia do Senhor numa farsa (I Coríntios 11). Eles não podiam esperar pelo cumprimento das promessas de Deus sobre uma espiritualidade plena, por isso admitiam professores e ensinamentos triunfalistas: você pode ter tudo hoje, não depois.

Não é de admirar que nosso Senhor tenha dedicado tanto tempo e atenção ensinando a Seus discípulos como se comportar enquanto esperassem Sua volta:

“Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá. Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim. Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas, se aquele servo disser consigo mesmo: Meu senhor tarda em vir, e passar a espancar os criados e as criadas, a comer, a beber e a embriagar-se, virá o senhor daquele servo, em dia em que não o espera e em hora que não sabe, e castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os infiéis. Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.” (Lucas 12:40-48)

4) Satanás muitas vezes ataca tentando tirar proveito da demora divina. Satanás tenta tranquilizar a mente do incrédulo mostrando que a demora divina é uma prova de que Deus não sabe, ou não se importa, quando pecamos:

“Amados, esta é, agora, a segunda epístola que vos escrevo; em ambas, procuro despertar com lembranças a vossa mente esclarecida, para que vos recordeis das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos, tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação.” (II Pedro 3:1-4)

Satanás procura minar a fé e a obediência dos filhos de Deus enganando-os a respeito da bondade divina quando Deus demora em atendê-los. Creio que foi isso o que Satanás fez com Adão e Eva no jardim do Éden. Creio também que este seja o cerne da tentação de nosso Senhor no início de Seu ministério terreno. Satanás disse ao Senhor: “Ok, sei que você é o Rei de Deus. Contudo, em vez de negar a si mesmo (obedendo a Deus e ficando 40 dias e 40 noites sem comer), por que não se serve? Por que não come agora? Por que entrar no seu reino com tanto sofrimento? Por que não me adora e eu lhe dou o reino agora mesmo? Não é assim que Satanás pensa e age?

Enquanto esperamos, Satanás quer nos fazer acreditar que as promessas de Deus jamais serão cumpridas. Ele procura nos levar a agir independentemente de Deus, conseguindo as coisas por nós mesmos, em vez de esperar que Deus as dê para nós. Satanás procura levantar dúvidas quanto a bondade de Deus, como se Deus estivesse retendo algo bom de nós por pura mesquinharia. Satanás age promovendo a desconfiança em Deus, especialmente em Sua Palavra. Ele nos leva a desobedecer a Deus e a seguir nosso próprio julgamento. Ele nos incita a aproveitar as ocasiões, usar meios questionáveis e usar os outros como meios de obter aquilo que desejamos.

5) Tempo de espera no Senhor é tempo de ter a é levada ao limite e a intimidade com Deus reforçada. Já perceberam como muitos Salmos foram escritos em tempos de espera? A pergunta “Até quando...”? é encontrada diversas vezes nos salmos, ou seja, “espera no Senhor”. Davi, muitas vezes, é o autor desses salmos de “espera”. Esperar no Senhor é bom para nós. Esperar nos ajuda a desenvolver a paciência e a tolerância. Faz com que exercitemos nossa fé nas promessas de Deus e ajamos com base na Sua Palavra, não em nossa vista. Esperar aumenta nosso apetite pelas coisas boas que Deus tem reservado para nós. Esperar requer negar os desejos carnais e deixar de lado o desejo de gratificação imediata pelo meio mais fácil. Esperar no Senhor é uma das maneiras de “tomarmos nossa cruz e segui-lO”.

6) Esperar no Senhor também consiste em pureza sexual. Hoje em dia há muita conversa sobre “sexo seguro” e bem pouca sobre abstinência. Isso acontece porque esperar pelos prazeres do sexo conjugal é um tabu. A virgindade é desdenhada como se fosse uma maldição, não um presente que um cônjuge oferece ao outro. Esperar no Senhor pelas alegrias e pelos prazeres do sexo conjugal aumenta a alegria e o prazer desta dádiva, se e quando Deus a der. O que desejo frisar é que a pureza sexual requer espera e a espera é uma boa parte daquilo que a vida cristã requer. Não devemos considerar este assunto como algo que Deus cruelmente retém de nós, mas como um presente muito bom, o qual estamos dispostos a esperar no Senhor para podermos desfrutar plenamente e sem culpa.

7) Alguns tipos de espera não são cristãs. Muitas vezes temos tendência a esperar quando deveríamos trabalhar e trabalhar quando deveríamos esperar. Esperar para fazer aquilo que sabemos que é certo, aquilo que Deus nos ordena a fazer, não é uma atitude cristã, é pecado (Tiago 4:17). Esperar para aceitar a salvação e o perdão dos pecados em Jesus é a pior coisa que existe (Hebreus 3:12-15). A espera que agrada a Deus consiste naquela em que Ele fez uma promessa que nós mesmos não podemos cumprir sem agir com incredulidade e desobediência à Sua Palavra.

8) Esperar não é, necessariamente, uma época de passividade. Já reparou no que as pessoas fazem enquanto estão esperando? Algumas não fazem absolutamente nada. Entretanto, noto que outras (não exatamente homens) fazem crochê ou bordam. Há coisas construtivas que se pode fazer enquanto se espera. Davi esperou mais de 20 anos para reinar sobre todo Israel, mas essa foi uma época bastante ocupada de sua vida. Ele fez muito mais do que simplesmente fugir para se salvar. Ele libertou o povo de Queila (I Samuel 23:1-5) e fez boas coisas para o povo de Judá (I Samuel 30:26-31). Uma das coisas que podemos fazer enquanto esperamos é louvar a Deus e orar, como Davi e outras pessoas fizeram nos salmos. Embora não possamos fazer aquilo que mais desejamos, podemos fazer aquilo que Deus nos oportunidade de fazer, enquanto esperamos nEle pelo cumprimento de Suas promessas e de Seus propósitos.

9) Esperar é uma parte significativa da vida de cada um de nós. Quando eu era jovem,  mal podia esperar pelo meu 16º aniversário para poder dirigir legamente. Mal podia esperar para crescer e ter todos os privilégios e liberdades de um adulto. Quando estava namorando, mal podia esperar pelo dia do casamento. Cada um de nós espera uma porção de coisas neste exato momento. Permitam-me citar apenas algumas:

·         Nossos jovens esperam para crescer e desfrutar dos direitos, privilégios e responsabilidades da vida adulta. Rebeliões na adolescência e sexo antes do casamento são tentativas de tomar um caminho mais curto que muitas vezes acaba causando um curto-circuito;

·         Alguns casais esperam ter filhos. A maioria dos pais tem de esperar pelo menos nove meses para ter um filho, e muitos deles têm de esperar muito mais;

·         Muitas pessoas esperam reconhecimento e recompensa por seu trabalho, enquanto outras tomam atalhos para serem promovidas;

·         Quase todos os cristãos passam por algum tipo de dor ou sofrimento em que têm de esperar por libertação;

·         Todos os cristãos esperam pela salvação de entes queridos, amigos ou parentes;

·         Todos nós nos encontramos esperando que Deus mude alguém a quem amamos ou que é próximo a nós;

·         Todos esperamos a vinda de nosso Senhor e de Seu reino;

·         Por mais estranho que pareça, uma porção de cristãos esperam pela morte. Há aqueles que não conseguirão esperar pelo tempo de Deus e escolherão o suicídio como meio de aliviar sua dor. Outros não conseguem suportar o sofrimento de seus entes queridos e escolhem a eutanásia. Todos conhecemos situações em que desejamos que o Senhor “os leve” ou “nos leve”, mas Deus nos diz para esperar.

10) Finalmente, tenha a certeza de que vale a pena esperar no Senhor. Se você quer uma refeição rápida, pode ir a um drive-through do McDonald’s e comprar um “Mc Lanche Feliz”. No entanto, se quer uma lauta refeição, sabe que terá de esperar um pouco. Grandes refeições não são preparadas de uma hora para outra, não importa o que digam os comerciais de TV. Nunca vi alguém colocando comida no micro-ondas porque achasse que ela ficaria mais saborosa do que se preparada no forno ou numa panela de barro. Usamos o micro-ondas quando queremos comer logo. Usamos o forno quando queremos comer bem. Os planos e as promessas de Deus não são comida de micro-ondas. Deus prepara lentamente Seus planos e Seu povo extraindo deles o que é melhor. Quase sempre você pode esperar que Deus o fará aguardar porque Ele tem o que é melhor para você. Ele nunca se atrasa, mas dificilmente se apressa. Contudo, posso lhe garantir: Quando o plano de Deus é que você espere, Ele vai fazer a espera valer a pena.

Aprendamos com Davi que esperar é uma parte normal da vida cristã. Seremos tentados a encurtar esta espera, mas ceder seria pecado. Muitas vezes, outras pessoas querem nos ajudar a tomar um atalho. Contudo, precisamos decidir de coração a ser como Davi e esperar no Senhor pelo cumprimento de Seus propósitos e de Suas promessas, no Seu tempo. Tenhamos certeza de que, enquanto esperamos, Deus está operando em nós, preparando-nos para as coisas boas que estão à nossa frente. Não duvidemos de que as veremos. E dediquemo-nos a fazer o bem que conhecemos e que somos capazes de fazer enquanto esperamos.

Tradução: Mariza Regina de Souza

5. Um Lugar Só Seu (II Samuel 5:1-25)

Introdução

Há muitos anos li um livro excelente intitulado Shantung Compound, escrito por Langdon Gilkey. Um dos capítulos do livro é denominado “Um lugar só seu”. Gilkey ficou confinado num campo de detenção junto com um grupo diversificado de pessoas, os quais tinham uma coisa em comum: todos eram ocidentais. Quando invadiram a China durante a II Guerra Mundial, os japoneses não sabiam o que fazer com aquelas pessoas, por isso, mantiveram-nas detidas em diversos acampamentos. Shantung Compound era um antigo acampamento presbiteriano que foi convertido para esse fim. Gilkey recebeu a tarefa de designar os quartos das pessoas confinadas naquele local, o que acarretou algumas situações muito interessantes, como ele bem descreve em seu livro.

No capítulo “Um lugar só seu”, Gilkey fala sobre o desejo das pessoas terem um lugar que possam chamar de seu. Em um dos exemplos, uma senhora muito fina e educada manifestou essa ânsia de ter o seu próprio “canto”. Uma mulher, cuja cama ficava ao lado direito da dela começou a sentir que a cama estava se movendo. A cada dia, quando ela olhava pela janela, a vista estava ligeiramente diferente. Ela percebeu que a cama estava sendo movida. A adorável senhora ao lado estava empurrando sua própria cama, e a da sua colega de quarto, uns poucos milímetros por dia, para ter um pouco mais de espaço às custas de sua companheira. Todos nós queremos “um cantinho só nosso”, não é?

Chegamos a II Samuel 5, onde Davi se torna o rei de todo Israel e, ao mesmo tempo, dono de um lugar finalmente seu. Até aqui o lugar é conhecido como Jebus e seus habitantes, como jebuzeus. Entretanto, de nosso texto em diante, Jebus se torna Jerusalém, Sião, a “cidade de Davi”. No capítulo seguinte, Jerusalém se tornará o lugar da morada de Deus, quando a Arca da Aliança for trazida para a cidade, onde Salomão mais tarde construirá o templo. O momento é glorioso para Davi e muito instrutivo para nós. Vamos pedir a assistência do Espírito Santo para aprender o que Ele tem a nos ensinar sobre Davi encontrar “um lugar só dele”.

A Estrutura Do Texto

Como resultado do estudo de II Samuel, vejo agora que o capítulo 5 está divido em quatro seções principais, as quais resumo abaixo:

·         5:1-5: Israel se submete a Davi como o “Rei de Deus”

·         5:6-10: Davi toma Jebus e faz dela Jerusalém, a “cidade de Davi

·         5:11-16: A construção da casa de Davi (o lugar físico, dele e de sua família)

·         5:17-25: Davi derrota os filisteus

Israel Submete-Se A Davi Como O Rei De Deus
(5:1-5)

“Então, todas as tribos de Israel vieram a Davi, a Hebrom, e falaram, dizendo: Somos do mesmo povo de que tu és. Outrora, sendo Saul ainda rei sobre nós, eras tu que fazias entradas e saídas militares com Israel; também o SENHOR te disse: Tu apascentarás o meu povo de Israel e serás chefe sobre Israel. Assim, pois, todos os anciãos de Israel vieram ter com o rei, em Hebrom; e o rei Davi fez com eles aliança em Hebrom, perante o SENHOR. Ungiram Davi rei sobre Israel. Da idade de trinta anos era Davi quando começou a reinar; e reinou quarenta anos. Em Hebrom, reinou sobre Judá sete anos e seis meses; em Jerusalém, reinou trinta e três anos sobre todo o Israel e Judá.”

Os israelitas estão em foco nos versos 1 a 3. São eles que vão a Hebrom e reconhecem Davi como rei e o ungem. Tendo admitido que a iniciativa foi do povo, precisamos nos lembrar de que foram eles também que tomaram a iniciativa na época de Saul. Não é possível compreender totalmente o significado da submissão dos israelitas a Davi sem fazer a comparação e o contraste deste acontecimento com o de I Samuel 8 a 12, quando o povo exige um rei e recebe Saul como o primeiro rei de Israel.

Vocês devem se lembrar de que em I Samuel 8 Samuel já está avançado em idade e seus filhos não são seus melhores substitutos (8:1-3). Eles são desonestos e abusam de sua autoridade como juízes em Berseba. Por isso, no verso 4 do capítulo 8, os anciãos de Israel exigem que Samuel lhes dê um rei “para governá-los, como todas as nações” (8:5). Samuel fica muito chateado com a exigência do povo e Deus também fica muito desgostoso. O povo não está só rejeitando Samuel como juiz, eles estão rejeitando a Deus como rei (8:7-8). Apesar disso, Deus manda Samuel alertá-los sobre os altos custos de um rei e dizer-lhes que eles realmente terão o querem. Nos capítulos 9 e 10, Saul é designado e ungido como o primeiro rei de Israel. No capítulo 11, ele lidera os israelitas na guerra contra Naás e os amonitas, os quais sitiam Jabes Gileade e ameaçam humilhar seus habitantes vazando o olho direito de cada cidadão (11:1-2). Deus dá a Saul e Israel uma grande vitória sobre os amonitas e o povo exulta de alegria. Eles querem por as mãos em cima dos homens que desprezaram Saul e matá-los (11:12-13).

No capítulo 12 Samuel coloca a questão na perspectiva correta. A exigência de Israel é pecado, por isso, Deus manda uma tempestade que destrói a sega do trigo (12:12-18). Em certo sentido, esta geração de israelitas é exatamente como seus antepassados. A oposição de nações estrangeiras é um castigo divino pelo desrespeito de Israel às leis de Deus. No entanto, por outro lado, o pecado de exigir um rei é ainda maior do que o de seus antepassados. No passado, Deus enviava um libertador quando a nação se arrependia e clamava por libertação. Neste caso, não há arrependimento algum. Eles não imploram por libertação; mas exigem um rei. Creio que Israel quer um libertador sem ter de se arrepender, e também quer um rei que lhes assegure futuras libertações. Eles querem um rei para não terem de confiar em Deus e obedecê-lO. Quando Samuel aponta o pecado e o enfatiza com uma tempestade, o povo se arrepende.

A seguir, Samuel faz uma promessa ao povo:

“Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais.” (I Samuel 12:13-15)

“Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (I Samuel 12: 24-25)

O que desejo assinalar aqui é a ligação que Samuel faz entre o povo e seu rei. Tanto um quanto outro precisam confiar em Deus e obedecê-lO. Se não o fizerem, Deus os castigará. Caso contrário, Deus os abençoará. Acredito que Samuel esteja indicando para nós que o povo vai ter o rei que deseja e que merece. Deus lhes dá o rei Saul, pois ele é exatamente como eles. Ele se rebela contra a Palavra de Deus, da mesma forma que o povo. Ele é incapaz de obedecer a Deus plenamente, da mesma forma que eles. No caso de I Samuel 8 a 12, o povo exige um rei por razões totalmente erradas. Agora, vejo que os pecados dos filhos de Samuel eram somente um pretexto para exigirem um rei e que seus motivos eram bem menos nobres do que “justiça”. Em I Samuel 12:12, Samuel diz ao povo que o verdadeiro motivo é o medo que sentem de Naás, que avança contra Israel. Eles querem um rei que os lidere na guerra e lhes dê a vitória sobre seus inimigos. Eles querem um libertador como Sansão, não como Samuel. Samuel expõe toda hipocrisia e fingimento para revelar o pecado de Israel, o qual torna o povo digno de um rei como Saul.

No entanto, quando chegamos a II Samuel 5, vemos uma mudança radical. Não é apenas a mudança de um rei patético como Saul para um líder patriótico como Davi. O povo também muda. Preciso fazer uma confissão. Até aqui tenho sido insensível para com os israelitas. Tenho ficado do lado de cá da história com as mãos na cintura, batento o pé com impaciência. Quando leio os versos 1 a 5 do capítulo 5, encontro-me pensando: “Já não era sem tempo!” Entretanto, mudei de ideia. Agora, vejo a demora dos israelitas de modo diferente. Permitam-me tentar explicar.

Vocês irão reparar que aqui não há nenhuma crise, nenhum perigo iminente que force os líderes israelitas a agir. Saul está morto, bem como seus filhos, incluindo Isbosete. Não há nenhum ataque filisteu, nehuma ameaça amonita. Os filisteus só atacam quando ficam sabendo que Davi foi ungido rei sobre todo Israel (II Samuel 5:17). Os anciãos israelitas vão a Davi quando ele está em Hebrom, submetendo-se a ele como o rei de Deus. Em I Samuel 8, eles se rebelaram contra Deus como seu Rei, mas não aqui. Aqui, eles agem em obediência a Deus, não em rebelião. O rei que eles recebem, Davi, é, de certa forma, o rei que merecem. Quando vão a Davi, os israelitas reconhecem muitas verdades de vital importância que são a base de seu reinado e, portanto, da submissão deles a ele como rei.

1) Os líderes israelitas reconhecem seus laços naturais com Davi: Somos do mesmo povo de que tu és... Esta confissão por parte dos israelitas é muito importante. Eles reconhecem que há uma união essencial, com raízes num antepassado comum, Jacó (a quem Deus chamou Israel). Eles não dizem a Davi: “você é um de nós”, e sim “nós somos um com você”. Desde o princípio existe um problema de unidade entre os filhos de Jacó, como se vê no ódio demonstrado para com José. Saul é da tribo de Benjamim e Davi da tribo de Judá. Abner, com certeza, agravou o desentendimento entre as duas tribos e ouriçou as demais. Agora os israelitas estão dispostos a se ver como uma nação, não como duas. Esta é a chave para a liderança de Davi em toda a nação. Só precisamos nos lembrar das palavras dos israelitas quando ocorre a divisão do reino para ver o quanto esta união é importante:

“Vendo, pois, todo o Israel que o rei não lhe dava ouvidos, reagiu, dizendo: Que parte temos nós com Davi? Não há para nós herança no filho de Jessé! Às vossas tendas, ó Israel! Cuida, agora, da tua casa, ó Davi! Então, Israel se foi às suas tendas.” (I Reis 12:16)

2) Os israelitas reconhecem a liderança de Davi mesmo quando Saul ainda era rei. Quando o povo exige um rei, eles querem alguém que “vá adiante deles e lute suas batalhas” (ver I Samuel 8:19-20). No fundo, Saul se esquivava de suas responsabilidades e era Davi quem fazia o que o povo queria. Não foi Saul quem subiu contra Golias, foi Davi. Não foi Saul quem liderou Israel nas batalhas, foi Davi (pelo menos ele foi um dos comandantes). Os anciãos israelitas reconhecem a liderança de Davi por ele ter agido como rei. Na verdade, os anciãos reconhecem que, mesmo quando Saul era o rei, Davi agia mais como rei do que ele. Eles não estão optando por um produto desconhecido (como fizeram com Saul), mas por alguém que já provou ser “um forte e valente, homem de guerra” (I Samuel 16:18)

3) Os anciãos de Israel se submetem à Palavra de Deus à medida que reconhecem ser Davi o rei escolhido de Deus. Davi foi ungido publicamente como o futuro rei de Israel (I Samuel 16:1-13). Saul sabia que Davi seria o próximo rei (I Samuel 24:20), bem como Abigail (I Samuel 25:30) e os filisteus (I Samuel 21:11). Todos em Israel deviam saber que ele tinha sido designado por Deus para reinar em lugar de Saul (II Samuel 3:9-10, 18). Os israelitas não ficam surpresos quando sabem que ele será o próximo rei, embora sejam um pouco tardios em agir de acordo com essa revelação. Quando vão até el, os anciãos estão obedecendo à vontade revelada de Deus. Isso é muito melhor do que quando se rebeleram contra Ele em I Samuel 8, exigindo um rei.

A unção de Davi (pela terceira vez) pelos anciãos de Israel não é nenhuma surpresa, pois está dentro do contexto da aliança feita por Deus com Davi anteriormente (II Samuel 5:3). Esse é um ato de obediência e fé. Isso está bem longe do confronto que vemos entre eles e Samuel no capítulo 8. O reinado de Davi é um reinado de justiça devido, em parte, ao arrependimento e à obediência de Israel e seus líderes.

Davi Captura Jebus, Que Vem A Se Tornar Jerusalém, A “Cidade De Davi”
(5:6-10)

“Partiu o rei com os seus homens para Jerusalém, contra os jebuseus que habitavam naquela terra e que disseram a Davi: Não entrarás aqui, porque os cegos e os coxos te repelirão, como quem diz: Davi não entrará neste lugar. Porém Davi tomou a fortaleza de Sião; esta é a Cidade de Davi. Davi, naquele dia, mandou dizer: Todo o que está disposto a ferir os jebuseus suba pelo canal subterrâneo e fira os cegos e os coxos, a quem a alma de Davi aborrece. (Por isso, se diz: Nem cego nem coxo entrará na casa.) Assim, habitou Davi na fortaleza e lhe chamou a Cidade de Davi; foi edificando em redor, desde Milo e para dentro. Ia Davi crescendo em poder cada vez mais, porque o SENHOR, Deus dos Exércitos, era com ele.”

Existem muitas histórias longas. Quando pergunto às pessoas como elas se tornaram cristãs, em geral, elas sorriem e dizem: “Bem, é uma longa história”. A história da cidade de Jerusalém também é longa. Jerusalém é, até a época em que Davi a captura, conhecida como Jebus, e seus habitantes, como jebuseus. Os jebuseus são mencionados pela primeira vez em Gênesis 10:15-16, onde está escrito que eles são cananeus genuínos, descendentes de Canaã, terceiro filho de Cam (Gênesis 10:6). Foi esse Cam que viu a nudez de Noé (Gênesis 9:22) e trouxe maldição sobre si mesmo e seus descendentes (Gênesis 9:25). Abraão ofereceu seu filho Isaque no monte Moriá (Gênesis). Esse monte é o mesmo onde Salomão construiu o templo (II Crônicas 3:1).

Deus repetidamente prometera aos israelitas que os levaria para a terra prometida. Essa terra era possuída pelos cananeus (incluindo os jebuseus), e Deus também havia prometido expulsá-los de lá (Gênesis 15:18-21; Êxodo 3:8, 17, 13:5, 23:23, 33:2, 34,11). Quando os espias foram enviados para observá-la, entre os habitantes do lugar eles citaram os jebuseus (Números 13:29). Deus não havia só prometido expulsar os cananeus (Josué 3:10), Ele também ordenara que os israelitas o fizessem (Deuteronômio 7:1 e ss, 20:17). Quando eles cruzaram o Jordão, os jebuseus estavam entre os que uniram forças para se opor à sua entrada na terra (Josué 9-11, 24:11).

No livro de Josué, Jebus inicialmente é descrita como uma das cidades cujos habitantes os filhos de Judá não conseguiram expulsar (Josué 15:63). Em Josué 18:28, parece que ela é uma cidade benjamita, os quais também não conseguiram expulsar os jebuseus (Juízes 1:21). Isso conduz a uma espécie de convivência que leva os israelitas a adotar os pecados dos jebuseus (Juízes 3:1-7 e ss). Em decorrência disso, Israel sofre a opressão de seus vizinhos como castigo divino (Juízes 3:8 e ss). Em Juízes 19:10-12, a cidade ainda é retratada como não israelita. Pode ter havido momentos em que a cidade esteve sob o domínio de Israel (cf. I Samuel 17:54), mas a vitória estava longe de ser completa. Somente nos dias de Davi (e de nosso texto - ver também I Crônicas 21:15) é que ela é tomada pelos israelitas de uma vez por todas. Há ainda muitas coisas a dizer sobre Jebus, agora Jerusalém, mas vamos esperar a próxima lição, no capítulo seis, para fazê-lo.

Creio que a tomada de Jebus nos versos 6 a 10 deva ser entendida em relação aos versos 17 a 25, quando Davi vence os filisteus por duas vezes. Não é difícil compreender porque ele lutou contra eles neste capítulo, pois era uma questão de autodefesa. Eles atacaram os israelitas, e especialmente Davi. Posso até imaginar como eles se sentiram, sabendo que haviam dado asilo a Davi (ou pelo menos Aquis, rei de Gate). Eles tinham até permitido que ele fizesse parte de seu exército. Havia muito pouco que Davi não soubesse sobre eles - seus métodos, suas rotas, seus recursos. Davi seria um inimigo formidável. Seria melhor resolver logo o assunto, antes que ele ficasse muito forte. Quando os filisteus subiram contra ele, Davi não teve muita escolha, a não ser lutar contra eles. No entanto, os jebuseus não estavam em guerra contra os israelitas. Eles tinham chegado a uma espécie de convivência pacífica. Não havia nenhuma “necessidade” aparente para essa luta. Por que, então, Davi levou Israel inteiro a subir contra a cidade, a qual os israelitas nunca tinham sido capazes de vencer totalmente?

Creio que há muitas razões para isso. Antes de mais nada, Jebus era uma cidade que Deus prometera dar aos israelitas e cujo povo Ele ordenara fosse destruído. A presença deles entre os israelitas estava corrompendo o povo de Deus (Juízes 3:5-6). Saul relutava em combater decisivamente os ataques externos dos inimigos de Israel. Ele estava até disposto a conviver com o inimigo dentro da nação. Até onde podemos ver, os jebuseus tinham sido deixados em paz. Não havia resistência nem à guarnição dos filisteus, até que Jônatas, não tolerando mais sua presença, praticamente os obrigasse, bem como a seu pai, a agir (I Samuel 13:33). Davi percebeu que nenhum reino poderia ser visto com temor (ou mesmo respeito) se não conseguisse expulsar os inimigos de seu meio. Os jebuseus eram um problema que precisava ser resolvido e Davi sabia disso. Já era tempo desses inimigos de Deus serem derrotados. A derrota dos jebuseus e a tomada da cidade seriam o primeiro passo na conquista de Israel sobre seus inimigos, uma conquista que fora parcial na época de Josué e dos juízes. Esta vitória ofuscaria a vitória de Saul e os israelitas sobre os amonitas (I Samuel 11). Que maneira melhor de começar a reinar?

Em segundo lugar, Davi precisava de uma capital. Quando ele era apenas o rei de Judá, Hebrom servia muito bem a esse propósito. No entanto, agora ele era o rei de todo Israel. Ele precisava de uma capital mais ao norte. Ele precisava de uma capital mais centralizada, que unificasse a nação. Jebus era a cidade perfeita. A vitória de Israel sobre os jebuseus unificaria a nação, e a posse da cidade como a nova capital de Davi também. Jebus ficava praticamente na fronteira entre Judá e Benjamim. Era uma cidade que nem os filhos de Judá, nem os filhos de Benjamim tinham sido capazes de capturar. Portanto, tomá-la como capital não favoreceria nenhuma das duas tribos. Além do mais, sua localização natural tornava difícil sua conquista (razão pela qual os israelitas não o fizeram antes). Ela ficava numa região montanhosa, no topo de mais de uma montanha, cercada por vales. Com um pouco de trabalho, era uma verdadeira fortaleza (5:9).

Há uma referência tripla aos “cegos e coxos” nos versos 6 a 10. Quase todos concordam que isso deve ser importante, mas há pouco consenso quanto ao seu significado. Prefiro tomar esses versos ao pé da letra e interpretá-los à luz de todo o contexto. Não creio que o povo de Jebus tenha em mente alguém especial quando diz: “Não entrarás aqui, porque os cegos e os coxos te repelirão” (verso 6). Sabemos que eles dizem isso porque pensam não haver jeito de Davi entrar na cidade e tomá-la.

Você já levou uma corrida de um cão bravo e depois descobriu que ele estava preso a uma corrente que o parou a apenas alguns centímetros de você? Se ele estivesse solto, ou você fugiria ou falaria mansamente com ele, tentando convencê-lo a não lhe morder. Com certeza, você não o irritaria ou provocaria se pensasse que ele estava solto. Entretanto, quando você vê que o cachorro está preso a uma longa corrente, ou atrás de uma cerca, subitamente você cria coragem para gritar com ele ou até mesmo para provocá-lo. Quando presumimos que estamos a salvo, falamos com muito mais ousadia.

Ora, quando os jebuseus viram Davi e os soldados israelitas subindo contra sua cidade, eles não ficaram assustados, pois isso não era nenhuma novidade. Esse tipo de ataque era frequente na história de Jebus, mas nunca com sucesso. Por isso, a salvo atrás dos muros da cidade, eles zombaram de Davi e seus homens. A ameaça era mais ou menos como a de um valentão arrogante: “Dou um jeito em você com um pé nas costas”. Será que eles ficaram intimidados com o exército de Davi? Não mesmo! Por isso, zombaram deles, alardeando que estavam tão securos que podiam até se defender com cegos e coxos.

Davi ficou furioso, exatamente como ficou com a arrogante ostentação de Golias. Ele usou as mesmas palavras dos jebuseus na ordem que deu a seus homens: “Que os homens vão e lutem com os ‘cegos e coxos’, entrando na cidade pelo canal subterrâneo”. Eles entraram e derrotaram os jebuseus. Desse dia em diante passou a existir um provérbio entre os seguidores de Davi: ‘Nem cego nem coxo entrará na casa’. Isso parece uma desculpa, um pretexto, para quem não tem compaixão dos deficientes ou para quem aproveita a ocasião para justificar sua falta de misericórdia. Creio que estas palavras foram registradas em função de II Samuel 4:4 e 9:1-3. Os servos de Isbosete não o mataram em sua própria cama? Os israelitas realmente não proibiam os deficientes físicos de entrar em suas casas? Davi, pois, iria buscar o deficiente físico Mefibosete e fazê-lo assentar-se à sua própria mesa, demonstrando assim o seu amor por Jônatas.

Não foi a atitude de Davi uma prefiguração daquilo que o Rei supremo de Israel faria quando viesse à terra? Os fanáticos religiosos se desviavam e atravessavam a rua para evitar o contato com um homem ferido (ver Lucas 10:25-37). Eles se admiravam quando Jesus se associava com pecadores e era tocado por pessoas impuras. As mesmas pessoas que eles evitavam, Jesus buscava. Davi foi um tipo dAquele que viria depois dele, que buscaria os enfermos e ministraria a eles (ver Lucas 4:16-21; 5:39-32; 7:18-23). E, da mesma forma que Davi representava o Messias, os arrogantes e jactanciosos jebuseus representavam os fanáticos religiosos, que escarneceriam de Jesus mas, no final, sofreriam a derrota em Suas mãos. Os inimigos de Davi foram derrotados, ao passo que ele se tornou cada vez maior. Ele não podia ser parado, pois Deus estava com ele.

Davi Edifica Sua Casa Em Jerusalém
(5:11-16)

“Hirão, rei de Tiro, enviou mensageiros a Davi, e madeira de cedro, e carpinteiros, e pedreiros, que edificaram uma casa a Davi. Reconheceu Davi que o SENHOR o confirmara rei sobre Israel e que exaltara o seu reino por amor do seu povo. Tomou Davi mais concubinas e mulheres de Jerusalém, depois que viera de Hebrom, e nasceram-lhe mais filhos e filhas. São estes os nomes dos que lhe nasceram em Jerusalém: Samua, Sobabe, Natã, Salomão, Ibar, Elisua, Nefegue, Jafia, Elisama, Eliada e Elifelete.”

Essencialmente, havia somente duas reações a ascensão de Davi ao trono de Israel: 1) aceitá-lo como amigo e aliado ou 2) resistir a ele e atacá-lo como inimigo. Hirão, rei de Tiro, escolheu a primeira, enquanto os filisteus optaram pela segunda. Embora muitas traduções sugiram que os versos 11 a 16 sejam dois parágrafos, prefiro vê-los como uma só unidade, ou seja, a edificação da casa de Davi. Hirão literalmente ajuda Davi a edificar sua casa, um palácio, em Jerusalém. No entanto, mesmo morando em Jerusalém, Davi continua edificando sua “casa”, ou seja, sua família. Edificando ambas as casas ele está fortalecendo sua posição como rei de Israel.

Hirão, rei de Tiro, é apresentado nos versos 11 e 12. Eis um homem que poderia facilmente ter visto Davi como inimigo, mas que preferiu tê-lo como aliado. Quando Deus fez a assim chamada aliança abraâmica (Gênesis 12:1-3), Ele prometeu a Abraão que, quem o amaldiçasse, seria amaldiçoado, e quem o abençoasse, seria abençoado. Os jebuseus e os filisteus amaldiçoaram Davi, Hirão o abençoou. Ele deu a Davi os materiais necessários à construção do palácio, para que este o edificasse na cidade que acabara de derrotar e teria de fortalecer e fortificar. Hirão ofereceu o material e os operários para a construção de um grande palácio e Davi, agradecido, aceitou. Hirão e Davi se tornaram amigos.

O texto nos diz que só depois da construção do palácio é que Davi compreende plenamente que é, de fato, o rei de Israel. Antes disso, tudo parecia um sonho demorado, mas agora ele sabe que a promessa de Deus fora cumprida. O que havia com a construção dessa casa que lhe dava essa sensação? Creio que a razão esteja relacionada com o provérbio: “Cuida dos teus negócios lá fora, apronta a lavoura no campo e, depois, edifica a tua casa.” (Provérbios 24:27)

Israel era uma nação agrícola. Não seria sábio construir uma casa antes de preparar o terreno. Quando o terrreno estava preparado, o agricultor se dedicava à construção da casa, pois a plantação precisava de tempo para se desenvolver. Era simplesmente uma questão de prioridade. Seria algo como alguém se mudar de São Paulo para o Paraná, comprando e mobiliando uma casa em Curitiba, para depois descobrir que o único emprego disponível era em Guarapuava. Teria sido bem melhor procurar emprego primeiro e depois procurar uma casa para comprar. Agora que Davi tinha sua casa, o seu palácio, ficava claro que o seu “emprego” como rei de Israel era coisa certa e garantida. A realidade de que Deus cumprira plenamente a promessa de que ele reinaria sobre Seu povo finalmente entrou na cabeça de Davi. O que ele havia esperado durante mais de 20 anos agora era seu. A construção do palácio em Jerusalém o convenceu de que tudo era real.

Havia ainda a segunda parte da construção da casa de Davi, que era a edificação de sua família. Embora ele já tivesse esposas e filhos antes de se mudar para Jerusalém (II Samuel 2:2; 3:2-5), foi lá que ele acrescentou muitas outras esposas, as quais lhe deram muitos outros filhos. Na cabeça das pessoas do antigo oriente, muitas esposas e muitos filhos era sinônimo de prosperidade. De acordo com essa avaliação, Davi realmente prosperou em Jerusalém! O problema era que, ao acrescentar mais esposas, Davi chegou muito perto da multiplicação de esposas, desprezando a advertência dada aos reis de Israel:

“Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro.” (Deuteronômio 17:17)

Davi Derrota Os Filisteus
(5:17-25)

“Ouvindo, pois, os filisteus que Davi fora ungido rei sobre Israel, subiram todos para prender a Davi; ouvindo-o, desceu Davi à fortaleza. Mas vieram os filisteus e se estenderam pelo vale dos Refains. Davi consultou ao SENHOR, dizendo: Subirei contra os filisteus? Entregar-mos-ás nas mãos? Respondeu-lhe o SENHOR: Sobe, porque, certamente, entregarei os filisteus nas tuas mãos. Então, veio Davi a Baal-Perazim e os derrotou ali; e disse: Rompeu o SENHOR as fileiras inimigas diante de mim, como quem rompe águas. Por isso, chamou o nome daquele lugar Baal-Perazim. Os filisteus deixaram lá os seus ídolos; e Davi e os seus homens os levaram. Os filisteus tornaram a subir e se estenderam pelo vale dos Refains. Davi consultou ao SENHOR, e este lhe respondeu: Não subirás; rodeia por detrás deles e ataca-os por defronte das amoreiras. E há de ser que, ouvindo tu um estrondo de marcha pelas copas das amoreiras, então, te apressarás: é o SENHOR que saiu diante de ti, a ferir o arraial dos filisteus. Fez Davi como o SENHOR lhe ordenara; e feriu os filisteus desde Geba até chegar a Gezer.”

Só podemos imaginar a conversa que deve ter ocorrido entre os cinco reis filisteus quando recebem a notícia de que Davi tinha se tornado o rei de Israel. Aquis deve ter recebido uma porção de críticas por ter-lhe oferecido asilo (I Samuel 21:10-15; 27:1 - 28:2; 29:1-11). Durante algum tempo, Davi realmente fez parte do exército filisteu, e isso deve ter lhe dado um conhecimento que agora poderia ser usado contra eles. Por isso, eles resolvem partir para o ataque, na esperança de quebrar a resistência do exército de Davi e se livrar de um inimigo formidável.

Do ponto de vista estritamente militar, talvez tenha sido uma boa decisão. Quanto mais esperassem, mais Davi consolidaria seu reino e mais forte se tornaria o seu poderio militar. Contudo, Davi era o rei de Deus, que governava o povo de Deus, por isso, ele não seria derrotado. Quando ficou sabendo do ataque dos filisteus, Davi desceu, como está escrito, para a fortaleza (verso 17). De acordo com I Crônicas 11:15, parece que ele e seus homens fugiram para a caverna de Adulão. Foi enquanto ele e seus homens estavam lá que os filisteus tomaram Belém e montaram acampamento (I Crônicas 11:16 e ss). Será que eles esperavam encontrar Davi em Belém? De qualquer forma, foi na fortaleza que Davi manifestou o desejo de beber uma taça de água de seu poço predileto em Belém e três de seus valentes romperam as linhas filistéias para consegui-la (I Crônicas 11:16-9).

Se Davi realmente estava na caverna de Adulão no início da batalha com os filisteus, acho que isso é muito interessante e encorajador. Deus não desperdiça Seu tempo. Foi nessa caverna que a família de Davi e muitos de seus guerreiros se juntaram a ele (Só agora percebo porque sua família foi para lá. A caverna não devia ser muito longe de sua casa em Belém, e assim eles puderam escapar sem ser apanhados pelos homens de Saul.) Enquanto fugia de Saul, Davi deve ter encontrado uma porção dessas “fortalezas”, as quais lhe serviram muito bem, anos depois, quando lutava com povos como os filisteus.

No primeiro confronto com os filisteus, era atrás de Davi que eles estavam, e o novo rei pediu orientação divina. Davi perguntou ao Senhor se deveria subir contra eles. Deus lhe disse que sim, garantindo-lhe que Ele os entregaria em suas mãos (verso 19). Davi encontrou os inimigos em Baal-Perazim e os derrotou, chamando assim àquele lugar, como um lembrete de que o Senhor lhe dera uma vitória “de arromba” sobre o inimigo. Também está escrito que foi ali que os filisteus abandonaram seus ídolos, que foram recolhidos por Davi e seus homens (versp 21). De acordo com I Crônicas 14:12, eles os ajuntaram para que fossem queimados.

Li no jornal de hoje que Mike Tyson está ansioso pela revanche da luta contra Evander Holyfield, para quem perdeu em novembro passado. Ele não está disposto a amargar a derrota. Ele acha que não levou seu adversário muito a sério daquela vez. Os filisteus devem ter sentido a mesma coisa com relação a Davi e os israelitas. Eles não iriam desistir tão facilmente, pois não estavam dispostos a amargar a derrota. Eles queriam uma revanche. Por isso, fizeram novo ataque a Davi. E, uma vez mais, eles se espalharam pelo vale de Refaim (É quase como se quisessem recriar a primeira batalha, não é?). Davi fez mais ou menos as mesmas perguntas. Será que ele deveria subir contra os filisteus, exatamente como havia feito? A resposta de Deus foi que ele deveria lutar contra eles, mas não da mesma maneira. Desta vez, em vez de atacá-los pela frente, Davi foi instruído a rodeá-los e atacá-los por trás. Os israelitas não deveriam atacar até ouvir o “estrondo de marcha pelas copas das amoreiras” (verso 24).

Algumas pessoas parecem pensar que foi apenas o barulho do vento nas árvores que dissimulou os sons da aproximação de Davi. Acho que foi muito mais do que isso. Deus é infinito e parece Se deleitar em dar a Seu povo vitórias militares mediante uma infindável variedadede de meios. Ele usou um temporal, com chuva, raios e trovões, que prejudicou totalmente os inimigos que usavam armas de ferro emultimídia cujos carros também não funcionaram devido a lama causada pelas chuvas (ver I Samuel 7:10). Depois, Ele utilizou um terremoto para sacudir o inimigo (I Samuel 14:15). Tempos antes, Ele havia dado a vitória a Israel sobre os amonitas, atacando-os com uma chuva de granizo (Josué 10:11). Em II Reis, capítulo 7, Ele afugentou o exército sírio fazendo-os ouvir os sons de um exército enorme, mesmo não havendo nenhum (versos 6 e 7). Por isso, sou inclinado a tomar as palavras de nosso texto (II Samuel 5:24) como o registro de outra “apresentação multimídia” de Deus, que serviu para enervar o inimigo e preparar o caminho para sua derrota às mãos de Davi. A derrota foi tão grande que Davi perseguiu-os até o seu próprio território (Gezer fica literalmente na fronteira do território filisteu). Essa derrota foi definitiva. Embora fosse de Saul a tarefa de libertar Israel do poder dos filisteus (I Samuel 9:16), ele foi morto e Israel derrotado por eles (I Samuel 31). Foi o rei Davi quem livrou Israel dos filisteus (II Samuel 19:9).

Conclusão

Chegar a este ponto na vida de Davi, sem dúvida nos dá uma enorme sensação de alívio e de alegria. Muitos anos se passaram desde que Samuel o ungiu como rei de Israel. Davi passou por muitas experiências dolorosas até chegar a este ponto. Houve bons tempos, tais como quando ele servia na casa de Saul como músico e quando ele e Jônatas, filho do rei, se tornaram grandes amigos. Houve ainda a derrota de Golias e as promoções dadas por Saul. Houve a bênção do casamento com uma das filhas do rei, o que o tornou membro da família real. No entanto, houve também muitos tempos ruins. Houve os anos de espera, escondendo-se de Saul. Houve tempos em que Davi teve de procurar refúgio entre os inimigos do povo de Deus. Agora tudo isso culmina no seu reinado sobre todo Israel. Realmente, esse é o melhor de todos os momentos, é tempo de celebração.

Davi me impressiona, principalmente quando o comparo com Saul. Ao contrário deste, Davi está sempre buscando a vontade de Deus e se esforçando para obedecer Seus mandamentos. Quando erra, ele se arrepende e procura fazer o que é certo. Embora Saul não tenha dado a Israel a vitória sobre os filisteus, Davi a dá. Embora Saul não tenha exercido uma liderança moral sobre a nação, Davi exerce. Repetidas vezes, Davi determina o padrão moral e espiritual para Judá e as outras tribos. Ele reaje corretamente à notícia da morte de Saul e à maldade daqueles que levantaram a mão contra o ungido do Senhor.

Ao contrário de Saul, Davi não é um rei que nada sabe além de administrar as crises, disposto apenas a “apagar o fogo”. Saul só resolvia problemas que não conseguia evitar. Davi resolve os problemas que seus antecessores evitaram, e com sucesso. A tomada de Jebus é um exemplo da iniciativa e liderança de Davi. Creio que ele entendeu a promessa de Deus de que Ele daria a Israel Jebus e aquela terra. Creio também que ele procurou obedecer a ordem de Deus, mesmo tendo sido dada muitos anos antes, ao derrotar os jebuseus e expulsá-los da terra. E creio ainda que ele viu Jebus como uma capital ideal, uma cidade que serviria para unificar as tribos de Israel sob seu comando. Ele poderia ter escolhido uma “coexistência pacífica” com os jebuseus, como outros fizeram antes dele; no entanto, em vez disso, ele tomou o caminho mais difícil e prevaleceu sobre seus inimigos. E a vitória foi tal que deu a Israel (e a seu rei) status e respeito (e até temor) entre as nações.

Se eu fosse fazer um resumo de todo o capítulo 5 de II Samuel, creio que poderia resumir essa unidade num único tema central: a reação dos homens ao rei de Deus. Embora Saul, Abner e muitos outros tenham resistido à ascensão de Davi ao trono, isso foi da vontade de Deus. Após a morte de Abner, o povo de Israel reconhece que Davi deve ser o rei e são seus líderes que vão até ele expressando o desejo de tê-lo como rei. Resumindo, as tribos de Israel se submetem a Davi como o rei de Deus (5:1-5). Os jebuseus se opõem a isso e Deus dá a Davi - o Seu rei, a vitória sobre eles (5:6-10). Eles são destruídos pelo rei de Deus porque se opuseram a ele. Hirão, rei de Tiro, parece ter reconhecido, de uma forma ou de outra, que Davi é o rei de Deus e, quando se oferece para ajudá-lo na construção do palácio, ele demonstra sua sumissão ao rei de Deus (5:11-12). Tomando para si mais mulheres e tendo mais filhos, Davi prospera como o rei de Deus (5:13-16). Os filisteus, entretanto, não se submetem a Davi como o rei de Deus. Eles o atacam, procurando eliminá-lo, para afastar a ameaça imposta por ele e a nação unida de Israel (5:17-25). Não apenas uma, mas duas vezes, eles atacam Davi e o exército de Israel. E duas vezes Deus dá a Davi a vitória sobre seus inimigos. Os que aceitaram Davi como o rei de Deus foram abençoados; os que o rejeitaram foram esmagados.

Com toda a certeza, Davi é um tipo do “Filho de Davi” que está por vir; o Rei de Deus que virá à terra para derrotar Seus inimigos e reinar sobre Seu povo.

“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.”  (Salmo 2:1-12)

Este salmo fala profeticamente do dia em que Deus investirá o Seu Rei, o Senhor Jesus Cristo, em Seu trono. Os inimigos de Deus e do bem tentarão se unir para resistir a Ele e destruir o Seu reino. É óbvio que essa resistência é tola e desastrosa. Quando Deus estabelecer o Seu Rei em Seu trono, ninguém será capaz de se opor a Ele ou destruí-lO. Aqueles que tentarem serão esmagados. Só existe uma resposta sábia à vinda do Rei de Deus: submeter-se humildemente a Ele - pois nisso há grande bênção (versos 10-12)

Davi serve como um protótipo de nosso Senhor Jesus Cristo como o Rei de Deus, sobre o Qual nos fala o Salmo 2. Aqueles que se opuseram a Davi foram finalmente esmagados. Aqueles que se submeteram a ele foram abençoados. Quando nosso Senhor veio à terra há 2.000 anos, Deus deixou claro que Ele era, de fato, o Seu Filho, o Seu Rei:

“Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Então, disse Pedro a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas; uma será tua, outra para Moisés, outra para Elias. Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa os envolveu; e eis, vindo da nuvem, uma voz que dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi. Ouvindo-a os discípulos, caíram de bruços, tomados de grande medo.” (Mateus 17:1-6)

“Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galiléia e por João foi batizado no rio Jordão. Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo.” (Marcos 1:9-11)

“Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim. (Lucas 1:30-33)

“Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo! Perguntou-lhe Natanael: Donde me conheces? Respondeu-lhe Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira. Então, exclamou Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (João 1:47-49, ver também Mateus 2:1-6)

A despeito de todas as evidências, muitos religiosos preferiram rejeitar Jesus como o Messias de Deus. Eles se agarraram a pequenas coisas para provar a si mesmos e aos outros que ele não poderia ser o Rei de Deus. No entanto, todas as suas tentativas falharam. Quando O cruficicaram e O mataram, eles pensaram ter triunfado mas, quando Deus o ressuscitou de entre os mortos, ficou claro que foi Ele quem trinfou.

Jesus Cristo é o Rei de Deus. Quando nosso Senhor veio à terra pela primeira vez, Ele acrescentou à Sua deidade uma humanidade imaculada. Embora tenha sido apresentado como o Rei de Deus, Ele foi rejeitado e crucificado pelos homens pecadores. O propósito de Sua primeira vinda não foi estabelecer o Seu reino destituindo o governo de Roma, mas sim morrer pelo pecado dos homens, a fim de que eles pudessem entrar em Seu reino. Aqueles que confiam nEle para serem perdoados de seus pecados e para receberem o dom da vida eterna, aguardam Sua segunda vinda. Será no futuro que Ele derrotará Seus inimigos e estabelecerá Seu governo sobre a terra. Aqueles que o rejeitarem como o Rei de Deus serão derrotados, tal como os inimigos de Davi. Não há assunto mais importante para você resolver do que o seu relacionamento com Jesus Cristo, o Rei de Deus. Os que forem Seus amigos reinarão com Ele. Os que forem Seus inimigos serão destruídos. Que você seja como Hirão, rei de Tiro, não como os filisteus, que se colocaram contra Davi e contra Deus.

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Filipenses 2:5-11)

Tradução: Mariza Regina de Souza

 

 

6. Quando Deus Dá Um Banho De Água Fria No Entusiasmo De Davi (II Samuel 6:1:23)

Introdução

Recentemente, minha esposa e eu tivemos o privilégio de participar do casamento de nossa filha Jenny. À medida que a data do casamento se aproximava e as coisas ficavam mais agitadas, alguém deu um livro à minha esposa, sugerindo que lêssemos um determinado capítulo. Não me recordo do título do livro, só do capítulo, o qual foi escrito por um ministro que falava sobre a cerimônia de casamento mais memorável que já havia realizado.

A futura noiva era uma jovem cuja mãe, para dizer o mínimo, era neurótica. Ela queria que o casamento simplesmente fosse perfeito; por isso, organizou tudo sozinha. Ela planejou a cerimônia até o último detalhe e depois examinou e reexaminou tudo para ter certeza de que nada fora esquecido. Obviamente, tinha de haver uma orquestra. O vestido era de tirar o fôlego. A igreja era uma maravilha arquitetônica. As flores, a cerimônia, o bolo, as bebidas, tudo fora arranjado sob o olhar atento da mãe da noiva. A mulher, literalmente, atormentou todo mundo que tomou parte da organização do casamento. O ensaio foi impecável, garantindo à mãe que tudo estava sob controle — seu controle.

Assim, o dia fatídico chegou, e a dita cerimônia... com acontecimentos inesperados. Enquanto aguardava para entrar na igreja, a noiva, toda nervosa, esperava com o pai no salão de festas. Caminhando por entre as mesas, ela pegava uma noz aqui, um pouco de ponche ali (enriquecido com champagne), um petisco acolá... Quando chegou o momento de entrar na igreja ao lado do pai, ela já havia passado por todas as mesas e experimentado tudo o que havia, diversas vezes. Ela nem pensava no que estava fazendo, nem o pai. E, assim, começou a processional. Todos os padrinhos estavam em seus lugares. O noivo estava em frente ao púlpito, ao lado do ministro, esperando a noiva. As damas de honra graciosamente desfilaram pela nave e tomaram seus lugares. Agora, era o momento culminante da noiva.

Enquanto ela e o pai atravessavam a nave em direção ao púlpito, ninguém parecia notar o rosto vermelho dela, quase contrastando com a cor do vestido. Assim que chegou à frente, enquanto sua mãe assistia do assento à sua esquerda, toda a comida que ela havia ingerido resolveu sair... e ela vomitou. Não me refiro a uma ânsia discreta, mal percebida quando se leva o lenço à boca. Refiro-me a um jato completo de tudo o que estava dentro do seu estômago. A noiva esguichou em todos e em tudo que estava por perto na frente do púlpito. Sua mãe foi a primeira a ser batizada, seguida pelo noivo e pelas damas de honra mais próximas. Na mesma hora levantou-se um fedor insuportável. É óbvio que a reação em cadeia era iminente. A mãe da noiva ficou horrorizada. A noiva desmaiou, mas foi amparada gentilmente pelo noivo. O pai conseguiu evitar a linha de fogo e sair do caminho, com um leve sorriso no rosto, ligeiramente divertido com o humor — e a ironia — da situação.

Rapidamente o pastor anunciou um breve recesso. A noiva foi limpa, assim como a bagunça na frente do púlpito. Os que haviam sido esguichados por ela recuperaram um pouco da sua compostura e dignidade. Em pouco tempo o casamento recomeçou e a cerimônia foi realizada... sem a pompa e a formalidade que a mãe tinha planejado. Dez anos mais tarde, todos riam enquanto assistiam à repetição dos acontecimentos, gravados mais do que adequadamente pelas três câmeras de vídeo que a mãe tinha cuidadosamente disposto, cada uma capturando, de um ângulo ligeiramente diferente, os detalhes implacáveis da cena.

Algumas vezes, não importa o quanto planejemos e orquestremos os acontecimentos, as coisas simplesmente saem erradas. Foi isso o que aconteceu com o rei Davi. Depois de capturar Jebus, ele resolveu em seu coração reaver a arca da aliança (aqui chamada de a “arca de Deus”), a qual era guardada pessoalmente na casa de Abinadabe, em Quiriate-Jearim. Davi consultou cuidadosamente os líderes da nação, a fim de que essa fosse uma decisão tomada por todos:

“Consultou Davi os capitães de mil, e os de cem, e todos os príncipes; e disse a toda a congregação de Israel: Se bem vos parece, e se vem isso do SENHOR, nosso Deus, enviemos depressa mensageiros a todos os nossos outros irmãos em todas as terras de Israel, e aos sacerdotes, e aos levitas com eles nas cidades e nos seus arredores, para que se reúnam conosco; tornemos a trazer para nós a arca do nosso Deus; porque nos dias de Saul não nos valemos dela. Então, toda a congregação concordou em que assim se fizesse; porque isso pareceu justo aos olhos de todo o povo. Reuniu, pois, Davi a todo o Israel, desde Sior do Egito até à entrada de Hamate, para trazer a arca de Deus de Quiriate-Jearim.” (I Crônicas 13:1-5)

Tal como na história do casamento, todos os detalhes para levar a arca para Jerusalém foram cuidadosamente pensados e todas as providências necessárias foram tomadas. Um carro novo foi adquirido para o transporte de pouco mais de 11 km da região sudeste para Jerusalém. A viagem envolvia algumas mudanças de terreno, uma vez que Quiriate-Jearim ficava nas montanhas, da mesma forma que Jerusalém, mas entre elas havia áreas mais baixas, o que significava algumas manobras morro acima e morro abaixo. Havia grande regozijo enquanto Davi e os israelitas levavam a arca. Ele e todos os que estavam com ele celebravam com todas as suas forças (I Crônicas 13:8; compare com II Samuel 6:5). Cantores com toda sorte de instrumentos musicais participavam da celebração e, pelo contexto, podemos inferir também que dançavam com entusiasmo.

De repente, algo saiu errado e um dos bois quase virou o carro. Não está escrito exatamente o que aconteceu. Talvez os bois tenham tropeçado, ou talvez tenham se assustado com o gesto entusiástico de alguém que porventura tenha chegado perto demais. De alguma forma, os bois perderam o controle por alguns momentos, o que abalou o carro, fazendo com que a arca fosse sacudida de forma a parecer que iria cair para fora. O pensamento da arca se espatifando no chão foi demais para Uzá, que caminhava ao lado do carro, perto da arca. Instintivamente ele estendeu a mão e segurou-a para não deixá-la cair. Quando ele o fez, Deus o feriu de morte. A celebração parou bruscamente. A alegria se transformou em espanto e perplexidade. A alegria de Davi se transformou em raiva, pois Deus havia dado “um banho de água fria em seu entusiasmo”. Tudo havia sido feito para honrar a Deus. Será que Ele não entendia? Por que Ele feriria de morte alguém que durante anos ajudara a cuidar da arca? Por que Ele arruinaria uma ocasião tão maravilhosa?

Davi queria a arca de Deus lá em Jerusalém, junto com ele. Agora que Uzá fora ferido de morte, Davi não queria continuar, receoso de levar a arca para perto dele. Ele decidiu, então, que seria melhor mantê-la a uma distância segura, pelo menos até que pudesse descobrir o que havia saído errado. Qual teria sido o problema? O que saiu errado? E qual seria a solução? Na verdade, o texto não nos diz. É quase como um enigma que devemos resolver sozinhos. A resposta está na Bíblia, como veremos, assim como sua aplicação para a nossa vida, tal como foi para a vida dos que viveram naquela época. Há ainda outra dimensão desta história que não mencionamos, que é a história de Mical, que também “deu um banho de água fria em Davi”. Disso também temos lições a aprender. Estejamos atentos, portanto, e aprendamos aquilo que o Espírito Santo tem para nos ensinar neste texto.

Deus Dá Um Banho De Água Fria No Entusiasmo De Davi
(6:1-11)

Tornou Davi a ajuntar todos os escolhidos de Israel, em número de trinta mil. Dispôs-se e, com todo o povo que tinha consigo, partiu para Baalá de Judá, para levarem de lá para cima a arca de Deus, sobre a qual se invoca o Nome, o nome do SENHOR dos Exércitos, que se assenta acima dos querubins. Puseram a arca de Deus num carro novo e a levaram da casa de Abinadabe, que estava no outeiro; e Uzá e Aiô, filhos de Abinadabe, guiavam o carro novo. Levaram-no com a arca de Deus, da casa de Abinadabe, que estava no outeiro; e Aiô ia adiante da arca. Davi e toda a casa de Israel alegravam-se perante o SENHOR, com toda sorte de instrumentos de pau de faia, com harpas, com saltérios, com tamboris, com pandeiros e com címbalos. Quando chegaram à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus e a segurou, porque os bois tropeçaram. Então, a ira do SENHOR se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverência; e morreu ali junto à arca de Deus. Desgostou-se Davi, porque o SENHOR irrompera contra Uzá; e chamou aquele lugar Perez-Uzá, até ao dia de hoje. Temeu Davi ao SENHOR, naquele dia, e disse: Como virá a mim a arca do SENHOR? Não quis Davi retirar para junto de si a arca do SENHOR, para a Cidade de Davi; mas a fez levar à casa de Obede-Edom, o geteu. Ficou a arca do SENHOR em casa de Obede-Edom, o geteu, três meses; e o SENHOR o abençoou e a toda a sua casa.”

Descobrimos o que saiu errado aqui voltando na história de Israel, no tempo em que Deus lhes deu a lei, quando lhes deu também instruções a respeito da construção e transporte da arca. Estas são as palavras que Deus disse a Moisés a respeito do tabernáculo e da arca da aliança.

“E me farão um santuário, para que eu possa habitar no meio deles. Segundo tudo o que eu te mostrar para modelo do tabernáculo e para modelo de todos os seus móveis, assim mesmo o fareis. Também farão uma arca de madeira de acácia; de dois côvados e meio será o seu comprimento, de um côvado e meio, a largura, e de um côvado e meio, a altura. De ouro puro a cobrirás; por dentro e por fora a cobrirás e farás sobre ela uma bordadura de ouro ao redor. Fundirás para ela quatro argolas de ouro e as porás nos quatro cantos da arca: duas argolas num lado dela e duas argolas noutro lado. Farás também varais de madeira de acácia e os cobrirás de ouro; meterás os varais nas argolas aos lados da arca, para se levar por meio deles a arca. Os varais ficarão nas argolas da arca e não se tirarão dela. E porás na arca o Testemunho, que eu te darei. Farás também um propiciatório de ouro puro; de dois côvados e meio será o seu comprimento, e a largura, de um côvado e meio. Farás dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório; um querubim, na extremidade de uma parte, e o outro, na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório fareis os querubins nas duas extremidades dele. Os querubins estenderão as asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; estarão eles de faces voltadas uma para a outra, olhando para o propiciatório. Porás o propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho, que eu te darei. Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.” (Êxodo 25:8-22)

Quando o tabernáculo foi levantando pela primeira vez, a presença do Senhor apareceu ali na tenda:

“Então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo.” (Êxodo 40:34-35)

Deus deu instruções bem claras a respeito da arca. Ele não deu só instruções específicas quanto a sua construção, Ele também indicou quem poderia carregá-la e como ela deveria ser transportada de um lugar para outro. Em Números 5, Deus diz exatamente como o tabernáculo deve ser desmontado e levado até a próxima parada. Repare especialmente nas palavras do verso 15:

“Havendo, pois, Arão e seus filhos, ao partir o arraial, acabado de cobrir o santuário e todos os móveis dele, então, os filhos de Coate virão para levá-lo; mas, nas coisas santas, não tocarão, para que não morram; são estas as coisas da tenda da congregação que os filhos de Coate devem levar.” (Números 4:15; ver também 7:9)

Precisamos nos lembrar de que, de acordo com Êxodo 25:14-15, a arca possuía argolas em que deveriam ser colocadas varas, e essas varas eram a forma pela qual os coatitas deveriam transportar a arca.

A arca acompanhou os israelitas em todos os lugares onde estiveram no deserto. Ela foi adiante deles quando atravessaram o Jordão (Josué 3:14-17). Com frequência vemos menção dela em I e II Samuel. Samuel dormia perto dela quando criança (I Samuel 3:3). Quando os israelitas estavam sendo derrotados pelos filisteus, eles insensatamente a levaram para o campo de batalha como se ela fosse um amuleto mágico. Eles não só perderam a batalha, como também a arca (I Samuel 4). Os capítulos seguintes (5 e 6) de I Samuel são o relato de como Deus mandou uma praga sobre os filisteus, para que finalmente decidissem que não a queriam entre eles. O mais interessante foi o método escolhido por eles para devolver a arca para território israelita. Os sacerdotes e adivinhos filisteus deram aos líderes instruções a respeito de como a arca deveria ser removida. Repare nessas instruções e no que aconteceu:

“Agora, pois, fazei um carro novo, tomai duas vacas com crias, sobre as quais não se pôs ainda jugo, e atai-as ao carro; seus bezerros, levá-los-eis para casa. Então, tomai a arca do SENHOR, e ponde-a sobre o carro, e metei num cofre, ao seu lado, as figuras de ouro que lhe haveis de entregar como oferta pela culpa; e deixai-a ir. Reparai: se subir pelo caminho rumo do seu território a Bete-Semes, foi ele que nos fez este grande mal; e, se não, saberemos que não foi a sua mão que nos feriu; foi casual o que nos sucedeu. Assim fizeram aqueles homens, e tomaram duas vacas com crias, e as ataram ao carro, e os seus bezerros encerraram em casa. Puseram a arca do SENHOR sobre o carro, como também o cofre com os ratos de ouro e com as imitações dos tumores. As vacas se encaminharam diretamente para Bete-Semes e, andando e berrando, seguiam sempre por esse mesmo caminho, sem se desviarem nem para a direita nem para a esquerda; os príncipes dos filisteus foram atrás delas, até ao território de Bete-Semes.” (I Samuel 6:7-12)

Não é de se estranhar que os filisteus tenham escolhido transportar a arca num carro novo conduzido por duas vacas. Primeiro, eles não tinham conhecimento da lei, por isso, certamente não sabiam o que Deus tinha dito sobre como a arca deveria ser transportada. Além disso, onde eles arranjariam coatitas para carregá-la? O mais importante para eles era que esse método de transporte seria uma espécie de teste, a fim de que pudessem determinar se todas as pragas tinham sido realmente enviadas pela mão de Deus ou se simplesmente era “má sorte”. O fato de duas vacas deixarem seus bezerros, sem ninguém conduzindo o carro, e entrarem em território israelita, era difícil demais para ser coincidência. Isso era coisa da mão de Deus.

O problema agora é que os israelitas imitaram os filisteus em vez de obedecer a Deus. Creio que as instruções dadas por Deus em Sua lei foram simplesmente esquecidas, não deliberadamente ignoradas ou desobedecidas. A arca ficou muitos anos sem ser transportada. Ela ficou fora de circulação, fora de uso, na casa de Abinadabe durante uns bons 20 anos, antes de ser usada novamente para qualquer coisa (ver I Samuel 7:2; 14:18-19). É fácil perceber porque ninguém deu importância particular às instruções dadas por Deus a Israel para o transporte no deserto.

Além de tudo, quem iria querer carregar a arca na mão, quando ela poderia simplesmente ser levada num carro de bois? Quando eu era jovem, bons anos atrás, meu pai decidiu mudar uma das construções que havia feito. O barracão, feito de troncos, era usado como uma espécie de garagem. Ele queria movê-lo uns trinta e poucos metros. Ele pretendia usar o que chamávamos de “puxador de tocos”, uma máquina pesada com um longo cabo preso a ela. Movendo-se uns 5 metros para frente e para trás, o cabo poderia avançar cerca de 3 cm. Isso funcionava muito bem com tocos. Lembro-me desse puxador suspenso por um cabo tão esticado que, literalmente, podia até cantar — uma coisa meio assustadora, devo dizer. Como eu era jovem e meio preguiçoso, estava ansioso para achar um meio mais rápido e mais fácil de mover aquele barracão, por isso, propus que enganchássemos uma corrente nele e o puxássemos com a picape. Eu dirigiria, é claro. Meu pai titubeou por alguns instantes, mas concordou em tentar. Enganchei a corrente na carroceria da picape e estava pronto para dar a partida quando ele caiu em si e mudou de ideia. Ele me disse para ir pegar o puxador de tocos, conforme tinha planejado. Pelo menos eu iria dirigir até o puxador. Entrei na picape e sai em disparada, esquecendo-me de desenganchar a corrente. Para horror do meu pai, quase coloquei o barracão abaixo.

Se eu vivesse na época de Davi, também iria querer usar um carro de bois, principalmente se eu fosse um dos escolhidos para levar a arca nos ombros. Fazia sentido. Era mais fácil. No entanto, não era isso o que Deus havia prescrito. E o método prescrito por Deus não era uma regra sem sentido. Era uma regra que tinha suas razões. O fato de tocar na arca ser uma coisa tão séria é revelado para nós no verso dois de nosso texto:

“Dispôs-se e, com todo o povo que tinha consigo, partiu para Baalá de Judá, para levarem de lá para cima a arca de Deus, sobre a qual se invoca o Nome, o nome do SENHOR dos Exércitos, que se assenta acima dos querubins.”

Em Êxodo 25, Deus disse a Moisés que Se encontraria com ele e lhe falaria de cima da arca, do meio dos querubins (25:22). Deus escolheu manifestar Sua presença no tabernáculo, especificamente de sobre a arca. Quando a glória de Deus encheu o tabernáculo pela primeira vez, nem mesmo Moisés pôde entrar nele (Êxodo 40:34-35). Homens pecaminosos não podem se aproximar de um Deus santo.

Não é de admirar que Uzá tenha sido ferido de morte por ter colocado as mãos na arca. A arca era santa. Não podia ser tocada. Qualquer um que a tocasse morreria. Usando varas, os homens poderiam transportá-la sem tocar nela. E esses homens, andando em passo uns com os outros, davam estabilidade à arca. Colocá-la num carro de bois deixou-a suscetível aos movimentos do carro, com menos estabilidade, e portanto, com maior probabilidade de cair para fora. O único jeito de impedir que isso acontecesse era segurando-a, como Uzá segurou, e morrendo, como Uzá morreu.

Davi e todos os envolvidos no transporte da arca erraram de diversas maneiras. Primeiro, eles perderam o temor e a reverência que deveriam ter pela santidade de Deus. Segundo, eles se esqueceram das instruções claras de Deus, estabelecidas na lei, para o transporte da arca. E terceiro, eles se esqueceram da dura lição aprendida por Israel num passado não tão distante. Quando a arca retornou dos filisteus, a negligência por parte de alguns israelitas custou-lhes a vida:

“Feriu o SENHOR os homens de Bete-Semes, porque olharam para dentro da arca do SENHOR, sim, feriu deles setenta homens; então, o povo chorou, porquanto o SENHOR fizera tão grande morticínio entre eles. Então, disseram os homens de Bete-Semes: Quem poderia estar perante o SENHOR, este Deus santo? E para quem subirá desde nós? Enviaram, pois, mensageiros aos habitantes de Quiriate-Jearim, dizendo: Os filisteus devolveram a arca do SENHOR; descei, pois, e fazei-a subir para vós outros.” (I Samuel 6:19-21)

Como é irônico ver os israelitas imitando os filisteus. A irreverência destes fez com que suas cidades fossem atacadas por pragas. Eles acabaram temendo ao Senhor, especialmente Sua arca, e procuraram mandá-la para outro lugar. Agora, quando a arca está de volta aos israelitas, eles são irreverentes e são castigados por Deus, a fim de que também queiram enviá-la para outra pessoa. A lição de I Samuel 6 já foi esquecida em II Samuel 6, e devo lembrar-lhes que no texto original esses dois livros eram apenas um. Uns poucos anos, ou poucos capítulos, e as lições aprendidas de um modo difícil foram rapidamente esquecidas. Por que será que achamos mais fácil reviver a história do que aprender com ela?

Em Casa Afinal!
(6:12-19)

“Então, avisaram a Davi, dizendo: O SENHOR abençoou a casa de Obede-Edom e tudo quanto tem, por amor da arca de Deus; foi, pois, Davi e, com alegria, fez subir a arca de Deus da casa de Obede-Edom, à Cidade de Davi. Sucedeu que, quando os que levavam a arca do SENHOR tinham dado seis passos, sacrificava ele bois e carneiros cevados. Davi dançava com todas as suas forças diante do SENHOR; e estava cingido de uma estola sacerdotal de linho. Assim, Davi, com todo o Israel, fez subir a arca do SENHOR, com júbilo e ao som de trombetas. Ao entrar a arca do SENHOR na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo ao rei Davi, que ia saltando e dançando diante do SENHOR, o desprezou no seu coração. Introduziram a arca do SENHOR e puseram-na no seu lugar, na tenda que lhe armara Davi; e este trouxe holocaustos e ofertas pacíficas perante o SENHOR. Tendo Davi trazido holocaustos e ofertas pacíficas, abençoou o povo em nome do SENHOR dos Exércitos. E repartiu a todo o povo e a toda a multidão de Israel, tanto homens como mulheres, a cada um, um bolo de pão, um bom pedaço de carne e passas. Então, se retirou todo o povo, cada um para sua casa.”

Devia haver um ar de tristeza em Jerusalém enquanto a arca esteve na casa de Obede-Edom. Entretanto, foram grandes dias para ele e sua família. Não sabemos quais foram as bênçãos que receberam, mas sabemos que ele e sua família foram abençoados por Deus durante o tempo em que arca permaneceu em sua casa. O povo soube disso e a notícia chegou a Davi. Era um sinal de sorte. Será que Davi tinha concluído que a arca trazia algum tipo de maldição para quem estivesse perto dela? Se era isso, certamente ele não iria querer que ela ficasse com ele em Jerusalém. Foi por isso que ele quis mantê-la a uma distância segura na casa de Obede-Edom. No entanto, agora ficava claro que a arca era realmente uma fonte de bênçãos. O que teria saído errado para provocar a morte de Uzá? Como isso poderia ser corrigido, a fim de que a arca e suas bênçãos pudessem chegar a Jerusalém? Essas perguntas devem ter atormentado a cabeça de Davi, e dos outros israelitas também.

Creio que deveríamos saber a resposta, por isso o autor não nos dá maiores detalhes. O autor de Crônicas já não presume tanto da parte de seus leitores, pois diz claramente:

“Fez também Davi casas para si mesmo, na Cidade de Davi; e preparou um lugar para a arca de Deus e lhe armou uma tenda. Então, disse Davi: Ninguém pode levar a arca de Deus, senão os levitas; porque o SENHOR os elegeu, para levarem a arca de Deus e o servirem para sempre. Davi reuniu a todo o Israel em Jerusalém, para fazerem subir a arca do SENHOR ao seu lugar, que lhe tinha preparado. Reuniu Davi os filhos de Arão e os levitas: dos filhos de Coate: Uriel, o chefe, e seus irmãos, cento e vinte; dos filhos de Merari: Asaías, o chefe, e seus irmãos, duzentos e vinte; dos filhos de Gérson: Joel, o chefe, e seus irmãos, cento e trinta; dos filhos de Elisafã: Semaías, o chefe, e seus irmãos, duzentos; dos filhos de Hebrom: Eliel, o chefe, e seus irmãos, oitenta; dos filhos de Uziel: Aminadabe, o chefe, e seus irmãos, cento e doze. Chamou Davi os sacerdotes Zadoque e Abiatar e os levitas Uriel, Asaías, Joel, Semaías, Eliel e Aminadabe e lhes disse: Vós sois os cabeças das famílias dos levitas; santificai-vos, vós e vossos irmãos, para que façais subir a arca do SENHOR, Deus de Israel, ao lugar que lhe preparei. Pois, visto que não a levastes na primeira vez, o SENHOR, nosso Deus, irrompeu contra nós, porque, então, não o buscamos, segundo nos fora ordenado. Santificaram-se, pois, os sacerdotes e levitas, para fazerem subir a arca do SENHOR, Deus de Israel. Os filhos dos levitas trouxeram a arca de Deus aos ombros pelas varas que nela estavam, como Moisés tinha ordenado, segundo a palavra do SENHOR.” (I Crônicas 15:1-15)

Primeiro Davi ficou com raiva pela morte de Uzá, depois rapidamente sua raiva se transformou em temor. Seu temor era saudável e bem fundado, no entanto, Deus queria estar perto do Seu povo para abençoá-los. A única maneira disso acontecer era os homens se aproximarem Dele do jeito que Ele havia prescrito. A presença de Deus estava associada à arca. Os homens podiam se aproximar, mas não muito. Eles não podiam tocar na arca, para que não morressem. Isso significava que a única maneira de transportar a arca era como Deus havia dito, pelos coatitas, que deveriam carregá-la pelas varas colocadas nas argolas.

Agora Davi tinha certeza de que a proximidade da arca era uma bênção, mas também que ela deveria ser levada para Jerusalém de acordo com as instruções dadas por Deus. Por isso, ele reuniu os israelitas e comissionou os filhos de Coate para carregá-la, instruindo-os cuidadosamente quanto a maneira de desempenhar seus deveres. O autor nos informa que, depois que eles deram seis passos carregando a arca, foi oferecido um sacrifício. Esses passos, sem dúvida, foram os mais tensos de toda a jornada. Depois da morte de Uzá, os que ficavam mais perto da arca (os coatitas) com certeza ficaram bastante nervosos por estarem tão próximos do baú sagrado, ou seja, da presença do próprio Deus. À medida que a jornada prosseguia, a coragem e a alegria dos homens devia ir aumentado. Logo havia grande celebração enquanto caminhavam para a cidade santa.

O texto de II Samuel nos informa que houve grande celebração quando a arca foi levada para Jerusalém. O relato paralelo de I Crônicas é ainda mais detalhado. Não foi apenas um pequeno grupo de israelitas, “mas toda a casa de Israel” (II Samuel 6:15). Da primeira vez, naquela malfadada jornada, músicos acompanharam a arca (II Samuel 6:5). Na segunda, na jornada bem sucedida, havia uma verdadeira multidão deles (II Crônicas 15:16-24). Este foi um dos grandes momentos da história de Israel:

“Assim, todo o Israel fez subir com júbilo a arca da Aliança do SENHOR, ao som de clarins, de trombetas e de címbalos, fazendo ressoar alaúdes e harpas.” (I Crônicas 15:28)

Foi um momento de celebração, de oferecimento de sacrifícios e de banquetes:

“Introduziram a arca do SENHOR e puseram-na no seu lugar, na tenda que lhe armara Davi; e este trouxe holocaustos e ofertas pacíficas perante o SENHOR. Tendo Davi trazido holocaustos e ofertas pacíficas, abençoou o povo em nome do SENHOR dos Exércitos. E repartiu a todo o povo e a toda a multidão de Israel, tanto homens como mulheres, a cada um, um bolo de pão, um bom pedaço de carne e passas. Então, se retirou todo o povo, cada um para sua casa.” (II Samuel 6:17-19)

Uvas Azedas
(6:16, 20-23)

“Ao entrar a arca do SENHOR na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo ao rei Davi, que ia saltando e dançando diante do SENHOR, o desprezou no seu coração... Voltando Davi para abençoar a sua casa, Mical, filha de Saul, saiu a encontrar-se com ele e lhe disse: Que bela figura fez o rei de Israel, descobrindo-se, hoje, aos olhos das servas de seus servos, como, sem pejo, se descobre um vadio qualquer! Disse, porém, Davi a Mical: Perante o SENHOR, que me escolheu a mim antes do que a teu pai e a toda a sua casa, mandando-me que fosse chefe sobre o povo do SENHOR, sobre Israel, perante o SENHOR me tenho alegrado. Ainda mais desprezível me farei e me humilharei aos meus olhos; quanto às servas, de quem falaste, delas serei honrado. Mical, filha de Saul, não teve filhos, até ao dia da sua morte.”

Parece que havia apenas uma única pessoa em todo Israel que não queria, que não iria, participar do espírito alegre e comemorativo, e essa pessoa era Mical, esposa de Davi. O autor de Crônicas não dá muita importância ao fato, dedicando apenas um verso ao assunto e informando que, quando Mical olhou para Davi, ela o desprezou em seu coração pela figura que ele fez durante a celebração (I Crônicas 15:29). O autor de I e II Samuel tem um verso parecido (II Samuel 6:16), mas depois ele reforça o texto com a descrição do confronto que se seguiu entre Davi e Mical, informando também sua consequência.

Consideremos primeiro o que parece ser a visão de Mical de tudo o que estava acontecendo. Ela não fazia parte da festa; era apenas uma espectadora, não uma participante. Ela estava olhando da janela do palácio, observando a arca entrar na cidade (verso 16). Todo o restante da nação estava nas ruas. Na verdade, toda a nação estivera com a arca desde que ela deixara a casa de Obede-Edom. Mical não estava na caravana que acompanhou a arca. Parece que ela não queria estar lá. Mesmo que ela não estivesse particularmente entusiasmada com os acontecimentos, achamos que ela poderia, pelo menos, aparecer ao lado do marido, mas isso não aconteceu.

A festa, enfim, acabou, e Davi foi para casa para abençoar seus familiares. Mical não tinha nenhuma intenção de fazer parte disso, por isso, deu um “banho” no louvor e nas bênçãos de Davi. Ela devia estar na porta quando ele chegou, de cara feira e com as mãos na cintura. Antes mesmo que Davi pudesse abrir a boca, ela parece ter despejado toda a sua raiva sobre ele. O que será que ela viu, ou pensou ter visto, que a deixou tão zangada? De acordo com suas próprias palavras, ela viu um rei, um homem de posição e poder, agindo como um tolo. Ela viu um homem indecentemente vestido - não nu, permitam-me dizer, mas vestido de uma forma que estava muito aquém de sua posição - e ficou lívida de raiva. Davi agira como um tolo; ele envergonhou a si mesmo e, com certeza, a ela também.

Antes de passarmos para a visão de Davi da mesma situação, vamos primeiro dar uma olhada no que o autor nos diz. Como ele vê Davi neste texto? Será que sua avaliação da situação desculpa a atitude de Mical? Em primeiro lugar, devemos notar que o autor não sugere que Davi estava nu ou inadequadamente vestido. Ele diz que Davi dançava com todas as suas forças, e que vestia uma estola sacerdotal de linho (6:14). Também nos diz que quando Mical, esposa de Davi, viu isso, ela o desprezou em seu coração (6:16).

O autor de Crônicas nos dá mais detalhes sobre o que Davi fez:

“Foram Davi, e os anciãos de Israel, e os capitães de milhares, para fazerem subir, com alegria, a arca da Aliança do SENHOR, da casa de Obede-Edom. Tendo Deus ajudado os levitas que levavam a arca da Aliança do SENHOR, ofereceram em sacrifício sete novilhos e sete carneiros. Davi ia vestido de um manto de linho fino, como também todos os levitas que levavam a arca, e os cantores, e Quenanias, chefe dos que levavam a arca e dos cantores; Davi vestia também uma estola sacerdotal de linho. Assim, todo o Israel fez subir com júbilo a arca da Aliança do SENHOR, ao som de clarins, de trombetas e de címbalos, fazendo ressoar alaúdes e harpas.” (I Crônicas 15:25-28)

A primeira coisa que gostaria de ressaltar é que Davi não estava sozinho. Ele festejava junto com todo Israel. Se ele estava dançando, todos estavam, e todos incluía os principais líderes da nação. Davi estava alegre e exultante? Todos também estavam; bem, quase todos; exceto Mical, é claro. Davi vestia uma estola sacerdotal de linho? Era isso também o que Samuel costumava usar quando ministrava diante do Senhor (I Samuel 2:18). Era assim que os sacerdotes se vestiam (I Crônicas 15:27).

Mical não estava zangada por Davi ter feito algo errado, por ter se sobressaído ao resto do povo. Ela estava zangada por ele ter se comportado como o povo, como a plebe, e por ter se vestido como um reles sacerdote. Ela estava zangada por ele não ter agido como um rei que adorava a Deus. Ele tinha se humilhado. Tinha se diminuído. Tinha se rebaixado. E Mical não o perdoaria por isso. Se, da primeira vez, Deus havia dado um banho de água fria no entusiasmo de Davi com a morte de Uzá, agora Mical dá outro banho, desprezando-o e criticando-o por não agir como rei.

As palavras de Davi à sua esposa são duras e podem até parecer grosseiras, mas é porque refletem a maldade do coração de Mical. Um homem justo não poderia simplesmente aceitar a repreensão dela. Ele tinha muitas coisas a dizer para sua esposa:

1) A conduta dele, que Mical achou tão repulsiva, tinha sido diante do Senhor (6:21). As ações de Davi podem ter sido vistas por sua esposa, mas não foram para lisonjeá-la, foram para honrar ao Senhor. Ele não estava dançando para ela. Nem mesmo para a multidão. Ele estava dançando para o Senhor. A adoração dele não tinha a intenção de agradá-la. Isso me faz recordar das palavras do apóstolo Paulo:

“Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo.” (Gálatas 12:10)

“Pois a nossa exortação não procede de engano, nem de impureza, nem se baseia em dolo; pelo contrário, visto que fomos aprovados por Deus, a ponto de nos confiar ele o evangelho, assim falamos, não para que agrademos a homens, e sim a Deus, que prova o nosso coração. A verdade é que nunca usamos de linguagem de bajulação, como sabeis, nem de intuitos gananciosos. Deus disto é testemunha. Também jamais andamos buscando glória de homens, nem de vós, nem de outros.” (I Tessalonicenses 2:3-6)

Receio que, atualmente, o culto a Deus tenha se transformado em um espetáculo; um espetáculo para o público, não para Deus. As palavras de Davi para sua esposa poderiam muito bem se aplicar a nós. O culto deve ser “diante de Deus”, realizado para o Seu prazer e para a Sua aprovação, não para o prazer e aprovação dos homens. Distante demais do que deveria ser, o culto de nossos dias talvez seja apenas para o agrado dos homens.

2) Davi não deixará de celebrar, principalmente porque aquele a quem ele quer agradar é também Aquele que o escolheu (6:21). Acho que Mical ficou zangada porque Davi estava celebrando, pois estava muito feliz. Ela era como muitos cristãos atuais que parecem dizer: “Tire esse sorriso do rosto. Você não sabe que está na igreja?” Davi estava celebrando porque tinha muito o que celebrar. Ele celebrava o seu reinado, e o seu reinado lhe fora dado por Deus. Como, então, isso poderia ser errado? Errado seria não se regozijar naquilo que dava prazer a Deus.

Fico me perguntando quanto tempo faz desde a última vez que fizemos algo com alegria, exultação e entusiasmo. Não há nenhuma virtude em ser carrancudo. Não há desculpas para ficar de cara fechada quando o próprio Deus Se regozija, quando Ele Se satisfaz. Deveríamos nos regozijar não só com aqueles (nossos semelhantes) que se regozijam (Romanos 12:15), mas também com aqueles em quem Deus Se regozija. Receio que sejamos mais parecidos com Mical do que com Davi, quando se trata de celebrar com júbilo ao nosso Deus e às Suas obras.

3) Terceiro, Davi relembra à sua esposa que ela está agindo como o pai dela, e que ele, seu marido, foi escolhido por Deus para reinar em lugar dele. Deus exaltou Davi sobre Saul, pai de Mical. Ele instituiu Davi em lugar de Saul. Ele rejeitou a casa de Saul e começou tudo de novo com Davi e sua casa. E eis Mical tomando o lugar de seu pai. Como ela podia ter tanto orgulho, orgulho do status de filha do rei (Saul)? Por que ela sentia tanto desprezo por Davi, mesmo sendo ele o escolhido de Deus para reinar em Israel? A razão era simplesmente porque ela era filha de seu pai. Será que a incomodava o fato de Davi ter conquistado o coração do povo e ter se negado a ficar longe daqueles a quem governava? Ao invés de ficar ao lado de Davi, como fez Jônatas, ela se colocou contra ele. E, nesse ponto, ela era exatamente como o pai dela. Contudo, que ela seja relembrada de que Deus rejeitou seu pai. E, por isso, Davi também a rejeita. Se Davi não teve mais relações íntimas com ela ou se Deus simplesmente fechou o seu ventre, o fato é que Mical morreu sem filhos. De acordo com o primeiro capítulo de I Samuel, sabemos que isso era fonte de grande tristeza, vergonha e dor. O julgamento de Deus estava sobre ela.

4) Quarto, Davi governava seu povo como um servo humilde, não como um tirano. Mical desprezou e criticou Davi por ele não ter agido como rei. A resposta de Davi parece ter sido que, uma vez que Deus o fez rei, ele seria o tipo de rei que Deus queria. Ele não seria um rei como Saul, pai de Mical, pois Deus o destituiu, rejeitando-o como rei. Deus levantou Davi para ser um rei diferente, um rei-servo. Se esse era o tipo de rei que Mical não gostava, que fosse; Davi seria o tipo que Deus o designou para ser. Ele se identificava com o povo em vez de se diferenciar dele. Mais ainda, ele vestiu-se e adorou a Deus “como sacerdote” (6:14-19, I Crônicas 15:25-27). Deus não chamara Israel para ser “reino de sacerdotes”? (Êxodo 19:6) Quando vestiu a estola sacerdotal, Davi exerceu uma forma legítima de sacerdócio.

Saul errou quando tomou o lugar de Samuel como profeta e sacerdote (I Samuel 13:8-9). Ele errou porque desobedeceu uma ordem explícita de Deus. Davi exerceu seu sacerdócio de maneira agradável a Deus. No entanto, na cabeça de Mical, essa posição humilde estava aquém da dignidade de um rei; e assim ela desprezou o marido porque ele se humilhou diante do povo.

Conclusão

Este texto está repleto de lições para nós. Primeiro, podemos aprender com Uzá. Não sabemos muita coisa a respeito dele. Também não temos certeza sobre o seu relacionamento com Deus. Não sabemos quais foram seus motivos para estender a mão e tocar na arca. De um modo geral, sou propenso a lhe dar o benefício da dúvida. Acho que ele estava realmente preocupado com a possibilidade da arca cair no chão, e tocar nela não lhe pareceu uma coisa tão séria, caso estivesse tentando salvá-la.

Sabemos que ele cresceu tendo a arca em sua casa (I Samuel 7:1-2; II Samuel 6:2-4). Será que ele estava acostumado demais às coisas sagradas? Com certeza, essa é uma possibilidade. O mesmo perigo existe para nós. Todas as semanas somos lembrados da obra expiatória de nosso Senhor na cruz do Calvário quando celebramos a Santa Ceia. Os santos de Corinto começaram a ver isso como um ritual, e sua conduta à mesa do Senhor não estava agradando a Deus. Paulo lhes disse que eles tinham deixado de “discernir o corpo” (I Cotíntios 11:29). Por isso, uma porção de irmãos estava ficando doente, e alguns até morreram (11:30). Vamos estar mais atentos à santidade de Deus e ser mais reverentes em nossa adoração. Deus leva muito a sério nossa insensibilidade para com a Sua santidade.

Ananias e Safira estavam mais preocupados com o que o povo pensava deles do que como Deus os via. Por isso, mentiram ao Espírito Santo, dizendo que haviam dado todo o dinheiro da venda de sua propriedade, em vez de somente uma parte (Atos 5:1-11). Deus é um Deus santo que chama Seu povo à santidade (ver I Pedro 1:14-16). Ele leva nosso pecado muito a sério. Quando Herodes não Lhe deu glória e aceitou ser glorificado pelo povo como um deus, Deus o feriu de morte (Atos 12:20-23). Desrespeito à santidade de Deus pode ser mortal.

Uzá é um lembrete para nós de que a santidade de Deus é tamanha que homens pecaminosos não podem se aproximar Dele a menos que Ele providencie um meio para isso. Depois da queda, Deus teve que expulsar Adão e Eva do jardim do Éden. Ele providenciou-lhes uma cobertura, mas essa foi só uma solução parcial. Quando Deus libertou Israel do cativeiro egípcio, Ele lhes deu Sua lei no monte Sinai. Sua glória e majestade foram reveladas aos israelitas:

“Ao amanhecer do terceiro dia, houve trovões, e relâmpagos, e uma espessa nuvem sobre o monte, e mui forte clangor de trombeta, de maneira que todo o povo que estava no arraial se estremeceu. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. Todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR descera sobre ele em fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente. E o clangor da trombeta ia aumentando cada vez mais; Moisés falava, e Deus lhe respondia no trovão. Descendo o SENHOR para o cimo do monte Sinai, chamou o SENHOR a Moisés para o cimo do monte. Moisés subiu,” (Êxodo 19:16-20)

Mais de uma vez, Deus estabeleceu limites além dos quais nem homem nem animal poderia passar. Ele fez Moisés advertir o povo a respeito do perigo de se aproximar demais Dele:

“Marcarás em redor limites ao povo, dizendo: Guardai-vos de subir ao monte, nem toqueis o seu limite; todo aquele que tocar o monte será morto. Mão nenhuma tocará neste, mas será apedrejado ou flechado; quer seja animal, quer seja homem, não viverá. Quando soar longamente a buzina, então, subirão ao monte.” (Êxodo 19:12-13)

“Descendo o SENHOR para o cimo do monte Sinai, chamou o SENHOR a Moisés para o cimo do monte. Moisés subiu, e o SENHOR disse a Moisés: Desce, adverte ao povo que não traspasse o limite até ao SENHOR para vê-lo, a fim de muitos deles não perecerem. Também os sacerdotes, que se chegam ao SENHOR, se hão de consagrar, para que o SENHOR não os fira. Então, disse Moisés ao SENHOR: O povo não poderá subir ao monte Sinai, porque tu nos advertiste, dizendo: Marca limites ao redor do monte e consagra-o. Replicou-lhe o SENHOR: Vai, desce; depois, subirás tu, e Arão contigo; os sacerdotes, porém, e o povo não traspassem o limite para subir ao SENHOR, para que não os fira. Desceu, pois, Moisés ao povo e lhe disse tudo isso.” (Êxodo 19:20-25)

Lembro-me das palavras que Moisés disse aos israelitas antes de entrarem na terra prometida:

“O SENHOR, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás, segundo tudo o que pediste ao SENHOR, teu Deus, em Horebe, quando reunido o povo: Não ouvirei mais a voz do SENHOR, meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então, o SENHOR me disse: Falaram bem aquilo que disseram. Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. De todo aquele que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei contas.” (Deuteronômio 18:15-19)

Lá, no monte Sinai, os israelitas começaram a entender a santidade e a glória de Deus. Acertadamente eles perceberam que chegar perto demais de Deus seria fatal. Eles decidiram que precisavam de um mediador para interceder junto a Deus em favor deles. Eles pediram a Moisés para realizar esse papel e ele concordou, elogiando sua decisão. Eles não foram covardes (ou, pelo menos, não totalmente covardes), foram sábios. Pecadores precisam de um mediador para se aproximar de um Deus santo.

O tabernáculo, a arca, os sacerdotes e os sacrifícios foram uma solução temporária; havia ainda a necessidade de uma solução definitiva para o problema do homem pecador se aproximar de um Deus santo. E foi Deus quem resolveu esse problema, na pessoa de Jesus Cristo. Na Sua encarnação (Seu nascimento como uma criancinha em Belém), Deus assumiu a forma humana. Ele Se identificou com os homens pecadores para solucionar o problema eterno do nosso pecado, e o perigo de se aproximar Dele.

Devemos ter profunda reverência pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo em Sua encarnação (Seu nascimento, vindo à terra como o inculpável Deus-Homem). Com admiração, lemos as palavras do apóstolo João:

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.” (João 1:14)

“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo.” (I João 1:1-3)

É por meio Dele que temos o perdão de Deus e a ousadia de entrar na Sua presença:

“Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos.” (I Timóteo 2:5-6)

“Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel.” (Hebreus 10:19-23)

O convite do evangelho do Novo Testamento é para que os pecadores se acheguem a Deus por intermédio do sangue derramado de Jesus Cristo:

“Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna.” (Hebreus 4:16)

“Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles.” (Hebreus 7:25)

“Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros. Purificai as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai o coração.” (Tiago 4:8)

A Bíblia nos adverte de que o Senhor Jesus Cristo chegará para julgar todos aqueles que se recusaram a se achegar a Ele pela fé:

“Chegar-me-ei a vós outros para juízo; serei testemunha veloz contra os feiticeiros, e contra os adúlteros, e contra os que juram falsamente, e contra os que defraudam o salário do jornaleiro, e oprimem a viúva e o órfão, e torcem o direito do estrangeiro, e não me temem, diz o SENHOR dos Exércitos.” (Malaquias 3:5)

Você já se achegou a Deus pela fé em Jesus Cristo, o único meio dos homens entrarem em comunhão com Ele? Se ainda não, eu lhe digo para fazer isso neste exato momento. Deus nos deixará ir para o inferno do jeito que quisermos, mas se quisermos ir para o céu, deve ser do jeito que Ele mesmo providenciou - o sangue derramado de nosso Senhor Jesus Cristo.

Podemos aprender com Mical. Mical serve como uma espécie de tipo dos escribas e fariseus fanáticos da época de nosso Senhor. Da mesma forma que ela usufruía da posição de filha do rei, os escribas também usufruíam da posição privilegiada de líderes religiosos de Israel. Eles temiam perder seu poder e seu status. Eles desafiavam Jesus sobre Sua autoridade. Eles olhavam com desdém para o Senhor porque ele se associava com pessoas humildes. E, da mesma forma que Mical não produziu nenhum fruto (isto é, filhos), os escribas e fariseus também não. Aqueles que adoram a Deus, devem se achegar a Ele com humildade, não com orgulho. No que diz respeito à nossa história, Mical foi a única pessoa que não adorou a Deus com alegria. O que não é de admirar, uma vez que ela estava mais preocupada consigo mesma.

Podemos aprender com Davi também. Davi serve como um tipo de Cristo, não só em nosso texto, como em outros também. Ele foi rei e sacerdote (quando usou a estola sacerdotal de linho). Ele deixou de lado suas vestes reais e se humilhou, da mesma forma que nosso Senhor (Filipenses 2:5-8; ver também João 13:1 e ss). Davi não permitiu qualquer tipo de discriminação social durante a adoração. A verdadeira adoração não pode tolerar a divisão de classes sociais. O evangelho iguala todos os homens. Todos nós somos pecadores, condenados ao tormento eterno de Deus. E todos somos salvos independentemente de nossas obras, unicamente com base na obra expiatória de Cristo na cruz do Calvário. Como, então, Davi poderia fazer qualquer outra coisa, senão humilhar-se em adoração a Deus, mesmo que sua esposa o desprezasse por isso?

Finalmente, este capítulo tem muito a dizer sobre a controvérsia carismática tão predominante na igreja atual. Existem dois extremos, dois opostos, e estamos sempre predispostos a pender para um ou para outro lado (e, às vezes, para um, depois para o outro). O primeiro é a completa negligência. Davi e o restante do povo estavam tão obcecados com a adoração que parecem ter se esquecido de quem adoravam - um Deus santo. Podemos ficar tão arrebatados pelo elemento emocional da adoração que acabamos perdendo o autocontrole. No entusiasmo do momento, as coisas claramente proibidas por Deus nos parecem um tanto permissíveis, até mesmo necessárias (como segurar a arca). Uzá foi “arrebatado” pelo entusiasmo de levar a arca de volta, mas se esqueceu de dar atenção suficiente a Deus e a Sua Palavra. Uzá morreu por causa da sua irreverência. Jamais nos esqueçamos disso. O entusiasmo nunca deve ser desculpa para desobedecer a Palavra de Deus.

Para muitos de nós, o perigo que mencionei nem parece perigo. Corremos o risco de não nos deixarmos arrebatar em nossa adoração. Nossos cultos são tão formais, ou tão organizados, que nada inesperado poderia acontecer. Ouçam bem: não estou me opondo à organização, e há muito o que dizer para uma avaliação da majestade de Deus em nossa adoração. No entanto, alguns de nós não levantam as mãos ou erguem a voz simplesmente porque são orgulhosos demais para isso. Como Mical, estamos mais preocupados com nossa sobriedade do que com Deus. Vamos tomar cuidado para não deixar o entusiasmo de lado enquanto adoramos, por achar que isso está aquém de nós.

Os dois extremos são claros em nosso texto e ambos são errados. Adoração entusiástica, que subestima a santidade de Deus e viola Sua Palavra, é errada; e, não importa o quanto estejamos entusiasmados, ainda será errado se Deus não for visto da maneira correta e se não nos aproximarmos Dele do jeito certo. Adoração imponente, que deixa a emoção e o entusiasmo de lado, simplesmente porque somos orgulhosos demais para nos humilharmos diante de Deus, também é errada. Esta gera esterilidade; aquela, a morte. Vamos procurar adorar a Deus como Davi e Israel finalmente fizeram, de acordo com a Sua Palavra, com humildade, com o coração cheio de alegria e gratidão, e com entusiasmo.

Tradução: Mariza Regina de Souza

7. Edificando A Casa De Deus (II Samuel 7:1-29)

Introdução

Um dos meus filmes favoritos é “Crocodilo Dundee”, e umas das minhas cenas prediletas é aquela em que Dundee está em Nova York, andando pela cidade com a namorada. De repente, uma gangue de ladrões sai de um beco escuro. Um dos bandidos o ameaça com uma faca e exige que Dundee lhe entregue seus pertences. Calmamente, Dundee olha para eles antes de responder: “Isso não é uma faca... esta é uma faca! Aí ele puxa uma faca imensa, que faz a navalha do pretenso bandido parecer um canivete, enquanto a gangue se manda.

Essa cena me faz lembrar do nosso texto. Davi acabou de concluir a construção de seu palácio. Ele olha para fora e vê a arca do Senhor, alojada em uma tenda, e se põe a pensar... um plano começa a se delinear na sua cabeça. Por que não construir uma casa para Deus, um templo? Assim, ele chama seu amigo e confidente, o profeta Natã, e lhe dá uma ideia do que pretende. Natã consente rapidamente, achando que o plano de Davi para a tal “casa” agradará a Deus. No entanto, naquela noite, Natã é corrigido por Deus e tem de voltar a Davi com sua avaliação profética revisada. Por intermédio de Natã, Deus fala com Davi. É como se Deus estivesse olhando de cima para a planta desenhada por Davi para a “casa” de Deus. Ele, então, olha para Davi e diz: “na verdade, Davi, isso aí não é uma casa... isto é uma casa”. Se Davi pensa que pode edificar uma casa para Deus, ele está muito enganado. É Deus quem planeja edificar uma “casa” para ele. E que casa será! Atentemos para as palavras de nosso texto e aprendamos que tipo de casa Deus edificará para Davi, e como ela será maior do que a casa-templo que Davi quer edificar para Ele.

Este é um texto importantíssimo no Antigo Testamento. Mal podemos avaliar sua importância não só para Davi, como também para Israel e para toda a humanidade.

“Walter Brueggemann considera esta história de Davi e Natã como o ‘centro dramático e teológico de toda a obra de Samuel... um dos textos do Antigo Testamento mais importantes para a fé evangélica.’”

O texto contém aquilo que os teólogos costumam chamar de “a aliança davídica”, uma das grandes alianças da Bíblia. Nesta mensagem, tentaremos investigar o seu significado e a sua importância.

O Plano De Davi E A Aprovação Do Profeta
(7:1-3)

“Sucedeu que, habitando o rei Davi em sua própria casa, tendo-lhe o SENHOR dado descanso de todos os seus inimigos em redor, disse o rei ao profeta Natã: Olha, eu moro em casa de cedros, e a arca de Deus se acha numa tenda. Disse Natã ao rei: Vai, faze tudo quanto está no teu coração, porque o SENHOR é contigo.”

Davi percorreu um longo caminho desde os seus dias de pastor de ovelhas quando jovem. Mal tinha começado a ficar claro para ele que Deus o estabelecera como rei sobre Israel (II Samuel 5:12). Por duas vezes, os filisteus procuraram destruí-lo e, por duas vezes, ele os derrotou. Os inimigos ao redor de Israel, neste momento, estão em paz com Davi. Com a ajuda de Hirão, rei de Tiro, ele conclui seu próprio palácio e agora vive em majestoso esplendor. Agora ele tem tempo para se dedicar a outros empreendimentos.

Após a primeira tentativa frustrada, a arca de Deus foi trazida com êxito para Jerusalém e alojada em uma tenda. Talvez Davi tenha olhado de cima de seu palácio e seus olhos tenham se fixado na tenda do tabernáculo, onde a arca era mantida. De alguma forma, pareceu-lhe inadequado viver luxuosamente enquanto a arca ficava num lugar tão simples e aparentemente provisório. Ele, então, tem a ideia de construir uma outra casa; esta segunda casa será um templo, onde a arca poderá ser guardada em um ambiente bem mais apropriado.

Davi já se decidiu. É isso o que ele fará. Por isso, confidencia seu plano ao profeta Natã, que também parece ser amigo e confidente do rei. Como um gesto tão generoso poderia estar errado? Por que Deus não deveria ter um lugar de habitação mais adequado? E assim, sem consultar a Deus, Natã dá permissão a Davi para ir em frente. Basicamente, ele diz: “Parece ótimo para mim e estou certo de que para Deus também.” Em termos bíblicos: “Vai, faze tudo quanto está no teu coração, porque o SENHOR é contigo” (verso 3).

VIsão E Revisão
(7:4-7)

“Porém, naquela mesma noite, veio a palavra do SENHOR a Natã, dizendo: Vai e dize a meu servo Davi: Assim diz o SENHOR: Edificar-me-ás tu casa para minha habitação? Porque em casa nenhuma habitei desde o dia em que fiz subir os filhos de Israel do Egito até ao dia de hoje; mas tenho andado em tenda, em tabernáculo. Em todo lugar em que andei com todos os filhos de Israel, falei, acaso, alguma palavra com qualquer das suas tribos, a quem mandei apascentar o meu povo de Israel, dizendo: Por que não me edificais uma casa de cedro?”

Lembro-me de que, anos atrás, fiz parte da administração de uma pequena faculdade. Na verdade, eram duas escolas. Uma delas era uma faculdade e a outra, um programa de recuperação escolar, destinado a preparar jovens com deficiência educacional para o nível universitário. Eu não fazia parte da faculdade, e sim desse programa. Certa vez, quando a faculdade estava precisando de um professor, achei que tinha o candidato perfeito. O problema era que o reitor já tinha feito sua escolha. Imprudentemente, falei com o presidente das duas escolas e ele me incentivou a levar minha ideia ao reitor. Não foi uma boa coisa. A resposta do reitor à minha sugestão me pegou completamente desprevenido. “Senhor Deffinbaugh”, respondeu ele bem irritado, “quem dirige esta escola, o senhor ou eu?” Epa! Fiz besteira. A propósito, ele tinha razão. Minha ideia era apenas uma ideia, e não era eu quem dirigia a escola.

Natã certamente poderia compartilhar da forma como me senti naquele dia. No meio da noite, Deus lhe dá uma revelação direta, que ele deve transmitir a Davi. De certa forma, isso coloca os dois no devido lugar. Como eu, Davi tinha uma ideia brilhante, mas que não correspondia ao plano de Deus. A pergunta que Deus faz a Davi dá o tom do que vem a seguir: “Edificar-me-ás tu casa para minha habitação?” Epa! Gosto do jeito como Eugene Peterson coloca esse ponto:

“Entretanto, há ocasiões em que, depois de uma noite de oração, nossos planos mirabolantes para fazer algo para Deus são vistos apenas como um grande espetáculo humano daquilo que Deus está fazendo por nós. Foi isso o que Natã percebeu naquela noite: Deus lhe mostrou que os planos de Davi interfeririam em Seus planos para ele.”

Antes de prosseguirmos, tenho que ressaltar alguns detalhes importantes. Repare que os versos 1 a 3 se referem a Davi como rei, mas quando Deus se refere a ele, Ele o chama de meu servo Davi (verso 5). Creio que posso sugerir que Davi está um pouco consciente demais de sua posição como rei. Em relação ao povo de Israel (e aos de fora a quem isso importa), Davi é a maior autoridade do país. No entanto, em relação a Deus, ele é simplesmente um servo. Ele mora num palácio e Deus numa tenda, pelo menos em sua cabeça. Até parece que ele está querendo dar uma mãozinha para Deus. Seria a mesma coisa que eu, vestindo um smoking, enviasse a Ross Perot (um dos homens mais ricos do mundo) um vale-presente para que ele comprasse algumas roupas decentes. Creio que é por isso que Deus vem colocar Davi no seu devido lugar, primeiro referindo-se a ele como Seu servo, depois dizendo-lhe: “Quem é você para edificar uma casa para mim?”

Devemos observar ainda um outro detalhe, que é o exato valor de um templo, em contraste com o tabernáculo, conforme ressaltado por Estêvão em Atos 7:

“O tabernáculo do Testemunho estava entre nossos pais no deserto, como determinara aquele que disse a Moisés que o fizesse segundo o modelo que tinha visto. O qual também nossos pais, com Josué, tendo-o recebido, o levaram, quando tomaram posse das nações que Deus expulsou da presença deles, até aos dias de Davi. Este achou graça diante de Deus e lhe suplicou a faculdade de prover morada para o Deus de Jacó. Mas foi Salomão quem lhe edificou a casa. ENTRETANTO, NÃO HABITA O ALTÍSSIMO EM CASAS FEITAS POR MÃOS HUMANAS; COMO DIZ O PROFETA: O CÉU É O MEU TRONO, E A TERRA, O ESTRADO DOS MEUS PÉS; QUE CASA ME EDIFICAREIS, DIZ O SENHOR, OU QUAL É O LUGAR DO MEU REPOUSO? NÃO FOI, PORVENTURA, A MINHA MÃO QUE FEZ TODAS ESTAS COISAS? (Atos 7:44-50)

Estêvão fora levado perante o Sinédrio sob acusações forjadas, uma das quais era que ele falava contra o templo (Atos 6:13). Ele não negou a acusação feita por testemunhas falsas. Em vez disso, ele se defendeu mostrando pelas Escrituras do Antigo Testamento que Deus não estava tão impressionado com o templo quanto os judeus estavam. Ele argumentou que Deus dera a Israel o tabernáculo, e que o templo fora ideia de Davi. Ele, então, passou a mostrar que o Deus que criou todas as coisas certamente não poderia ser confinado a uma habitação feita por mãos humanas. Em suma, Deus não precisava de um templo, e Ele não o pediu. Ele permitiu que o filho de Davi o construísse porque Davi o queria. Não era errado; simplesmente não era ideia Sua. Deus não precisava de um templo e, para alguns, um templo transmitiria a mensagem errada.

O livro de II Samuel 7 está de acordo com o argumento de Estêvão. Nos versos 6 a 11a, Deus explica a Davi porque não precisa de um templo feito por ele. A primeira razão está no verso 6 e pode ser resumida nestas palavras: “Se não está quebrado, não tente consertá-lo”. Pense nisso. Por que comprar um carro novo se o carro atual está em perfeitas condições? Quando Deus deu a lei a Moisés, Ele lhe disse como o tabernáculo deveria ser construído. Durante a história de Israel, desde o monte Sinai até o reinado de Davi, o tabernáculo funcionara sem nenhum problema. Deus esteve com Seu povo enquanto a arca esteve no tabernáculo. E, quando o povo se mudou de um lugar para outro, o tabernáculo e arca foram junto. Deus esteve com eles onde quer que estivessem. Ele lhes deu a vitória sobre seus inimigos. Deu-lhes a posse da terra prometida. A história de Israel dava testemunho do fato de que nada havia para ser consertado; o tabernáculo prestou muito bem o seu serviço. Se não está quebrado, não conserte!

No verso 7, Deus dá ainda outra razão para não haver necessidade real de um templo: “Eu não pedi um templo. No monte Sinai, Deus deu a lei a Israel por intermédio de Moisés e, nessa lei, Ele especificou como o tabernáculo deveria ser construído, como deveria ser removido e quem deveria cuidar dele. Deus ensinou aos israelitas como construir o tabernáculo; Ele nem mesmo lhes pediu um templo. Se um templo fosse necessário, certamente Ele teria pedido um e, desde que não pediu, devemos concluir que ele não era necessário.

Nos versos 8 a 11a Deus chega ao âmago da questão. Gostaria que observassem quantas vezes o pronome “eu” é utilizado. A seção claramente se concentra em Deus. Gosto da maneira como Peterson coloca a questão:

“A mensagem que Natã transmite a Davi é um verdadeiro recital daquilo que Deus já fez, está fazendo e ainda fará. Deus é o sujeito em primeira pessoa de vinte e três verbos nesta mensagem, e todos são verbos de ação. Davi, que só pensa naquilo que fará para Deus, agora é submetido a uma exaustiva repetição de tudo o que Deus já fez, está fazendo e ainda fará nele e por ele. O que antes parecia um empreendimento arrojado de Davi para Deus, agora parece uma coisinha de nada.”

Será que Davi quer dar uma mãozinha para Deus, edificando-Lhe uma casa melhor para habitar? Deus o relembra de Quem cuida de quem. Será que Davi queria fazer algo grandioso, como edificar um templo para Deus? A história o relembra (e a nós também) de que é sempre Deus quem nos ajuda, e não nós a Ele. Davi, o servo de Deus, deve se lembrar de que foi o Senhor que o tirou dos pastos, de detrás das ovelhas (não da frente), e o tornou governante de todo Israel (verso 8). Deus esteve com ele onde quer que ele estivesse, e foi Deus quem entregou seus inimigos em suas mãos, o que lhe granjeou fama e reputação. É sempre Deus que vem em auxílio do homem, não o homem que vai em socorro de Deus.

No verso 10 há uma mudança significativa no tempo verbal. Os verbos anteriores estão no pretérito, referindo-se àquilo que Deus fez no passado. Agora, no verso 10, os verbos estão no futuro. Depois de mostrar a Davi tudo o que fez por ele e por Israel no passado, Deus continua, dizendo algo assim: “Davi, meu servo, você ainda não viu nada. O melhor ainda está por vir.” Deus promete preparar um lugar onde o Seu povo será plantado. Eles terão o seu próprio lugar (da mesma maneira que Davi pretendia dar a Deus “o Seu próprio lugar”) e habitarão em paz, pois os ímpios não mais os afligirão. Não será mais como costumava ser desde a época dos juízes até o presente. Deus dará a Davi descanso de seus inimigos. Ousaria Davi pensar que poderia fazer algo para Deus? Foi Deus quem lhe deu tudo o que ele tinha e era Deus quem lhe daria ainda muito mais.

Surge, então, uma pergunta: quando é que são cumpridas estas promessas para Davi? É óbvio que aqui ainda não foram, pois são expressas como uma realidade futura. Alguns podem pensar que seu cumprimento esteja nos capítulos seguintes (8 a 10), quando Davi prevalece sobre todos os inimigos que cercam Israel. Não creio que possamos ver sua total realização nos dias de Davi; nem mesmo nos dias de seu filho Salomão. Creio que isso só ocorrerá com a vinda do reino de Deus, quando o Senhor Jesus Cristo subjugar todos os Seus inimigos e estabelecer o Seu reino sobre a terra. É no tempo falado nos últimos capítulos do livro de Isaías. Estas promessas são dadas a Davi aqui porque abrem caminho para a promessa que Deus irá cumprir nos versos seguintes, ou seja, a edificação de uma “casa” para ele.

A Casa Que Deus Edificará Para Davi: O Anúncio Da Aliança Davídica
(71:11b-17)

“Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa. Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. Segundo todas estas palavras e conforme toda esta visão, assim falou Natã a Davi.”

A história deste capítulo começa com Davi pretendendo edificar uma casa (um templo) para Deus. Deus ternamente o repreende por esse plano mirabolante. Davi adotou a postura errada, de ajudar a Deus em vez de ser constantemente amparado por Ele. Deus cuidou muito bem de Seu povo quando Se associou à arca e ao tabernáculo. Ele não pediu um templo, pois não precisava de um. Deus sempre esteve por trás de todo o sucesso de Davi, e agora está lhe prometendo glórias ainda maiores. Assim, Deus volta à questão da “casa”. Será que Davi vai edificar uma casa para Deus? Não, não vai, embora seu filho vá. No entanto, Deus diz que Ele irá edificar uma “casa” para Davi. Os detalhes a respeito dessa “casa” são mostrados nos versos 12 a 17.

Esta profecia, como muitas outras, tem um cumprimento próximo e outro futuro. O cumprimento próximo está em Salomão, o segundo filho de Davi com Bate-Seba. Ele é quem tomará o lugar de Davi e reinará em Israel após sua morte. Sabemos que as palavras de Natã devem se referir a Salomão, pois incluem o fato de que o “filho” de Davi pecará e de que Deus o corrigirá. Esta afirmação não pode ser feita em relação ao Messias, o Filho de Davi que virá para tirar o pecado do mundo e Se assentar no trono de Seu pai, Davi. Diferentemente de Saul, cuja dinastia foi afastada, a “casa” de Davi (seus descendentes) será uma dinastia, e reinará sobre Israel.

Os descendentes de Davi - sua “casa” - desfrutarão de um relacionamento único e privilegiado com Deus. Esse relacionamento é descrito como um relacionamento entre pai e filho, ou devo dizer entre Pai e filho (e entre Pai e Filho). Na Bíblia, ser “filho”, às vezes, significa muito mais do que ser apenas um descendente físico do pai. O termo “filho” é empregado para designar aquele que governa em lugar de outro (o pai). Adão era “filho de Deus” no sentido de que ele dominava sobre a criação como agente de Deus (ver Lucas 3:38). Satanás e os anjos também são apresentados como filhos” de Deus nesse sentido. Aqui, Salomão também desfruta de um relacionamento de Pai e filho com Deus.

Nesse sentido, ninguém se torna “filho” ao nascer; um rei só se torna “filho” de Deus quando Ele o instala no trono:

“Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro.” (Salmo 2:4-9, ênfase minha).

É exatamente isso o que Deus diz ao Senhor Jesus Cristo. Deus O chama de “Filho” no dia do Seu batismo (Mateus 3:17, Marcos 1:11, Lucas 3:22) e na Sua transfiguração (Mateus 17:5, Marcos 9:7, Lucas 9:35). Pedro faz menção destas palavras, ligando-as à transfiguração (II Pedro 1:17). O escritor da carta aos Hebreus também faz uso delas como prova de que Jesus é o Messias prometido aos judeus (1:5, 5:5). Em 5:5, ele especificamente se refere ao texto de II Samuel 7:14 como tendo cumprimento em Cristo. Em Atos 13:33, Paulo alude às palavras do Salmo 2 como tendo cumprimento em Cristo, especialmente com relação a Sua ressurreição dos mortos.

A palavra “filho” ou “filhos” é usada ainda com referência àqueles que têm fé em Jesus Cristo. Quando somos salvos pela fé, tornamo-nos “filhos” de Deus. O termo “filhos” não significa apenas isso, mas também que seremos aqueles que reinarão com Ele:

“Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8:18-23)

Quando Cristo voltar à terra e formos ressuscitados dos mortos, seremos adotados como filhos em Cristo, e reinaremos com Ele por toda a eternidade.

Davi terá filhos e esses filhos se tornarão “filhos” de Deus porque reinarão sobre Israel. Contudo, ainda haverá um “filho” muito especial, por meio do qual todas as promessas de Deus feitas aqui e em outros lugares (relativas ao Seu reino) serão cumpridas, quer na Sua primeira vinda quer no Seu retorno à terra. Davi terá muitos filhos, os quais reinarão depois dele, e ele e seus filhos se tornarão “filhos” de Deus. Entretanto, a maior de todas as promessas é que esse “filho” muito especial virá, como descendente de Davi, e Seu reino será eterno. É nesse “Filho” que todas as esperanças de Davi, todas as esperanças de Israel e todas as nossas esperanças são cumpridas. E essa é a essência da aliança davídica. Deus dará filhos a Davi que reinarão em seu lugar, mas a Sua promessa será cumprida plena e finalmente no “Filho” especial que ainda virá.

Estas palavras, ditas por Natã, são a genuína palavra de Deus. Elas são dadas a Natã numa visão, que exige uma “revisão” da permissão dada por ele a Davi para edificar uma casa para Deus. Deus, portanto, fala a Davi por intermédio de Natã. Com certeza esta é a palavra de Deus.

A Reação De Davi
(7:18-29)

“Então, entrou o rei Davi na Casa do SENHOR, ficou perante ele e disse: Quem sou eu, SENHOR Deus, e qual é a minha casa, para que me tenhas trazido até aqui? Foi isso ainda pouco aos teus olhos, SENHOR Deus, de maneira que também falaste a respeito da casa de teu servo para tempos distantes; e isto é instrução para todos os homens, ó SENHOR Deus. Que mais ainda te poderá dizer Davi? Pois tu conheces bem a teu servo, ó SENHOR Deus. Por causa da tua palavra e segundo o teu coração, fizeste toda esta grandeza, dando-a a conhecer a teu servo. Portanto, grandíssimo és, ó SENHOR Deus, porque não há semelhante a ti, e não há outro Deus além de ti, segundo tudo o que nós mesmos temos ouvido. Quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra, a quem tu, ó Deus, foste resgatar para ser teu povo? E para fazer a ti mesmo um nome e fazer a teu povo estas grandes e tremendas coisas, para a tua terra, diante do teu povo, que tu resgataste do Egito, desterrando as nações e seus deuses?Estabeleceste teu povo Israel por teu povo para sempre e tu, ó SENHOR, te fizeste o seu Deus. Agora, pois, ó SENHOR Deus, quanto a esta palavra que disseste acerca de teu servo e acerca da sua casa, confirma-a para sempre e faze como falaste. Seja para sempre engrandecido o teu nome, e diga-se: O SENHOR dos Exércitos é Deus sobre Israel; e a casa de Davi, teu servo, será estabelecida diante de ti. Pois tu, ó SENHOR dos Exércitos, Deus de Israel, fizeste ao teu servo esta revelação, dizendo: Edificar-te-ei casa. Por isso, o teu servo se animou para fazer-te esta oração. Agora, pois, ó SENHOR Deus, tu mesmo és Deus, e as tuas palavras são verdade, e tens prometido a teu servo este bem. Sê, pois, agora, servido de abençoar a casa do teu servo, a fim de permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó SENHOR Deus, o disseste; e, com a tua bênção, será, para sempre, bendita a casa do teu servo.”

Precisamos atentar para o princípio da proporcionalidade neste capítulo. Dois versos são dedicados ao desejo expresso por Davi de edificar uma casa para Deus (1 e 2). Um é dedicado à resposta impensada de Natã (3). Os versos 4 a 17 registram a visão na qual Natã recebe a revelação de Deus e a transmite para Davi (14 versos no total). Os últimos 12 versos registram a reação de Davi a essa revelação. Agora a “casa” de Davi está em ordem. Agora ele vê as coisas do ponto de vista de Deus. Os versos finais do capítulo 7 são sua resposta à aliança davídica. O que quero dizer é que eles também fornecem um padrão para o nosso culto.

Os versos 18 a 21 são expressão da humildade reconquistada por Davi, da reorganização da sua auto-avaliação. Eis o tipo de auto-estima que deve caracterizar todos os cristãos, especialmente (mas não exclusivamente) no culto. No início do capítulo 7, Davi está meio cheio de si. Nos três primeiros versos, ele é chamado de “rei” três vezes. O verso 18 também se refere a ele como “rei”, mas apenas para destacar sua mudança de atitude do início do capítulo. Não há outra referência neste texto.

Será que Davi está impressionado com sua posição e poder, com ser rei? Será que ele pensa mais em termos daquilo que pode fazer para Deus do que daquilo que Deus tem feito e fará para ele? Bem, parece que sim, pelo menos por enquanto. Nos versos 18 a 21, em vez de encontrarmos três vezes a palavra “rei”, encontramos a palavra “servo”. Isso nos surpreende? É assim que Deus o chama no verso 5. Davi agora sente profundo respeito pelo fato de Deus tê-lo tomado, um homem sem nenhum status ou posição, e tê-lo feito rei de Israel. Deus também o relembrou disso por intermédio de Natã (ver versos 8 e 9). Davi vê sua posição e seu status como rei de Israel como resultado da graça soberana de Deus, não como reconhecimento de sua possível grandeza. É incrível como o orgulho e a arrogância distorcem nossa opinião. Não é de admirar que a humildade seja o ponto de partida, o pré-requisito, para a sabedoria (Provérbios 11:2; 15:33; 18:12; 22:4; 29:13).

Agora Davi está começando a andar com o pé direito. Ele se vê como realmente é aos olhos de Deus. Ele reconhece sua fraqueza, sua insignificância. Ele fica impressionado e maravilhado com o fato de Deus o ter escolhido para usá-lo. Ele não está ensoberbecido pelo seu poder como rei de Israel, mas humilhado pela consciência de que Deus o usa como Seu servo. E, nos versos 22 a 24, ele agradece a Deus e O louva pelo que Ele é, pelas obras maravilhosas que fez no passado em favor dele e de Israel. O verso 22 resume a auto-revelação de Deus no passado de Israel. Só Deus é Deus. Não há outro além Dele, não há Deus como Ele. Ele é Deus grande e temível. Isto está em harmonia com tudo o que ouviram Dele e a respeito Dele.

Deus fez grandes coisas para Davi, mas estas não são para ele. Deus agiu na vida dele e por meio dele para tornar possível o cumprimento de Suas promessas à nação de Israel. Os versos 23 e 24 recontam a grandeza de Deus relevada em Seus atos em benefício de Seu povo, Israel. Estes versos soam muito parecidos com as palavras ditas por Deus por intermédio de Moisés em Deuteronômio:

“Pois que grande nação há que tenha deuses tão chegados a si como o SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que eu hoje vos proponho?... Agora, pois, pergunta aos tempos passados, que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, desde uma extremidade do céu até à outra, se sucedeu jamais coisa tamanha como esta ou se se ouviu coisa como esta; ou se algum povo ouviu falar a voz de algum deus do meio do fogo, como tu a ouviste, ficando vivo; ou se um deus intentou ir tomar para si um povo do meio de outro povo, com provas, e com sinais, e com milagres, e com peleja, e com mão poderosa, e com braço estendido, e com grandes espantos, segundo tudo quanto o SENHOR, vosso Deus, vos fez no Egito, aos vossos olhos. A ti te foi mostrado para que soubesses que o SENHOR é Deus; nenhum outro há, senão ele. Dos céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu grande fogo, e do meio do fogo ouviste as suas palavras. Porquanto amou teus pais, e escolheu a sua descendência depois deles, e te tirou do Egito, ele mesmo presente e com a sua grande força, para lançar de diante de ti nações maiores e mais poderosas do que tu, para te introduzir na sua terra e ta dar por herança, como hoje se vê.” (Deuteronômio 4:7-8; 32-38)

Davi vê a si mesmo como Israel deveria se ver. Não foi por sua grandeza, por seu tamanho ou por seus méritos que Deus quis abençoá-los. Foi por Sua graça soberana, independentemente de obras ou méritos:

“Havendo-te, pois, o SENHOR, teu Deus, introduzido na terra que, sob juramento, prometeu a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó, te daria, grandes e boas cidades, que tu não edificaste; e casas cheias de tudo o que é bom, casas que não encheste; e poços abertos, que não abriste; vinhais e olivais, que não plantaste; e, quando comeres e te fartares, guarda-te, para que não esqueças o SENHOR, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão. O SENHOR, teu Deus, temerás, a ele servirás, e, pelo seu nome, jurarás.” (Deuteronômio 6:10-13)

“Comerás, e te fartarás, e louvarás o SENHOR, teu Deus, pela boa terra que te deu. Guarda-te não te esqueças do SENHOR, teu Deus, não cumprindo os seus mandamentos, os seus juízos e os seus estatutos, que hoje te ordeno; para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração, e te esqueças do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão, que te conduziu por aquele grande e terrível deserto de serpentes abrasadoras, de escorpiões e de secura, em que não havia água; e te fez sair água da pederneira; que no deserto te sustentou com maná, que teus pais não conheciam; para te humilhar, e para te provar, e, afinal, te fazer bem. Não digas, pois, no teu coração: A minha força e o poder do meu braço me adquiriram estas riquezas. Antes, te lembrarás do SENHOR, teu Deus, porque é ele o que te dá força para adquirires riquezas; para confirmar a sua aliança, que, sob juramento, prometeu a teus pais, como hoje se vê.” (Deuteronômio 8:10-18)

Davi cai na mesma armadilha contra a qual Deus prevenira Israel. Ele começa a tomar para si o crédito pelas coisas que Deus faz. Ele começa a achar que Deus precisa dele, em vez de adorá-lo como uma criatura dependente. Quando passa a ver a vida do ponto de vista de Deus, ele percebe como realmente ela é. Ele a vê como Israel deveria ver. Agora ele pensa claramente, por isso, reconhece que tanto ele quanto Israel são importantes devido a graça de Deus e nada mais. Por isso, Davi humildemente louva a Deus.

Nos versos 8 a 10, Deus relembra a Davi Suas bênçãos no passado. Nos versos 10 a 16, Ele promete dar a Davi e a Israel bênçãos ainda maiores no futuro. Nos versos 22 a 24, Davi O louva por Sua graça no passado. Agora, nos versos 25 a 29, ele suplica a Deus que faça como prometeu e, ao mesmo tempo, ele O adora e O louva pelas coisas que ainda fará. Davi compreende as promessas feitas por Deus na aliança que acaba de fazer com ele e as usa como fundamento para suas petições. Em resumo, Davi ora por aquilo que Deus lhe prometeu.

Davi não está apenas repetindo a promessa de Deus; ele a está colocando, e o seu cumprimento, na devida perspectiva. Ele estava errou ao pensar em termos de seus sucessos. Deus o relembra de que todos os seus aparentes sucessos foram dádivas graciosas de Sua mão (ver os versos 8 e 9). E, da mesma forma, as coisas prometidas para o futuro também são dádivas graciosas (ver os versos 10 a 16) pelas quais Ele deve ser louvado. Por isso, Davi suplica a Deus que cumpra essas promessas, não só para que o seu nome seja exaltado, mas para que o nome Dele seja magnificado (verso 26).

Por intermédio de Natã, Deus brandamente repreende Davi por sua arrogância em pensar que poderia edificar uma habitação mais adequada para Ele, que poderia avaliar melhor do que Ele a necessidade de alguém. Esse tipo de repreensão faz com que desejemos refrear a língua indefinidamente. Alguma vez você já disse algo muito estúpido, na presença de uma porção de gente? Se já, então conhece o desejo de nunca mais querer falar em público. Davi sente a mesma coisa, mas a promessa de Deus de uma casa eterna lhe dá coragem para pedir a Ele o seu exato cumprimento (verso 27).

A petição de Davi continua nos versos 28 e 29, onde ele relembra Deus de Sua promessa e Lhe pede que a cumpra. A confiança de Davi está em Deus, não em si mesmo. A presunçosa auto-confiança que o caracteriza nos versos iniciais deste capítulo já se foi, substituída por uma confiança humilde baseada nos feitos de Deus. Deus promete algo bom a Seu servo (não ao rei). A promessa é clara e feita por Deus. Qualquer promessa feita por Ele é coisa certa, por isso Davi Lhe pede que Ele a cumpra. Que a promessa seja cumprida pela bênção à casa de Davi, e que esta bênção venha do Deus de todas as bênçãos. Finalmente, Davi ora para que a bênção seja eterna. Tais bênçãos só podem vir de Deus.

Conclusão

A primeira lição de nosso texto é: mesmo os anseios mais nobres e as aspirações mais elevadas são manchados pelo pecado. O desejo de Davi de edificar uma casa para Deus era tão sublime que até Natã se deixou levar por ele. Quem poderia culpá-lo por querer edificar uma casa suntuosa para Deus? Só Deus e Ele o fez. E a razão foi porque os motivos e as aspirações de Davi estavam muito aquém daquilo que Deus pretendia. Parece que Davi ficou um tanto enaltecido por seus recentes sucessos, por sua posição e poder, e até mesmo pelo esplendor de seu próprio palácio. A resposta de Deus a ele certamente contém uma repreensão à sua arrogância: “Quem é você para Me edificar uma casa?” Não importa o quanto nossos planos para Deus e para Sua obra pareçam piedosos, eles estão sempre muito aquém da sinceridade de pensamentos e de motivos requeridos por Deus. Numa análise final, não há nada que possamos fazer para Deus com nossos próprios esforços. É Deus quem realizada grandes coisas por meio de nós e, muitas vezes, a despeito de nós.

Ainda relacionada à primeira, temos uma segunda lição: Não importa quão altos ou quão sublimes sejam os nossos planos e as nossas metas, os planos de Deus são sempre maiores. Paulo coloca a questão desta forma:

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! QUEM, POIS, CONHECEU A MENTE DO SENHOR? OU QUEM FOI SEU CONSELHEIRO? OU QUEM PRIMEIRO DEU A ELE PARA QUE LHE VENHA A SER RESTITUÍDO? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)

“Mas, como está escrito: NEM OLHOS VIRAM, NEM OUVIDOS OUVIRAM, NEM JAMAIS PENETROU EM CORAÇÃO HUMANO O QUE DEUS TEM PREPARADO PARA AQUELES QUE O AMAM.” (I Coríntios 2:9)

Será que Davi planeja edificar uma casa para Deus? Ele não pode nem imaginar a “casa” que Deus vai edificar para ele. A casa pretendida por Davi não chega nem aos pés da “casa” de Deus.

Terceira, a glória e a majestade da presença e do poder de Deus não devem ser interpretadas à luz de um contexto espetacular. Há muitos anos Elias aprendeu que não se deve presumir que a presença de Deus está em fenômenos espetaculares (muito embora, às vezes, Ele empregue tais meios - ver Êxodo 19, 34). Deus não estava no vento, nem no terremoto, nem no fogo, mas num cicio tranquilo e suave (I Reis 19:11-13). Os discípulos, até certo ponto, e os judeus, em grande parte, esperavam que o Messias viesse ao mundo de forma miraculosa e espetacular; por isso, estavam sempre pedindo um sinal. Os coríntios do Novo Testamento chegaram a considerar mais espirituais as pessoas glamurosas e espalhafatosas, enquanto desprezavam as mais discretas, como Paulo e outros apóstolos verdadeiros (ver I Coríntios 4, II Coríntios 4 a 6). O próprio Senhor Jesus não veio em resplendor e glória. Ele veio despido de Sua majestade (ver Isaías 53:1-3; João 1:9-11; Filipenses 2:5-8); por isso, muitos não O reconheceram como o Messias. O segundo templo não era tão maravilhoso quanto o primeiro, mas aos olhos de Deus ele era magnífico. A verdadeira glória não reside na aparência externa, mas no fato de que o próprio Deus está entre nós, habitando em nós, Seu corpo. Devemos aprender com Davi, e com muitos outros na Bíblia, que a glória de Deus se encontra onde Ele está presente, e não necessariamente onde presenciamos coisas espetaculares.

Será que Davi supõe que Deus esteja mais presente num templo luxuoso do que numa tenda? Ele está prestes a descobrir que Deus está “entronizado entre os louvores de Israel” (Salmo 22:3). Atualmente, Deus prefere habitar num tipo diferente de “templo”; esse “templo” é o Seu corpo, a igreja:

“Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.” (Efésios 2:19-22)

“Chegando-vos para ele, a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” (I Pedro 2: 4-5)

No reino eterno de Deus não haverá nenhum “templo” como tal, pois nosso Senhor mesmo será o “templo”:

“Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro.” (Apocalipse 21:22)

Quarta, vemos que Davi não precisa de um templo por perto para cultuar a Deus. Na verdade, ele está se afastando do culto quando propõe a construção de um templo. Só depois de ser lembrado de que tudo o que ele é e de que tudo o que faz vem de Deus é que Davi começa a cultuar a Deus de maneira correta. Assim, ele passa a reconhecer sua própria insignificância e a louvar a Deus pela presença Dele em sua vida, pela Sua grandeza e pelo Seu poder. É aqui que começa a verdadeira adoração: não num edifício espetacular, mas na grandeza e na graça de nosso Deus.

Há grande ênfase hoje em dia na plantação e construção de igrejas, grandes igrejas. Plantar igrejas é uma boa coisa, e construí-las não é necessariamente um mal. No entanto, estejamos alertas contra a falsa suposição de que edifícios maiores e mais impressionantes são prova da presença e do poder de Deus. Precisamos estar alertas contra os pensamentos presunçosos a respeito da nossa própria contribuição ao reino de Deus, achando que Ele realmente precisa de nós. É sempre Ele quem nos conduz, não nós a Ele. Como é fácil começarmos a nos concentrar no que temos feito e no que podemos fazer para Deus em vez de nos concentrar em tudo o que Ele tem feito e ainda fará por nós e por meio de nós.

Quinta, a repreensão divina recebida por Davi serve como lição para todos os cristãos. Você já não pensou que, se pudesse sempre crescer, ganhar maturidade e sabedoria como cristão, de alguma forma ficaria livre da tentação e protegido do pecado? Crescimento, maturidade e sucesso não nos isolam do pecado; muitas vezes, essas coisas se tornam novas tentações para nos levar a ele. Há mais perigo no palácio de Davi do que quando ele fugia de Saul e se escondia em alguma caverna. Com muita frequência, levamos nosso “sucesso” a sério demais. Precisamos nos lembrar de que não existe sucesso que possamos sinceramente reivindicar como nosso, pois sucesso espiritual é dom da graça de Deus:

“Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (I Coríntios 4:7)

Finalmente, sou lembrado mais uma vez de que as maiores bênçãos da nossa vida não são fruto de nossos esforços, mas fruto da obra de Deus e, quase sempre, enquanto Ele usa nossos fracassos e defeitos. Davi foi repreendido por querer edificar um templo para Deus, mas, apesar disso, Deus lhe promete edificar uma casa bem maior do que ele imagina. Davi erra quando comete adultério com Bate-Seba e mata o marido dela; no entanto, ainda assim ela se torna sua esposa e mãe de Salomão, o rei seguinte de Israel. Davi erra quando faz o censo de Israel; entretanto, como consequência desse pecado, a propriedade onde o templo será construído é adquirida por ele.

Quão maravilhoso e grandioso é o Deus a quem servimos! Seus planos e Suas promessas não podem ser frustrados. E, mesmo os nossos maiores esforços para frustrar os Seus propósitos servem apenas para engrandecer o Seu reino. Regozijemo-nos porque o Senhor não habita mais em uma tenda ou em um templo e sim no Senhor Jesus Cristo e no Seu corpo, a igreja. Somos a casa de Deus se confiamos em Jesus Cristo.

Tradução: Mariza Regina de Souza

8. Guerra E Paz (II Samuel 8:1 - 10:19)

Introdução

Muitas pessoas que parecem ser “boas” só são “boas” porque lhes falta o poder de fazer o mal que desejam. Você se recorda de sua infância, de quando um de seus pais lhe dizia que você não podia fazer uma determinada coisa? Naquela hora, talvez você tenha pensado, ou dito para si mesmo: “Espera só até eu crescer, porque então eu vou...”. Às vezes, tais afirmações iam mais longe: “Quando crescer, vou ser presidente, e aí vou...” O poder é um teste para o nosso caráter. Poder fazer o que quisermos, ou o que preferirmos, revela para nós, e para os outros, quem realmente somos.

Durante muitos anos Davi quase não teve poder. Ele ficava nos campos guardando o pequeno rebanho de ovelhas de sua família. Quando Samuel entrou em cena para ungir o futuro rei de Israel dentre os filhos de Jessé, Davi sequer foi considerado como uma possibilidade. Foi preciso dizer à sua família que fosse buscá-lo no campo. Houve tempos em que ele exerceu certo poder e autoridade no governo de Saul, mas logo se tornou fugitivo e seu poder oficial lhe foi tirado. Até mesmo sua esposa lhe foi tirada.

Agora, anos depois, Saul está morto e Davi reina em seu lugar em Israel. Em nosso texto, ele irá subjugar seus inimigos e trazer paz para a nação. Agora ele tem poder para fazer o que quiser. É nesta época que veremos seus melhores momentos e, infelizmente, também os piores. Nos capítulo 8 a 10, encontramos Davi em sua melhor forma. Ele usa o poder que lhe foi dado por Deus para fazer a Sua vontade. No capítulo 11, ele tropeça, atingindo o ponto mais baixo de sua vida espiritual. Ele emprega seu poder para não ir à guerra, para tomar a esposa de outro homem e depois para mandar matá-lo. No entanto, esta é uma outra história, que guardaremos para a próxima lição.

Nesta lição, iremos nos concentrar em três capítulos de II Samuel: 8, 9 e 10. As razões para esta escolha se tornarão evidentes durante a exposição destes versículos. Basta dizer, por enquanto, que os capítulos 8 a 10 relatam como Davi utiliza seu poder na guerra contra os inimigos de Israel e, portanto, de Deus. O capítulo 9 descreve como ele utiliza o poder para cumprir a aliança feita com seu querido amigo Jônatas e sua promessa a Saul. O capítulo 9 faz um contraste muito bonito com os capítulos 8 e 10, colocando a soberania de Davi (e, dessa forma, a soberania de Deus) na perspectiva correta. Vamos considerar primeiro os capítulos 8 e 10 e depois retornar ao capítulo 9, à bondade de Davi para com Mefibosete. Prestemos bastante atenção às palavras destes capítulos e ao ensinamento do Espírito Santo, confiando Nele para aprendermos as lições pertinentes à nossa própria vida atual.

Davi Dá Cabo De Seus Inimigos
(8 E 10)

Talvez seja útil para a nossa compreensão destes capítulos estabelecer o contexto dos acontecimentos chamando a atenção para alguns fatos relevantes:

Primeiro, os povos e os lugares sobre os quais iremos falar são aqueles que cercam o território de Israel. Eles não estão longe, mas próximos, e têm grande impacto no passado, presente e futuro da nação.

Segundo, eram esses povos e lugares que ocupavam o território dado por Deus a Israel (ver Gênesis 12:1-3; 13:14-18; 15:18-21, Êxodo 23:31) e que os israelitas não tinham conquistado, nem dominado (ver Juízes 1:1-36; 3:1-6).

Terceiro, esses povos não são superpotências internacionais, mas pequenos reinos, quase como cidades-estado. A Bíblia fala de superpotências como Egito, Assíria, Babilônia e Roma, mas não são estas que Davi e os israelitas enfrentam em nosso texto. Eles enfrentam as pequenas nações que rodeiam Israel. Para se proteger e promover seus próprios interesses, essas nações precisam se aliar a outros pequenos reinos.

Quarto, de acordo com o capítulo 7, verso 1, sabemos que esta é uma época de relativa paz. No entanto, não é uma paz permanente. Os inimigos de Israel não estão atacando o povo de Deus ou o seu rei. Os filisteus bem que tentaram - duas vezes - cortar o mal pela raiz, mas não conseguiram destruir o reino de Davi (II Samuel 5:17-25). No capítulo 8, Davi ataca muito mais do que se defende. Isto se deve, em parte, à promessa de Deus de uma paz mais duradoura nestes tempos de paz temporária:

“Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Tomei-te da malhada, de detrás das ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo, sobre Israel.  E fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus inimigos diante de ti e fiz grande o teu nome, como só os grandes têm na terra. Prepararei lugar para o meu povo, para Israel, e o plantarei, para que habite no seu lugar e não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o aflijam, como dantes, desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu povo de Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos;”

Quinto, Davi age com base nessa promessa, feita no capítulo 7, quando sai ostensiva e ofensivamente para subjugar os inimigos de Israel e tomar posse da liberdade e da terra que Deus havia prometido. Aqui não há registro de que ele tenha recebido alguma ordem, nem de que esteja ocorrendo algum ataque externo (como o dos filisteus no capítulo 5). Acredito que ele age com base nas promessas feitas por Deus a Israel e nas ordens dadas anteriormente para que tomassem posse da terra. Ele não pede orientação divina porque não precisa, e não precisa porque ela já havia sido dada. Agora ele está no poder e começa a fazer as coisas que outrora foram deixadas inacabadas.

Os Filisteus São Subjugados (8:1)

Os filisteus, situados a oeste de Israel, talvez sejam seus vizinhos mais incômodos (ver Gênesis 26:1, 8, 14, 15, 18), principalmente após a época dos juízes (Juízes 3:3, 31; 10:6-7). Sansão lutou contra eles (Juízes, capítulos 13 a 16). Foram eles que tiraram a vida dos dois filhos de Eli e indiretamente causaram a sua morte, além de levaram a arca de Deus (I Samuel, capítulos 4 a 7). Jônatas atacou a sua guarnição em Israel, precipitando outro confronto com eles (I Samuel 13:3 e ss). Davi matou Golias, um filisteu, e depois perseguiu o seu exército (I Samuel 17). Foram os filisteus também que derrotaram o exército de Israel e acabaram matando Saul e seus dois filhos (I Samuel 31). E foi entre eles que Davi procurou e encontrou refúgio (I Samuel 21:10-15; 27:1 e ss). Quando Davi se tornou rei, eles pensaram que era melhor atacá-lo logo, numa tentativa de anular a ameaça que ele representava. Eles fracassaram e Davi agora irá subjugá-los, acabando com sua tirania por um bom tempo. De acordo com a passagem paralela de I Crônicas 18:1, sabemos que a “metrópole” dos filisteus, na realidade, é Gate. Não é de admirar que Davi consiga capturá-la; ele a conhece como a palma de sua mão.

Os Moabitas São Subjugados (8:2)

Este verso é intrigante por, pelo menos, duas razões. Primeira, os moabitas parecem ter tido boas relações com Davi. A linhagem de Davi incluía Rute, a moabita (Rute 4:5, 10, 13-22). Quando pareceu que Saul iria prejudicar a família de Davi, eles fugiram e foram se encontrar com ele na caverna de Adulão (I Samuel 22:1); em seguida, ele procurou proteção para eles com o rei de Moabe (I Samuel 22:3-4). Existe uma tradição judaica que diz que o rei de Moabe traiu a confiança de Davi e fez mal a seus pais, mas isso não pode ser confirmado. Com base na relação de Davi com Hanum, rei dos amonitas, descrita em II Samuel 10, creio que é certo presumir que ele seja leal a seus amigos. Algo deve ter saído tremendamente errado para ele ter tratado os moabitas com tanta severidade, embora não tenhamos uma explicação plausível do que aconteceu (e nem precisemos de uma neste breve relato).

Segunda, talvez o leitor fique incomodado pela severidade com que Davi trata os moabitas. Quando eu dava aulas, muitas vezes tive vontade de dividir a classe em pequenos grupos. Simplesmente teria de colocá-los em fila e enumerá-los: um, dois, três, um, dois, três... Na verdade, foi isso o que Davi fez. Depois ele pegou dois grupos e eliminou-os, mandando o terceiro (apavorado) para casa, como seus servos.

Alguns ainda podem ficar incomodados pelo fato de Davi deixar tantas pessoas com vida. No caso de Saul e os amalequitas, Saul perdeu seu reino por ter deixado com vida o rei e o melhor do rebanho amalequita (I Samuel 15). Davi deixa com vida muitos mais. Por que, então, Deus não o castiga por deixar tantos sobreviventes? A resposta é simples. Deus tinha um problema de longa data com os amalequitas, por isso ordenou que Saul aniquilasse todas as pessoas e todo o rebanho (I Samuel 15:1-3). Saul falhou porque deixou de obedecer a uma ordem direta. Davi não tinha tal ordem e nem era necessário que todos os moabitas fossem mortos. Em meio ao julgamento divino (com a morte de dois terços), um terço recebeu misericórdia.

Creio que se estivéssemos lá, teríamos achado muito difícil desempenhar a missão executada por Davi e os israelitas. A arbitrariedade disso tudo parece gritante. Até parece um campo de extermínio nazista, não é? Um grupo de internos judeus é levado para o “chuveiro” e morre na câmara de gás. Outro grupo também é levado para o “chuveiro”, mas sai vivo e limpo. Como Davi pôde deixar seus homens fazerem algo tão parecido?

Por enquanto, permitam-me dar uma breve resposta; depois voltaremos a este assunto na conclusão da mensagem. Davi é o rei de Deus. Ele é o rei de Israel, que governa por Deus. Ele é o representante de Deus. Os moabitas se tornaram inimigos de Israel e, por isso, inimigos de Deus. Como tal, eles merecem morrer. O espanto não é que dois terços sejam mortos, mas que um terço seja deixado com vida. E, com a morte de dois terços, sucumbe qualquer pensamento de resistência a Davi ou rebelião contra ele.

Davi E Hadadezer, Rei De Zobá (8:3-12)

De acordo com a cronologia sugerida por nosso texto, Davi começa derrotando os filisteus, que estão a oeste de Israel. Depois ele se volta para leste, contra os amonitas. Após subjugar a ambos, ele vai para o norte. O reino arameu de Zobá fica a 40 km ou mais de Damasco, em direção ao norte. Sabemos que Saul se envolveu em confronto militar com esse reino (I Samuel 14:47). Na época, Hadadezer era seu rei. Aparentemente, ele tinha sofrido algumas perdas para o norte, onde governara “junto ao rio” (8:3). Talvez ele tenha visto os ataques de Davi a seus vizinhos do sul como uma oportunidade de ouro para voltar ao norte, onde poderia restabelecer sua supremacia. Seu plano não funcionou. Davi, ao que parece, viu a manobra de Hadadezer para o norte como uma oportunidade de atacá-lo pelo sul. Parece que, enquanto a maior parte das forças militares de Hadadezer está no norte, Davi captura seu reino no sul e, quando Hadadezer retorna, ele e seu exército encontram Davi naquilo que antes fora seu domínio. Quando os sírios de Damasco percebem que Davi é uma ameaça à sua “segurança nacional”, eles correm em auxílio de Hadadezer, mas também são derrotados (8:5-6).

O reino de Hamate fica ao norte de Zobá. Toí, seu rei, parece ter um vislumbre do desastre e toma uma atitude sábia... a rendição. Ele envia uma delegação liderada por seu filho, Jorão, para falar com Davi, rendendo-se formalmente e tornando-se seu aliado, conforme indicado pelo pagamento substancial de tributo. Toí está encantado com a derrota de Hadadezer, pois seu país estava em guerra contra ele. Tornar-se aliado do vencedor é compartilhar sua vitória sobre o inimigo.

A Vitória No Vale Do Sal (8:13-14)

Estes dois versiculos descrevem mais uma vitória do rei Davi e dos israelitas. De acordo com eles, parece que a vitória é sobre os “sírios”; no entanto, temos boas razões para dar uma olhada melhor no texto. O versículo 14 fala que os edomitas se tornaram servos de Davi. No versículo 13, há uma nota que informa que alguns textos dizem “Edom” em vez de “sírios”. A diferença na palavra hebraica é de apenas uma letra, e as duas letras são fáceis de ser confundidas. O texto paralelo de I Crônicas 18:12 mostra que os 18.000 mortos são edomitas. Ao que tudo indica, parece que eles eram o alvo. O ataque, aliás, é bem mais ao sul, o que significa que o autor descreve as vitórias de Davi a oeste, a leste, ao norte e, finalmente, ao sul. Davi derrota e subjuga todas as nações ao seu redor.

O Resultado Das Vitórias De Davi - II Samuel 8:15-18

O resultado de todos os feitos de Davi descritos no capítulo 8 é a derrota e sujeição de seus inimigos. Agora há guarnições israelitas nas nações vizinhas (verso 14), quando antes havia guarnições estrangeiras em Israel (ver I Samuel 10:5; 13:3-4). Isso significa que, pelo menos por enquanto, elas não podem mais se opor, atormentar ou oprimir Israel. Significa que a terra está em paz, exatamente como Deus prometera. Todos os sucessos alcançados por Davi vêm das mãos de Deus (ver versos 6 e 14). Seus domínios crescem tanto que ele tem de aumentar sua equipe administrativa e ministerial, conforme registrado nos versos 15 a 18. Onde ele reina há justiça e retidão (verso 15). Em consequência, ele ganha renome (verso 13), exatamente como Deus prometera (7:9). Além disso, o tributo pago a ele também é substancial. Ele recebe grandes quantidades de ouro, prata e bronze (versos 7 a 12). Estas riquezas são guardadas e, pelo menos uma parte será utilizada no templo que vai ser construído por Salomão (ver I Crônicas 18:8).

O Poder De Davi Aumenta, Em Consequência Da Loucura Dos Amonitas - II Samuel 10

No capítulo 8, vemos Davi tomando a iniciativa de sujeitar os inimigos que cercam Israel. Tem-se a impressão de que ele está satisfeito com as vitórias obtidas sobre os seus inimigos. No entanto, no capítulo 10, ele é praticamente forçado a lutar contra pessoas que antes eram suas amigas. O personagem central desse capítulo é Hanum, filho de Naás, falecido rei dos amonitas. A primeira vez que encontramos Naás é no capítulo 11 de I Samuel. Naquela ocasião, ele e seu exército haviam sitiado Jabes-Gileade e ameaçado estabelecer a paz só depois de vazar o olho direito de cada homem da cidade. Saul se mostrou a altura da situação e, capacitado pelo Espírito de Deus, liderou os israelitas na vitória sobre Naás e os amonitas. Não obstante, os amonitas não foram erradicados e, com o tempo, Naás se tornou aliado de Davi. É provável que isso tenha ocorrido enquanto Davi fugia de Saul. Seja qual for a razão, nosso texto deixa claro que Davi o considerava como amigo e aliado. Ao enviar uma delegação para lamentar a sua morte, Davi estava determinado a honrar a memória de Naás.

Hanum, filho de Naás e herdeiro do trono, não é o mesmo tipo de homem que seu pai. Parece que ele e os amonitas não têm muita vontade de manter o status de seu relacionamento com Davi e os israelitas. A situação é parecida com aquela descrita em I Reis 12, quando Salomão morre e o povo de Israel pede a Roboão, seu filho, que lhes dê mais liberdade. Roboão aceita o conselho de seus assessores mais jovens para governar com mão de ferro e o reino acaba dividido. Com a morte de Naás, Hanum assume o trono.

Logo no início do reinado de Hanum é que Davi envia uma delegação a Amom, para transmitir seus respeitos por Naás e lamentar sua morte. Os assessores do rei recém-instalado lhe dão maus conselhos. Eles garantem a Hanum que as intenções de Davi não podem ser honrosas. Davi está enviando aqueles homens como espiões, para obter informações a fim de atacá-los, como fez com tantas outras nações. Parece-me que esta explicação dos acontecimentos dá a Hanum a desculpa que ele está procurando, um motivo para quebrar a aliança feita por seu pai com Davi e Israel. Se ele pretende expandir seus domínios, vai ter de guerrear com Davi. Se conseguir derrotá-lo, Hanum terá o controle de todas as nações derrotadas e subjugadas por Davi.

Nenhuma outra explicação - senão a de uma estupidez tremenda - parece fazer qualquer sentido. Uma coisa é concluir que a delegação chegou com segundas intenções. Outra, totalmente diferente, é humilhar deliberadamente essa delegação e provocar uma guerra com Israel. Posso até entender que Hanum convoque mais tropas para proteger suas fronteiras e aumente sua segurança; mas humilhar a delegação enviada por Davi, que devia ser protegida pelo que podemos chamar de direito internacional e imunidade diplomática, é garantir que haja conflito. Parece que Hanum quer comprar briga. Se esse é o seu plano, ele funciona. Há briga. No entanto, nem tudo dá certo, não só porque os amonitas são derrotados, mas também porque os sírios, seus aliados, são desencorajados e não querem mais vir em seu auxílio.

Davi fica sabendo que sua delegação foi abusada e humilhada. Para os hebreus, a barba era sinal de dignidade. Hanum raspou metade da barba de cada homem. Além disso, ele também cortou metade de suas vestes, para envergonhá-los. Se isso tivesse ocorrido há pouco mais de um século, na época do velho oeste, o rei teria forçado esses dignitários a andar pelas ruas só de ceroulas, com a “traseira” rasgada. Alguns de vocês não têm idade suficiente para saber do que estou falando, por isso vou dar outro exemplo. Seria mais ou menos como forçar cada homem a tirar suas roupas e vestir uma camisola de hospital, e depois sair marchando pelas ruas com a parte de trás aberta. Essa foi uma atitude calculada para humilhar a delegação de Davi e começar uma guerra.

Davi se apieda da delegação desonrada. Ele envia mensageiros para encontrá-los e instruí-los a esperar em Jericó até que suas barbas cresçam novamente, e depois retornem a Israel. Não está escrito que ele reúne as tropas com intenção de ir à guerra. O que está escrito é que os filhos de Amom reconhecem que “se tornaram odiosos a Davi” (verso 6). Ao invés de se desculparem ou tentarem se reconciliar com ele, os amonitas procuram fazer uma aliança que os fortaleça no conflito com Israel. Sírios de várias regiões são contratados como mercenários (10:6). Só depois de saber desse ajuntamento militar é que Davi convoca o exército da ativa.

Davi e suas forças saem para a batalha contra os amonitas e mercenários sírios. Este exército de coalisão se divide em dois grupos, com intenção de atacar os israelitas pela frente e pela retaguarda. Quando Joabe percebe a manobra, ele divide o exército de Israel em duas forças. Ele lidera uma das divisões e seu irmão, Abisai, a outra. Joabe enfrenta os sírios, enquanto Abisai está pronto para lutar contra os amonitas. Se um dos dois se vir acuado pelo inimigo, o outro virá em seu socorro. As palavras do verso 12 demonstram sua fé em Deus, enquanto eles se preparam para a batalha: “Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso povo e pelas cidades de nosso Deus; e faça o SENHOR o que bem lhe parecer” (II Samuel 10:12).

Os sírios fogem de diante de Joabe e seus homens e, quando os amonitas veem isso, também se desanimam. Os sírios vão para casa e os amonitas procuram refúgio em sua capital, Rabá (ver 11:1; 12:26). Os israelitas voltam a Israel. Davi parece disposto a deixar tudo como está, mas os sírios ainda não aprenderam a lição. Eles, da mesma forma que os filisteus em II Samuel 5, não estão dispostos a desistir depois da primeira derrota. Eles querem revanche, e conseguem, só para serem novamente derrotados, com mais eficácia. Os sírios presumem que, se trouxerem mais gente “dalém do rio” (verso 16), poderão vencer. Hadadezer é seu líder. Ele tem contas a ajustar com Davi (ver 8:3 e ss).

Quando Davi fica sabendo que vai ocorrer um novo ataque, ele reúne todo Israel e atravessa o Jordão. A revanche começa e, uma vez mais, os sírios fogem de Davi e seu exército. Desta vez sua derrota é ainda maior do que a anterior. Davi mata 700 homens de carro e mais 40.000 a cavalo, e também Sobaque, comandante do exército sírio. Finalmente, cai a ficha dos sírios. Não vale a pena atacar o povo de Deus e lutar contra seu rei. Os reis sobreviventes fazem paz com Davi. Os sírios estão determinados a não cometer novamente o erro de se juntar aos filhos de Amom em seu conflito com Israel. Os amonitas ainda não se sujeitaram a Davi. Isso só ocorrerá nos capítulos 11 e 12.

Misericórdia Para Com Mefibosete
(II Samuel 9)

A cada ano de eleições nos preparamos para outra enxurrada de “promessas de campanha”, que serão esquecidas tão logo o candidato chegue a seu gabinete. Nem mesmo esperamos que ele ou ela as cumpra e, se o fizerem, ainda ficamos surpresos. Davi é um homem que faz promessas e as cumpre. Antes de se tornar rei de Israel, ele fez promessas tanto a Jônatas quanto a Saul. A Jônatas, ele prometeu proteger-lhe a vida e ser benigno para com sua casa para sempre (I Samuel 20:12-17). A Saul, ele prometeu não eliminar seus descendentes (I Samuel 24:21-22). Agora, tanto um quanto outro estão mortos e Davi é o rei. Seria muito fácil para ele esquecer-se de seu compromisso.

Davi não apenas se lembra de seu compromisso com Saul, mas vai muito além disso. Com Saul, ele se comprometeu a não prejudicar seus descendentes. Com Jônatas, ele se comprometeu a demonstrar benignidade. Aparentemente, todos os descendentes de Saul estão mortos. Ninguém procura Davi em busca de seu favor. Agora ele é rei e está em condições de cumprir a promessa feita a Jônatas. Tudo o que ele precisa é de um de seus descendentes. Ele pergunta se há algum descendente de Saul a quem possa usar de bondade por amor de Jônatas (verso 1). No verso 3, ele se refere a este ato como a “bondade de Deus”, o que certamente é.

Nenhum dos servos de Davi sabe se há algum descendente vivo de Saul. Alguém se lembra de Ziba, servo de Saul, e ele é convocado à presença de Davi. Será possível imaginar a apreensão de ser convocado ao palácio do rei? Será que Davi é como os outros reis, que está simplesmente procurando remover qualquer vestígio do reinado de Saul? Será que Davi está procurando dar um jeito em Ziba e sua família? Com certeza, esses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Ziba, mais de uma vez! Como ele deve ter ficado aliviado ao ouvir a pergunta de Davi: “Não ainda alguém da casa de Saul para que use eu da bondade de Deus para com ele?” (verso 3). Na verdade, há sim. Ele se lembra de Mefibosete, o filho de Jônatas. Há um filho, diz ele a Davi, mas é deficiente. É aleijado de ambos os pés. Davi certamente não vai querer demonstrar-lhe seu favor.

O autor de I e II Samuel com certeza nos preparou para este momento. Em II Samuel 4, ele relata a morte de Isbosete pela mão de dois de seus servos. No meio dessa narrativa tenebrosa, ele parece fazer um parênteses no verso 4, informando casualmente ao leitor a lesão sofrida por Mefibosete. O incidente parece meio fora de contexto. No entanto, o autor está preparando o terreno para o nosso texto. Na sequência, ele conta outra história no capítulo 5, sobre a tomada de Jebus. Neste capítulo, aparece três vezes a palavra “coxo” (versos 6 e 8). Os homens de Jebus eram tão confiantes, que se gabavam de que até “cegos e coxos” poderiam repelir o ataque de Davi à sua cidade. Quando este toma a cidade, alguns passam a dizer: “Nem cego nem coxo entrará na casa” (verso 8).

Agora, vemos Davi à procura de um descendente de Saul e Jônatas a quem possa demonstrar seu favor. O único candidato é o filho deficiente de Jônatas. Se já era notório que nenhum coxo entrava nas casas de Jerusalém, quanto mais no palácio. No entanto, é exatamente isso o que acontece. Davi chama Mefibosete, que vive em Lo-Debar, uma cidade a leste do Jordão e depois de Maanaim. A cidade devia ser perto de Amom, próximo à fronteira com Israel. Parece que Mefibosete vive o mais distante possível de Davi e Jerusalém, sentindo-se como um homem marcado para morrer caso se aproxime demais. Quando se apresenta a Davi, ele se prostra diante dele como servo. Davi percebe seu medo e lhe diz para não temer. Davi não pretende lhe fazer mal; sua intenção é usar de bondade por amor de Jônatas, pai de Mefibosete. Davi promete lhe restituir todas as terras que foram de seu pai e que, obviamente, ele perdera depois da morte de Saul e Jônatas. Davi não só restituirá tudo o que Mefibosete herdou, como também o tornará um convidado regular do palácio.

Mefibosete fica cheio de alívio e gratidão, prostrando-se diante de Davi mais uma vez, dizendo-se apenas um “cão morto”. Davi usou essa mesma expressão referindo-se a si mesmo quando falou com Saul (I Samuel 24:14). Naquela ocasião, ele tentava convencer Saul de que não representava um perigo real para ele, não importando o que dissessem a seu respeito. Parece evidente que Mefibosete chama a atenção para a sua deficiência física. Um homem que não pode andar dificilmente poderia servir ao rei, conduzindo seu exército na batalha:

“Adoni-Bezeque, porém, fugiu; mas o perseguiram e, prendendo-o, lhe cortaram os polegares das mãos e dos pés. Então, disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, a quem haviam sido cortados os polegares das mãos e dos pés, apanhavam migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E o levaram a Jerusalém, e morreu ali.” (Juízes 1:6-7)

Estes reis ficaram incapacitados porque seus polegares das mãos e dos pés foram cortados. Eles não poderiam ficar em pé ou correr no campo de batalha, nem segurar suas armas de forma adequada. Quando um rei prevalecia sobre outro na guerra, ele cortava os polegares das mãos e dos pés de seu oponente para deixá-lo como uma espécie de exemplo. Ao que parece, esses reis ficariam debaixo da mesa do rei, apanhando migalhas; não eram convidados de honra; eram troféus de guerra. Davi não queria nada disso para Mefibosete; não queria que ele se sentasse à sua mesa como um inimigo subjugado, mas como um convidado de honra, o filho de seu querido amigo Jônatas. Este é um gesto surpreendente de graça.

Davi dá ordens a Ziba, dizendo-lhe que tudo o que antes pertencera a Saul agora pertence a Mefibosete e deve ser restituído a ele. Ele faz de Ziba e seus filhos (os quais, aparentemente, tinham sido emancipados com a morte de Saul e seus filhos) servos de Mefibosete. Ziba graciosamente aceita o rumo dos acontecimentos. Daqui por diante, Mefibosete é convidado de honra de Davi, comendo regularmente à sua mesa, não como um inimigo derrotado ou humilhado, mas como um de seus filhos (verso 11).

Conclusão

Esta passagem tem muitas lições a nos ensinar, nas quais meditaremos enquanto concluímos o estudo do texto.

Primeiro, a passagem ilustra a providencial mão de Deus operando todas as coisas para o bem daqueles que creem. As batalhas travadas por Davi com os inimigos que cercam Israel só são possíveis por ele ter sido preparado por Deus nos dias em que fugia de Saul. No capítulo 5, os filisteus marcharam contra Israel, especialmente contra Davi. De acordo com o texto paralelo de I Crônicas 11:15-16, sabemos que a fortaleza mencionada no verso 17 é a caverna de Adulão. Não é interessante que os esconderijos de Davi na época em que fugia de Saul se tornem seus postos de comando nas lutas contra as nações circunvizinhas? Em II Samuel 8:1 está escrito que Davi lutou contra os filisteus e capturou sua metrópole. De acordo com I Crônicas 18:1, essa “metrópole” não era outra senão Gate. Todas as vezes em que Davi se escondeu ali, inconscientemente espionou a cidade e seus arredores, os quais um dia iria atacar e derrotar. Sabemos também que, quando fugia de Saul, ele foi para Moabe e que, provavelmente, deve ter recebido asilo de algumas outras nações. Agora que é rei de Israel, ele pode usar essas informações como vantagem militar. É bem verdade que nos Salmos vemos Davi clamando a Deus nos dias em que fugia de Saul. Ele se perguntava “Por quê?” mas, naquela época, não recebia resposta alguma. Agora, estamos começando a ver a resposta. Quando fugia de Saul, Deus o estava preparando para lutar como rei de Israel. Acho que é Bill Gothard que mostra que os dias de escravidão de Israel no Egito foram uma espécie de campo de treinamento, preparando-os para os dias difíceis que iriam passar no deserto a caminho da terra prometida. Nossas lágrimas, tristezas e sofrimentos nunca são em vão; sempre têm um propósito, e esse propósito é a glória de Deus e o nosso bem.

Mas, espere, tem mais! As intrigas políticas e militares que vemos em nosso texto são usadas providencialmente por Deus para dar a Israel as vitórias e a terra que Ele havia prometido muito tempo antes a Seu povo. E o tributo recebido por Davi dos inimigos que subjugou parecem fornecer os materiais necessários à construção do templo. Os acontecimentos de nosso texto são o cumprimento não só da promessa que Deus fez no capítulo 7, mas também das promessas que Ele fez a Abraão, aos patriarcas e a Moisés.

Segundo, em nosso texto, as ações de Davi prefiguram a vinda de nosso Senhor Jesus como o Rei de Israel. Como deve ser o Rei de Deus? Esta é uma pergunta que há muito tempo tem estado na mente daqueles que aguardam a Sua vinda. Os profetas do Antigo Testamento nos disseram, mas de forma que até mesmo eles ficaram intrigados:

“Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam.” (I Pedro 1:10-11)

Por um lado, o Messias prometido seria um Servo sofredor, que seria rejeitado pelos homens e entregaria Sua vida pelos pecadores (Isaías 52:13 - 53:12). Por outro, um Rei triunfante, que prevaleceria sobre Seus inimigos e estabeleceria Seu reino (ver Salmo 2). Os homens não conseguiam compreender como essas duas profecias poderiam ser verdadeiras. Obviamente, eles não entenderam que o Messias viria à terra duas vezes: a primeira, para ser rejeitado pelos homens e morrer pelos pecados dos perdidos; a segunda, para destruir os ímpios e governar sobre o Seu reino.

Nos capítulos 8 a 10, Davi serve como um tipo de Cristo. Ele estabelece seu reino, prevalecendo sobre os inimigos de Israel e sujeitando-os. Em contrapartida, ele é misericordioso para com Mefibosete, filho de Jônatas e neto de Saul. Mefibosete é o único herdeiro de Saul, o último candidato a rei. Normalmente, um rei no lugar de Davi mataria quaisquer candidatos potenciais ao trono; ele, no entanto, vai em busca desse homem e tem misericórdia dele. Não é devido a alguma contribuição que Mefibosete possa dar a seu reino, pois ele é deficiente, o que, aos olhos dos homens daquela época, o tornava inútil. Também não é devido ao seu valor ou valor potencial que Davi lhe demonstra favor; é devido ao amor de Davi por seu amigo Jônatas, pai de Mefibosete.

Os capítulos 8 a 10 nos lembram de que estas duas dimensões de Deus e Seu Rei - soberania e graça - combinam perfeitamente. A graça de Deus é graça soberana, graça que não é adquirida ou merecida. Ela é concecida a quem Ele escolhe, e unicamente com base na Sua benevolência. O reino justo de Deus é um governo soberano que prevalece sobre todos os Seus inimigos. Deus os destruirá, como os destruiu no passado.

As pessoas não querem pensar em Deus em nenhum desses termos. Elas preferem pensar em Deus como alguém que concede coisas boas para quem as merece. Elas não gostam da graça, porque a graça não lhes dá crédito algum; não gostam dela, porque não a podem reivindicar, como se a merecessem. Deus não é obrigado a conceder Sua graça a quem quer que seja. Os homens também não gostam de pensar em Deus como soberano sobre Seus inimigos. Eles não querem pensar que Deus enviou o Messias à terra para derrotar Seus inimigos e estabelecer Seu trono de justiça. Eles não querem pensar no inferno e no tormento eterno para os ímpios. Estas duas dimensões de Deus são vistas em Davi. São estas características que fazem os ímpios tremer ou, pelo menos, rejeitar a Deus. E são elas também que fazem o cristão se alegrar. Nós sabemos que fomos salvos pela graça soberana de Deus. Nós, como Mefibosete, éramos indignos da graça de Deus, e éramos respulsivos a Ele. No entanto, apesar da nossa condição miserável, Ele escolheu demonstrar Seu amor por nós, por amor a Seu Filho, Jesus Cristo. Deus nos ama e nos abençoa por amor a Cristo, assim como Davi amou e abençoou Mefibosete por amor a Jônatas, seu pai. Que linda imagem Davi retrata de Deus e Seu Rei, o Senhor Jesus Cristo!

É possível que você ainda não tenha vindo a se relacionar com Deus da mesma forma que Mefibosete veio a se relacionar com Davi. Você, como Mefibosete, precisa reconhecer sua indignidade de habitar na presença de Deus. Você, como Mefibosete, precisa aceitar humildemente a graça de Deus, oferecida por intermédio de Seu Filho Jesus Cristo. Pelo reconhecimento do seu pecado e pela aceitação da solução providenciada por Deus em Jesus Cristo, que morreu por seus pecados e ressuscitou para torná-lo justo diante do Pai, é que você entra em comunhão com Deus. Deus o convida a se sentar à Sua mesa quando você passa a confiar em Seu Filho, Jesus Cristo (ver Salmo 23; Apocalipse 3:20).

Terceiro, este texto ilustra o uso apropriado do poder e se torna o pano de fundo para o abuso de poder de Davi nos dois capítulos seguintes. É evidente que, à medida que a história se desenrola em II Samuel, Davi chega ao poder. Saul foi divinamente removido do trono e, em seguida, seu filho Isbosete. Agora Davi se torna o rei, primeiro de Judá e depois de todo Israel. Ele ascende ao trono. Ele captura a cidade de Jebus e faz dela Jerusalém, sua capital. Ele enfrenta seus inimigos e os vence. Ele usa o poder que Deus lhe deu para fazer a Sua vontade, para derrotar as nações ao redor de Israel, para possuir a terra prometida e para usar de bondade e misericórdia para com os desamparados. Davi usa o poder concedido por Deus de forma adequada, como um bom despenseiro. Isso, portanto, nos mostra como é o Messias e como será quando Ele voltar para estabelecer o Seu reino.

Entretanto, estes três capítulos também nos dão uma espécie de pano de fundo contra o qual serão contrastadas as atitudes e ações de Davi no capítulo 11. Esse capítulo fala sobre o abuso de poder por parte de Davi. Davi abusará do poder ao ficar em casa e enviar seu exército para a batalha sem ele. Ele abusará do poder ao tomar Bate-Seba e depois tirar a vida do marido dela. O retrato dele no auge do sucesso nos capítulos 8 a 10 estabelecem o cenário para a sua profunda queda nos capítulos 11 e 12. Aprendamos com nosso texto que sucesso espiritual não garante que não possamos cair, mas que, de alguma forma, podemos nos preparar para uma queda.

Tradução: Mariza Regina de Souza

9. Davi e Bate-Seba (II Samuel 11:1-4)

Introdução

Quando minha avó materna era viva, ela morava num sítio nos arredores de Shelton, Estado de Washington. Na entrada do sítio, em direção à garagem, havia uma pequena área, onde um trailer não muito grande ficava estacionado. Pelo que me lembro, a mulher que vivia nesse trailer e o marido estavam separados. O homem, que havia cumprido pena, era meio violento. Um dia, quando ele foi visitá-la, outro homem estava lá. Houve discussão e pancadaria. Por fim, o homem que estava com a mulher sacou uma arma e exigiu que o marido fosse embora. Ele foi, mas soltando ameças sobre o que iria fazer.

Poucas horas depois, chegou um tio meu para visitar minha avó. Ele entrou no sítio e ia passando bem perto do trailer onde a briga tinha ocorrido. Infelizmente, ele estava dirigindo um carro muito parecido com o do rival do ex-marido da mulher, que estivera estacionado ali no início do dia. Tiros soaram, enquanto o marido enfurecido cumpria sua ameaça. O rifle atravessou com facilidade o parabrisa do carro e meu tio foi morto na hora... por engano. O homem furioso tinha matado o meu tio, falsamente presumindo que ele era o seu rival.

Muitos incidentes trágicos ocorrem como resultado inesperado de uma sequência de acontecimentos. Certamente, esse é também o caso de Davi. Umas férias da guerra o levam a um dia de descanso na cama, seguido de um passeio pelo terraço do palácio quando a noite começa a cair em Jerusalém. Por acaso, Davi vê uma mulher se banhando, uma visão que chama sua atenção e o leva a investigar a sua identidade. A mulher é rapidamente convocada ao palácio e à cama de Davi, onde ele dorme com ela, embora já saiba que ela é esposa de Urias, um guerreiro que está lutando pelo exército de Israel. Ela fica grávida e, por isso, Davi chama Urias de volta da guerra, esperando que todos pensem que foi ele que a engravidou. Quando o plano não funciona, Davi dá ordens a Joabe, comandante do exército, para que Urias seja morto em combate. Esse parece o crime perfeito; no entanto, o pecado de Davi é descoberto e tratado por Natã, o profeta de Deus.

Esta sequência de eventos e suas trágicas consequências são o assunto dos capítulos 11 e 12 de II Samuel. Decidi expor estes capítulos em três lições. A primeira tratará de “Davi e Bate-Seba”, como descrito nos versos 1 a 4 do capítulo 11. Na lição seguinte, abordaremos o tópico “Davi e Urias”, conforme descrito pelo autor em 11:5-27. A terceira lição enfocará em “Davi e Natã”, de acordo com o confronto narrado no capítulo 12. Nosso texto tem muito a dizer sobre os pecados de adultério e assassinato, mas certamente aborda ainda muitas outras coisas. Este é um texto que todos precisam ouvir e entender, pois se um “homem segundo o coração de Deus” pode cair com tanta rapidez e facilidade, com certeza nós também somos capaz de fracassos semelhantes. Que o Espírito Santo tome esta porção da Palavra de Deus e a ilumine para ensinar a cada um de nós, enquanto a estudamos.

Observações Preliminares

Antes de começarmos a examinar os versos 1 a 4 do capítulo 11, permitam-me fazer alguns comentários sobre o episódio relatado nestes dois capítulos de II Samuel. Primeiro, gostaria que reparassem na “lei da proporção” do texto. Somente três versos descrevem o adultério de Davi com Bate-Seba. Segundo, o autor não faz rodeios ao descrever a perversidade desse pecado. A história não foi escrita para fazer Davi parecer bonzinho. Terceiro, o pecado de Davi e Bate-Seba é retratado historicamente, não à maneira hollywoodiana. Os cineastas de Hollywood fariam um remake da narrativa ressaltando seus elementos sensuais. Nada no texto tem a intenção de provocar pensamentos ou atitudes impuros. Na realidade, a história é escrita de forma a nos dar arrepios só de pensar nela.

Davi Fica Em Jerusalém
(11:1)

Israel está em guerra com ninguém menos que os amonitas (verso 1), o que pode vir a ser uma surpresa para vocês, da mesma forma que foi para mim. Achei que eles tinham sido derrotados no capítulo 10. Enganei-me. O autor é bem claro quanto a isso. No capítulo 8, ele conta que Davi começou a lutar com seus inimigos e acabou sufocando todas as nações ao redor de Israel. Davi subjugou os filisteus (8:1) e os moabitas (8:2), e depois deu um jeito no rei de Zobá (8:3 e ss). No decorrer dessas batalhas, outras nações foram envolvidas, as quais encontraram em Israel um inimigo tão formidável que não quiseram mais se opor a ele.

No capítulo 10, encontramos Davi e os israelitas sendo deliberadamente insultados por Hanum, rei dos amonitas. Davi e Naás, o ex-rei de Amom, haviam se tornado amigos. Quando esse rei morreu, Davi enviou uma delegação de oficiais a Amom para expressar seus respeitos e sentimentos pela morte dele. Parece que os amonitas não queriam manter o relacionamento pacífico com Davi e Israel, por isso, humilharam os homens enviados por Davi. Isso levou à guerra entre as duas nações. Os amonitas recrutaram os sírios para lutar contra Davi. No primeiro conflito, os sírios fugiram, forçando os amonitas a bater em retirada para “a cidade” (10:14, a qual deve ser Rabá - ver 12:26 e ss). Os sírios não ficaram contentes com a derrota e tentaram uma revanche, mas foram novamente rechaçados. Isso fez com que eles abandonassem qualquer pensamento futuro de sair em auxílio dos amonitas na guerra contra Israel.

Portanto, vejam, os amonitas não foram subjugados no capítulo 10, só foram privados do auxílio dos sírios. Agora, eles estão por conta própria. Os israelitas exploram ao máximo a situação. Eles destroem o território dos amonitas e sitiam sua metrópole (real), Rabá (11:1, ver I Crônicas 20:1). Rabá, aliás, é hoje a cidade de Amam, na Jordânia. Na verdade, os israelitas só tomam a cidade depois que Davi é repreendido por seu pecado (II Samuel 12:26-31).

O autor do texto nos informa que é primavera, época em que os reis saem para a guerra (11:1, NVI). O tempo sempre afetou as campanhas militares. Batalhas são ganhas ou perdidas devido a estação do ano. Se o tempo está frio e chuvoso, acampar ao ar livre (como o exército que sitia Rabá - ver 11:11) é quase inviável. Entre outras coisas, as rodas dos carros atolam na lama. Por isso, normalmente os reis esperam o inverno passar, retomando a guerra na primavera. É primavera e Israel ainda está em guerra com os amonitas, e já é hora de sujugá-los. O exército se reúne, sob o comando de Joabe e seus oficiais, e “todo Israel”. Eles saem para completar a vitória sobre os amonitas, que parecem recuar para a sua capital, a cidade fortificada de Rabá.

Todos os homens que podem lutar vão para a guerra, menos um... Davi. Davi, está escrito, “ficou em Jerusalém” (11:1). Sua decisão de ficar em casa, em Jerusalém, acaba se tornando um pesadelo. O autor de Samuel não menciona o fato, mas Crônicas sim. Em I Crônicas 20, lemos:

“Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, Joabe levou o exército, destruiu a terra dos filhos de Amom, veio e sitiou a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém; e Joabe feriu a Rabá e a destruiu.” (I Crônicas 20:1)

De acordo com os detalhes fornecidos no texto de Crônicas, vemos que é a mesma época do ano e a mesma guerra. A decisão de Davi antecede um outro pecado muito sério em I Crônicas 21:

“Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel. Disse Davi a Joabe e aos chefes do povo: Ide, levantai o censo de Israel, desde Berseba até Dã; e trazei-me a apuração para que eu saiba o seu número. Então, disse Joabe: Multiplique o SENHOR, teu Deus, a este povo cem vezes mais; porventura, ó rei, meu senhor, não são todos servos de meu senhor? Por que requer isso o meu senhor? Por que trazer, assim, culpa sobre Israel? Porém a palavra do rei prevaleceu contra Joabe; pelo que saiu Joabe e percorreu todo o Israel; então, voltou para Jerusalém. Deu Joabe a Davi o recenseamento do povo; havia em Israel um milhão e cem mil homens que puxavam da espada; e em Judá eram quatrocentos e setenta mil homens que puxavam da espada.” (I Crônicas 20:1-5)

Joabe insiste para que Davi não faça o recenseamento dos israelitas e, por intermédio do profeta Gade, Deus repreende Davi por tê-lo feito, dando-lhe a escolha de um entre três castigos. Este é um pecado muito grave, que traz sérias consequências para a nação de Israel. Apesar disso, Deus abençoa Israel, pois é no terreno onde Davi oferece o sacrifício a Deus que o templo será construído. O que estou dizendo é que a decisão de Davi, de ficar em Jerusalém, é o começo de grandes aflições, tanto para ele quanto para Israel. Por que será que é errado Davi ficar em casa, enquanto todos em Israel vão para a guerra com os amonitas? Primeiro, liderar a nação na guerra é uma das principais tarefas do rei:

“Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras.” (I Samuel 8:19-20)

Os israelitas erraram ao exigir um rei, mas a expectativa de que ele os conduzisse nas guerras não era tão errada. Os juízes levantados por Deus tempos antes, normalmente eram homens como Baraque ou Gideão, que lideravam a nação contra seus inimigos. Quando Deus designou Saul como primeiro rei de Israel, esse papel militar foi claramente definido:

“Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim.” (I Samuel 9:15-16)

Saul muitas vezes deixou de perseguir os inimigos de Israel e, algumas vezes, foi Davi quem tomou seu lugar, liderando a nação nas batalhas. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Davi lutou com Golias, uma luta que deveria ter sido travada por Saul, o gigante de Israel (ver I Samuel 9:2). Até agora, Davi tem liderado os homens nas batalhas mas, no capítulo 11, ele repentinamente retrocede, enviando outros em seu lugar. Em II Samuel 12:26-31, o autor deixa claro que talvez ele não tenha planejado participar da rendição formal de Rabá. Joabe manda um recado para ele, insistindo para que ele vá até lá e, pelo menos, dê a impressão de estar liderando o exército. Se ele não for, adverte Joabe, não receberá a glória, que poderá ser dele. Joabe sabe que Davi sabe que esta não é a maneira como deveria ser. E assim é que Davi faz uma aparição formal, para ser o líder “oficial” no momento rendição da cidade de Rabá.

Davi erra também em outro sentido, algo que ele nem teria percebido naquela época. Ele era um tipo do Messias que estava por vir como o rei de Deus. Quando o Messias voltar, será Ele que trará libertação ao Seu povo. Será Ele que subjugará Seus inimigos e estabelerá o Seu reino. Como Davi pode representar o Messias, ficando em casa e se recusando a batalhar com os inimigos de Deus e de Seu povo? O Messias virá (pela segunda vez) como um grande guerreiro. Se Davi deve retratá-lO, precisa também ser um grande guerreiro.

O que será que mantém Davi em casa, em Jerusalém? Por que ele não vai para a batalha? Receio que talvez haja diversas razões. A primeira é a sua arrogância. Deus tem estado com ele em todos os confrontos militares e tem lhe dado a vitória sobre todos os seus inimigos. Deus tem dado a ele um grande prestígio. Davi começa a acreditar em seus próprios recortes de jornal. Ele começa a se sentir invencível. Ele parece ter chegado ao ponto em que acredita que suas habilidades são tão grandes que ele pode conduzir Israel à vitória, mesmo não estando com seus homens.

Isso também parece coerente com o outro grande pecado de Davi, que ocorre após sua decisão de ficar em casa. Quando ele ordena que Joabe faça o recenseamento dos guerreiros israelitas, Joabe protesta. Essa é uma coisa que Davi não deveria fazer. Talvez porque Davi iria confiar mais no tamanho de seu exército do que em Deus. Seu exército, com certeza, é bem maior do que o de Gideão, reduzido a míseros 300 homens.

Uma segunda razão talvez seja o tédio. Uma coisa é travar batalhas em que o inimigo é rapidamente subjugado. O cerco de Rabá, entretanto, são outros quinhentos. A vitória não será tão rápida. Levará algum tempo até que os amonitas fiquem privados de suprimentos a ponto de se render. Este não é um tipo muito interessante de guerra, pois enquanto esperam, os soldados israelitas (incluindo Davi) terão de armar suas tendas fora da cidade, vivendo ao ar livre. Não será um piquenique e Davi sabe disso. A atitude dele parece refletir o slogan da maior rede de hambúrgueres do país: “Você merece uma pausa hoje.”

Uma terceira razão - e hesito em sugeri-la - é que Davi talvez esteja ficando meio mole. Vamos encarar os fatos: ele teve tempos difíceis quando fugia de Saul. Tenho certeza de que havia dias quentes e noites frias. Havia também dias em que a comida ou era racionada ou meio repulsiva, ou ambas. Comida de exército nunca foi conhecida como obra de arte culinária. Ora, Davi subiu na vida, do árido deserto, que se possível seria evitado por Saul e seus homens, às colinas de Jerusalém. Agora, suas acomodações também são melhores. Ele não vive mais em tendas (se é que naquela época ele tinha sorte o bastante para ter uma); ele vive num palácio. Por que ele iria querer ficar numa tenda, ao ar livre, nos arredores de Rabá, se podia ficar em sua própria cama, em seu próprio palácio, em Jerusalém?

Davi está começando a ficar parecido com Saul, no sentido de deixar que outros saiam e lutem por ele. Entre os que ele pretende enviar em seu lugar estão Joabe e Abisai. Joabe, devemos recordar, é um cara violento. Ele não se tornou comandante do exército de Israel por escolha de Davi. Davi havia se distanciado dele e de Abisai por causa da morte de Abner (II Samuel 3:26-30). Joabe se tornou comandante do exército porque foi o primeiro a aceitar o desafio de Davi para atacar Jebus (I Crônicas 11:4-6). Subitamente, Davi quer ficar em casa e deixa toda a força armada de Israel sob o comando de Joabe. Creio que sua motivação seja muito mais o descaso pela dificuldade da campanha contra Rabá do que a confiança em Joabe.

Da mesma forma que meu tio, a quem já me referi, Davi está no lugar errado, na hora errada. Ele está em Jerusalém quando deveria estar em Rabá. Diferentemente do meu tio, no entanto, ele está no lugar errado e na hora errado por decisão própria. Davi é como o simplório de Provérbios 7, que estava tola e deliberadamente no lugar errado, na hora errada. Alguma coisa tinha que sair errada, e saiu!

Davi Fica Na Cama
(11:2-4)

Enquanto leio estes versos de II Samuel, lembro-me daquele filme de Alfred Hitchcock, “Janela Indiscreta”. Se não me falha a memória, o suspense, estrelado por James Stewart e Grace Kelly, conta a história de um fotógrafo confinado em seu apartamento que se recupera de uma perna quebrada. De sua “janela indiscreta”, James Stewart observa os vizinhos através de suas janelas. Acidentalmente, ele descobre um assassinato e é quase morto por isso, junto com sua namorada.

O rei Davi comete o erro de permanecer em Jerusalém em vez de ir com seu exército lutar contra os amonitas. Ele não fica em casa para meditar na lei de Moisés ou escrever um ou dois salmos; ao que parece, ele fica em casa para ficar na cama. Sabemos que Urias ia se deitar à tardezinha (isto é, ao anoitecer) e é muito provável que se levantasse à primeira luz do dia (ver 11:13). Com Davi, é bem diferente. Ele só se levanta à tarde, ou seja, no horário em que um soldado ia se deitar (Como diz um amigo meu, este é provavelmente um hábito adquirido ao longo do tempo, não um caso isolado). É bastante improvável que Davi esteja fazendo algum “serviço real” às altas horas da noite. Ao que tudo indica, ele está simplesmente sendo ingulgente consigo mesmo.

Por fim, Davi não consegue mais ficar na cama. Levantando-se, ele vai dar um passeio pelo terraço do palácio. Seu palácio, com certeza, era construído na parte mais elevada do terreno, a fim de que ele tivesse ampla visão da cidade e seus arredores. Praticamente todas as outras residências e construções deveriam ser mais baixas que sua cobertura e, por isso, ele poderia ver coisas que outras pessoas não poderiam (Após esta mensagem, um amigo comentou que soube por um motorista de caminhão que, da cabine de uma carreta de 18 rodas, a gente vê muita coisa que não pode ser vista por quem está de carro.)

Não estou sugerindo que Davi tivesse intenção de ver algo que não deveria. É mais provável que ele estivesse dando uma volta, meio distraído, quando subitamente alguma coisa chamou sua atenção para uma mulher que se banhava. Na verdade, o texto não diz onde ela se banhava. Sabemos apenas que ela estava dentro do campo de visão do terraço do apartamento de Davi (cobertura). Ele repara em sua beleza. Ele não sabe quem ela é ou se é casada. Não podemos dizer com certeza o quanto ele vê; por isso, não é possível determinar se ele pecou ou não. Se ele viu mais do que deveria (fato ainda em questão), certamente deveria ter desviado os olhos. Não era necessariamente um erro fazer perguntas discretas a respeito dela. Se ela não fosse casada e estivesse disponível, ele poderia tomá-la como esposa. Suas perguntas esclareceriam a questão.

Ele é informado sobre a identidade da mulher:

“e disseram: Porventura, não é esta Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o heteu?” (II Samuel 3b, ARC)

Davi recebe a resposta em forma de pergunta. Creio que ninguém realmente viu a mulher, só ele. A identificação dela, então, depende da descrição feita por ele - idade, aparência, local onde estava - e ninguém poderia saber com absoluta certeza se era ela ou não; com exceção dele, é claro, que a reconheceria.

A informação que ele recebe deve ser suficiente para por fim à questão. Se a mulher é casada, ele não tem nada que ir adiante. Não importa quão importante ele seja, ou quanto poder tenha, nada lhe dá o direito de tomar a esposa de outro homem. O padrão para o comportamento de Davi é a atitude de José (do Egito), que foi ardentemente perseguido pela esposa de seu senhor:

“Aconteceu, depois destas coisas, que a mulher de seu senhor pôs os olhos em José e lhe disse: Deita-te comigo. Ele, porém, recusou e disse à mulher do seu senhor: Tem-me por mordomo o meu senhor e não sabe do que há em casa, pois tudo o que tem me passou ele às minhas mãos. Ele não é maior do que eu nesta casa e nenhuma coisa me vedou, senão a ti, porque és sua mulher; como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” (Gênesis 39:7-9)

Os esclarecimentos dados a Davi sobre Bate-Seba lhe dão todas as informações de que ele precisa, e até mais, se ele tem intenção de fazer o que é certo. Ele sabe que ela é casada e, portanto, que está fora de cogitação. Ele sabe também que ela é casada com Urias, o heteu. Urias não é um marido sem nome, alguém de quem Davi nunca ouviu falar. Ele tem de saber quem é Urias, mesmo que não saiba quem é a esposa dele. Em II Samuel 23:39, “Urias, o heteu” está entre os valentes de Davi, conhecido por sua coragem e bravura como soldado. Se Davi não sabe disso, certamente algum de seus servos deve informá-lo.

Meu medo é que Davi tenha preferido ignorar o histórico militar de Urias e tenha se fixado nas origens raciais dele. Davi, clara e notadamente, se refere a ele como “Urias, o heteu”, enquanto o autor de Samuel o chama simplesmente de “Urias”. A expressão “Urias, o heteu” é pejorativa, creio, baseada somente no fato de que ele é heteu. Parece que Davi se esquece de que tem sangue moabita nas veias. Vamos rever rapidamente onde os heteus se encaixam no Antigo Testamento.

Logo no início, em Gênesis 15:18-21, Deus prometeu a Abrão (Abrahão) que seus descendentes herdariam a terra dos heteus (junto com a de outros povos; ver Êxodo 3:8, 17; 13:5; 23:23, 28, 32; 33:21; 34:11; Deuteronômio 7:1; Josué3 1:4; 3:10). Efrom, o homem de quem Abraão comprou a sepultura para sua família, era heteu (ver Gênesis 23:10, 25:9, etc). Esaú, irmão de Jacó, teve várias esposas filhas dos heteus (Gênesis 26:34-35; 36:2). Os israelitas receberam ordens de aniquilá-los (Deuteronômio 20:17). Os heteus se oposuseram à entrada de Israel na terra prometida (ver Números 13:29, Josué 9:1; 11:1-5) e sofreram algumas derrotas às suas mãos (Josué 24:11). Apesar disso, eles não foram totalmente expulsos da terra e passaram a viver entre os israelitas (Juízes 3:5). Quando fugia de Saul, Davi recebeu a notícia de que o acampamento do rei estava nas proximidades. Ele pediu a dois homens que o acompanhassem até lá. Um deles, Abisai, apresentou-se como voluntário, o outro não. Esse outro homem era Aimeleque, o heteu (I Samuel 26:6).

É óbvio que Urias havia abandonado seu próprio povo e seus deuses para viver em Israel, casar-se com uma israelita e lutar no exército de Davi. Ele não é nenhum pagão, para ser morto. Ele é um prosélito. A despeito de tudo isso, acho que Davi o menospreza. Davi se acostumou a ter o melhor. Seu palácio é o mais luxuoso das redondezas. Seus móveis, sua comida, sua criadagem - tudo é do bom e do melhor. Agora, ele olha de sua cobertura e vê uma mulher que considera “fina”. Como é que uma mulher tão fina pode pertencer a um heteu? Ela é digna de um rei. E esse rei pretende tê-la.

Assim, Davi manda mensageiros para tomar Bate-Seba e trazê-la para ele. Quando ela chega, ele dorme com ela e, depois de purificada de sua impureza, ela volta para casa. Ponto. Se ela não tivesse ficado grávida, duvido que tivesse batido à porta de Davi outra vez. Ele não a quer como esposa. Nem mesmo como amante. Ele só quer uma noite de prazer, para depois devolvê-la para Urias.

A sequência dos acontecimentos, no que diz respeito a Davi, pode ser vista desta forma: 1) Davi fica em Jerusalém; 2) Davi fica na cama; 3) Davi vê Bate-Seba se banhando, enquanto está dando uma volta pelo terraço; 4) Davi faz perguntas a respeito dela; 5) Davi fica sabendo quem ela é e que é casada com um herói de guerra; 6) Davi manda buscá-la e trazê-la para ele; 7) Davi se deita com ela; 8) Bate-Seba volta para sua casa após purificar-se. Essa mesma sequência pode ser vista em outros textos, nenhum dos quais é digno de louvor. Siquém “viu, tomou e deitou-se com” Diná, a filha de Jacó, em Gênesis 34:2. Judá “viu, tomou e possuiu” uma mulher cananeia, que tomou por esposa em Gênesis 38:2-3. Acã “viu, cobiçou e tomou” os despojos de guerra proibidos em Josué 7:21. Sansão fez literalmente a mesma coisa em Juízes 14. Não nos esqueçamos também de que uma sequência parecida ocorreu no primeiro pecado, quando Eva “viu, desejou e pegou” o fruto proibido em Gênesis 3.

Será Que Bate-Seba Também Tem Culpa No Cartório?

Pelas palavras de nosso texto, fica claro que Davi pecou. Por suas ações subsequentes, é claro que ele pecou. Pelas palavras de Deus, por intermédio de Natã, é evidente que seu pecado é muito grave. O problema é que muitas pessoas querem ver o texto de maneira que Bate-Seba também tenha culpa, supondo que ela, de alguma forma, tenha seduzido Davi. Gostaria de prosseguir neste assunto, pois creio que não há nenhuma evidência que apoie esse raciocínio.

Quase sempre, a inferência é de que Bate-Seba não deveria ter se exposto da maneira como fez, e que foi a sua indiscrição que deu origem a todo problema. Alguns pensam que ela agiu deliberadamente (que sabia que Davi estava lá e veria...), enquanto outros são mais complacentes e acham que foi simplesmente falta de discernimento. Deixem-me mostrar algumas coisas em nosso texto. Antes de mais nada, quando Natã anuncia o julgamento divino por causa do pecado de Davi, Bate-Seba e Urias são retratados como vítimas, não como vilões. Quando Adão e Eva pecaram, Deus acusou individualmente Adão, Eva e a serpente, e cada um deles recebeu a sua justa maldição. Este não é o caso com Bate-Seba. Em lugar nenhum da Bíblia ela é acusada deste pecado. Talvez seja porque o autor prefira não se concentrar nela; mas, mesmo assim, a Lei exigiria claramente que a considerássemos inocente até prova em contrário.

O livro de Samuel deixa bem claro que as tragédias ocorridas na casa de Davi são consequências do pecado cometido por ele, como indicado por Natã (12:1-12). Portanto, quando Amnom violenta Tamar, a irmã de Absalão, é um caso típico de “feitiço que vira contra o feiticeiro”. Repare que Tamar é chamada, ou convocada, ao palácio por ordem de Davi e, em seguida, à cabeceira de Amnom. Não há o menor indício de que ela vá ser violentada, tudo é feito por Amnom. Será que isso não indica que o mesmo é verdade com relação a Bate-Seba, da qual este segundo incidente é uma espécie de reflexo?

Quando lemos sobre este incidente, lemos com uma visão ocidental. Vivemos numa época em que a mulher tem direito de dizer “não” a qualquer momento em um relacionamento amoroso. Se o homem se recusa a parar, isso é considerado violação dos direitos dela; é considerado estupro. Não era assim que funcionava para as mulheres do antigo Oriente Próximo. Ló podia oferecer suas filhas virgens aos ímpios de Sodoma, para proteger os estrangeiros hospedados em sua casa, sem que houvesse qualquer protesto por parte delas (Gênesis 19:7-8). Esperava-se que as donzelas obedecessem ao pai, que estava em posição de autoridade sobre elas. Mical foi dada a Davi como esposa, depois tomada de volta por Saul, que a deu a outro homem. Tempos depois, Davi tomou-a novamente (1 Samuel 25:44, 2 Samuel 3:13-16). Aparentemente, ela não disse nada em nenhuma dessas ocasiões.

Para abordar este assunto de uma perspectiva totalmente diferente, vamos pensar no livro de Ester. Quando o rei pediu que sua esposa, a rainha Vasti, fosse introduzida à sua presença (talvez para exibi-la de forma inadequada a seus convidados), ela se recusou. Ela foi destituída (ver Ester 1:1-22). Ela não perdeu a vida, mas, de qualquer forma, foi substituída. Em seguida, lemos mais adiante nesse mesmo livro que ninguém podia se aproximar do rei, a menos que fosse convocado. Se alguém se aproximasse e o rei não levantasse seu cetro, a pessoa seria condenada à morte (Ester 4:10-11). Será que isso não retrata a maneira de agir dos reis do Oriente? Será que isso não explica por que Bate-Seba foi ao palácio do rei quando convocada? Será que isso ajuda a explicar a razão pela qual ela cedeu aos atos lascivos do rei? (Não sabemos que tipo de protesto - como Tamar no capítulo 13 - ela pode ter feito, mas temos alguma noção da impotência de uma mulher naqueles dias, principalmente quando recebia ordens do rei.

Assim, depois de termos uma visão mais abrangente da questão, vamos nos concentrar em alguns detalhes. O texto nos informa que Davi vê a mulher se banhando e constata que ela é muito bonita. Alguns pensam que Davi viu Bate-Seba despida enquanto se banhava em público, e que a visão de seu corpo (despido/parcialmente) fez com que ele agisse como agiu. Em Gênesis 24:16, encontramos praticamente as mesmas palavras de nosso texto (“mui formosa de aparência”) a respeito de Rebeca, quando ela foi à fonte com o cântaro no ombro. Ela não estava nua, nem parcialmente despida. Encontramos ainda outras descrições semelhantes (embora não idênticas), onde não há nenhuma indicação de exposição da mulher (ver 12:11; 26:7; 29:17, Ester 1:1). Creio que uma das razões pela qual Davi chama Bate-Seba ao palácio é porque ele não viu tudo o que queria.

Vamos prosseguir um pouco mais com este assunto. Bate-Seba está se banhando. Presumimos que isso signifique que ela esteja despida, pelo menos parcialmente. Creio que ela está se banhando em algum lugar geralmente usado para isso. Só Davi, com a vantagem de estar em sua cobertura, seria capaz de vê-la, e a muitas outras pessoas também, se ele quisesse. Os pobres não têm os mesmos privilégios de privacidade que os ricos. Já vi muita gente se banhando nas calçadas da Índia, porque ali é a casa delas. O termo empregado aqui para banhar-se muitas vezes é usado para descrever o ato de lavar as mãos ou os pés de um convidado, ou as lavagens ceremoniais dos sacerdotes. Abigail usou este termo quando falou em lavar os pés dos servos de Davi (I Samuel 25:41). Tais lavagens poderiam ser feitas, com decência, sem que houvesse total privacidade. Seria presumir demais pensar que Bate-Seba fica andando despida, à vista de todos.

Aliás, o lugar onde Bate-Seba está se banhando é Jerusalém, onde todos os homens em idade de combate tinham ido para a guerra. Lembrem-se das palavras do verso 1:

“Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, enviou Davi a Joabe, e seus servos, com ele, e a todo o Israel, que destruíram os filhos de Amom e sitiaram Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém.” (ênfase minha)

Não é que ela esteja agindo de maneira inconveniente, sabendo que há homens por perto. Ela tem todo o direito de achar que não há. Davi está por ali, mas não deveria estar. Além do mais, ela não está se banhando ao meio-dia, está se banhando ao anoitecer. Esse era o horário prescrito na lei (para as lavagens cerimoniais): quando o sol estava se pondo. Em outras palavras, está quase escuro quando ela começa a tomar banho. Davi tem de se esforçar para ver alguma coisa. Acho que ela faz o possível para se resguardar, mas o lugar onde o rei está é muito alto, e ele está olhando diretamente para ela. O que estou dizendo é que Davi é muito mais curioso do que Bate-Seba é exibicionista. Creio que o texto dá suporte à minha conclusão.

Conclusão

Se estou certo naquilo que digo, o pecado de Davi se torna ainda mais vil. Em alguns casos, a mulher pode, propositada ou involuntariamente, encorajar o assédio. Neste caso, não há o menor indício de que isso tenha ocorrido. Na verdade, se estou lendo a história direito, a “visão” que Davi tem de Bate-Seba é devido a ela estar cumprindo a lei, enquanto ele está faltando com seus deveres de rei.

Esta passagem, embora tenhamos percorrido apenas os quatro primeiros versículos do texto, tem muito a nos ensinar. Deixem-me tentar resumir algumas de suas lições.

Primeiro, a raiz do pecado de Davi não é sua baixa auto-estima, é sua arrogância. Estou cansado de ouvir que a raiz de todos os males é a baixa auto-estima. Fico me perguntando por que não vemos nada disso na Bíblia. O problema de Davi é justamente o oposto. Ele ficou arrogante e cheio de si por causa de seu sucesso e status como rei de Israel. Ele chega a se considerar diferente/melhor do que os demais israelitas. Eles precisam ir para a guerra, ele não. Eles precisam dormir ao ar livre, ele precisa descansar em sua própria cama, em seu palácio. Eles podem ter uma esposa, ele pode ter a mulher que quiser.

Segundo, a natureza do pecado de Davi é o abuso do poder. Dizem que o poder corrompe, e poder irrestrito, corrompe irrestritamente. Davi chegou ao poder. Nos capítulos anteriores, ele usou o poder que lhe foi dado por Deus para derrotar os inimigos do Senhor e de Israel. Ele usou seu poder como rei de Israel para cumprir a aliança feita com Jônatas, e a promessa a Saul, para restaurar os bens de família a Mefibosete e torná-lo como um filho à sua mesa. Agora, embriagado pelo poder, Davi o usa para ser indulgente consigo mesmo às custas dos outros. Quero que reparem na repetição da palavra “envia” ou “enviou” neste capítulo. Um rei como Davi pode enviar todos os homens para a guerra, enquanto ele mesmo fica em casa (verso 1). Um rei como Davi pode enviar alguém para fazer perguntas a respeito de Bate-Seba e depois enviar mensageiros para “tomá-la” e levá-la ao palácio (versos 3 e 4). Um rei como Davi pode “mandar” buscar Urias e “enviar” ordens para que Joabe o mate. Davi tem poder e, com certeza, sabe usá-lo; só que, agora, está usando esse poder em benefício próprio, às custas dos outros. Essa não é uma liderança servidora.

Violência e assédio sexual são duas das formas usadas pelas pessoas que abusam do poder. Os pais começam a pensar que os filhos são propriedade sua e que podem usá-los como quiserem, por isso, envolvem-nos em várias formas de abuso, muitas vezes de natureza sexual. Patrões se acostumam a estar no controle e dizer às pessoas o que devem fazer; e não é nenhuma surpresa saber que, às vezes, usam esse poder sobre seus empregados e subordinados para se satisfazer sexualmente. Este pecado não é muito diferente do pecado de Davi.

Vou insistir um pouco mais nessa questão. É claro que é errado Davi usar seu poder para ter relações sexuais com a esposa de outro homem. Entretanto, mesmo quando o sexo é permitido, não é certo abusar do poder. O marido não deve abusar de seu poder para ter relações sexuais com sua esposa. E a mulher não deve abusar de seu poder (dizendo “não”, por exemplo) para punir ou desestimular o marido. Dentro do casamento, sexo é simplesmente uma outra área onde servir ao companheiro. Não é uma oportunidade de assenhorar-se do parceiro.

Terceiro, a prosperidade é muito perigosa; às vezes, mais perigosa do que a pobreza e a adversidade. Todo mundo se fatiga com as adversidades da vida. Todo mundo anseia pelo momento de poder relaxar, por os pés numa almofada e descansar um pouco. Todo mundo está cansado de se preocupar com as contas a pagar, sem ter dinheiro suficiente para passear. Davi certamente ansiava pelo tempo em que poderia parar de fugir de Saul e começar a governar como rei. No entanto, deixem-me salientar que, do ponto de vista espiritual, Davi nunca esteve melhor do que na época das adversidades e fraquezas. Por outro lado, ele nunca esteve pior do que na época da prosperidade e do poder. Quantos salmos acham que ele compôs de sua cama palaciana e de sua cobertura? Quantas vezes meditou na lei do Senhor enquanto esteve em Jerusalém e não no campo de batalha? Não precisamos ser masoquistas, querendo mais e mais sofrimento; contudo, devemos reconhecer que o sucesso, muitas vezes, é um teste bem maior do que a adversidade. Com frequência, quando parece que tudo vai bem, é que corremos maior perigo.

Quarto, o pecado é sequencial. Ele “acontece”, mas raramente “simplesmente acontece”. Ele não aparece do nada. Podemos ver sua sequência na carta de Tiago:

“Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte.” (Tiago 1:13-15)

O pecado de Davi não surge do nada, sem mais nem menos. Davi cava o próprio buraco. Sabemos que ele se desengajou da batalha, preferindo uma vida de conforto e tranqüilidade. Vocês e eu podemos fazer a mesma coisa, embora de modo ligeiramente diferente. Podemos esmorecer em seguir os passos de nosso Senhor, em ter uma vida disciplinada que nos faz manter o corpo sob controle (ver I Coríntios 9:24-27). Podemos nos cansar de carregar a nossa cruz e começar a considerar a nós mesmos como uma causa mais importante. Podemos nos retrair e nos isolar, cansados de sermos ridicularizados devido aos nossos princípios cristãos. Podemos silenciar em vez de dar testemunho de nossa fé, para não sermos rejeitados por nossos colegas. Podemos deixar de repreender um amigo cristão, que está caindo em pecado, porque da última vez que o fizemos as coisas ficaram muito confusas. Quando deixamos de lutar, a queda não está longe.

Os pecados deliberados muitas vezes são consequências do pecado da omissão. Davi pecou ao adulterar com Bate-Seba e, depois, ao assassinar o marido dela; no entanto, estes pecados tiveram origem na sua omissão, quando ele ficou em casa em vez de ir à guerra. O pecado da omissão nem sempre é fácil de ser detectado em nós ou nos outros, mas ele está lá. E, depois de um tempo, ele nos leva a cometer pecados mais notórios, como vemos em Davi.

Sei que dentre aqueles que estão lendo esta mensagem, alguns já caíram da mesma maneira que Davi. Já cometeram adultério. A vocês, eu digo: - Parem, agora! - Como teria sido melhor se Davi tivesse confessado seu pecado com Bate-Seba antes de cometer o assassinato de Urias! O pecado é como um câncer: quanto mais cedo se retira, melhor; quanto mais se adia, mais ele cresce. Se algum de vocês já caiu como Davi (ou de alguma outra forma), deixe o pecado, confesse-o, busque o perdão de Deus e siga em frente.

Talvez alguns ainda não tenham pecado como Davi, mas não estão longe disso. Talvez, como Davi, prefiram ficar em Jerusalém, prefiram ficar na cama. Vocês ainda não caíram na armadilha, mas estão quase lá. É só uma questão de tempo e de oportunidade. Minha pergunta para vocês não é se estão em pecado, mas se estão realmente comprometidos com Cristo, servindo-O enquanto servem aos outros, usando o poder (os dons espirituais) que Deus lhes deu em benefício dos outros. Aprendamos com a omissão de Davi em vez de aprender (na prática) com seus erros.

O apóstolo João coloca isso desta maneira:

“Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” (I João 1:7-9)

“Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” (I João 2:1-2)

“Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei. Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e nele não existe pecado. Todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu. Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que pratica a justiça é justo, assim como ele é justo. Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo. Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus.” (I João 3:4-9)

Tradução: Mariza Regina de Souza

10. Davi e Urias (II Samuel 11:5-27)

Introdução

Em 1972, funcionários de um hotel perceberam que a trava da porta de acesso às escadas tinha sido presa com fita adesiva. Três policiais estiveram no local e encontraram cinco pessoas não autorizadas dentro da sede do Comitê Nacional Democrata. Os invasores tinham entrado para reajustar algumas escutas instaladas numa invasão anterior, ocorrida em maio. Na primeira invasão, documentos do Comitê tinham sido fotografados.

Parece que ninguém conseguiu explicar exatamente o que aqueles homens esperavam ganhar com a invasão. Fosse o que fosse, se eles tivessem contado a verdade e o que pretendiam fazer, talvez o crime fosse considerado apenas uma intriga política, sem maiores consequências. Foi a tentativa de encobri-lo que causou uma enorme repercussão. Richard Nixon, o presidente dos Estados Unidos, foi forçado a renunciar sob a ameaça de impeachment. Alguns de seus assessores mais próximos foram processados, condenados e sentenciados à prisão.

Ao longo da história, foram feitas muitas tentativas para encobrir casos de incompetência, imoralidade e até crimes. Na Bíblia, esses encobrimentos aparecem bem cedo. Adão e Eva tentaram encobrir sua nudez e se esconder de Deus, sem perceber que seus esforços traíam seu pecado e sua culpa. Nossa lição em II Samuel 11 fala de uma das maiores tentativas de encobrimento de todos os tempos, a qual, como tantas outras, também foi um fracasso lamentável.

Em nossa lição anterior tentamos explicar o pecado de Davi de forma a colocar a culpa diretamente sobre ele, não sobre Bate-Seba. Foi ele quem fez tudo, não porque ela o tenha tentado ou seduzido, mas porque ele foi arrogante, lascivo e ambicioso. Ele não a quis como esposa, ou mesmo como um caso amoroso. Ele buscou o prazer de uma noite e ela voltou para sua casa. Foi assim, ou assim pareceu. Algum tempo depois, no entanto, ela mandou lhe dizer que estava grávida. Retomamos nosso texto aqui, com a narração da tentativa desesperada de Davi de encobrir o seu pecado com Bate-Seba. Como sabemos, nada dá certo e as coisas só ficam piores.

A história de Davi e Urias me faz lembrar da história do “Aprendiz de Feiticeiro”. Já faz algum tempo, mas lembro-me de que no desenho (provavelmente da versão de Walt Disney, que em português recebeu o título de “Fantasia”) o feiticeiro sai e deixa o aprendiz cuidando de suas tarefas. O aprendiz tem a brilhante ideia de usar as artes mágicas de seu mestre, achando que assim seu trabalho seria bem mais fácil e ele poderia se sentar e observar outros poderes em ação. O problema era que ele não sabia como parar o que havia começado; por isso, cada vez mais ajudantes entravam em cena enquanto ele tentava reverter o feitiço.

Neste momento, a vida de Davi está bem parecida. Ele começa a acumular pecado sobre pecado, certo de que, de alguma forma, um irá encobrir o outro. Em vez disso, seus pecados só se multiplicam. Cada vez mais pessoas ficam sabendo e fica impossível escondê-los. Podemos tirar muitas lições deste episódio trágico da vida de Davi, as quais, se aprendidas, nos ajudarão a não cometer os mesmos erros. Que o Espírito de Deus abra os nossos ouvidos e o nosso coração para compreendermos e aprendermos com essa tentativa de Davi de encobrir o pecado cometido com Bate-Seba.

Contexto

Em nossa primeira lição, dedicamos nossa atenção aos quatro primeiros versos do capítulo 11, os quais descrevem o adultério de Davi com Bate-Seba. Procurei demonstrar que toda a responsabilidade por esse pecado foi dele. O autor aponta o dedo acusador para ele, não para ela. Ela não foi indiscreta ao se banhar (pelo que entendo da história), pois estava simplesmente obedecendo o ritual de purificação descrito na lei. Foi Davi que, pela visão privilegiada do seu terraço, olhou de forma inadequada para ela, violando sua privacidade. Esforcei-me para demonstrar que o pecado de Davi com Bate-Seba foi consequência de uma série de decisões e atitudes erradas tomadas por ele. Em certo sentido, no caminho em que ele andava, seu destino (adultério ou algo parecido) já era esperado. Sua omissão finalmente floresceu e desabrochou.

Um dos aspectos trágicos desta história é que o pecado na vida de Davi não termina com sua união adúltera com Bate-Seba. Ele continua numa trama enganosa para fazer com que Urias, marido de Bate-Seba, pareça ser o pai da criança, e culmina no assassinato deste por Davi e no casamento de Davi com Bate-Seba. Ao retomarmos de onde paramos na última lição, mais algumas informações sobre o contexto são vitais para o entendimento do texto.

1) É provável que Davi e Urias mal se conhecessem, mas sabiam da existência um do outro, pelo menos até certo ponto. Urias está entre os valentes de Davi (II Samuel 23:39; I Crônicas 11:41). Alguns desses “valentes” juntaram-se a Davi logo no início, quando ele ainda estava na caverna de Adulão (I Samuel 22:1-2) e, entre eles, supomos que estivessem Joabe, Abisai e Asael, os três valentes que eram irmãos (ver II Samuel 23:18, 24; I Crônicas 11:26)1. Outros se juntaram a Davi em Ziclague (I Crônicas 12:1 e ss); e outros ainda em Hebrom (I Crônicas 12:38-40)2. Não sabemos quando e onde Urias se uniu a ele, mas, uma vez que sua carreira termina em II Samuel 12, seus feitos militares devem ter ocorrido bem antes. Parece improvável que ele e Davi fossem estranhos; é mais provável que os dois se conhecessem por terem lutado juntos, ou até mesmo por terem fugido juntos de Saul.

2) Parece improvável que Urias ignore o que Davi fez e o que está tentando fazer ao chamá-lo de volta a Jerusalém. Deve ter havido rumores sobre Davi e Bate-Seba em Jerusalém, os quais poderiam facilmente ter chegado ao exército israelita que sitiava Rabá. Urias não só se recusa a ir para casa e dormir com sua esposa, como também dorme à porta do palácio, entre os servos do rei. Ele tem muitas testemunhas para comprovar que qualquer criança nascida de sua esposa nessa época não é sua. É óbvio que ele sabe perfeitamente o que Davi quer dele (que faça sexo com Bate-Seba); por isso, ele se recusa, mesmo quando o rei literalmente lhe dá ordens para ir para casa. É difícil explicar essa atitude, se Urias não sabe o que aconteceu entre Davi e Bate-Seba. No mínimo, ele sabe o que Davi quer dele durante sua estadia em Jerusalém. Vamos explorar as implicações disso mais tarde.

3) Não está escrito que Bate-Seba tome parte do plano de Davi para enganar Urias ou ocasionar sua morte, muito menos que ela saiba o que ele está fazendo. Quando ela diz a Davi que está grávida, ele toma uma atitude decisiva, mas em lugar algum está escrito que Bate-Seba faça parte do seu plano. O verso 26 soa como se ela tomasse conhecimento da morte de Urias depois do fato, pelos canais normais de comunicação. Afinal, será que Davi realmente queria que sua nova esposa soubesse que ele assassinou seu marido? Davi age sem o auxílio de Bate-Seba.

Uma Gravidez Indesejada
(11:5)

É como se Bate-Seba não passasse mais pela cabeça de Davi depois do encontro descrito nos versos 1 a 4. Também não parece que ele quer continuar o relacionamento, ter um caso ou se casar com ela. Ele simplesmente deixa de lado aquele acontecimento pecaminoso, até que um mensageiro enviado por ela o informe que sua noite de paixão produziu uma criança. Ela lhe diz que está grávida, não que teme estar. Isso significa que sua menstruação faltou pelo menos uma vez, e talvez outra. De um modo geral, algumas semanas ou mais se passaram; não muito antes que seu estado se tornasse óbvio para as outras pessoas. O pecado é de Davi e a responsabilidade também, por isso ela o informa.

Plano A: Dê A Urias A Chance De Fazer Aquilo Que É Natural
(11:6-9)

O plano de Davi é simples e, pelo menos na sua cabeça, infalível. Em resumo, ele vai induzir Urias a pensar e agir como ele mesmo. Davi não quis enfrentar as dificuldades da guerra com Rabá, por isso foi para Jerusalém, para sua casa e para sua cama. Ele não quis dizer não a si mesmo, por isso, tomou a esposa de outro homem e dormiu com ela. Agora, ele dá a Urias a mesma oportunidade, exceto que Urias dormirá com sua própria esposa. Depois que Urias tiver relações com ela, todos concluirão que ele é o pai da criança concebida pelo ato pecaminoso de Davi. Só uma coisa dá errada no plano de Davi: ele presume que Urias esteja tão espiritualmente apático quanto ele, e será indulgente consigo mesmo em vez de agir como um soldado em guerra.

Davi envia uma mensagem a Joabe, com ordens para mandar Urias de volta para casa. Pelo contexto, entendo que Urias é enviado a Jerusalém sob o pretexto de relatar diretamente a Davi o andamento da guerra. Duvido que Davi queira que ele saiba de suas ordens a Joabe. Estou certo de que ele não quer que Urias conheça o verdadeiro propósito da sua viagem a Jerusalém. Davi orquestra as coisas para fazer o retorno de Urias parecer servir a algum propósito, quando, na verdade, a intenção é dissimular o seu próprio pecado. Mesmo assim, sua ordem não cheira bem. Você devem se lembrar de que quando o pai de Davi quis saber como andava a batalha com os filisteus (onde três de seus filhos estavam envolvidos), ele mandou Davi, seu filho mais novo, como mensageiro, para levar suprimentos e retornar com notícias da guerra (I Samuel 17:17-19). Não é preciso enviar um herói como mensageiro (e nem é bom).

Gostaria ainda de acrescentar que Joabe já está sendo arrastado para a conspiração. Ele obedece à ordem de Davi e manda Urias de volta; meu palpite é que ele sabe de alguma coisa. Talvez tenha ouvido algo sobre o caso de Davi com Bate-Seba. Quando manda Urias para Jerusalém, ele tem de lhe dar alguma missão, alguma incumbência. Talvez ambos tenham sentido que essa não era uma “missão impossível” (como a que se daria a um valente), mas uma “missão incrível”. Em todo caso, a teia de mentiras e engodos já está sendo tecida, e mais pessoas estão sendo arrastadas para a conspiração.

Quando Urias chega em Jerusalém, ele se apresenta a Davi, que age de acordo com a farsa planejada. Ele pergunta a Urias sobre o “bem-estar de Joabe e do povo” e sobre a “guerra”. O que me incomoda é: para que Davi precisa desse relatório, afinal? Se ele tivesse ido com seus homens para a guerra, isso não seria necessário. No entanto, pior ainda é ele não se importar nem um pouco com Joabe, com o povo ou com a guerra. A sua única preocupação é encobrir seu pecado, fazer com que Urias vá para casa e se deite com a esposa, para tirar seu pescoço (de Davi) da forca. Como é triste ver a hipocrisia de Davi. O rei que teve piedade do filho deficiente de Jônatas, agora não tem a mínima compaixão de um exército inteiro, e muito menos de Bate-Seba e seu marido.

Davi age mecanicamente com Urias. Ele ouve o seu relatório e depois lhe dá uma noite de folga, um tempo para ir para casa e “lavar os pés”. Davi não está preocupado com a higiene pessoal de seu soldado; está preocupado com a sua própria reputação. Quando alguém entrava em casa, em geral tirava os sapatos e lavava os pés antes de comer e ir para a cama. Davi, com muita delicadeza, incentiva Urias a ir para casa e se deitar com sua esposa. Urias sabe disso; nosso autor sabe; e nós também.

Urias sai da presença do rei. Agora, Davi dá um toque a mais. Ele envia um “presente do rei” junto com Urias, ou logo depois de sua saída. Gostaríamos muito de saber exatamente que “presente” é esse! Seria uma noite para dois no Jerusalém Hilton? Um jantar dançante num restaurante romântico? Acho que podemos seguramente dizer o seguinte: 1) não está escrito qual foi o presente; 2) ou não é para sabermos ou não faria nenhuma diferença se soubéssemos; 3) O que quer que fosse, foi cuidadosamente planejado para facilitar o plano de Davi, de fazer com que Urias se deitasse com sua esposa o mais rápido possível.

Urias deve entender o que o rei está sugerindo. Quem não gostaria de ir para casa e se alegrar com sua esposa depois de um tempo separação graças à guerra com os amonitas? Ao invés disso, Urias não deixa o palácio. Ele dorme à porta da casa real, na presença de uma porção de servos do rei. Tenho a impressão de que, pelo menos alguns desses servos, se não todos, são guarda-costas reais (compare com I Reis 14:27-28). Urias é soldado. Ele foi chamado à presença do rei, longe da batalha. Entretanto, sendo um servo fiel, ele não desfrutará de uma noite a sós com sua esposa; antes, se juntará àqueles que guardam a vida do rei. Desse jeito ele pode servi-lo em Jerusalém; por isso, prefere ficar em vez de ir para casa. A ironia é avassaladora. O soldado leal passa a noite guardando a vida do rei, o mesmo rei que lhe tomou a esposa durante a noite e em breve lhe tomará a vida também.

Plano B: Seja Mais Claro E Mais Incisivo Com Urias
(11:10-11)

Davi tem espias vigiando Urias como se ele fosse o inimigo. Eles sabem da intenção de Davi: que Urias vá para casa e durma com sua esposa. Se não conhecem todos detalhes do que aconteceu entre Davi e Bate-Seba (o que é difícil de acreditar) e de sua intenção com a visita de Urias, com certeza sabem que algo fora do normal está acontecendo no palácio. De uma forma ou de outra, Davi está tornando esses servos-espias co-conspiradores com ele.

Os servos-espias chegam para Davi na manhã seguinte com uma notícia surpreendente: “Urias não fez o que o rei mandou. Nem mesmo foi para casa!” Davi, então, procura gentilmente repreendê-lo. Mal dá para acreditar na hipocrisia da sua atitude e de suas palavras. Ele faz o papel de um amo bondoso. Urias, seu servo, “vem de uma jornada” (verso 10). Não é esse o momento de se preocupar com suas necessidades e desejos? Não é hora de pensar na carência de sua esposa? Quanta insensibilidade de Urias não ir para casa e ficar e dormir com ela! “Que vergonha, Urias!” Ele tem muito a explicar; ou é o que parece a Davi.

E Urias explica. Suas palavras ao comandante em chefe são uma repreensão tão contundente quanto a recebida por Davi de Natã no capítulo seguinte. Urias compreende claramente que o que antes Davi apenas insinuou (ou seja, que fosse para a cama com sua esposa), agora ele está dizendo, e até mesmo ordenando, que faça. Humildemente, mas com firmeza, Urias se recusa:

“Respondeu Urias a Davi: A arca, Israel e Judá ficam em tendas; Joabe, meu senhor, e os servos de meu senhor estão acampados ao ar livre; e hei de eu entrar na minha casa, para comer e beber e para me deitar com minha mulher? Tão certo como tu vives e como vive a tua alma, não farei tal coisa.” (II Samuel 11:11)

Primeiro Urias mostra a Davi que sua terminologia está incorreta. Davi fala de Urias retornando de uma jornada (verso 10). A verdade é que ele foi chamado do campo de batalha. Ele não é um caixeiro-viajante, em casa depois de uma viagem; é um soldado, longe do seu posto. No coração e na alma, Urias ainda está com seus companheiros. Ele realmente quer voltar ao campo de batalha, não ficar em Jerusalém. Ele retornará tão logo Davi o dispense (ver verso 12). Até lá, pensará e agirá como soldado. Na medida do possível, viverá do mesmo jeito que seus companheiros de batalha estão vivendo. Lá, cercando a cidade de Rabá, estão os soldados israelitas liderados por Joabe. Eles, junto com a arca do Senhor, estão acampados em tendas ao ar livre. Urias não pode, e não irá, viver no luxo enquanto eles vivem com sacrifício. Ele não irá dormir com sua esposa até que eles também possam dormir com suas esposas.

Urias, respeitosamente, não aceita — na verdade, ele se recusa — a agir de forma não condizente com um soldado, quanto mais com um herói de guerra. Acho importante observar que aqui não há nenhuma ordem em particular que ele se recuse a obedecer. Ao que eu saiba, não há nenhum mandamento específico na Lei de Moisés que proíba um soldado de fazer sexo com sua esposa em tempos de guerra (se isso fosse verdade nos primeiros anos da história de Israel, não teria havido outra geração de israelitas, uma vez que eles estavam quase sempre em guerra com um ou outro de seus vizinhos). Essa é uma convicção particular de Urias como soldado, e ele não violará sua consciência, mesmo tendo recebido uma ordem do rei.

Para compreender totalmente o impacto das palavras de Urias, vamos voltar algumas páginas nos escritos de Samuel para relembrar as palavras do próprio Davi, ditas a Aimeleque, o sacerdote, uma vez que elas têm relação com este encontro com Urias:

“Então, veio Davi a Nobe, ao sacerdote Aimeleque; Aimeleque, tremendo, saiu ao encontro de Davi e disse-lhe: Por que vens só, e ninguém, contigo? Respondeu Davi ao sacerdote Aimeleque: O rei deu-me uma ordem e me disse: Ninguém saiba por que te envio e de que te incumbo; quanto aos meus homens, combinei que me encontrassem em tal e tal lugar. Agora, que tens à mão? Dá-me cinco pães ou o que se achar. Respondendo o sacerdote a Davi, disse-lhe: Não tenho pão comum à mão; há, porém, pão sagrado, se ao menos os teus homens se abstiveram das mulheres. Respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, como sempre, quando saio à campanha, foram-nos vedadas as mulheres, e os corpos dos homens não estão imundos. Se tal se dá em viagem comum, quanto mais serão puros hoje!” (I Samuel 21:1-5)

Vocês devem se lembrar que, logo no início, quando Davi fugia de Saul, ele procurou Aimeleque, o sacerdote, para lhe pedir provisões e uma espada. O sacerdote só tinha pão sagrado, o qual permitiria que Davi e seus homens comessem se pelo menos eles “se abstivessem das mulheres” (verso 4). O sacerdote presume que talvez eles não estejam fazendo isso. A resposta de Davi, e especialmente o seu tom, é totalmente pertinente ao nosso texto. Ele garante a Aimeleque que tanto ele como seus homens estavam se abstendo das mulheres, quase exasperado com fato de o sacerdote supor outra coisa. E a razão dada por Davi é que ele e seus homens estavam em missão para o rei. A inferência é de que a missão era militar (ou, pelo menos, oficial).

Mas há algo ainda mais surpreendente: Davi, naquela época, era muito rígido quanto ao fato de os soldados em missão para o rei se absterem de relações sexuais. Agora, anos mais tarde, ele se espanta com o caso de um homem na mesma situação estar disposto a se abster das relações com sua esposa. Pior ainda, ele tenta convencer — e até mesmo forçar — Urias a fazê-lo, mesmo que isso viole a consciência de Urias. Isso não é “fazer um irmão mais fraco tropeçar”, é amputar as pernas de um irmão mais forte até o joelho. Urias é um exemplo do comprometimento esperado de todo soldado, e de Davi em especial — pelo menos do Davi dos tempos passados. Urias agora age como o Davi que conhecemos nos primeiros dias. Ele é o “Davi” que Davi deveria ser.

As palavras de Urias devem ter feito Davi perceber a profundidade do seu pecado. O autor usa essas palavras de forma irônica, mas fundamental. Urias diz a Davi que não irá para casa, não comerá, nem beberá e nem dormirá com sua esposa3. Ele é muito incisivo: “Tão certo como tu vives e como vive a tua alma, não farei tal coisa” (verso 11). Nos versos seguintes, Davi o constrange a “comer e beber” com ele, na esperança de que Urias se deite com a esposa. E, quando Urias jura pela vida do rei que não fará tal coisa, o rei acaba tirando a sua vida. Que ironia! Que trágico!

Plano C: Dê Uma Bebedeira Em Urias E Ele Fará Bêbado O Que Não Faria Sóbrio
(11:12-13)

Davi está ficando desesperado. Ele sequer cogita a possibilidade de Urias recusar sua oferta. Urias fala com tanta convicção que Davi sabe que ele não infringirá seu dever como soldado se estiver de posse de suas plenas faculdades mentais. Por isso, faz uma última modificação em seu plano original — ele vai embebedar Urias e fazê-lo ir para a cama com a esposa. Afinal, as pessoas não fazem coisas quando estão bêbadas que não fariam quando sóbrias? Isso, com certeza, fará o plano de Davi dar certo.

Deve ser com grande apreensão que Urias se junta a Davi para jantar nessa última noite em Jerusalém. Davi começa a comer e beber, e não aceitará não como resposta quando oferecer comida e bebida a Urias. Isso até que funciona, pois Davi se assegura de que ele tenha álcool suficiente no sangue para ficar bêbado. E, nesse estado, Davi o manda para casa para “recuperar-se”, na sua própria cama, é claro. No entanto, mesmo bêbado, Urias não violará sua consciência!4 De novo, ele passa a noite à porta do palácio de Davi, junto com os servos do rei. Ele não vai para sua casa e, por isso, não dorme com sua esposa. Davi está encrencado.

Plano D: Em Desespero, Davi Ordena A Morte De Urias
(11:14-17)

Davi dá um tiro que sai pela culatra. Ele pretende colocar Urias em uma situação onde este pareça ser o pai do filho de Bate-Seba. A conduta de Urias, porém, mostra publicamente sua lealdade para com seus deveres de soldado, tornando ainda mais evidente que ele não pode ser o pai da criança. A situação fica pior do que quando Davi o chama de volta a Jerusalém. Davi conclui, então — erroneamente — que a única solução é Urias ser morto em ação. Não sei se ele realmente acha que pode enganar a todos em Jerusalém quanto à paternidade do filho de Bate-Seba. Como ele pode pensar assim, se todos sabem que Urias não esteve com sua esposa, para deixá-la grávida? Parece que Davi está simplesmente tentando legitimar seu pecado. Fazendo de Urias uma baixa de guerra, ele deixa Bate-Seba viúva. Agora ele pode casar-se com ela e educar o filho como seu, o qual obviamente é mesmo.

Davi deve ter passado uma noite angustiante, vendo que até mesmo bêbado Urias é um homem melhor do que ele. Por isso, de manhã cedo, ele parte para ação. Ele escreve uma carta para Joabe, a qual servirá como sentença de morte para Urias. Na carta, Davi ordena claramente que Joabe mate Urias por ele. Ele até mesmo lhe diz o que fazer para encobrir a verdade. Assim, Davi honrará Urias como herói de guerra e, magnanimamente, assumirá o dever se tornar marido de sua esposa, e também de educar o filho que está para nascer. Joabe deve colocar Urias na linha de frente, onde a batalha está mais acirrada, o que não seria surpresa para um homem com a coragem e a habilidade de Urias. Joabe deve atacar e então recuar, de forma que Urias se torne um alvo fácil para os amonitas, garantindo assim a sua morte. Não há dúvida nas ordens de Davi: ele quer Urias morto de forma a parecer uma simples baixa de guerra. Joabe aquiesce totalmente às suas ordens, e Urias é eliminado, não sendo mais um obstáculo aos planos do rei. Ao dar essa ordem a Joabe, Davi o torna cúmplice de sua conspiração, fazendo-o partilhar a culpa pelo sangue de Urias. O pecado de Davi continua a envolver cada vez mais pessoas, levando a pecados cada vez maiores.

Como é estranho ver Davi, um valente (I Samuel 16:18), tratando Urias, outro valente, como inimigo. Eis Urias, um homem que dará a sua vida por seu rei, e Davi, um homem que está disposto a tirar a vida de Urias para encobrir o seu pecado. Todo mundo sabe que isso não vai funcionar. Como é estranho ver Davi fazendo Joabe cúmplice do seu crime, especialmente depois do que Joabe fez a Abner:

“Retirando-se Joabe de Davi, enviou mensageiros após Abner, e o fizeram voltar desde o poço de Sirá, sem que Davi o soubesse. Tornando, pois, Abner a Hebrom, Joabe o tomou à parte, no interior da porta, para lhe falar em segredo, e ali o feriu no abdômen, e ele morreu, agindo assim Joabe em vingança do sangue de seu irmão Asael. Sabendo-o depois Davi, disse: Inocentes somos eu e o meu reino, para com o SENHOR, para sempre, do sangue de Abner, filho de Ner. Caia este sangue sobre a cabeça de Joabe e sobre toda a casa de seu pai! Jamais falte da casa de Joabe quem tenha fluxo, quem seja leproso, quem se apoie em muleta, quem caia à espada, quem necessite de pão. Joabe, pois, e seu irmão Abisai mataram Abner, por ter morto seu irmão Asael na peleja, em Gibeão.” (II Samuel 3:26-30)

Davi condenou Joabe e o amaldiçoou por ele ter derramado o sangue inocente de Abner. Agora, o mesmo Davi (bem, não exatamente o mesmo) usa Joabe para matar Urias e tirá-lo do seu caminho. O inimigo de Davi (Joabe) se torna seu amigo, ou pelo mesmo, aliado. Os inimigos de Davi (os amonitas) se tornam seus aliados (eles deram o golpe fatal que matou Urias). E o servo leal de Davi, Urias, é condenado à morte como se fosse o inimigo. Não só Urias é morto, mas também muitos outros guerreiros israelitas. Eles precisam ser sacrificados para encobrir o assassinato de Urias. Sua morte precisa ser vista como a de um grupo, não de um só homem. Sem dúvida alguma, este é o ponto mais baixo da vida moral e espiritual de Davi.

Joabe Cuida Do Problema Das Relações Públicas
(11:18-25)

Estes oito versos, destinados à descrição da morte de Urias, são o dobro dos versos utilizados para descrever o pecado de Davi com Bate-Seba. Eles são praticamente iguais em extensão à narrativa das conversas de Davi com Urias. Eles começam com as instruções cuidadosas de Joabe ao mensageiro que vai levar a notícia a Davi, e terminam com o próprio relato e a resposta de Davi. Por que será que o autor dedica tanto tempo e espaço à maneira pela qual a morte de Urias é informada ao rei? Vejamos se é possível encontrar a resposta a essa pergunta dando uma olhada mais de perto nesses versos.

Missão cumprida: Urias está morto. Joabe cumpriu as instruções de Davi ao pé da letra. Agora ele precisa mandar a notícia para Davi de forma que não revele nada sobre a conspiração. Ele chama um mensageiro e lhe dá instruções precisas. O mensageiro deve primeiro fazer um relato completo e detalhado dos acontecimentos, incluindo o malfadado ataque à cidade e a chacina de Urias e o grupo que estava com ele. Por que a maneira como o mensageiro vai dar a notícia é tão importante?

A resposta é muito simples, como fica evidente pela preocupação do próprio Joabe. A missão inteira é um fiasco. Os israelitas estão sitiando a cidade de Rabá. Isso significa que eles rodeiam a cidade e o povo não pode entrar, nem sair. Tudo o que os israelitas têm a fazer é esperar até que os amonitas morram de fome. Não há necessidade de um ataque. A missão é suicida desde o princípio e não é preciso ser gênio para ver isso. Joabe tem de reunir um grupo de valentes como Urias, incluindo o próprio Urias, para realizar um ataque à cidade. O ataque não é feito contra o ponto mais fraco do inimigo, como seria de se esperar, mas contra o mais forte. Essa ação provoca um contra-ataque dos amonitas contra Urias e seus homens. Quando o exército israelita bate em retirada, deixa seus próprios homens indefesos, e o resultado óbvio é uma chacina. Como alguém pode dar a notícia de um fiasco desses sem que Joabe pareça um tolo (na melhor das hipóteses) ou assassino (na pior)?

Eis a razão para que as instruções de Joabe ao mensageiro sejam tão cuidadosas. O mensageiro deve informar sobre o ataque à cidade de Rabá e depois, sobre as consequentes perdas israelitas. Joabe sabe que Davi irá reagir (talvez com hipocrisia) quando souber do ataque e das perdas. É aí, diz Joabe ao mensageiro, que ele deve falar da morte de Urias. Isso, com certeza, porá fim a quaisquer protestos ou críticas por parte de Davi.

Assim, nos versos 22 a 25 temos a narrativa da chegada do mensageiro, do seu relato a Davi e da reação deste. Devo ressaltar que o mensageiro não faz o que lhe foi pedido, pelo menos não da forma como leio o texto. Ele chega para Davi e diz que os amonitas prevaleceram contra eles enquanto deixavam a cidade, perseguindo-os em campo aberto. Os israelitas, então, se voltaram contra eles, forçando-os até os portões da cidade. Foi aí que Urias e seu grupo lutaram. E foi aí que ficaram ao alcance dos flecheiros, que os atingiram, matando uma porção de servos do rei. E, rapidamente, o mensageiro acrescenta: “e também morreu o teu servo Urias, o heteu.” (verso 24)

Por que será que o mensageiro não espera pela reação encolerizada de Davi, como fora instruído por Joabe? Por que ele lhe diz que Urias foi morto, antes mesmo de Davi fazer qualquer crítica ou protesto? Creio que ele dá as notícias dessa forma porque compreende o que realmente está acontecendo. Talvez ele saiba sobre Davi e Bate-Seba, e até mesmo sobre sua gravidez. Com certeza ele sabe da convocação de Urias a Jerusalém. Talvez também ele tenha descoberto que Davi queria se livrar de Urias e Joabe fez isso arranjando uma desculpa esfarrapada para atacar o inimigo. Talvez ainda ele imagine que, se Davi souber logo da morte de Urias, não levantará objeções quanto à chacina desnecessária. Por isso, em vez de esperar por um ataque hipócrita de Davi sobre a estupidez daquela ação, ele se adianta e lhe conta, para não ter de presenciar a reação do rei.

E o servo está absolutamente certo, conforme indica o verso 25:

“Disse Davi ao mensageiro: Assim dirás a Joabe: Não pareça isto mal aos teus olhos, pois a espada devora tanto este como aquele; intensifica a tua peleja contra a cidade e derrota-a; e, tu, anima a Joabe.” (II Samuel 11:25)

Essas palavras de Davi dão o toque final à questão. Elas parecem graciosas e compreensivas, até mesmo simpáticas. Na verdade, ele está dizendo: “Bem, não se preocupe. Afinal, às vezes a gente ganha, às vezes perde. É assim mesmo.” Urias, um grande guerreiro e homem de caráter piedoso, acaba de morrer, e Davi não diz uma palavra de pesar, não demonstra nenhuma tristeza, não faz nenhum tributo. Urias morre e Davi fica impassível. Compare sua reação à morte de Urias com sua reação às mortes de Saul e Jônatas (II Samuel 1:11-27), e até mesmo de Abner (II Samuel 3:28-39). Este não é o Davi de alguns capítulos antes. Este é um Davi endurecido, calejado, calejado pelo seu próprio pecado.

Conclusão

Nosso texto tem muitos ensinos e implicações para os nossos dias. Permitam-me sugerir alguns para concluir esta mensagem.

Primeiro, Um cristão pode cair? Sim, pode. Alguns personagens bíblicos talvez nos façam perguntar se eles realmente são crentes em Deus, tais como Balaão, Sansão ou Saul. Com relação a Davi, entretanto, não nos fazemos tais perguntas. Ele não é apenas um crente, é um crente modelo. Na Bíblia, ele estabelece o padrão, pois é um homem segundo o coração de Deus. No entanto, esse homem, apesar de crer em Deus, apesar de momentos espirituais incríveis e de seus belos salmos, cai profundamente em pecado. E, se Davi pode cair, nós também podemos, e é exatamente sobre isso que Paulo nos adverte:

“Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia.” (I Coríntios 10:11-12)

Segundo, A que profundidade um cristão pode cair? Muito fundo. Davi não só cometeu o pecado de adultério, ele também cometeu assassinato. Creio que podemos dizer que não pecado na carne que o cristão não seja capaz de cometer. Às vezes, ouço as pessoas dizerem: “Não sei como uma pessoa que... pode ser cristã.” Muitas vezes — como esta na vida de Davi — outras pessoas mal nos reconhecem como cristãos devido ao nosso mau testemunho.

Terceiro, A que velocidade um cristão pode cair? Muito rápido. É impressionante como foi rápida a queda de Davi em um único capítulo. Longe da graça providente de Deus, podemos cair bem fundo e bem rápido. Que a trágica experiência de Davi sempre nos relembre disso.

Quarto, o pecado é como uma bola de neve. O pecado não é estanque; não é estático. Ele cresce. Veja a sua progressão em nosso texto. O pecado de Davi começa quando ele deixa de agir como soldado e vira um dorminhoco que fica na cama até tarde. Seu pecado vai do adultério ao assassinato. Ele começa discretamente, mas, à medida que a história se desenrola, cada vez mais pessoas tomam conhecimento dele; e pior, cada vez mais pessoas se tornam participantes dele. O pecado de Davi inicialmente se expressa quando ele toma a esposa de outro homem; depois, quando tira a vida desse homem, e, junto com sua vida, a de uma porção de homens que precisam morrer para que sua morte seja verossímil. O pecado de Davi desabrocha de modo a transformar um amigo leal e verdadeiro (Urias) em inimigo, e inimigos (os amonitas e, em certo sentido, Joabe) em aliados.

Quinto, quando tentamos encobrir nossos pecados, as coisas pioram. Por isso, a melhor coisa a fazer é confessá-los e abandoná-los.

“O que encobre as suas transgressões jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa alcançará misericórdia.” (Provérbios 28:13)

Como teria sido melhor para Davi se ele simplesmente tivesse confessado seu pecado com Bate-Seba, e então sido perdoado; mas ele tentou encobri-lo e as coisas só ficaram piores. O homem tenta encobrir seus pecados desde o jardim do Éden. Adão e Eva pensaram que podiam encobrir seu pecado escondendo sua nudez, ou melhor, escondendo-se de Deus. Contudo, Deus amorosamente busca por eles, não só para repreendê-los e amaldiçoá-los, mas para lhes dar a promessa de perdão. Foi Deus quem providenciou a cobertura para o pecado de Adão e Eva. A morte sacrificial, o sepultamento e a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é o meio pelo qual Deus cobre os nossos pecados. Meu amigo, você já passou por essa experiência? Se ainda não, por que não confessa agora seus pecados e recebe o presente do perdão de Deus na pessoa e na obra de Jesus Cristo na cruz do Calvário?

Sexto, nosso texto mostra Urias como um herói-modelo, não como um otário estúpido. Talvez algumas pessoas concluam que o elevador de Urias não “vá até o último andar” (como dizia uma vizinha minha sobre as pessoas que ela achava meio devagar). Urias é ingênuo? Ele não percebe o que Davi está tentando fazer? Não creio. Por isso sua lealdade a Davi e à lei de Deus são tão notáveis. Creio que podemos dizer que ele é muito parecido com o Davi dos primeiros tempos, com relação à maneira como este reagia a Saul. Quando Saul quis matá-lo injustamente, porque estava com ciúmes do seu sucesso militar, Davi também submeteu-se a ele, servindo-o fielmente. Davi deixou sua segurança e seu futuro nas mãos de Deus, e Deus não o desamparou.

Sétimo, Urias é um lembrete de que nem sempre Deus livra imediatamente o justo das mãos do perverso, ou mesmo durante a sua vida. Os três amigos de Daniel disseram ao rei que o seu Deus era capaz de livrá-los. Ele não presumiram que Ele iria, ou deveria, fazê-lo. E Deus realmente os livrou. Acho que os cristãos consideram esse livramento como a regra, não como a exceção. Entretanto, quando Urias serve fielmente ao seu rei (Davi), ele perde a vida. Deus não é obrigado a “nos livrar dos problemas” ou nos afastar das provações e tribulações só porque confiamos nEle. Às vezes, é da Sua vontade que os homens confiem totalmente nEle e se sujeitem ao governo humano, e ainda sofram adversidades, das quais talvez Ele não os livre. Espiritualidade não é garantia de que não vamos mais sofrer. Na verdade, intimidade espiritual com Deus muitas vezes é consequência dos nossos sofrimentos (ver Mateus 5).

No Antigo Testamento, como no Novo, Deus às vezes livra Seu povo das mãos dos perversos, mas nem sempre. A “libertação” do povo de Deus vem com a chegada do Messias, o Senhor Jesus Cristo. Urias, como todos os santos do Antigo Testamento, morreu sem receber seu completo galardão, porque Deus quis que ele esperasse. Urias, como muitos santos do Antigo Testamento, não foi liberto das mãos do perverso. Isso é mostrado pelo autor da carta aos Hebreus:

“Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade... E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas, os quais, por meio da fé, subjugaram reinos, praticaram a justiça, obtiveram promessas, fecharam a boca de leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, da fraqueza tiraram força, fizeram-se poderosos em guerra, puseram em fuga exércitos de estrangeiros. Mulheres receberam, pela ressurreição, os seus mortos. Alguns foram torturados, não aceitando seu resgate, para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos, maltratados (homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas, pelos antros da terra. Ora, todos estes que obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, contudo, a concretização da promessa, por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados.” (Hebreus 11:13-16, 32-40)

Urias não deve ser criticado ou desprezado por sua lealdade e submissão a Davi. Pelo contrário, ele deve ser elogiado. De fato, um amigo me deu algo novo em que pensar: “E se Urias foi adicionado à lista dos heróis de guerra por sua lealdade e coragem na batalha que lhe custou a vida?” Essa é uma possibilidade a ser considerada. Urias é um daqueles gentios convertidos, cuja fé e obediência envergonham muitos israelitas. Ele está entre os muitos que creram em Deus e O obedeceram e não receberam o seu galardão em vida; mas o receberão na vinda do reino de Deus. Muitos cristãos da atualidade querem suas bênçãos “na hora” e sem sofrimento, sem ter de esperar pelo galardão. Que eles considerem cuidadosamente o exemplo de Urias para a sua própria vida.

Tradução: Mariza Regina de Souza


1 Sabemos que, enquanto Davi estava na caverna de Adulão, seus irmãos e toda a casa de seu pai, junto com outros que se encontravam em perigo, foram até ele, temendo a ira de Saul (I Samuel 22:1-2). Joabe, Abisai e Asael eram filhos de Zeruia, irmã de Davi (I Crônicas 2:16). Por inferência, entendo que esses três se juntaram a Davi na mesma época que o restante de sua família.

2 Note que aqui havia uma festa de três dias para Davi e os homens uniram-se a ele. Essa certamente era uma ocasião para conhecê-los.

 

3 Seria esta, por acaso, uma pista sobre o presente enviado por Davi a Urias no verso 8? Será que o presente era comida e bebida?

4 A atitude de Urias levanta algumas perguntas interessantes sobre as pessoas que ficam bêbadas. Parece-me que nosso texto deixa implícito que, mesmo bêbado, alguém não pode ser forçado a trair suas próprias convicções, a menos, é claro, que queira isso. Pergunto-me quantas pessoas não se embebedam para fazer aquilo que desejam, pensando que assim podem colocar no álcool a culpa pelo seu próprio pecado. Isso me parece outra versão de Foi o diabo que me fez fazer isso.

 

11. Davi e Deus (Natã) (II Samuel 12)

Introdução

Há alguns anos, minha esposa Jeanette e eu fomos para Inglaterra e Escócia com meus pais. Ao viajarmos pelo país de Gales, todas as noites parávamos em uma “pousada”. Havia muitas propriedades rurais, mas bem poucas cidades onde pudéssemos encontrar um lugar para passar a noite. Um dia, vimos uma placa de "pousada" e dirigimos pela estrada rural até encontrar o local — um lugar bem pitoresco. Vimos várias centenas de ovelhas no pasto, um cavalete e celeiros de pedra. Parecia o lugar perfeito e, em muitos sentidos, era mesmo. O que não percebemos é que o cavalete de pedra era parte de uma estrada de ferro, cujo trem passava à noite, a poucos metros da casa onde dormimos. Duas vacas também deram cria naquela noite. Eu já tinha passado algum tempo em fazendas, mas nunca tinha ouvido o urro de uma vaca parindo ecoar por um celeiro de pedra. 

Além das centenas de ovelhas no pasto, havia também um cordeirinho num pequeno cercado, bem perto da casa. Era um camaradinha amistoso e brincalhão, e nós gostamos muito de brincar com ele. Não entendemos direito porque aquele animal ficava isolado, longe dos demais. Quando o sobrinho do fazendeiro apareceu, eu lhe perguntei o motivo. Demorou um pouco para eu entender seu sotaque carregado, mas finalmente percebi que ele estava me dizendo que o animal era “de estimação”. O problema era que ele dizia isso como se fosse uma só palavra, “distimação”. Obviamente o animal pertencia a uma categoria distinta, diferente de uma simples “ovelha” ou de um “cordeiro”. Esse animal “de estimação” ficava num cercadinho especial, bem ao lado da casa, e recebia muito mais atenção e cuidado do que o restante do rebanho.

Ora, aquele camaradinha era apenas um entre muitos cordeiros. No entanto, ele desfrutava o privilégio de ser um animal “de estimação”. Na história contada por Natã a Davi, não ocorre exatamente a mesma coisa. Natã fala de uma cordeirinha “de estimação” que era a única de um homem pobre. Essa cordeirinha não vivia num cercado fora da casa; ela vivia dentro de casa, quase sempre nos braços do dono, comendo a mesma comida que ele. Essa é a história que Deus usa para mostrar a maldade do pecado de Davi. Esse é o texto desta mensagem e, mais uma vez, ele tem muito a nos ensinar, assim como Davi. Vamos prestar muita atenção às palavras inspiradas de Natã, e aprender com um cordeiro.

Contexto

Davi se torna rei de Judá e Israel. Em grande parte, seu reino já está consolidado. Ele toma Jebus e a torna capital da nação, mudando seu nome para Jerusalém. Ele constrói um palácio e dá a ideia para a construção de um templo (plano este significativamente revisado por Deus). Ele sujeita a maior parte das nações ao redor de Israel. Ele luta contra os amonitas e prevalece, mas não os derrota totalmente. Eles se refugiam na cidade real de Rabá, e quando chega a época das guerras (a primavera), Davi envia Israel, liderado por Joabe, para sitiar a cidade e fazê-la se render. Ele decide não enfrentar os rigores de acampar ao ar livre, fora da cidade. Em vez disso, resolve ficar em Jerusalém. Dormindo até tarde, ele se levanta quando os outros se preparam para dormir. Um dia, ao passear pelo terraço do palácio, ele lança um olhar furtivo para uma bela mulher que está se banhando, talvez cerimonialmente, em cumprimento à lei.

Não há qualquer intenção da parte dela, nem mesmo alguma indiscrição. Ela está se banhando ao anoitecer e, sendo pobre (ver 12:1-4), não tem o privilégio de uma privacidade total, principalmente quando o rei pode olhar de cima, do alto do terraço do seu palácio. Davi fica embevecido com sua beleza e envia mensageiros para fazer perguntas sobre sua identidade. Eles o informam do nome da mulher e que ela é casada com Urias, o heteu. Isso deveria por um ponto final no interesse dele, mas não põe. Ele manda buscá-la e trazê-la ao palácio, onde se deita com ela. Depois de se purificar, ela volta para casa.

O caso parece encerrado. Davi não quer outra esposa; nem mesmo um caso amoroso. Ele quer uma conquista. Essa conquista deveria ser no campo de batalha, não no quarto! As coisas tomam um rumo totalmente diferente quando Bate-Seba manda lhe dizer que está grávida. Primeiro Davi tenta encobrir seu pecado ordenando a Joabe que mande Urias de volta para casa, de licença, aparentemente para dar a ele informações sobre a guerra. No início, os esforços de Davi para fazer com que Urias vá para a cama com Bate-Seba são muito sutis, depois eles se tornam ordens veladas e, então, ficam bem grosseiros, quando Davi tenta dar uma bebedeira em Urias para que ele faça aquilo que não faria sóbrio. Quando todos os esforços de Davi fracassam (devido à nobreza de caráter de Urias), ele o manda de volta para Joabe, com ordens escritas para ser morto de forma a parecer uma baixa de guerra. Joabe cumpre as ordens de Davi e manda lhe dizer: “Missão cumprida”. E é aqui que retomamos nossa história.

As Reações à Morte de Urias

A reação de Bate-Seba à morte de Urias é tanto a esperada quanto a que gostaríamos. De acordo com nosso texto, ela não tem absolutamente nada a ver com a trama de Davi para enganar seu marido, muito menos para matá-lo. Sem, dúvida, ela toma conhecimento da morte de Urias da mesma forma que as outras viúvas da guerra, daquela época e de agora. Quando é informada oficialmente, ela o pranteia. Não podemos dizer com certeza quanto tempo ela fica de luto. Sabemos, por exemplo, que se uma virgem de uma nação distante (dos cananeus, por exemplo) fosse capturada por um israelita durante uma invasão à sua cidade, ele poderia tomá-la por esposa depois que ela prateasse seus pais (mortos na invasão) durante um mês (Deuteronômio 21:10-13). Como tentarei demonstrar a seguir, creio que o luto de Bate-Seba é verdadeiro, não fingido. Creio que ela chora sua morte porque o amava.

Davi, por outro lado, nem mesmo se preocupa em fingir que está de luto. Ele nem tenta ser hipócrita. Quando outros valentes morreram, ele levou a nação a lamentar sua perda. Ele chorou por Saul e seus filhos, mortos na batalha contra os filisteus (II Samuel 1). Ele chorou a morte de Abner, perversamente assassinado por Joabe (II Samuel 3:28 e ss). Ele até enviou uma delegação para prantear oficialmente a morte de Naás, rei dos amonitas (II Samuel 10). No entanto, quando Urias é morto “em batalha”, nem uma palavra de lamento sai de seus lábios. Ele não está triste, está aliviado. Em vez de dizer aos outros para lamentar a morte de Urias, ele manda um recado para Joabe não levar sua morte tão a sério.

Quando termina o luto de Bate-Seba, Davi manda buscá-la e trazê-la para ser sua esposa. Eu não o vejo de joelhos, pedindo-a em casamento. Não o vejo cortejando-a, mandando-lhe rosas. Vejo-o somente “tomando”-a mais uma vez. Minha pergunta é: “Por quê?” Por que ele a toma como uma de suas esposas? Não creio que ele ainda esteja tentando “encobrir” seu pecado; é tarde demais para isso. A essa altura, ela já deve “exibir” sua gravidez, e é difícil imaginar que as pessoas em Israel não saibam o que está acontecendo. Davi não parece mais estar tentando esconder seu pecado, mas sim tentando legitimá-lo. Quaisquer que sejam suas razões, elas não são espirituais, mas, com certeza, são pessoais.

Natã também reage à morte de Urias, o que está registrado na primeira parte do capítulo doze. Porém, vamos deixar sua reação para depois de atentarmos para algo que está ocorrendo na vida de Davi, o qual não podemos ver neste trecho e nem é registrado pelo autor de II Samuel, mas é mostrado por Davi em um de seus salmos, escrito enquanto meditava nos acontecimentos deste texto.

Davi é Divinamente Preparado para o Arrependimento
(Salmo 32:3-4)

“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio.”

O Salmo 32 é um dos dois salmos (o outro é o Salmo 51) em que o próprio Davi medita sobre seu pecado, arrependimento e restauração. Os versos 3 e 4 do salmo são o foco da minha atenção neste momento. Esses versos se encaixam entre os capítulos 11 e 12 de II Samuel. A confrontação de Davi pelo profeta Natã, descrita em II Samuel 12, resulta no arrependimento e na confissão de Davi. No entanto, esse arrependimento não é só fruto da repreensão de Natã, é também a reação de Davi ao trabalho de Deus em seu coração antes de sua confissão, enquanto ele ainda está tentando encobrir seu pecado.

Nesses versos, Davi deixa claro que Deus está trabalhando, mesmo sem parecer. Enquanto Davi tenta encobrir seu pecado, Deus está mostrando-o em seu coração. Essa não é uma época de prazer e alegria, como Satanás quer que pensemos, é uma época de muita infelicidade. Davi fica consumido pela culpa. Ele não consegue dormir, e parece não querer comer. Ele não dorme à noite e está perdendo peso. Se Davi reconhece ou não isso como obra de Deus, pelo menos ele sabe que é um miserável. E é essa infelicidade que o amacia, preparando-o para a repreensão de Natã, preparando-o para o arrependimento. O arrependimento de Davi não é consequência de sua avaliação da situação; é consequência da intervenção divina. Ele se afundou demais no pecado para poder pensar direito. Deus trabalha em sua vida para quebrantá-lo, para que uma vez mais Davi se lance sobre Ele pela graça.

Natã Conta a um Pastor uma História de Ovelha
(12:1-6)

“O SENHOR enviou Natã a Davi. Chegando Natã a Davi, disse-lhe: Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre. Tinha o rico ovelhas e gado em grande número;  mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha como filha. Vindo um viajante ao homem rico, não quis este tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante que viera a ele; mas tomou a cordeirinha do homem pobre e a preparou para o homem que lhe havia chegado.”

Então, o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto. E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal coisa e porque não se compadeceu.”

Há diversos pontos importantes a serem observados sobre este encontro de Natã com o rei Davi.

Primeiro, note que Natã é enviado a Davi. Natã, naturalmente, é profeta. O que quer que Davi tenha feito, ele já sabe. Se me perdoam o trocadilho, Davi não pode puxar o suéter sobre os olhos1. As palavras de Natã, em última análise, são a própria palavra de Deus (ver 12:11). Se Natã é profeta, ele também parece ser amigo de Davi. Um dos filhos de Davi tem seu nome (II Samuel 5:14). Davi lhe conta sobre seu desejo de construir um templo (capítulo 7). Natã dará o nome ao segundo filho de Davi com Bate-Seba (12:25). Ele permanecerá leal ao rei e à Salomão quando Adonias tentar usurpar o trono (I Reis 2). Natã não se aproxima de Davi só como porta-voz de Deus, ele se aproxima como seu amigo.

“Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos.” (Provérbios 27:6)

Segundo, note que Natã é enviado a Davi. A palavra “enviado” (ou “mandado”) é empregada doze vezes pelo autor no último capítulo. Em muitas delas, a palavra se refere a Davi “mandando” alguém fazer alguma coisa ou “enviando” alguma coisa para alguém. Davi é um homem com poder e autoridade, por isso ele pode “mandar” o que quiser, inclusive matar Urias. Agora, é Deus quem está “mandando”. Estará Davi impressionado com sua própria autoridade e poder? Estará ele acostumado a “mandar” outras pessoas fazerem seu trabalho (como fez com Joabe e Israel contra os amonitas)? Que ele saiba, então, que Deus está lhe enviando Natã.

Terceiro, Natã se aproxima de Davi com uma história. Na versão New American Standard Bible, o texto não é apenas uma história, é uma espécie de poesia. Na minha cópia da NASB, as palavras estão formatadas de forma a se parecer com um dos salmos.2 Só agora percebi isso, mas se esse for o caso, significa que Natã já veio preparado para falar com Davi. Sob inspiração divina, estou certo de que o profeta poderia recitar uma poesia sem tê-la escrito previamente, mas essa não me parece a regra. Natã já chega bem preparado. Ele não está “inventando na hora”; está contando uma história, uma história muito importante, com um mensagem muito importante para Davi.

Quarto, a história contada por Natã é uma “história de ovelha”, a qual pode ser facilmente compreendida por um pastor e com a qual ele prontamente se identificar. Davi foi pastor de ovelhas quando jovem, como sabemos pelo(s) livro(s) de Samuel (ver I Samuel 16:11; 17:15, 28). Será que ele, naquelas dias e noites solitários, não pegou uma ou mais ovelhas do seu rebanho como animal “de estimação”? Será que essa ovelha não comeu e bebeu com ele? Provavelmente sim.

Quinto, a história contada por Natã não “se enquadra”, isto é, não “corresponde exatamente” à história do pecado de Davi com Bate-Seba e Urias. A ovelha (a qual pode ser comparada a Bate-Seba) foi morta, não seu dono (o qual pode ser comparado a Urias3). Creio ser importante frisar esse fato, a fim de que nossa interpretação não vá além do verdadeiro sentido da história.

Afinal, por que uma história? Por que não deixar simplesmente que Davi dê com os burros n’água? Muitos dirão ser esta uma tática habilmente empregada para fazê-lo se pronunciar sobre o crime antes de perceber ser ele mesmo o criminoso. Acho que é verdade. Ele fica furioso com a falta de compaixão do “homem rico”. Se pudesse, ele o condenaria à morte (!). E pela cordeirinha, a justiça requeria uma restituição de quatro vezes. Tendo Davi se comprometido com o princípio, Natã agora pode aplicá-lo ao próprio rei.

Pelo que conheço da Bíblia, no entanto, há mais coisas nessa história. Nosso Senhor sempre contava histórias. Qual a razão disso? Estaria Ele tentando “facilitar as coisas”? Estaria tentando adaptar Seus ensinamentos aos que talvez tivessem alguma dificuldade para entendê-los? Mas nosso Senhor também contou histórias para os doutores da lei, os quais seriam capazes de acompanhar uma linguagem mais técnica. Refiro-me especialmente à história do Bom Samaritano, registrada em Lucas 10. Um intérprete da Lei levantou-se e fez uma pergunta a Jesus, não com o intuito de aprender, mas na esperança de colocá-lO em má situação diante do povo. Ele perguntou: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Jesus devolveu-lhe a pergunta. Esse homem era perito na Lei de Moisés, o que ele ensinava? O homem respondeu: “AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, DE TODO O TEU CORAÇÃO, DE TODA A TUA ALMA, DE TODAS AS TUAS FORÇAS E DE TODO O TEU ENTENDIMENTO; E: AMARÁS O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO.” (Lucas 10:27) Com efeito, Jesus respondeu: “Respondeste corretamente; faze isto e viverás.” Esse era o problema com a lei, ninguém poderia cumpri-la sem falhar, e por isso ninguém poderia ir para o céu por boas obras.

O intérprete da Lei sabia que estava em maus lençóis e tentou sair pela tangente (péssima escolha). Ele (como muitos advogados daquela época e de agora) pensou que poderia se livrar do problema discutindo em linguagem técnica. Por isso, fez outra pergunta a Jesus: “Quem é o meu próximo?” Jesus não discutiu com o homem nos termos dele. Ele não estava disposto a discutir sobre a palavra no texto original. Em vez disso, ele contou uma historinha, a história do Bom Samaritano. Quando terminou, Jesus lhe fez uma pergunta simples:

“Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:36-37)

O intérprete da Lei se deu mal; a história não continha detalhes técnicos sobre os quais ele pudesse tergiversar. A questão foi esclarecida, com pouca margem para discussão. Sem saída, ele sabia que a definição funcional de “próximo” feita por Jesus estava absolutamente certa. Ele não tinha para onde fugir. A história era uma armadilha; ia direto ao ponto ao mesmo tempo que evitava detalhes sem importância sobre os quais se pudesse debater durante horas. Não foi o intérprete da Lei que colocou Jesus em má situação com suas minúcias, foi Jesus que o colocou, com uma simples historinha.

Essa é uma das razões pelas quais Natã conta a história. Não é para dar uma cara nova ao pecado de Davi; mas para expor sua natureza, de forma que não seja negado. Tendo feito isso muito bem, Natã, então, lida com o pecado propriamente dito.

A história contada por Natã é muito simples. Dois homens vivem na mesma cidade; um é muito rico e o outro, muito pobre. O rico tem rebanhos e gado4. Ele não tem apenas um grande rebanho e uma grande manada de gado; ele tem muitos rebanhos e muitas manadas. Poderíamos dizer que o homem é “podre de rico”. O pobre nada mais tem do que uma cordeirinha, a qual é “de estimação”. Ele a comprou e criou em sua própria casa. O animalzinho passa muito tempo no seu colo, sendo carregado para cima e para baixo. Ele vive dentro de casa, não fora, e é alimentado pelo homem à sua mesa, comendo do seu prato e bebendo do seu copo. Alguns talvez nem consigam imaginar uma cena dessas. É um pensamento horroroso. Como alguém pode tratar um animal dessa forma? Só tenho uma resposta: Obviamente, quando chegam em casa, nunca foram recepcionados por dois gatos (os quais, para desgosto da minha esposa, estão por toda parte — e às vezes — em cima da mesa) e quatro cachorros (nenhum dos quais é nosso, tecnicamente).

O rico recebe um convidado inesperado e, como anfitrião, precisa dar-lhe de comer. Ele resolve preparar um cordeiro, mas não quer sacrificar nenhum animal do seu rebanho. Em vez disso, ele toma a cordeirinha do homem pobre, mata-a e a serve ao convidado, não sofrendo, dessa forma, nenhuma perda pessoal. Ele não só deixa o homem pobre (ou melhor, obriga-o a) arcar com a sua despesa, como o priva do seu único animal, o qual era como um membro da família.

Espero não estar tentando “enquadrar” a história quando ressalto os mesmos pontos enfatizados por ela — o relacionamento afetivo e amoroso entre o homem pobre e sua cordeirinha “de estimação”. Considerando isso, juntamente com as outras coisas que lemos sobre Urias, Bate-Seba e Davi, só posso concluir que o autor deixa muito claro o fato de Urias e Bate-Seba se amarem muito. Quando Davi “toma” Bate-Seba para levá-la ao seu quarto naquela noite fatídica, e depois a toma como esposa, após o assassinato de Urias, ele a toma do homem amado. Bate-Seba e Urias eram devotados um ao outro, o que acrescenta peso aos argumentos sobre ela não ter participado voluntariamente dos pecados de Davi. Isso também ressalta o caráter de Urias, alguém tão chegado a ela, tão pressionado pelo rei para ir ter com ela, mas que mesmo assim se recusa a fazê-lo por causa dos seus princípios.

Davi não percebe o que está por vir. A história de Natã o deixa furioso. Aquele Davi que uma vez esteve prestes a dar cabo de Nabal e de todos os homens da sua família (I Samuel 25), agora está suficientemente furioso para fazer o mesmo com o vilão da história de Natã. Em alguns aspectos, sua reação é meio exagerada. Ele me faz lembrar um pouco de Judá, em Gênesis 38, quando descobre que Tamar, sua nora, está grávida sem ser casada. Sem perceber que é o pai da criança em seu ventre, ele está pronto para vê-la queimar na fogueira. Como é irônico ver pessoas culpadas de um determinado pecado sendo tão intolerantes com esse mesmo pecado na vida dos outros.

Davi identifica dois males cometidos pelo homem rico dessa história fictícia. Primeiro, o homem roubou um cordeiro, pelo qual a lei prescrevia uma restituição de quatro vezes (Êxodo 22:1). Segundo, para ele, há um pecado maior, ou seja, a total falta de compaixão do homem. Davi fica furioso porque ele roubou e matou o animal de estimação do homem pobre. Davi ainda não viu a ligação com a sua própria falta de compaixão por roubar a companheira amada de um homem pobre, a esposa de Urias, Bate-Seba. A morte de Urias, com toda certeza, também é um ato decorrente da falta de compaixão. O toque final na demonstração de indignação de Davi é o caráter religioso que ele dá às palavras “Tão certo como vive o SENHOR” (verso 5).

A Acusação Formal feita por Natã
(12:7-12)

“Então, disse Natã a Davi: Tu és o homem. Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Eu te ungi rei sobre Israel e eu te livrei das mãos de Saul; dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor em teus braços e também te dei a casa de Israel e de Judá; e, se isto fora pouco, eu teria acrescentado tais e tais coisas. Por que, pois, desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amom. Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.”

Davi acaba de acionar a armadilha contra si mesmo e Natã está prestes a informá-lo disso. A primeira coisa que Natã faz é acusá-lo dramaticamente: “Tu és o homem.” Num silêncio estonteante, Davi ouve as acusações contra si. Ele só pensa em termos dos males cometidos pelo rico contra o próximo, roubando-o e privando-o da companhia da sua ovelha. Colocando de outra forma, Davi só pensa em termos de criminalidade e comportamento socialmente inaceitável, não em termos de pecado. Nos versos 7 a 12, Natã chama sua atenção para o pecado cometido contra Deus e para as consequências pronunciadas por Ele em decorrência disso. Observe a repetição do pronome “Eu” nos versos 7 e 8: “Eu...

·         … te ungi rei

·         … te livrei das mãos de Saul

·         … dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor

·         … te dei a casa de Israel e de Judá

Deus fala com Davi como se este tivesse se esquecido dessas coisas, ou melhor, como se levasse o crédito por elas. Todas as suas posses lhe foram dadas por Deus. Teria se passado tanto tempo assim, desde a sua juventude como um humilde pastor de ovelhas, que ele tinha se esquecido? Davi é “rico” porque Deus o tornou rico. E se ele acha que não é rico o suficiente, Deus lhe dará ainda mais. Davi começou a se apegar à suas “riquezas” em vez de se apegar ao Deus que as deu a ele.

Receio que alguns de nós tendam a perder este ponto. Lemos a história de Natã e ouvimos sua repreensão como se o pecado de Davi fosse meramente sobre sexo. Davi realmente comete um pecado sexual quando toma Bate-Seba e se deita com ela, sabendo que ela é casada. Mas esse pecado sexual é apenas sintomático, de acordo com Natã, e portanto, de acordo com Deus. Deus não está só dizendo: “Toma vergonha, Davi. Veja todas as mulheres e concubinas com quem você poderia ter dormido. E, se nenhuma delas te agradasse, você poderia ter arranjado outra, uma que pelo menos não fosse casada.” Natã lhe conta a história do homem rico e do homem pobre. Deus lhe diz, por intermédio de Natã, que foi Ele quem lhe deu todos os seus bens (suas riquezas). Deus até mesmo aumentaria suas riquezas (não só o harém). As posses de Davi passaram a possuí-lo, esse foi o problema. Ele está tão “possuído” por suas riquezas que não está disposto a gastá-las. Ele quer cada vez “mais”, por isso começa a pegar aquilo que não é seu, em vez de pedir ao divino Doador de todos os seus bens.

Agora podemos entender porque Davi escreveu estas palavras no Salmo 51:4: “Pequei contra ti, contra ti somente.”

Antes de mais nada, o pecado de Davi é contra Deus. Ele deixou de humildemente reconhecer Deus como o Doador de todas as suas posses. Ele deixou de olhar para Deus como Provedor de todas as suas necessidades — e desejos. Davi não só deixou de pedir a Deus para suprir suas necessidades, como também desobedeceu Seus mandamentos quando cometeu adultério e assassinato. O pecado de Davi contra Deus se manifesta nos pecados cometidos contra os outros. Natã faz um resumo de tudo isso, empregando repetidamente o pronome “tu” (ou “te”):

(tu) desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele?

A Urias, o heteu, (tu) feriste à espada.

e a sua mulher (tu) tomaste por mulher.

depois de (tu) o matar(es) com a espada dos filhos de Amom.

Natã, então, anuncia as consequências irreversíveis que recairão sobre Davi e sua família por causa do seu pecado:

Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher.

Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti,

tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo

o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol.

Porque tu o fizeste em oculto,

mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.

O mal cometido por Davi contra outras pessoas é clara desobediência contra a Palavra revelada de Deus. Davi é “um homem segundo o coração de Deus”, mas, neste caso, ele “desprezou a palavra do SENHOR”. Embora Davi realmente se arrependa e seu pecado seja perdoado, as consequências não serão revertidas. As consequências são justas; são adequadas ao crime cometido por Davi. Ele usou a espada dos amonitas para matar Urias, por isso, a espada não se afastará da sua casa. Ele tomou a esposa de outro homem, por isso, suas esposas serão tomadas por outro homem, alguém da sua própria casa.

As consequências não são apenas apropriadas, elas também são intensificadas. Davi tomou a esposa de um homem; outro tomará várias de suas esposas. Isso acontecerá quando Absalão se rebelar contra o governo do pai e, temporariamente, assumir seu trono. Seguindo o conselho de Aitofel, ele armará uma tenda no telhado do palácio de Davi (de onde este olhou pela primeira vez para Bate-Seba) e ali, à vista de todo Israel, se deitará com as concubinas de Davi, como uma declaração de que assumiu o trono e tudo o que veio com ele (II Samuel 16:20-22). Embora Davi tente cometer seus pecados em oculto, Deus cuida para que as consequências sejam bem visíveis.

Conclusão

Como todos sabem, a história continua, mas nós vamos parar por aqui, depois de ter analisado a repreensão divinamente orientada de Natã a Davi. Na próxima lição meditaremos sobre o arrependimento de Davi e as consequências imediatas do seu pecado. Contudo, vamos concluir esta mensagem considerando algumas lições muito importantes que devemos aprender com o pecado de Davi e a repreensão de Natã.

1. Natã é um profeta, mas é também exemplo de um amigo fiel. Provérbios coloca isso desta forma:

“Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos.” (Provérbios 27:6)

Não sei quantas pessoas conheço que se recusaram a repreender ou mesmo advertir alguém próximo a elas por acharem que serão mais amigas se não os censurarem. Um bom amigo não nos deixa continuar no caminho da destruição. Natã estava agindo como profeta, mas também como amigo. Quem dera tivéssemos mais profetas-amigos. Quem dera fôssemos um profeta-amigo para quem está no caminho da destruição.

2. Deus vê nosso pecado mesmo quando os homens não veem. Nossos pecados nunca passam despercebidos por Deus. Os ímpios se recusam a acreditar que Ele veja seu pecado, ou se acreditam, acham que Ele nunca irá tomar uma atitude: “E dizem: Como sabe Deus? Acaso, há conhecimento no Altíssimo?” (Salmo 73:11; veja também II Pedro 3:3 e ss).

Deus pode demorar para julgar ou disciplinar, mas Ele nunca ignora o pecado.

“Então, Moisés lhes disse: Se isto fizerdes assim, se vos armardes para a guerra perante o SENHOR, e cada um de vós, armado, passar o Jordão perante o SENHOR, até que haja lançado fora os seus inimigos de diante dele, e a terra estiver subjugada perante o SENHOR, então, voltareis e sereis desobrigados perante o SENHOR e perante Israel; e a terra vos será por possessão perante o SENHOR. Porém, se não fizerdes assim, eis que pecastes contra o SENHOR; e sabei que o vosso pecado vos há de achar.” (Números 32:20-23, ênfase minha).

3. Deus não é obrigado a nos impedir de pecar. Algumas vezes, as pessoas justificam seus pecados dizendo: “Tenho orado a Deus e pedido para Ele me deter se isso for errado...” Quando Deus não as detém, elas acabam presumindo que aquilo era certo. Deus poderia ter detido Davi depois que ele decidiu ficar em casa e não ir à guerra, ou quando começou a desejar a esposa de Urias, ou após ter cometido adultério, mas, durante algum tempo, Ele o deixou persistir no pecado. Deus até mesmo o deixou safar-se do assassinato de Urias, temporariamente. A Palavra de Deus proibia os pecados praticados por Davi: cobiça, adultério e assassinato. A Palavra de Deus ordenava que ele parasse, mas ele não parou. Deus permitiu sua persistência no pecado durante um determinado período, mas não indefinidamente. Deus deixou o pecado de Davi completar seu ciclo e desabrochar totalmente a fim de que ele (assim como nós) pudesse perceber como o pecado cresce (veja Gênesis 15:12-16).

4. O pecado de Davi não serve como desculpa para pecarmos, mas como alerta sobre a nossa capacidade de pecar. Tenho ouvido esta frase muito mais vezes do que gostaria: “Bem, até Davi pecou...” Na verdade, isso significa: “Como esperam que eu não peque? Se até Davi, tão espiritual como ele era, pecou, porque acham que eu poderia fazer melhor?”

Se olharmos atentamente para a Bíblia, veremos porque histórias como essa foram escritas. Não foi para nos incentivar a pecar, mas para nos advertir sobre os perigos do pecado e, assim, nos encorajar a evitá-lo a qualquer custo. Em I Coríntios 10:1-10, depois de fazer um resumo dos pecados da nação de Israel no deserto, Paulo aplica a lição da história aos coríntios, e, dessa forma, a nós:

“Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado.  Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar.” (I Coríntios 10:11-13; ver também Romanos 15:4-6)

Permitam-me ir um pouco mais além neste assunto. Davi não planejou pecar, como muitos desejam fazer, usando o seu pecado como desculpa. Davi “caiu” em pecado; aqueles que desejam usar o pecado de Davi como desculpa, “mergulham de cabeça”. Existe uma grande diferença. Além disso, o pecado na vida de Davi foi uma exceção, não a regra:

“Porquanto Davi fez o que era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua vida, senão no caso de Urias, o heteu.” (I Reis 15:5, ênfase minha).

5. O pecado de Davi, como todo pecado, não vale a pena. É incrível, mas muitas pessoas me perguntam qual seria a penalidade para um determinado pecado, planejando cometê-lo e depois ser perdoado. Há quem brinque com isso, pensando que, se pecarem talvez sofram algumas consequências, mas Deus terá de perdoá-los; e assim, seu futuro eterno é certo e garantido, não importa o que façam, mesmo intencionalmente. Sei do caso de um líder de uma igreja que abandonou a esposa e fugiu com a mulher de outro homem, planejando se arrepender depois e ser recebido de volta à comunhão. Isso é pecado deliberado; e do tipo mais grave e mais perigoso. Nesta mensagem, em vez de abrir agora a “caixa de Pandora”, permitam-me dizer simplesmente: “Ninguém resolve pecar e depois sai por aí com um sorriso no rosto.”

Antigamente, eu lecionava em uma escola. De tempos em tempos, algum aluno desordeiro era chamado ao gabinete do Diretor. Nunca vou me esquecer do dia em que um dos meus alunos foi chamado à sua sala e voltou com um sorriso atrevido no rosto. Um outro aluno reclamou abertamente: “O senhor não vai dar um jeito nisso? Ele foi parar na Diretoria e ainda voltou sorrindo!” Meu jovem aluno tinha toda razão. Ser chamado ao gabinete do Diretor para ser disciplinado deveria produzir arrependimento e respeito, não um sorriso. Nas poucas vezes em que achei necessário usar a “vara” da disciplina, não foi porque eu queria que o aluno voltasse à sala de aula com um sorriso no rosto, e nenhum voltou (inclusive o filho do Diretor, devo acrescentar, o qual nem estava na minha classe).

Nunca conheci um cristão que tenha decidido pecar e, depois de tudo acabado, tenha sentido que valeu a pena. O pecado de Davi e suas consequências não devem nos incentivar a fazer o mesmo, mas nos motivar a evitá-lo a todo custo. As consequências negativas do pecado são muito mais pesadas do que seus prazeres momentâneos. O pecado nunca vale a pena, mesmo para quem é perdoado.

6. Foi a história da morte de uma cordeirinha que revelou a imensidão do pecado de Davi. É a história da morte do Cordeiro de Deus que revela a imensidão dos nossos pecados. Não é incrível que Davi esteja tão cego por seu próprio pecado a ponto de não conseguir enxergá-lo? Só pela história da morte de um animal de estimação de um homem pobre ele pôde compreender a imensidão do seu próprio pecado. Ele só conseguiu enxergar quando ouviu a história do que parecia ser o pecado de outra pessoa.

É exatamente isso o que a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo faz por nós. Nós estávamos mortos em nossos delitos e pecados (Efésios 2:1-3). Estávamos cegos pela imensidão dos nossos pecados (II Coríntios 4:4). A vinda do nosso Senhor Jesus Cristo à terra, Sua vida perfeita, Sua morte sacrificial, Sua ressurreição física literal, são todos acontecimentos históricos. Mas o evangelho também é história, uma história verdadeira. Quando lemos os Evangelhos do Novo Testamento, lemos uma história muito mais dramática, incrível e perturbadora do que a história contada por Natã a Davi. Quando vemos a forma como os incrédulos trataram nosso Senhor, ficamos chocados, horrorizados e furiosos. Gostaríamos de gritar: “Eles mereciam morrer!” E mereciam mesmo. Mas o evangelho não foi escrito só para nos mostrar os seus pecados — das pessoas que ouviram pessoalmente Jesus e gritaram “Crucifica-O, Crucifica-O” — o evangelho foi escrito para que o Espírito de Deus diga ao nosso coração “Tu és o homem”. Quando vemos a maneira como os homens trataram Jesus, vemos a maneira como nós O trataríamos, se estivéssemos lá. Vemos como O tratamos hoje. E isso, meu amigo, revela a imensidão do nosso pecado, e a imensidão da nossa necessidade de arrependimento e perdão.

O evangelho de Jesus Cristo é “boa nova”. A “boa nova” é que a morte de nosso Senhor, a qual revela a imensidão do nosso pecado, é a imensa obra de Deus pela qual Ele pode e irá nos perdoar desses pecados. Por Sua morte sacrificial, Jesus morreu em nosso lugar e pagou a pena pelos nossos pecados. Ele os carregou sobre Si na cruz! E, crendo na Sua morte, sepultamento e ressurreição, morremos para o pecado e ressuscitamos para a novidade da vida eterna, em Cristo. O evangelho, antes de mais nada, deve nos conduzir ao reconhecimento da magnitude do nosso pecado, e da nossa culpa, para depois nos levar à grandeza da graça de Deus em Jesus Cristo, pela qual somos perdoados. Vocês já perceberam como seus pecados são grandes diante de um Deus santo? Então, digo-lhes que experimentem como é grande a salvação propiciada por esse mesmo Deus, por meio da morte, sepultamento e ressurreição do Senhor Jesus Cristo. Que Salvador!

“Quanto ao perverso, as suas iniquidades o prenderão, e com as cordas do seu pecado será detido.” (Provérbios 5:22)

“Mas o que peca contra mim violenta a própria alma. Todos os que me aborrecem amam a morte.” (Provérbios 8:36)

“O que encobre as suas transgressões jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa alcançará misericórdia.” (Provérbios 28:13)

Tradução: Mariza Regina de Souza


1 Nota da tradutora: trocadilho intraduzível para o português.

2 Devo dizer também que outras versões parecem não seguir o padrão da NASB ao tratar essas palavras como poesia.

3 Nota da tradutora: Provavelmente Mr. Deffinbaugh se enganou ao escrever “pode ser comparado ao dono pobre da ovelha”, pois não faz sentido comparar alguém a ele mesmo.

4 A expressão “rebanhos e gado” ocorre com bastante frequência na Bíblia. O termo “rebanho” se refere aos animais menores, como ovelhas e cabras. “Gado” se refere aos animais maiores, como bois e vacas.

12. Arrependimento Verdadeiro (II Samuel 12:1-13)

Ver Salmos 32 e 51

Introdução

No final do meu primeiro ano de seminário, arranjei um emprego de verão um tanto diferente. Fui contratado para dar aulas de história e psicologia na escola secundária de uma prisão de segurança média em minha cidade natal. Meu tio trabalhava lá como guarda e diversos funcionários e membros do corpo do docente da prisão tinham sido meus professores quando eu estava no colegial (até o Diretor da minha escola era o Diretor da escola da prisão). Um dia, um de meus colegas me contou uma história interessante e meio divertida sobre uma de suas experiências como professor naquele local.

A penitenciária procurava reabilitar os internos dando-lhes a oportunidade de completar o segundo grau e receber seu diploma. A escola da prisão ficava em uma das melhores instalações que já vi1. As classes raramente tinham mais de 20 alunos e um guarda ficava sempre a postos do lado de fora, “só por precaução...” Uma das regras da escola era a proibição de dormir na sala de aula. Certo dia, enquanto meu colega passava um filme para sua classe, um de seus alunos ficou muito sonolento. O rapaz nem tentou disfarçar, colocou a cabeça na carteira e dormiu. Conforme andava pela classe, meu amigo reparou no dorminhoco, deu a volta por trás da sua carteira e deu-lhe gentilmente um tapinha no ombro, continuando a andar. Pouco depois, ele passou novamente pelo rapaz, que continuava a dormir a sono solto. Meu amigo deu-lhe outro tapinha. Na terceira vez, ele pegou o camarada pelos ombros e deu-lhe uma sacudidela (ele não era do tipo violento). Desta vez o moço acordou, deu um pulo, voltou-se para ele e ameaçou: “Se fizer isso de novo, eu vou te pegar!” Meu amigo se afastou, foi em direção à porta e acenou para o Sr. Look, o guarda de plantão (que era sargento da Marinha e sabia como lidar com esses casos). O aluno foi escoltado até o “buraco” (solitária).

Um mês depois, o rapaz saiu da solitária e voltou para a classe. No primeiro dia da aula do meu amigo, ele foi “se desculpar”. “Sinto muito pelo que eu disse no outro dia”, explicou, “mas acho que o senhor não me entendeu. O que eu disse foi: ‘se fizer isso de novo, posso te pegar.’” Isso, meu amigo, não é arrependimento.

O “arrependimento” desse homem era banal demais. Arrependimento verdadeiro é uma coisa rara, até mesmo na Bíblia. Em nosso texto, Davi disse a Natã: “pequei...” Essas palavras (ou suas equivalentes) podem ser encontradas em outros lugares das Escrituras, mas nem sempre com a mesma sinceridade. Faraó, por exemplo, disse duas vezes a Moisés: “pequei...” (ver Êxodo 9:27, 10:16-17). É óbvio que seu arrependimento não era sincero. Balaão foi interceptado pelo Anjo de Deus quando ia ao encontro de Balaque, mas ao perceber que por pouco tinha escapado da morte nas mãos do Anjo, ele exclamou: “pequei...” (Números 22:34). Outros textos bíblicos posteriores nos informam que esse arrependimento também era falso. Judas, o traidor de nosso Senhor, confessou seu pecado, mas também não se arrependeu realmente (Mateus 27:4). Portanto, podemos concluir que dizer simplesmente “pequei” não significa que o arrependimento seja genuíno. 

Certamente esse era também o tipo de arrependimento de muita gente que procurou João Batista para ser batizada: 

“Então, saíam a ter com ele Jerusalém, toda a Judéia e toda a circunvizinhança do Jordão; e eram por ele batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados. Vendo ele, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento; e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Mateus 3:5-9)

João Batista falava sobre o verdadeiro arrependimento porque via muitas pessoas cujo “arrependimento” estava longe de ser sincero. Atualmente, essa questão também é muito pertinente. É bem verdade que alguns se excedem e estabelecem suas próprias exigências legalistas como único “fruto digno de arrependimento”. Por outro lado, alguns ensinam que o arrependimento é simplesmente uma questão de “concordar com Deus”. Essa definição, no entanto, resulta em uma mera assunção de culpa, de forma a minimizar o peso e o horror do pecado, levando a pessoa a repeti-lo. Além disso, vemos as confissões chorosas dos tele evangelistas e de outros líderes proeminentes ditos cristãos e nos perguntamos se eles estão verdadeiramente arrependidos. Creio que o sentimento de Davi é genuíno e nos dá um exemplo do verdadeiro arrependimento.

Sei que estou restringindo nosso estudo a uma porção bem pequena do nosso texto — a apenas um verso, para ser mais preciso. Nosso foco, no entanto, não é tão restrito quanto parece. Gostaria de considerar II Samuel 12:13 à luz da vida de Davi após essa confissão, bem como à luz da sua confissão ampliada em dois dos salmos que tratam especificamente do seu pecado relacionado a Urias e Bate-Seba: Salmos 32 e 51. Prestemos muita atenção, para vermos, então, como é o genuíno arrependimento.

Características Comuns Do Pseudo-Arrependimento 

Já citei alguns exemplos de falso arrependimento na Bíblia, mas vamos insistir um pouco mais nesse assunto para que a sinceridade de Davi seja vista em contraste com a falsidade dos outros. Para ser mais específico, gostaria de chamar sua atenção para Saul, o qual já havia proferido três vezes a mesma expressão “pequei...” (I Samuel 15:24, 30; 26:21). O que há com o “arrependimento” de Saul que o deixa tão longe de ser sincero? Vamos fazer uma pausa para refletir sobre seu “arrependimento”.

1) A primeira reação de Saul à repreensão profética é o silêncio. Devo ressaltar que, embora Saul pareça arrependido em I Samuel 15, assim como no capítulo 26, esse “arrependimento” é muito fraco e tardio demais. Isso deveria ter ocorrido logo no capítulo 13. Ali, Israel fora invadido em massa pelos filisteus. O exército de Saul nada mais era do que de um punhado de homens, os quais estavam rapidamente desertando. Mesmo tendo sido instruído a esperar por Samuel, o qual ofereceria os sacrifícios (I Samuel 10:8), Saul achou que o tempo estava se esgotando e ele não podia esperar mais. Por isso, ofereceu ele mesmo o holocausto, só para ver Samuel chegando assim que terminou. Quando Samuel o censurou por esse ato de rebelião contra Deus, Saul tentou se defender, afirmando ter agido adequadamente, dadas as circunstâncias. Samuel não aceitou suas desculpas e o repreendeu por sua tolice e desobediência, dizendo-lhe que isso lhe custaria o reino. A resposta de Saul foi o silêncio. Eis um homem a quem acabaram de informar que seus dias como rei de Israel estavam contados e que, em vez de confessar seu pecado, separou-se de Samuel em silêncio.

2) A segunda reação de Saul à repreensão profética de Samuel é resistente, e seguida de uma confissão relutante. Em I Samuel 15, Saul recebe ordem de Deus, por intermédio de Samuel, para aniquilar os amalequitas e seu gado como cumprimento do juízo divino (15:1-3). Saul obedece parcialmente, retendo o melhor do gado e poupando a vida de Agague, o rei amalequita. Quando Samuel chega, Saul audaciosamente se aproxima dele, pronunciando uma bênção e afirmando ter cumprido a ordem de Deus (15:13). Ouvindo o balido das ovelhas que foram poupadas, Samuel não se deixa impressionar pela saudação de Saul. Sentindo o desprazer de Samuel, Saul rapidamente começa a arranjar desculpas, jogando a culpa sobre o povo e insistindo que o gado fora poupado para ser oferecido como sacrifício2. Mesmo depois da repreensão de Samuel (algo que soa bem parecido com as repreensões a Davi em II Samuel 7:8-9 e 12:7-8), Saul ainda nega sua culpa, afirmando que “deu ouvidos à voz do Senhor” (I Samuel 15:20). Só depois de Samuel se recusar terminantemente a aceitar suas desculpas é que Saul finalmente confessa ter pecado (versos 24 e 30). Só posso chamar esse “arrependimento” de arrependimento relutante.

3) O arrependimento de Saul não assume a responsabilidade pelo pecado e tenta jogar a culpa nos outros. Como Adão e Eva, Saul tenta jogar a culpa pelo seu próprio pecado em outra pessoa (compare com Gênesis 3:11-13). Mesmo depois, no verso 24, ele ainda tenta se esquivar. Ele tenta convencer Samuel de que, embora tenha pecado, ele o fez devido à pressão do povo (15:15, 21, 24). 

4) Saul se arrepende numa tentativa de minimizar as consequências do seu pecado. Saul parece não ter nenhum interesse nas causas do seu pecado, ou na sua cura. Ele só se preocupa em minimizar seu sofrimento. Ele pede a Samuel para rapidamente perdoá-lo e então continuar (com a adoração!) como se nada tivesse acontecido. Ele quer que Samuel o acompanhe e o honre, para que ele não fique mal diante do povo (15:30). Um rótulo melhor para o “arrependimento” de Saul seria “controle de danos”.

5) O arrependimento de Saul tem vida curta. Para Saul não existe “fruto digno de arrependimento”, mudança de atitude ou atos que perdurem. Seu “arrependimento” não dura mais que uma fração de segundo. Assim que a pressão diminui e o perigo parece ter passado, ele volta a pecar, se não da mesma forma, de alguma outra. Em I Samuel 26:21, ele confessa a Davi ter pecado ao tentar tirar a vida dele, mas se Saul não tivesse sido morto em batalha, temos poucas dúvidas do que ele poderia ter feito a Davi se tivesse oportunidade (Lembre-se de que Davi não “voltou” com Saul, quando este lhe pediu. Davi o conhecia muito bem!). O arrependimento de Saul era passageiro.

Vamos fazer um resumo da sequência dos eventos que resultaram no pseudo-arrependimento de Saul em I Samuel:

·         Ele tenta justificar sua desobediência como se suas ações fossem ditadas pelas circunstâncias (uma espécie de “lei marcial” moral - 13:11-12);

·         Ele permanece em silêncio quando fica evidente que Deus não aceitará suas desculpas (13:15);

·         Ele procura redefinir sua desobediência, como se ela fosse justificada (15:13);

·         Ele procura lançar sobre o povo a culpa pelo seu pecado, tentando ainda justificar o “pecado” deles como desejo de prestar culto (15:15);

·         Ele diz que estava tentando obedecer a Deus, mas foi incapaz de controlar o povo, o qual pecou ao poupar alguns animais (embora ele omita qualquer menção à sua responsabilidade de matar Agague - 15:20-21);

·         Relutantemente ele admite ter pecado, mas insiste em dividir a culpa com os outros (15:24);

·         Ele tenta rapidamente se “arrepender” e ser perdoado, para poder “prestar culto” (15:25);

·         Ele busca desesperadamente minimizar as consequências do seu pecado, a fim de que não tenha de sofrer muito por causa dele (15:25-31).

Saul E Davi

Antes de nos voltarmos para o arrependimento verdadeiro de Davi, deixe-me fazer uma pausa momentânea para fazer algumas comparações entre ele e Saul. De diversas maneiras, tenho retratado Saul de uma forma bem sombria, mas talvez distorcida. Apesar de todas as suas falhas e pecados, o autor de I e II Samuel faz um relatório geral bastante decente sobre a sua administração: 

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Samuel 14:47-48) 

As comparações anteriores entre Saul e Davi (como, por exemplo, a reação de ambos a Golias) fizeram Saul parecer muito mau e Davi muito bom. À luz dos pecados de Davi descritos em II Samuel 11 e 12, Saul já não parece tão mau assim. Em lugar algum nós o vemos tomando a esposa de outro homem e matando seu marido. Embora ele tenha tentado tirar a vida de Davi, isso foi às claras, não às ocultas (como Davi fez com Urias, por intermédio de Joabe). Os pecados de Davi fazem Saul parecer um pouco melhor do que antes. Há, no entanto, uma coisa que distingue radicalmente os dois: Davi realmente se arrepende de seus pecados; Saul não. Davi era um homem segundo o coração de Deus. Isso não o isentava das falhas humanas, nem o afastava do pecado, mas resultava em arrependimento genuíno. À medida que estudarmos esse arrependimento genuíno, tentaremos identificar o que isso significa. 

Arrependimento Verdadeiro

Duas pequenas frases resumem o teor do capítulo 12. A primeira é dita por Natã: “Tu és o homem!” (verso 7). A segunda, por Davi: “Pequei contra o SENHOR.” (verso 13). É essa segunda afirmação e suas consequências que desejo explorar. Pense nas seguintes características do arrependimento de Davi, afirmadas de forma simples aqui, mas mais ampliadas nos Salmos 32 e 51, e evidenciadas em sua vida:

1) O arrependimento de Davi é resultado de um processo doloroso, cujo clímax é o confronto com Natã. Em nosso texto, a confissão de Davi vem logo após a narrativa do seu pecado. O próprio texto, porém, indica que o pecado de Davi durou um tempo considerável, um pouco mais de nove meses, de acordo com as estimativas normais. Embora o texto só nos informe o tempo e os acontecimentos que se passaram, o Salmo 32 nos dá uma visão muito oportuna sobre o trabalho de Deus no coração de Davi durante esse período: 

“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio. Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.” (Salmo 32:3-5)

Nesse salmo, Davi diz que calou o seu pecado. Ele sabia que estava errado, mas preferiu persistir no erro durante algum tempo. Ele não confessou o pecado e o resultado foi um “verdadeiro inferno”. É uma coisa incrível mas, embora o pecado tenha seus momentos de prazer (ver Hebreus 11:25), eles não são tão agradáveis para os cristãos quanto o são para os ímpios. A razão é devido ao Espírito de Deus habitar nos santos. Como o pecado entristece o Espírito habitando em nós, nosso espírito também não consegue sentir grande prazer nele. Não estou dizendo que não há prazer; mas que o prazer é minimizado pelas alegrias de obedecer a Deus e desfrutar da Sua comunhão. A agonia descrita por Davi finalmente o leva a quebrar seu silêncio e confessar seus pecados. Seu arrependimento é o resultado de um processo doloroso, na maior parte ocorrido dentro dele mesmo.

Na maioria das vezes é assim. Estou pensando no “arrependimento” dos irmãos de José, o qual foi provocado por ele mesmo por meio dos acontecimentos descritos em Gênesis 42 a 45. Seus irmãos haviam claramente pecado contra ele ao vendê-lo como escravo (talvez se sentissem aliviados pensando que, pelo menos, não o tinham matado, como planejaram a princípio). Ao ascender à segunda posição mais alta do Egito, José tinha poder para lidar com os irmãos como quisesse. Quando eles foram para lá para comprar grãos, ele podia muito bem ter se vingado, mas, em vez disso, preferiu conduzi-los ao arrependimento3. Para tanto, ele disfarçou sua identidade (se quisesse acertar as contas, ele lhes teria dito quem era). José orquestrou tudo de forma que os irmãos tivessem de tomar uma decisão quase idêntica àquela tomada anos antes. Ele colocou seus irmãos numa situação em que poderiam entregar Benjamin, abandonando-o como escravo no Egito, ou poderiam ficar juntos e tentar salvá-lo. Judá, que recomendara a venda de José como escravo, agora se oferecia como escravo para que Benjamim pudesse voltar para Jacó, seu pai idoso. Esse é um arrependimento verdadeiro. O arrependimento verdadeiro não só lamenta ter feito o que é errado (os irmãos de José lamentaram o mal feito a ele anteriormente — 42:21-22), mas não o repete se tiver chance para tal. José deu aos irmãos uma oportunidade e, dessa vez, eles decidiram agir corretamente. Arrependimento verdadeiro é sempre resultado de um longo e doloroso processo.

2) O arrependimento de Davi é expresso por uma confissão completa de culpa diante de Deus. A brevidade e a simplicidade da confissão de Davi são impressionantes. As confissões de Saul não eram simples, nem diretas. Hoje, ele teria um advogado (e um assessor de imprensa) para rascunhar suas palavras. Davi assume totalmente a responsabilidade por seus pecados; Saul procurava jogar a culpa nos outros ou, pelo menos, dividi-la com eles. Davi confessa o pecado como pecado, sem desculpas, sem acusar ninguém. Ele sabe que o pecado é contra Deus.

3) Davi leva seu pecado muito a sério. Saul sempre procurou minimizar seu pecado, fazendo-o parecer menos mau do que realmente era. Davi faz o oposto. Os Salmos 32 e 51 indicam que ele pensou muito sobre suas ações e, quanto mais pensava, mais abominável o pecado lhe parecia. Uma vez que os salmos foram preservados para o culto e para a posteridade, o pecado e a confissão de Davi se tornaram de conhecimento público. Em última análise, o pecado de Davi é contra Deus, contra Deus somente. Isso não diminui o mal causado a Urias e Bate-Seba. Pecado é quebrar as leis de Deus e, nesse sentido, todo pecado é contra Deus, pois quebra Suas leis. Os crimes são ofensas cometidas contras as pessoas, mas o pecado (nesse sentido específico) é apenas contra Deus, naquilo em que quebra Suas leis. Davi quebrou pelo menos três mandamentos. Ele cobiçou a mulher do próximo, cometeu adultério e cometeu assassinato (Êxodo 20:13, 14 e 17).

4) Davi não espera que suas boas obras compensem ou diminuíam sua culpa. Chegamos agora a um dos maiores erros de todos os tempos: a falsa presunção de que Deus pode ser dobrado. Geralmente se pensa (ou, mais precisamente, se presume) que os homens só precisam superar a quantidade de seus pecados com boas obras. Se fazem mais coisas “boas” do que “más”, acreditam que, no cômputo geral, são mais bons do que maus e, assim, mais qualificados para serem aceitos por Deus. Tais pessoas não compreendem que o tipo de justiça requerida por Deus é a obediência perfeita à Sua Palavra. Uma única falha é suficiente para nos tornar culpados e, por isso, dignos de morte:

“Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos.” (Tiago 2:10, ver também Mateus 5:19 e Gálatas 5:3) 

Davi foi um homem segundo o coração de Deus. Ele amava a lei de Deus. A mão do Senhor estava sobre ele em tudo o que fazia. No geral, sua vida foi um exemplo a ser seguido, estabelecendo um padrão pelo qual devemos nos esforçar. Seu pecado em relação a Urias e Bate-Seba foi uma clara exceção, não a regra:

“Porquanto Davi fez o que era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua vida, senão no caso de Urias, o heteu.” (I Reis 15:5) 

Se alguma vez houvesse um homem que poderia ter dito que suas boas ações superaram seus pecados, esse homem seria Davi. Mas, em vez disso, nós o encontramos confessando seu pecado, evitando qualquer referência a algo de bom que tenha feito e reconhecendo merecer a ira de Deus.

“Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar.” (Salmo 51:3-4, ênfase do autor) 

5) Davi não abusa da graça de Deus, esperando ser perdoado e ter a vida poupada. Existem pessoas que planejam e tencionam pecar, crendo que Deus é obrigado a perdoá-las, seja como for. Elas pensam que se fizerem algum ritual, recitarem alguma fórmula, serão automaticamente perdoadas e a vida poderá continuar como era. Quem abusa da graça de Deus em perdoar, por um lado confessa seu pecado, enquanto por outro planeja repeti-lo. Davi confessa seu pecado contra Deus e não pede nada. Ele sabe o que merece, e não pede para ser salvo.

Nesse sentido, ele é como o filho pródigo do Novo Testamento: 

“Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se.” (Lucas 15:17-24)

Esse filho tinha “bagunçado” tudo, e sabia disso. Ele tinha abandonado a família e gasto toda a sua herança. Ele não tinha direito a qualquer reivindicação como filho. No entanto, ele conhecia seu pai e sabia que ser seu escravo era melhor do que ser escravo de um empregador ímpio numa terra distante. Por isso, ele volta para casa, confessa o pecado e não espera nada além de se tornar um empregado. A reação do pai é de pura graça, pois dá ao jovem o que ele não merece. Davi, como o filho pródigo, sabe que não merece o perdão de Deus ou Suas bênçãos; por isso, ele nem mesmo pede. Apenas confessa o pecado. 

6) O arrependimento de Davi resulta em uma alegria renovada na presença e no serviço do Senhor e em um compromisso de ensinar aos outros a abandonar o pecado. Sabemos, pelo Salmo 51, que Davi orou para que sua alegria no Senhor fosse restituída (51:8, 12). Temos todas as razões para crer que seu pedido foi atendido. Além disso, ele também queria ensinar aos outros:

Então, ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti.” (Salmo 51:13) 

Davi agora ensinará pecadores como um pecador arrependido. Seu ensino procurará fazer com que eles abandonem seus pecados. Como essa atitude é diferente da atitude dos ímpios, que procuram seduzir os outros a seguir seu exemplo!

“Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.” (Romanos 1:32) 

Lembro-me de Simão Pedro, cuja negação foi predita por nosso Senhor, juntamente com estas palavras de esperança:

“Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos.” (Lucas 22:31-32) 

Pedro era arrogante, impaciente e impulsivo antes da crucificação e antes de negar o Senhor. Depois de ter falhado miseravelmente e de ter recebido a graça de Deus, ele foi restaurado. Foi aí que seu ministério realmente começou. De certa forma, Deus usa o nosso pecado para instruir outras pessoas. Talvez seja quando elas observam os resultados dolorosos do nosso pecado (Provérbios 19:25) ou quando veem a restauração e o profundo senso da graça de Deus produzidos na vida do pecador arrependido e restaurado.

7) O arrependimento de Davi, divinamente operado por Deus, produz frutos dignos de arrependimento. Deus responde ao arrependimento de Davi com graça, e assim Davi reage com graça para com aqueles que lhe fazem mal e se arrependem. Quando Absalão se rebela contra ele e está prestes a tomar seu reino, Davi foge de Jerusalém junto com seus seguidores. Enquanto ele deixa a cidade, um homem chamado Simei sai para amaldiçoá-lo e atirar-lhe pedras (II Samuel 16:5-8). Abisai quer cortar a cabeça de Simei, mas Davi não permite. Quando Davi volta a Jerusalém, uma das pessoas que sai ao seu encontro para saudá-lo é Simei, o qual confessa ter pecado ao amaldiçoá-lo e apedrejá-lo (II Samuel 19:16-20).

Abisai novamente quer executar Simei e, desta vez, ele tem um motivo bíblico. Ele chama a atenção para o fato de Simei ter amaldiçoado Davi, rei de Israel. A lei de Moisés proibia que se amaldiçoasse os líderes do povo (Êxodo 22:28). Tecnicamente, ou melhor dizendo, legalmente, Simei deveria ser morto, mas Davi o perdoa e poupa sua vida. Ao fazer isso, Davi o trata da mesma forma graciosa como Deus o tratou. Este incidente nos faz recordar da história contada por nosso Senhor sobre o servo incompassivo (ver Mateus 18:23-35), cuja enorme dívida é perdoada pelo rei, mas que se recusa a perdoar uma dividazinha do seu conservo. Quem realmente experimenta a graça de Deus, manifesta essa graça aos outros. A graça recebida por Davi em consequência do seu arrependimento é demonstrada ao “arrependido” Simei.4

8) O arrependimento de Davi produz frutos duradouros: ele abandona o pecado e não volta a repeti-lo. Há pessoas, como Faraó e Saul, que parecem se arrepender, mas cujo arrependimento é muito breve. Saul, com certeza, não demorou muito para retomar seus esforços para matar Davi; e Faraó, para resistir novamente à partida do povo de Israel. Isso aconteceu porque o arrependimento deles não foi verdadeiro. Na verdade, seu arrependimento foi só um caminho mais curto, um jeito de acabar com a dor do momento. Stuart Briscoe diferencia o falso do verdadeiro arrependimento desta forma:

“Lembro-me de um amigo na Inglaterra que me disse há muito tempo: ‘Arrependimento imaturo se desculpa pelo que fez. Arrependimento maduro lamenta pelo que é. Se só me desculpo pelo que fiz... então, vou fazer de novo.”5

Davi manifesta um “arrependimento maduro”. Ele vê seu pecado como realmente é e seu pesar é genuíno. Por isso, ele não o comete de novo.

Perdão Concedido
(12:13b) 

“Disse Natã a Davi: Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás.”  

Davi recebe aquilo que não ousou pedir. Que onda de alívio deve ter tomado conta dele ao ouvir as palavras de Natã: “Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás.” Quando reagiu à história contada por Natã sobre o roubo e a morte da cordeirinha, Davi condenou a si mesmo: 

“Então, o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto.” (II Samuel 12:5)

Legalmente, é claro, a lei de Moisés requeria do culpado na história de Natã apenas uma restituição quádrupla (Êxodo 22:1). Davi, porém, deveria ser morto, tanto pelo adultério quanto pela morte de Urias. 

Sob a lei de Moisés, Davi não tinha qualquer esperança. Ele era um homem condenado. Um homem morto! Como, então, é possível Natã lhe dizer que ele não morrerá? Repare que a promessa de que Davi não morrerá vem após a afirmação: “Também o SENHOR te perdoou o teu pecado.” A “salvação” de Davi da condenação divina, assim como a nossa, não vem pela guarda da lei, mas pela graça. E a razão para seu pecado ser perdoado é porque o Senhor o retirou.

Esse “retirar” do pecado não é algum truque de mágica, onde Deus simplesmente pega o pecado e o faz desaparecer. O pecado foi “retirado”. Creio que a declaração de Natã só pode ter sido feita com base na obra certa e segura de Cristo na cruz do Calvário, séculos mais tarde. Com base na obra de Cristo Davi é perdoado. Seus pecados foram suportados por nosso Senhor e, assim, a justiça de Deus foi satisfeita.

A expressão “foi retirado”, no verso 13 da versão NASB, pode ser literalmente interpretada como “fez morrer o seu pecado, como se pode ver na nota à margem do texto. Esse é um verbo comum e, muitas vezes, é usado no sentido de passar por ou passar sobre, como na época em que os israelitas atravessaram o Mar Vermelho. Aqui, no texto original, o termo está no modo causativo (Hifil), de forma que pode ser traduzido como “fez passar sobre ou fez morrer”. Tanto a nova versão King James quanto sua versão original traduzem o termo como “eliminado”. Creio que a palavra hebraica encontrada em nosso texto é utilizada em sentido aproximado em mais dois outros textos da Bíblia. (Nota: em todas as versões em português o texto é traduzido como “o Senhor perdoou o teu pecado”.)

“Então, se irou muito Abner por causa das palavras de Isbosete e disse: Sou eu cabeça de cão para Judá? Ainda hoje faço beneficência à casa de Saul, teu pai, a seus irmãos e a seus amigos e te não entreguei nas mãos de Davi? Contudo, me queres, hoje, culpar por causa desta mulher. Assim faça Deus segundo lhe parecer a Abner, se, como jurou o SENHOR a Davi, não fizer eu, transferindo o reino da casa de Saul e estabelecendo o trono de Davi sobre Israel e sobre Judá, desde Dã até Berseba.” (II Samuel 3:8-10) 

“Tirou o rei o seu anel, que tinha tomado a Hamã, e o deu a Mordecai. E Ester pôs a Mordecai por superintendente da casa de Hamã.” (Ester 8:2) 

Nos dois casos acima, o mesmo termo hebraico encontrado em nosso texto é usado para descrever a “transferência” de alguma coisa de uma pessoa para outra.6 O reino de Israel foi transferido de Saul para Davi (II Samuel 3:8-10). O anel do rei, dando a um subordinado autoridade para agir em seu nome, foi tomado de Hamã e dado a Mordecai. O anel foi transferido de uma pessoa para outra. O pecado de Davi foi perdoado e ele recebeu a garantia de que não morreria porque Deus havia transferido os seus pecados. Essa transferência ocorreu séculos depois, quando o “filho” de Davi, o Senhor Jesus Cristo, morreu na cruz do Calvário. Os pecados de Davi foram suportados por nosso Senhor, e Ele pagou a pena pelo que Davi tinha feito. Davi não iria morrer por causa do seu pecado porque Cristo estava destinado a morrer, pagando a pena por eles.

Natã fala dessa transferência como se fosse um acontecimento passado. Os profetas do Antigo Testamento muitas vezes usavam o verbo no passado para falar de um acontecimento futuro. Isso, ao que parece, servia para enfatizar a realização da profecia. Quando Deus promete fazer alguma coisa é como se disséssemos: “está praticamente feito”. Quando os profetas falavam das promessas de Deus para o futuro, quase sempre o faziam empregando o verbo no passado. Mesmo séculos antes do nascimento e da morte de Cristo, os homens foram perdoados com base nesse acontecimento. Davi foi perdoado porque Cristo morreu por seus pecados na cruz do Calvário. Essa é a única base para o perdão. Davi corretamente confessou que havia pecado contra Deus e Natã lhe assegurou que seu pecado contra Deus fora perdoado por Ele, por meio da morte sacrificial e substitutiva do Filho de Deus, Jesus Cristo. Essa sempre foi a única base para o perdão dos pecados.

Conclusão

Vamos concluir esta mensagem com vários princípios e áreas de aplicação.

1) Arrependimento é uma obra realizada por Deus que emprega o Seu Espírito, a Sua Palavra e o Seu povo, na medida em que são utilizados em resposta ao pecado. Não temos o poder de mudar os corações, só Deus tem. Nesse sentido, arrependimento é uma obra de Deus. No entanto, Deus prefere utilizar certos meios para alcançar Seus objetivos, e assim é com o arrependimento. Deus usa gente do Seu povo, como fez com Natã, para confrontar as pessoas com seus pecados. Ele usa a Sua Palavra e o Seu Espírito para convencer os pecadores de seus pecados. Hoje, da mesma forma que no passado, é mais fácil falar com os outros sobre o pecado de alguém do que falar com a própria pessoa. A Bíblia nos dá instruções muito claras quanto a nossa obrigação para com um irmão ou irmã que parece ter caído em pecado (ver Mateus 7:1-5; 18:15-20: I Coríntios 5:1-13: Gálatas 6:1-5; I Tessalonicenses 5:14; II Tessalonicenses 3:14-15; II Timóteo 2:23-26; Tito 3:9-11 e Tiago 5:19-20). Ninguém realmente quer ser um “Natã” para um “Davi”, mas este é o meio normal que Deus designou para lidar com o pecado, ou para encorajar o pecador a se arrepender. O ponto alto da amizade de Natã com Davi é quando ele lhe mostra o seu pecado, preparando o terreno para o seu arrependimento.

2) Arrependimento é o meio divinamente designado para obter o perdão dos pecados e desfrutar da comunhão com Deus. Pelos salmos de Davi fica claro que, quando ele pecou e tentou esconder seu pecado, houve uma ruptura no seu relacionamento com Deus. Ele perdeu a alegria da salvação e a certeza da presença de Deus em sua vida. Essas coisas voltaram quando ele se arrependeu. Arrependimento é uma expressão de fé e, por isso, é o meio designado por Deus para o pecador perdido receber o perdão de seus pecados e ter segurança da vida eterna, em comunhão com Ele.

“Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizia: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 3:1-2)

“Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 4:17)

“Admirou-se da incredulidade deles.  Contudo, percorria as aldeias circunvizinhas, a ensinar.   Chamou Jesus os doze e passou a enviá-los de dois a dois... Então, saindo eles, pregavam ao povo que se arrependesse” (Marcos 6-7a, 12). 

“Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e lhes disse: Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém.” (Lucas 24:45-47)  

“Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.” (Atos 2:38) 

“E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida.” (Atos 11:18)

“E, quando se encontraram com ele, disse-lhes: Vós bem sabeis como foi que me conduzi entre vós em todo o tempo, desde o primeiro dia em que entrei na Ásia, servindo ao Senhor com toda a humildade, lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram, jamais deixando de vos anunciar coisa alguma proveitosa e de vo-la ensinar publicamente e também de casa em casa, testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus [Cristo].” (Atos 20:18-21) 

Arrependimento é também um requisito para que os pecadores abandonem seus pecados e voltem à comunhão com Deus, quebrada pelo pecado. Por isso, Paulo procurou conduzir os santos de Corinto ao arrependimento:

“Agora, me alegro não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis. Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte.” (II Coríntios 7:9-10) 

No livro de Apocalipse, as cartas às sete igrejas da Ásia contêm um chamado ao arrependimento: 

“Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas.” (Apocalipse 2:5)

“Portanto, arrepende-te; e, se não, venho a ti sem demora e contra eles pelejarei com a espada da minha boca.” (Apocalipse 2:16)

“Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido, guarda-o e arrepende-te. Porquanto, se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti.” (Apocalipse 3:3)

“Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te.” (Apocalipse 3:19) 

Arrependimento não é uma palavra muito “legal” e, com certeza, também não é uma prática muito popular. Ele começa, creio eu, com um entendimento renovado da santidade de Deus e, dessa forma, com a compreensão da enormidade do nosso pecado. Isso leva a um modo inteiramente novo de encarar a vida, desta vez com os olhos de Deus, por meio das Sagradas Escrituras. O pecado se torna repulsivo, de forma que decidimos não repeti-lo. O resultado é um senso renovado da presença de Deus, uma nova alegria na nossa salvação e um desejo de dissuadir outras pessoas de pecar.

Em minha opinião, uma das características do genuíno avivamento é o arrependimento verdadeiro. Relacionamentos que pareciam irreversivelmente quebrados de repente são reconciliados. Casamentos mortos e moribundos são revitalizados. O amor perdido é novamente encontrado. O cativeiro que leva a um comportamento compulsivo e a um ciclo interminável de pecado é quebrado. É triste ver que, nesta época de tanta terapia, usemos termos psicológicos para descrever problemas espirituais para os quais a Bíblia tem uma definição e uma prescrição. Chegamos a aceitar a crença de que muitos problemas espirituais não podem ser revertidos ou radicalmente solucionados, mas que são necessários anos de terapia e mudança gradual, se houver. Esta não é a maneira como a Bíblia descreve a nossa reação ao pecado por meio do arrependimento. Arrependimento verdadeiro pode trazer, e realmente traz, mudanças radicais. Antes de tudo, precisamos nos voltar para a Palavra de Deus, precisamos chamar o pecado por seu nome bíblico e precisamos exortar as pessoas a reagir de forma bíblica: com arrependimento e fé.

Quando ocorre um verdadeiro arrependimento, creio que ele é óbvio. Nosso texto não apenas descreve o verdadeiro arrependimento em relação ao nosso pecado, ele o descreve de forma a sermos capazes de reconhecê-lo nos outros. E, quando há arrependimento, temos a obrigação de perdoar e receber esse indivíduo de volta à comunhão. Muitas igrejas não exercem a disciplina e não chamam seus membros ao arrependimento. Mas aquelas que o fazem, também precisam estar prontas e dispostas a reconhecer o verdadeiro arrependimento, e a receber o pecador arrependido de volta à comunhão.

Não quero ser como um dos amigos de Jó, exortando ao arrependimento quando isso não é necessário. Nem toda provação ou tribulação é decorrente de pecado. Há ocasiões, porém, em que as nossas provações são graciosamente dadas por Deus para chamar a nossa atenção para o pecado e para nos exortar ao arrependimento. Nessas ocasiões, que sejamos rápidos para assumir a responsabilidade pelo nosso pecado, para confessá-lo e abandoná-lo. Vamos procurar ver novamente as coisas de forma clara e, uma vez mais, desfrutar das bênçãos da salvação e da comunhão com Deus.

Tradução: Mariza Regina de Souza


1 A comida era tão boa que eu não ousava dizer à minha esposa o que tinha de almoço. E mesmo assim, um dos internos reclamava da forma como seu bife fora feito.

2 É muito importante notar aqui que Saul não menciona o rei Agague. Talvez ele tenha sido pressionado pelo povo para ficar com alguns dos despojos, mas quem iria lhe pedir para poupar a vida de Agague? Não faço idea. Agague era um troféu pessoal para Saul, a quem ele planejava manter vivo para servir a seus próprios interesses. Por isso, quando se justifica com Samuel, ele não menciona Agague, pois não havia desculpa razoável para mantê-lo vivo.

3 José já havia percebido que Deus o elevara ao poder, por isso, ele compreendia que Deus usara para o bem todas as coisas ruins feitas pelos irmãos contra ele (veja Gênesis 41:51-52; 50:20). Quando viu os irmãos, ele se lembrou dos sonhos e entendeu que sua posição lhe fora dada para que pudesse lidar com eles com autoridade (Gênesis 42:9).

4 Aliás, textos posteriores das Escrituras lançam dúvidas sobre a sinceridade do arrependimento de Simei. Davi, contudo, parece levar sua confissão ao pé da letra.

5 D. Stuart Briscoe, “Um Coração para Deus” (Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1984), p. 141.

6 Em Ester 8:10, a forma verbal é exatamente a mesma de nosso texto. Em II Samuel 3:10, o mesmo verbo é empregado como hifil no infinitivo. Minha opinião é que o mesmo verbo causativo é utilizado nos dois textos onde a ideia de “transferência” está implícita pelo contexto.

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