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13. A Designação de Davi Como Rei (I Samuel 16:1-23)

Introdução

Lembro-me muito bem do meu primeiro dia de emprego para uma firma de entrega de carnes. Na verdade, o emprego era do meu cunhado, mas concordei em substituí-lo por um semestre enquanto ele fazia um treinamento para lecionar. No meu primeiro dia eu o acompanhei enquanto fazíamos a entrega de carne em diversos lugares. Alguns eram restaurantes muito bons que tinham filé no cardápio, outros eram botequins que serviam “rabo de porco com feijão” por 25 centavos. Ainda me lembro do cheiro horrível que nos recebia nesses lugares.

Achei que deveria me vestir adequadamente, uma vez que era meu primeiro dia no emprego, por isso usei um terno. Jamais cometi aquele erro de novo. Quando a gente entrava num desses botecos, não passava pela porta da frente; íamos direto para a cozinha, pela porta dos fundos. Ao entrar no primeiro estabelecimento, fomos recebidos com olhares assustados, apavorados. O pessoal começou a se dispersar como um bando de baratas tontas.

Não entendi nada, mas meu cunhado sim. “É o terno que está usando”, disse ele. “As pessoas pensam que você é da vigilância sanitária”. Vesti-me bem demais. Parecia um inspetor de saúde. Não é de admirar que tivessem aquelas expressões assustadas e apavoradas. Foi a última vez que usei terno para trabalhar naquele emprego, e fiquei tão feliz quanto meus fregueses.

O mesmo tipo de olhar parece pairar no rosto dos líderes da vila de Belém com a chegada de Samuel (verso 4). “É de paz a tua vinda?”, perguntam. O que será que eles temem? Por que os rostos pálidos, o suor nas palmas das mãos e o tremor nos joelhos? O que eles temem de Samuel? Por que um profeta sairia de seu caminho para vir a esta tribo insignificante e a este lugar tão sem importância? Este homem viera por alguma razão, e a presença de um profeta podia ser vista como a presença do próprio Deus. Talvez seu receio venha de sua devoção e sincero temor a Deus. Talvez não. Talvez seja medo de Saul, uma vez que os pronunciamentos de Samuel a respeito do desprazer divino para com ele parecem ter se tornado públicos:

“Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13-14)

“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz. Agora, pois, te rogo, perdoa-me o meu pecado e volta comigo, para que adore o SENHOR. Porém Samuel disse a Saul: Não tornarei contigo; visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, já ele te rejeitou a ti, para que não sejas rei sobre Israel. Virando-se Samuel para se ir, Saul o segurou pela orla do manto, e este se rasgou. Então, Samuel lhe disse: O SENHOR rasgou, hoje, de ti o reino de Israel e o deu ao teu próximo, que é melhor do que tu. Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.” (I Sam. 15:22-29)

Se Deus rejeitou Saul como rei e está prestes a apontar outro para assumir seu lugar, certamente Samuel irá designar o novo rei. Samuel está com medo de Saul, medo de que ele o mate (16:2). Se Samuel teme que Saul o mate, não é razoável que o povo presuma que aqueles que estão ao seu lado possam também ser mortos por Saul? Afinal, Saul matará Aimeleque e os sacerdotes em Nobe simplesmente por alimentarem Davi (ver I Samuel 22). Os belemitas têm boas razões para temer Saul - e qualquer um que se oponha a ele e venha até eles.

Com um enorme suspiro de alívio, os anciãos de Belém ficam sabendo por Samuel que ele veio oferecer um sacrifício e que serão convidados para a refeição sacrificial. É claro que eles não sabem o resto da história, que é sobre o que realmente trata nossa lição. Temos muito a aprender deste capítulo que descreve a designação de Davi como rei de Israel, aquele que, no devido tempo, substituirá Saul.

As Ordens de Samuel
(16:1-3)

“Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei. Disse Samuel: Como irei eu? Pois Saul o saberá e me matará. Então, disse o SENHOR: Toma contigo um novilho e dize: Vim para sacrificar ao SENHOR. Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar.”

Samuel deve ser elogiado por sua lealdade a Saul. Quando Saul desobedece a Deus no capítulo 15, Samuel fica angustiado e clama a Deus durante toda a noite (15:11). Sua angústia é em resposta ao lamento de Deus por ter constituído Saul como rei. Samuel vem interceder por Saul diante de Deus. A reação de Saul à reprimenda de Samuel mal é de arrependimento, o que causa em Samuel ainda mais pesar:

“Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.” (I Sam. 15:35)

É como se Samuel não estivesse disposto a desistir de Saul. Ele deve estar relutante em apontar o sucessor de Saul porque vai parecer como se colocasse o último prego no caixão político de Saul. A pergunta de Deus a Samuel soa como uma suave repreensão. Quanto tempo ainda Samuel lamentará sobre aquele que Deus rejeitou? Quanto tempo Samuel terá uma opinião diferente da de Deus? Deus rejeitou Saul e é tempo de Samuel agir de acordo com isto. Samuel deve encher um chifre com azeite e ir até Jessé, o belemita, onde deve ungir um de seus filhos como substituto de Saul.

A relutância de Samuel toma outra forma no verso 2, quando ele hesita devido aos perigos envolvidos. Samuel se queixa de que, se chegar aos ouvidos de Saul que ele está ungindo um novo rei, ele o matará. Parece que este é um perigo real. Afinal, Saul não hesita ao aniquilar quase todos os amalequitas (capítulo 15). Nem mesmo hesita ao condenar seu próprio filho à morte (capítulo 14). Como Herodes séculos mais tarde, ele não vacila ante o pensamento de dizimar qualquer ameaça potencial ao seu trono. Nem irá relutar em matar qualquer um que apóie um rei rival (ver capítulos 21 e 22). Samuel sente que sua preocupação é uma boa razão para hesitação.

Deus tem a solução para o problema de Samuel. Ele deve tomar um novilho e dizer ao povo de Belém que veio oferecer um sacrifício ao Senhor. Ele deve convidar Jessé para esta refeição sacrificial, a qual propiciará ocasião para que unja um de seus filhos como rei. O filho específico não é identificado, mas deve ser um dos filhos de Jessé. Esta será uma refeição muito semelhante àquela a que Saul foi convidado junto com seu servo (ver capítulos 9 e 10).

Algumas pessoas podem ficar perturbadas diante das instruções que Deus dá a Samuel. Deus não instrui pessoalmente Samuel a enganar Saul e o povo de Belém? É verdade que Deus não informa aos anciãos de Belém todas as coisas que está para fazer por meio de Samuel, mas aquilo que Ele mostra é absolutamente verdadeiro. Samuel vem realmente oferecer um sacrifício. Deus, muitas vezes, tem muito mais em mente do que nos revela de antemão. Este é só meio diferente. A maravilha mesmo é que Deus nos diga algumas das coisas que está por fazer (ver João 15:15).

A Chegada de Samuel, o Sacrifício e a Escolha de Davi
(16:4-13)

“Fez, pois, Samuel o que dissera o SENHOR e veio a Belém. Saíram-lhe ao encontro os anciãos da cidade, tremendo, e perguntaram: É de paz a tua vinda? Respondeu ele: É de paz; vim sacrificar ao SENHOR. Santificai-vos e vinde comigo ao sacrifício. Santificou ele a Jessé e os seus filhos e os convidou para o sacrifício. Sucedeu que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: Certamente, está perante o SENHOR o seu ungido. Porém o SENHOR disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração. Então, chamou Jessé a Abinadabe e o fez passar diante de Samuel, o qual disse: Nem a este escolheu o SENHOR. Então, Jessé fez passar a Samá, porém Samuel disse: Tampouco a este escolheu o SENHOR. Assim, fez passar Jessé os seus sete filhos diante de Samuel; porém Samuel disse a Jessé: O SENHOR não escolheu estes. Perguntou Samuel a Jessé: Acabaram-se os teus filhos? Ele respondeu: Ainda falta o mais moço, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, pois não nos assentaremos à mesa sem que ele venha. Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. Tomou Samuel o chifre do azeite e o ungiu no meio de seus irmãos; e, daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de Davi. Então, Samuel se levantou e foi para Ramá.”

Os anciãos de Belém ficam pálidos com a chegada de Samuel. Eles temem que sua vinda não seja de paz. Mas as palavras de Samuel os acalmam. Ele veio para oferecer sacrifício e eles são convidados a participar. Eles se santificam e se juntam a Samuel no sacrifício. Além disso, Samuel também consagra Jessé e seus filhos como convidados especiais.

Anos antes, a escolha de Saul não fora tão difícil para Samuel. Deus lhe dissera com antecedência que o futuro rei chegaria no dia seguinte. Desde o princípio Deus tinha deixado claro que Saul era aquele a quem Ele escolhera (9:15-17). No caso do substituto de Saul, Samuel sabe onde estará o novo rei e filho de quem será, mas não sabe qual dos filhos de Jessé será. Samuel tem seus próprios critérios para selecionar o novo rei, alguns dos quais deviam ter origem na designação de Saul, reforçados pelos critérios para designação dos reis daquela época e também da nossa.

Quais seriam exatamente estes critérios? Primeiro, esperava-se que o primogênito fosse o escolhido. O primogênito recebia porção dupla dos bens de seu pai. A liderança da família era transmitida a ele. Esperava-se que ele fosse o mais maduro, o mais experiente e o mais sábio da família. Assim, por que o filho mais novo seria o escolhido de Deus? Além de priorizar a ordem de nascimento, Samuel espera que o futuro rei seja revelado por sua aparência. Estudos mostram que executivos de alto escalão tendem a ser “altos, morenos e bonitos”. Samuel espera a mesma coisa. Foi exatamente assim com Saul (ver 9:2).

Jessé e seus sete filhos sabem o que Samuel veio fazer. É mais ou menos como encontrar a Cinderela. Eles devem estar assustados diante da possibilidade de alguém de sua família ser o próximo rei. E assim Jessé faz seus filhos passarem um a um diante de Samuel, começando pelo mais velho. Deus sabe o que Samuel está pensando quando ele olha para Eliabe, o filho mais velho de Jessé, um rapaz alto, de boa aparência (ver verso 7). Mas Ele diz a Samuel que esta não é a Sua escolha para o futuro rei de Israel, indicando que Seu critério tem mais a ver com o caráter de um homem do que com sua aparência exterior. E assim, o próximo filho de Jessé, Abinadabe, passa por Samuel e também é rejeitado. Então vem Samá, e depois os outros quatro filhos de Jessé, mas Deus não aponta nenhum deles como Seu escolhido.

Certamente Samuel fica perplexo e se pergunta qual deve ser o problema. Até parece que ninguém da família de Jessé considere Davi como rei, mesmo como uma possibilidade remota. Literalmente ele foge de seus pensamentos até que Samuel pergunte a Jessé se não há outros filhos. Bem, há Davi, é claro, mas ele é só um rapazinho - ainda é considerado uma criança - não um homem. Como poderia ser o novo rei? Ele tem um trabalho de criança - guardar as ovelhas. Quando viajo para o exterior, vejo muitas mulheres ou crianças cuidando de pequenos rebanhos de ovelhas. Este é o serviço de Davi, que parece dizer tudo. Como ele pode ser considerado como candidato a rei de Israel?

O que interessa para Deus é o coração de Davi. Saul é um homem cujo coração Deus teve que mudar:

“Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.” (I Sam. 10:9)

Mas o coração de Saul não continuou leal a Deus e ele tem que ser rejeitado e substituído por um homem como Davi, que tem um coração voltado para Deus. Por isso, Deus diz a Saul:

“Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:14)

O que ninguém percebe é que Deus dará a Davi tudo o que ele precisa para ser rei de Israel. O Espírito de Deus imediatamente se apossa dele para guiá-lo e capacitá-lo. Pela providência de Deus, ele é estrategicamente colocado na presença de Saul como seu escudeiro (16:21), onde pode aprender como governa um rei. Davi não é escolhido para substituir Saul imediatamente, mas primeiro ele é colocado numa espécie de internato, para depois ser preparado mentalmente, moral e espiritualmente para reinar, o que ainda levará muitos anos.

Jessé manda alguém até Davi e ele é trazido diante de Samuel. Davi também é um jovem de boa aparência, com todas as qualidades encontradas em seus irmãos mais velhos, salvo sua idade e posição como primogênito. Vemos que Deus não desqualifica Davi por sua boa aparência, mas também não o escolhe por causa disso. Boa aparência num rei é como boa aparência numa esposa - não deve ser a base para a escolha da companheira para o resto da vida. Mas, tendo escolhido uma mulher temente a Deus, se ela for bonita também, de modo algum isto diminui sua atração (ver Pv. 31:30). O caráter de Davi é agradável a Deus e é a base de sua escolha para o serviço. A aparência física de Davi é um bônus extra; as deficiências de Davi serão supridas pelo Espírito Santo e pelo preparo de Deus.

Deus mostra a Samuel que Davi é, de fato, Seu escolhido como rei de Israel e, por isso, Samuel se põe de pé e o unge. O Espírito de Deus vem sobre Davi, apossando-se dele e capacitando-o daí em diante. Samuel, então, ergue-se e retorna para sua casa em Ramá.

A Escolha de Davi para Servir a Saul
(16:14-23)

“Tendo-se retirado de Saul o Espírito do SENHOR, da parte deste um espírito maligno o atormentava. Então, os servos de Saul lhe disseram: Eis que, agora, um espírito maligno, enviado de Deus, te atormenta. Manda, pois, senhor nosso, que teus servos, que estão em tua presença, busquem um homem que saiba tocar harpa; e será que, quando o espírito maligno, da parte do SENHOR, vier sobre ti, então, ele a dedilhará, e te acharás melhor. Disse Saul aos seus servos: Buscai-me, pois, um homem que saiba tocar bem e trazei-mo. Então, respondeu um dos moços e disse: Conheço um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é forte e valente, homem de guerra, sisudo em palavras e de boa aparência; e o SENHOR é com ele. Saul enviou mensageiros a Jessé, dizendo: Envia-me Davi, teu filho, o que está com as ovelhas. Tomou, pois, Jessé um jumento, e o carregou de pão, um odre de vinho e um cabrito, e enviou-os a Saul por intermédio de Davi, seu filho. Assim, Davi foi a Saul e esteve perante ele; este o amou muito e o fez seu escudeiro. Saul mandou dizer a Jessé: Deixa estar Davi perante mim, pois me caiu em graça. E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele.”

Em questão de tempo, é um longo caminho desde a designação profética de Davi como rei de Israel até sua ascensão ao trono; e ainda mais longo em termos de logística. Como um jovem rapaz, a quem nem mesmo a família considera como candidato a rei, ascende a essa posição, quando um rei paranóico já está nesse lugar, um rei que não hesita em matar seus concorrentes? A resposta a esta pergunta toma tempo e espaço nas Escrituras, mas os versos 14 a 23 nos dão uma amostra de como Deus providencialmente faz aquilo que indica mediante Seu profeta.

Obviamente, Saul não faz idéia do que aconteceu, conforme registrado nos versos 1 a 13 deste capítulo. Se ele acreditar nas palavras de Samuel (pode ser também que não acredite, especialmente à medida que o tempo passe e ele continue como rei de Israel), será realmente afastado e substituído por um homem da escolha de Deus. Ele não sabe que Samuel já designou e ungiu Davi como seu substituto, ou que o Espírito que Deus lhe deu agora é dado a Davi. O que ele realmente sabe é que as coisas estão bem diferentes do que eram. Ele não vê mais Samuel (ver 15:35). Ele não sente a presença e o poder do Senhor, através do Espírito. O que ele experimenta mesmo é um fenômeno espiritual bem diferente. Um “espírito maligno da parte de Deus” se apossa de Saul, aterrorizando-o. Ele parece ter ataques quando o terror deste espírito está presente e épocas que são mais normais.

Como seria de se esperar, existem várias teorias sobre este “espírito maligno da parte de Deus”. A aparição deste “espírito”, bem como o desaparecimento do Espírito Santo, vêm da parte de Deus. Ou seja, é o Senhor quem ordena que o Espírito Santo deixe Saul. Será possível que o pedido de Davi para que Deus não retire dele Seu Espírito (Sl. 51:11) seja, de certa forma, conseqüência daquilo que ele observa com seus próprios olhos enquanto está a serviço de Saul? O espírito maligno também é da parte de Deus. Isto não deveria ser nenhuma surpresa, uma vez que Deus é soberano. Satanás não pode fazer nada a ninguém sem que Deus permita (ver, por exemplo, Jó 1 e 2). Para os servos de Saul, este “espírito maligno” não é novo ou incomum. Eles já o viram e o reconhecem, e sabem qual é o melhor tratamento para Saul. Todas estas coisas me levam a concluir que o espírito que oprime Saul seja demoníaco. Pelo que conheço da história, parece que homens como Adolf Hitler tiveram uma experiência extremamente semelhante.

Os servos de Saul crêem que a música tenha efeito benéfico sobre Saul e recomendam que ele encontre um homem hábil no tocar da harpa para que, quando o espírito o atacar, o músico toque uma canção suave e acalme seu espírito atribulado. Saul aprova a idéia. Ele, acima de tudo, está aterrorizado pela opressão do espírito.

Subitamente um dos servos de Saul se lembra de alguém que se encaixa perfeitamente às suas necessidades. Em algum lugar ele viu e ouviu falar de Davi de Belém. Davi não é apenas um músico dotado que toca harpa com destreza, ele é também um valente guerreiro (talvez por suas “lutas” com o urso e o leão), um homem de boa aparência e de bom senso. Mais importante, é um homem com que o Senhor está presente. As mesmas coisas que qualificam Davi como rei são aquelas que o qualificam para servir ao rei. As qualidades reais de Davi estão se tornando evidentes, até mesmo para aqueles que estão no palácio.

Saul convoca Davi com educação, no entanto, este é um convite que ninguém ousa recusar. O pedido é feito a Jessé, uma vez que Davi ainda vive sob seu teto. Pelas palavras de Saul a Jessé, fica claro que ele sabe que Davi é guardador de ovelhas (ver o verso 19). Jessé envia Davi ao rei junto com uma oferta de alimentos, onde ele começa a servir como seu criado. Conforme o caráter e as habilidades de Davi vão ficando mais evidentes para Saul, ele é promovido à posição de seu escudeiro, provavelmente o serviço mais íntimo e pessoal de qualquer um dos servos de Saul. Saul não só começa a respeitar as habilidades de Davi, ele também começa a amá-lo. Talvez Davi seja quase como um filho para ele.

Termina o período de experiência de Davi e ele toma posse do cargo, por assim dizer, junto ao rei. De forma adequada, Saul solicita a Jessé que permite que Davi permaneça a seu serviço. Assim é que, toda vez que Saul é atormentado pelo espírito maligno, Davi toca sua harpa e tranqüiliza o espírito atribulado do rei. O Espírito de Deus em Davi faz com que o espírito maligno, durante algum tempo, se retire de Saul. Como Saul soletra alívio? D A V I.

Conclusão

O pecado do capítulo 15 é o fim para Saul; não é o fim do seu reinado, mas o fim da oportunidade para ele mudar e se arrepender. Mas, por que ungir Davi tanto tempo antes dele ser nomeado e coroado como rei? Primeiro, o Espírito que está sobre Saul para que desempenhe seus ofícios reais, pode agora ser removido e colocado sobre Davi. É no Espírito que Davi crescerá, amadurecerá e servirá a Saul, enquanto Deus o prepara para o seu ofício. Como é irônico e inesperado que Davi sirva ao rei em preparação para servir como rei. Os caminhos de Deus estão além da nossa capacidade de predizê-los.

Segundo, a unção de Davi acaba sendo um teste para os israelitas. Sua unção, diferentemente de Saul, é semipública. Seu pai e seus irmãos, assim como os homens proeminentes da cidade que comparecem ao banquete sacrificial, precisam saber que o novo rei que substituirá Saul está sendo designado. Na medida em que os homens compreendam que Davi é o próximo rei, sua reação é indicativa da alusão ao Rei de Israel e Seu Reino. Isto também determina seu lugar no reino de Davi.

Deixe-me ilustrar com a história de um homem e sua esposa, Nabal e Abigail, descrita em I Samuel 25. Davi está fugindo de Saul, e ele e seus homens se escondem onde os rebanhos de Nabal são guardados. Eles não molestam nenhum dos pastores de Nabal, nem tomam qualquer animal de seu rebanho. Eles são úteis a Nabal e, como estão na época da tosquia, educadamente lhe solicitam uma oferta. Nabal recusa, com estas palavras:

“Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos são, hoje em dia, os servos que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (I Sam. 25:10b-11)

Não é que Nabal não saiba quem é Davi. Ele sabe que ele é o filho de Jessé, e também sabe que está fugindo de seu senhor, Saul. Em outras palavras, ele sabe que Davi é o rei designado para substituir Saul. Se há alguma dúvida disto, ouça as palavras de sua esposa, Abigail, ditas a Davi:

“Perdoa a transgressão da tua serva; pois, de fato, o SENHOR te fará casa firme, porque pelejas as batalhas do SENHOR, e não se ache mal em ti por todos os teus dias. Se algum homem se levantar para te perseguir e buscar a tua vida, então, a tua vida será atada no feixe dos que vivem com o SENHOR, teu Deus; porém a vida de teus inimigos, este a arrojará como se a atirasse da cavidade de uma funda. E há de ser que, usando o SENHOR contigo segundo todo o bem que tem dito a teu respeito e te houver estabelecido príncipe sobre Israel, então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar ao coração o sangue que, sem causa, vieres a derramar e o te haveres vingado com as tuas próprias mãos; quando o SENHOR te houver feito o bem, lembrar-te-ás da tua serva.” (I Sam. 25:28-31)

Nabal sabe exatamente quem é Davi e se recusa a fazer qualquer coisa por ele. Será por que ele pode ter repercussão negativa junto a Saul (ver os capítulos 21 e 22)? Abigail é uma mulher sábia e temente a Deus. Ela sabe quem é Davi, e sua resposta e seu apelo a ele se fundamentam em sua submissão a ele como futuro rei. A designação precoce de Davi como futuro rei de Israel, portanto, se torna um teste.

É quase o mesmo hoje em dia. Quando o autor de I Samuel volta sua atenção de Saul para Davi, ele nos leva a refletir sobre um homem que é um protótipo de nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, Saul se parece demais com Satanás. Saul recebe autoridade para governar segundo Deus, no entanto, suas regras e seu governo se tornam mais importantes para ele do que o governo e as leis de Deus. Por isso, ele é posto de lado. Davi é designado para ocupar seu lugar, para governar sobre o povo de Deus com retidão. Satanás, como o Saul dos tempos antigos, foi rejeitado por Deus. Na cruz do Calvário, nosso Senhor derrotou Satanás. Contudo, ele ainda está livre para se opor a Deus, embora seu julgamento e sua punição sejam certos. Neste ínterim, Jesus Cristo foi designado como o Rei de Deus. Ele não apenas proclamou o reino de Deus, Ele também o conquistou com Sua morte, sepultamento e ressurreição. Todos aqueles que se submetem a Ele como Rei entrarão em Seu reino e governarão com Ele por toda a eternidade. A questão para você e para mim, hoje, é: “A quem serviremos?” Quem reinará sobre nós? A que reino iremos nos submeter? Por natureza, todos os homens são nascidos no reino de Satanás. Somente pelo novo nascimento, por confiar na obra de Jesus Cristo na cruz do Calvário, é que os homens são transportados do reino das trevas para o reino da luz, do reino de Satanás para o reino de Deus. Você já mudou os reis, meu amigo?

Samuel erra sobre quem será o rei de Deus. Ele espera que o rei seja “alto, moreno e bonito”, por assim dizer. Deus deixa claro a Samuel que a aparência externa não é Seu critério para a escolha do rei (I Sam. 16:7). Davi também tem boa aparência, mas esta não é a base para sua escolha por Deus. Por desígnio divino, nosso Senhor Jesus Cristo, o rei eterno de Deus, também não devia ser reconhecido por Sua aparência:

“Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.” (Is. 53:1-3)

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)

Pelo que entendo destes textos e de outros, o Senhor Jesus não era uma pessoa que chamava a atenção, fisicamente falando. Os homens não eram atraídos a Ele por Seus belos traços ou por Sua voz profunda, tipo locutor de rádio. Os homens eram atraídos a Ele quando reconheciam Seu coração igual a Deus, Seu ser igual a Deus. Foram Sua submissão e obediência ao Pai que O distinguiram, junto ao fato dEle ter cumprido perfeitamente todas as profecias relativas ao Messias. Ele é aquele apontado por Deus para governar e, quando Ele voltar, todos os homens se ajoelharão diante Dele e O reconhecerão como o Rei de Deus (Fp. 2:9-11). A exortação das Escrituras é para que O recebamos como Rei e que nos tornemos parte de Seu reino, ou aguardemos Sua ira sobre nós como Seus inimigos (Sl. 2:10-12).

Talvez esta seja uma boa ocasião para falarmos sobre música e sua relação com o reino espiritual. Você deve se recordar que em I Sam. 10 (versos 5-6, 10-13) os profetas com quem Saul se encontrou, e a quem se juntou como “um dos profetas” (pelo menos por alguns instantes) quando o Espírito desceu poderosamente sobre ele, estavam acompanhados de instrumentos musicais - tamborim, flauta e harpa (verso 5). De alguma forma, a descida do Espírito sobre Saul (e talvez sobre os outros profetas) está associada à música, ou até mesmo seja principiada por ela. No capítulo 16, as possessões demoníacas de Saul são acalmadas pelo toque da harpa de Davi. Em II Re. 3:14-15 uma vez mais, Eliseu chama um menestrel a fim de profetizar no Espírito. Entendo que a música deva ter algum tipo de papel na ligação (ou desligamento) com o reino espiritual. Acho que devemos ter muito cuidado com o tipo de música que ouvimos. Sei que tem havido muita discussão sobre o “rock”, e não desejo ser muito loquaz neste assunto, mas sugiro que haja um tipo de música potencialmente benéfico e, provavelmente um tipo que possa invocar o espírito errado. Este texto deve nos dar uma pausa para pensar no tipo de música que ouvimos e sua influência sobre nós.

Nossa passagem fala sobre a escolha de Davi para desempenhar uma função dada por Deus - não para sua salvação. Alguns poderiam ficar tentados a se desviar desta passagem achando que Deus escolheu salvar Davi porque ele tinha um coração voltado para Ele. Deus escolheu Davi para servir por causa de seu coração. Há uma diferença enorme entre Deus escolher para um serviço e Sua eleição para salvação. Se Deus escolhesse salvar os que tivessem coração puro, Ele não salvaria ninguém:

“Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” (Pv. 20:9, ver Rm. 3:9-18).

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr. 17:9, ver também Rm. 3:9-18)

Deus não salva os homens devido àquilo que vê em seus corações e gosta do que vê. Deus salva homens que são vis pecadores em seus corações e tem misericórdia deles, colocando seus pecados sobre Seu Filho, Jesus Cristo. Somente Cristo é sem pecado e, por isso, capaz de morrer pelos pecados dos outros. Há apenas uma pessoa em toda a história da raça humana cujo coração foi livre de pecado, e essa pessoa é Jesus Cristo. Deus salva aqueles que confiam Nele para serem perdoados de seus pecados e para terem o presente da vida eterna.

Hoje em dia há muita discussão sobre liderança, e devo dizer que as qualidades e qualificações procuradas nos líderes contemporâneos não são aquelas que Deus buscou em Davi. Os evangélicos escolhem seus líderes quase nas mesmas bases que a sociedade secular. Procuramos homens que tenham “recursos” (dinheiro e influência) e “uma boa cabeça prá negócios”. Deus buscou um homem que tinha um coração voltado para Ele. Creio que esta característica seja o primeiro e principal pré-requisito para o tipo de liderança que Deus quer. Vamos procurar ser o tipo de homens e mulheres que Deus busca para o Seu serviço.

14. Davi e Golias (I Samuel 17:1-58)

Introdução

Quando chego à história de “Davi e Golias” sinto-me como um comediante convidado para falar numa convenção de comediantes. Enquanto subo ao palco, alguém me entrega uma lista das dez piadas mais famosas e mais batidas que se conhece - com instruções para contá-las de forma a fazer o público rir.

O problema com histórias do Antigo Testamento como a nossa, e de outras como “Daniel na cova dos leões” e “Jonas e a ‘Baleia’”, é que estamos familiarizados demais com elas. Não quero dizer que as conheçamos tão bem assim, pois muitas vezes não conhecemos. Mas pensamos que sim e, conseqüentemente, temos uma longa lista de idéias preconcebidas. Ao abordarmos nosso estudo vamos procurar obter o máximo que pudermos e, pela capacitação do Espírito, colocar essas idéias preconcebidas na prateleira e considerar todos os aspectos de nosso texto uma vez mais.

Observações Preliminares

Talvez seja útil fazermos algumas considerações antes de nosso estudo em I Samuel 17 sobre Davi e Golias.

Primeiro, a Septuaginta (a tradução grega do Velho Testamento feita por volta de 200 a.C.) omite uma porção de versos deste capítulo. A Septuaginta omite, especificamente, os versos 12 a 31, 41, 50 e 55 a 58. O texto hebraico tradicional, conhecido como Texto Massorético, não omite. Uma vez que o Texto Massorético é o texto original e a Septuaginta apenas uma tradução (e, às vezes, bastante livre), presumiremos que a Septuaginta omitiu propositadamente os versos que estavam no texto original.

Segundo, parece haver uma discrepância entre os capítulos 16, onde Saul conhece e ama Davi, e o capitulo 17, onde Saul parece não saber quem seja ele. Várias soluções são propostas. Certamente nenhum autor (ou “editor”) colocaria estes dois capítulos lado a lado, sabendo que há alguma coisa errada no capítulo 16, ou no capítulo 17, ou em ambos. Talvez Davi tenha crescido consideravelmente desde o capítulo 16, ou a memória de Saul esteja falhando (havia uma porção de rostos e nomes a serem lembrados, ou quem sabe seu estado mental simplesmente turve seus pensamentos). Existem algumas explicações plausíveis para este aparente problema. Também devemos observar que o verso 15 do capítulo 17 parece ligar claramente este capítulo ao capítulo 16. É preciso lembrar que Saul não pergunta sobre Davi, mas sobre o pai de Davi. Afinal de contas, ele promete que sua casa ficará livre de impostos (ver 17:25). Se Jessé realmente é muito velho nos dias de Saul (17:12), então é provável que este jamais o tenha encontrado, uma vez que Jessé não podia viajar para visitar o rei. Não seria por isso que Jessé envia Davi para checar o bem-estar de seus filhos (ver 17:17-19)? Por que, então, devemos presumir que Saul se lembre dele?

Terceiro, o capítulo 17 complementa muito bem o capítulo 16, fornecendo detalhes que não estão presentes no capítulo anterior. No capítulo 16 temos o relato da designação (unção) de Davi como futuro rei de Israel mas, nesse capítulo, ele não pronuncia uma só palavra e nenhum de seus feitos é registrado. É no capítulo 17 que vemos um retrato claro de Davi e de seu caráter, pelas palavras e atos aqui registrados. No capítulo 16, Deus designa Davi como Seu rei porque ele é um “homem segundo o coração de Deus” (ver 13:14, 16:7). No capítulo 17, vemos, em termos bem específicos, exatamente o que é ser um “homem segundo o coração de Deus”. Qualquer um que tente colocar uma brecha entre estes dois capítulos, apontando aparentes incoerências entre eles, deixa de considerar sua evidente continuidade.

Quarto, esta guerra não precisaria ser travada, não fosse a tolice de Saul no capítulo 14. É Jônatas, filho de Saul, quem precipita a guerra com os filisteus que ocupam o território de Israel (capítulo 13). Saul vê o exército se dissolvendo diante de seus olhos e desobedece a Deus, deixando de esperar por Samuel para oferecer o holocausto (13:8-14). No capítulo 14, Jônatas inicia um ataque ao posto de guarda dos filisteus que resulta na intervenção divina por meio de um terremoto. A batalha contra os filisteus poderia ter sido definitivamente vencida pelo exército israelita, não fosse um edito insano expedido por Saul. Ao proibir seus soldados de comer antes do anoitecer, Saul coloca em risco a vida de Jônatas e predispõe os outros soldados a pecar por consumir a carne dos animais abatidos junto com seu sangue. À medida que o dia se arrasta, a fraqueza dos soldados devido à fome os impede de lutar bem. Além do mais, o tempo gasto no preparo da comida para este exército faminto custa a Saul e seus homens a chance de vencer definitivamente os filisteus. A guerra do capítulo 17 é conseqüência da loucura de Saul no capítulo 14, uma guerra que jamais teria sido travada não fosse seu edito.

Quinto, apenas uma pequena parcela dos 58 versos do capítulo 17 descreve a luta entre Davi e Golias. Se admitirmos que os versos 40 a 51 tratem da batalha entre Davi e o gigante filisteu, devemos, então, observar que aproximadamente 80% do capítulo seja preparação para este confronto ou venha após a vitória sobre Golias, enquanto somente 20% descrevem realmente o confronto entre ambos. Quando nos concentramos somente em “Davi e Golias”, negligenciamos a maior parte desta passagem e sua ênfase.

Uma Perspectiva Mais Ampla

Consideremos, então, o capítulo 17 à luz de um retrato mais amplo do Velho Testamento até este ponto da história de Israel. A história de Davi e Golias parece bem diferente quando vista numa perspectiva mais ampla das Escrituras que a precedem (de Gênesis até I Samuel 16).

Começaremos em Gênesis 12:3, com a chamada “Aliança Abraâmica”. Ali, Deus diz a Abrão:

“Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:3, ARA, ênfase minha)

Se Golias está amaldiçoando Israel e seu Deus e, se Deus é um Deus que guarda Sua aliança, é de se esperar que Golias seja divinamente amaldiçoado. Biblicamente falando, uma nuvem negra paira sobre a cabeça de Golias, o blasfemo filisteu.

Passando rapidamente pela Lei de Moisés, chegamos ao livro de Números, particularmente aos capítulos 13 e 14, que descrevem o temor de Israel com relação aos cananeus e sua conseqüente rebelião contra Deus em Cades-Barnéia. Deus tinha libertado Israel das mãos de Faraó e tinha lançado os egípcios no Mar Vermelho. Agora, quando os israelitas chegam a Cades-Barnéia, espias são enviados a Canaã para avaliar a terra prometida. A terra e seus frutos são magníficos. O único problema para dez dos espias é o tamanho dos habitantes do lugar:

“Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. Os amalequitas habitam na terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão. Então, Calebe fez calar o povo perante Moisés e disse: Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela. Porém os homens que com ele tinham subido disseram: Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós. E, diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra que devora os seus moradores; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura. Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos.” (Nm. 13:27-33, ARA, ênfase minha).

O temor dos israelitas é causado pela estatura (ou seja, o poderio militar) dos “gigantes” que vivem em Canaã. “Não podemos subir contra os cananeus”, protestam, “lá tem gigantes!” Devido a esse medo e sua recusa em confiar em Deus, esta geração de israelitas perece no deserto. Quando seus filhos - a segunda geração - estão prestes a possuir a terra, Deus lhes dá instruções muito claras sobre como reagir diante dos inimigos que irão enfrentar:

“Eis que o SENHOR, teu Deus, te colocou esta terra diante de ti. Sobe, possui-a, como te falou o SENHOR, Deus de teus pais: Não temas e não te assustes.” (Dt. 1:21)

“O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença.” (Dt. 28:7)

“Passou Moisés a falar estas palavras a todo o Israel e disse-lhes: Sou, hoje, da idade de cento e vinte anos. Já não posso sair e entrar, e o SENHOR me disse: Não passarás o Jordão. O SENHOR, teu Deus, passará adiante de ti; ele destruirá estas nações de diante de ti, e tu as possuirás; Josué passará adiante de ti, como o SENHOR tem dito. O SENHOR lhes fará como fez a Seom e a Ogue, reis dos amorreus, os quais destruiu, bem como a sua terra. Quando, pois, o SENHOR vos entregar estes povos diante de vós, então, com eles fareis segundo todo o mandamento que vos tenho ordenado. Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco; não vos deixará, nem vos desamparará. Chamou Moisés a Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: Sê forte e corajoso; porque, com este povo, entrarás na terra que o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus pais; e tu os farás herdá-la. O SENHOR é quem vai adiante de ti; ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te atemorizes.” (Dt. 1:1-8, ver também Js. 1:9, 8:1 e 10:25)

O livro de Josué registra a derrota dos inimigos de Israel, não devido à sua estatura ou poderio militar, mas porque Deus está com eles nas batalhas. No livro de Juízes lemos a respeito dos homens levantados por Deus para libertar Seu povo das mãos de seus inimigos. Em alguns casos, um único indivíduo (como Sansão, ver cap. 13-16) mata muitos deles, ao passo que, em outros, um pequeno grupo (como Gideão e seus 300 homens, ver cap. 6-8) derrota uma força inimiga amplamente superior.

Quando chegamos em I Samuel, encontramos nos primeiros 16 capítulos a preparação para o confronto entre Davi e Golias. Ouça as palavras de Ana, registradas no capítulo 2:

“Não multipliqueis palavras de orgulho, nem saiam coisas arrogantes da vossa boca; porque o SENHOR é o Deus da sabedoria e pesa todos os feitos na balança. O arco dos fortes é quebrado, porém os débeis, cingidos de força... Ele guarda os pés dos seus santos, porém os perversos emudecem nas trevas da morte; porque o homem não prevalece pela força. Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido.” (I Sam. 2:3-4, 9-10)

No capítulo 4 chegamos à primeira batalha com os filisteus no livro de I Samuel. Quando os israelitas sofrem uma derrota às suas mãos, eles levam a Arca de Deus consigo para a guerra, certos de que isto lhes dará, milagrosamente, a vitória. Os israelitas são novamente derrotados, os filhos de Eli, Hofni e Finéias, são mortos e o próprio Eli também morre quando toma conhecimento deste desastre. Os filisteus orgulhosamente carregam a Arca como troféu de guerra, um símbolo de sua “vitória sobre Israel e seu Deus”. Sem nenhuma assistência humana, Deus humilha Dagom, o deus filisteu, e o povo das principais cidades filistéias (capítulos 5 e 6).

No capítulo 7 os israelitas se arrependem de seus pecados e vão à Mispa para serem julgados por Samuel e cultuar a Deus. Quando os filisteus tomam conhecimento deste ajuntamento, presumem que seja algum tipo de manobra militar hostil, e por isso reúnem suas forças e cercam o lugar onde os israelitas estão reunidos. Os israelitas estão indefesos, mas Samuel intercede por eles e, enquanto ele oferece o sacrifício, Deus intervém com uma tempestade elétrica que faz com que as armas de ferro dos filisteus virem condutores elétricos e devastem seu exército.

No capítulo 8 os israelitas exigem um rei para julgá-los e governá-los. Boa parte de sua motivação é querer alguém que vá adiante deles e lute suas batalhas (ver 8:5, 20). Saul é escolhido, um homem que, dos ombros para cima, sobressai a seus irmãos israelitas (9:2). Este é o homem que libertará o povo de Deus dos filisteus:

“Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim.” (I Sam. 9:1516, ARA, ênfase minha).

A primeira batalha de Saul com os filisteus vem imediatamente após sua vitória decisiva sobre os amonitas que sitiavam Jabes-Gileade (capítulo 11). O confronto não é iniciado por Saul, mas por seu filho Jônatas, que ataca a guarnição dos filisteus situada em Israel (13:1-4). Saul entra em pânico em virtude do tamanho do exército filisteu e de seu exército estar se desmantelando. Em desobediência à ordem de Deus, ele mesmo oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel (13:814). Este é o começo do fim para Saul.

A situação entre os soldados israelitas e o exército filisteu chega a uma espécie de impasse. Saul parece preferir isto a se arriscar em qualquer atitude ofensiva. Jônatas toma uma atitude tipo Davi. Sem dizer nada a ninguém (especialmente ao seu pai), ele toma seu escudeiro e ataca um posto avançado dos filisteus, dizendo estas palavras, que refletem seu caráter e a qualidade de sua fé:

“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (I Sam. 14:6, ARA, ênfase minha)

Quando vemos o confronto entre israelitas e filisteus e entre Davi e Golias à luz da revelação bíblica precedente, ganhamos uma perspectiva bem diferente. Será que os israelitas, incluindo Saul, são aterrorizados por Golias? (ver 17:11, 24, 32) Não deveriam. Na verdade, esse medo não é apenas falta de fé, é desobediência aos mandamentos de Deus ao Seu povo (ver Dt. 1:21, 31:8, etc). Será que eles têm pavor deste gigante? Deveriam dizer: “Só um...?” Será que eles querem bater em retirada e não atacar? Deveriam considerar a teologia e a prática de Jônatas, que crê que Deus não é limitado pelo número de guerreiros que lutam em Seu nome. Não é o tamanho de Golias ou a arrogância de suas palavras que devem nos causar estranheza, mas a incredulidade e o medo do povo de Deus. A situação não é nova, nem desconhecida. As chances não são piores aqui do que em qualquer outro lugar. Simplesmente Israel carece de fé. Israel carece de uma liderança temente a Deus.

O Cenário
(17:1-3)

“Ajuntaram os filisteus as suas tropas para a guerra, e congregaram-se em Socó, que está em Judá, e acamparam-se entre Socó e Azeca, em Efes-Damim. Porém Saul e os homens de Israel se ajuntaram, e acamparam no vale de Elá, e ali ordenaram a batalha contra os filisteus. Estavam estes num monte do lado dalém, e os israelitas, no outro monte do lado daquém; e, entre eles, o vale.”

Saul jamais parece tomar a iniciativa de iniciar um confronto militar com os filisteus, e esta vez não é exceção. Depois da derrota parcial e humilhação às mãos dos israelitas no capítulo 14, os filisteus parecem ansiosos não só por recuperar seu domínio militar sobre Israel (ver 4:9), mas também seu orgulho. Os dois exércitos se preparam para o confronto, aproximadamente 14 milhas a sudoeste de Jerusalém, entrincheirando-se em lados opostos do Vale de Elá e assentando acampamento nas encostas de duas montanhas, cada uma das quais desce para o vale onde corre um ribeiro (ver 17:40).

Podemos muito bem nos perguntar por que este impasse continua por tanto tempo, com os dois lados fingindo um luta com muita gritaria e brados de guerra, mas sem nenhum contato verdadeiro e sem nenhuma baixa. Saul e seu exército realmente não querem lutar, nem os filisteus. É mais fácil compreender a relutância dos filisteus. Eles empregam tanto o aço quanto o bronze em seus instrumentos de guerra. Eles têm carros, por exemplo (ver 13:5), mas estes são projetados para um solo relativamente nivelado, não para a encosta de montanhas - estes veículos não são “para todo tipo de terreno”. Também não é fácil para um soldado com uma proteção tão pesada quanto a de Golias lutar com agilidade e facilidade enquanto se esforça para manter o equilíbrio na encosta de uma montanha. O perigo de lutar nesses terrenos acidentados é claramente expresso mais tarde em II Samuel. Quando as forças leais a Davi saem para lutar contra Absalão e seu exército, mais guerreiros das forças rebeldes são mortos por causa do terreno do que pelos soldados de Davi:

“Porque aí se estendeu a batalha por toda aquela região; e o bosque, naquele dia, consumiu mais gente do que a espada.” (II Sam. 18:8)

Ainda que os filisteus superem os israelitas em número e em armas, o terreno é tal que dificulta em muito a sua investida, da mesma maneira que o inverno dificultou as investidas militares na Europa no passado. Nenhum dos dois lados parece querer uma batalha de verdade, e assim, o desafio de Golias é uma espécie de chamariz, se ele puder encontrar alguém disposto a lutar com ele.

O Vilão e o Vitorioso
(17:4-16)

“Então, saiu do arraial dos filisteus um homem guerreiro, cujo nome era Golias, de Gate, da altura de seis côvados e um palmo. Trazia na cabeça um capacete de bronze e vestia uma couraça de escamas cujo peso era de cinco mil siclos de bronze. Trazia caneleiras de bronze nas pernas e um dardo de bronze entre os ombros. A haste da sua lança era como o eixo do tecelão, e a ponta da sua lança, de seiscentos siclos de ferro; e diante dele ia o escudeiro. Parou, clamou às tropas de Israel e disse-lhes: Para que saís, formando-vos em linha de batalha? Não sou eu filisteu, e vós, servos de Saul? Escolhei dentre vós um homem que desça contra mim. Se ele puder pelejar comigo e me ferir, seremos vossos servos; porém, se eu o vencer e o ferir, então, sereis nossos servos e nos servireis. Disse mais o filisteu: Hoje, afronto as tropas de Israel. Dai-me um homem, para que ambos pelejemos. Ouvindo Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito. Davi era filho daquele efrateu de Belém de Judá cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; nos dias de Saul, era já velho e adiantado em anos entre os homens. Apresentaram-se os três filhos mais velhos de Jessé a Saul e o seguiram à guerra; chamavam-se: Eliabe, o primogênito, o segundo, Abinadabe, e o terceiro, Samá. Davi era o mais moço; só os três maiores seguiram Saul. Davi, porém, ia a Saul e voltava, para apascentar as ovelhas de seu pai, em Belém. Chegava-se, pois, o filisteu pela manhã e à tarde; e apresentou-se por quarenta dias.”

É possível que Golias seja o comandante das forças filistéias, mas não vejo razão convincente para pensar assim. Ele não é mencionado nos três primeiros versos do capítulo 17 e parece ter surgido somente depois de um prolongado impasse entre os dois exércitos. Quando ele é apresentado, não é como rei dos filisteus, nem como seu comandante em chefe, mas como um “campeão”. Por isso, estou inclinado a pensar que, enquanto o impasse continua, Golias aproveite a oportunidade para se aproximar dos israelitas, passando por suas próprias tropas e apresentando-se abertamente como um alvo convidativo a qualquer um suficientemente ousado para “vir e pegá-lo”.

Golias parece falar por todo o exército filisteu quando propõe uma solução para o impasse entre os dois exércitos. Se ele vencer, isto lhe dará grande prazer (ele parece amar uma boa briga e o fato de ainda estar vivo testemunha que não perdeu nenhuma disputa), e uma vantagem real para os filisteus. No entanto, enquanto a oferta for mantida, se pelo menos um único israelita se opuser a Golias e vencê-lo, Israel obterá a vitória sobre todo o exército filisteu. Desta forma, a perda de apenas uma vida seria necessária para determinar o exército vitorioso.

Durante esses 40 dias parece que os israelitas ficam cada vez mais receosos e relutantes em aceitar o desafio de Golias. Enquanto isso, ele parece ficar cada vez mais ousado. Duas vezes ao dia (de manhã e à tarde) ele se aproxima da linha de frente israelita e desafia qualquer guerreiro corajoso a sair e lutar com ele. Até posso imaginar que, à medida que os dias passem, Golias se torne cada vez mais arrogante, talvez chegando mais e mais perto (e os israelitas fugindo toda vez que ele o faz - ver 17:24). A princípio, sua oferta é um desafio, depois parece se tornar um insulto. Ele está tentando incitar os israelitas a tomarem uma atitude.

Este desafio é fácil para Golias. Afinal, esse camarada é um gigante. Ele mede “seis côvados e um palmo” (verso 4), o que o faz ter quase 3 metros de altura. Se hoje ele fosse um jogador de basquete, poderia “enterrar” a bola sem tirar os pés do chão! Se sua altura não for suficiente para aterrorizar os israelitas, sua armadura deve dar arrepios na espinha. Já ouvi falar de mulheres “bem vestidas”, mas Golias manda sua mensagem justamente pelo modo como está equipado. Ele usa um capacete de bronze e uma couraça que pesa cerca de 60 kg, e suas pernas também estão protegidas por caneleiras. Ele carrega um dardo de bronze entre os ombros e tem uma lança tão pesada que alguns precisariam de um amigo para pegar uma das extremidades e ajudar a carregá-la. A ponta da lança pesa cerca de 7 kg, segundo algumas estimativas, e outros sugerem ainda mais. Além de todo esse equipamento de proteção usado ou carregado por Golias, ele tem um escudeiro que vai à sua frente levando seu escudo.

Os israelitas levam a sério o desafio de Golias. Eles e seu rei estão apavorados por causa do gigante filisteu. Eles estão tão assustados que ninguém se dispõe a aceitar o desafio de Golias. Ninguém quer enfrentar o gigante. De manhã e à tarde, durante 40 dias, Golias tenta provocar alguém para que lute com ele, e aterroriza os que não aceitam.

Golias, o campeão filisteu, é descrito nos versos 4 a 11 por sua elevada estatura física e sua impressionante e ofensiva armadura. Davi, o futuro oponente de Golias, é apresentado nos versos 12 a 15 com uma descrição bem diferente. Nada é dito sobre sua estatura, sua força ou suas armas. Simplesmente é dito que ele é o mais novo dos oito filhos de Jessé, o efrateu de Belém de Judá. Muito mais é dito a respeito de Jessé, que é um homem já muito velho nos dias de Saul (verso 12). Também é dito que os três irmãos mais velhos de Davi (os mesmos mencionados em 16:6-9) foram à guerra com Saul, e que Davi é deixado em casa para apascentar as ovelhas, salvo quando precisa viajar para servir como ministro de música para Saul (ver 16:14-23).

Por que esta ênfase “familiar” na descrição de Davi, quando Golias é descrito em termos de sua assombrosa aparência, armas e agressividade? Há muitas razões. Primeira, não é a aparência de Davi que faz com que Deus o escolha, mas seu coração, seu caráter. Segundo, para que Davi seja reconhecido como alguém de cuja descendência algum dia virá o Messias, ele precisa ser da tribo de Judá (ver Gn. 49:8-12), e deve ser de Belém (ver Mq. 5:2). Ser o mais novo da família explica a razão pela qual ele é designado para apascentar as ovelhas, e também a razão pela qual seu pai idoso o envia para entregar comida a seus irmãos e trazer notícias de seu bem-estar. É também outro exemplo de como Deus muitas vezes reverte a maneira dos homens, a qual, aqui, seria escolher o filho mais velho de Jessé, não o mais novo.

Davi Visita Seus Irmãos na Batalha
(17:17-25)

“Disse Jessé a Davi, seu filho: Leva, peço-te, para teus irmãos um efa deste trigo tostado e estes dez pães e corre a levá-los ao acampamento, a teus irmãos. Porém estes dez queijos, leva-os ao comandante de mil; e visitarás teus irmãos, a ver se vão bem; e trarás uma prova de como passam. Saul, e eles, e todos os homens de Israel estão no vale de Elá, pelejando com os filisteus. Davi, pois, no dia seguinte, se levantou de madrugada, deixou as ovelhas com um guarda, carregou-se e partiu, como Jessé lhe ordenara; e chegou ao acampamento quando já as tropas saíam para formar-se em ordem de batalha e, a gritos, chamavam à peleja. Os israelitas e filisteus se puseram em ordem, fileira contra fileira. Davi, deixando o que trouxera aos cuidados do guarda da bagagem, correu à batalha; e, chegando, perguntou a seus irmãos se estavam bem. Estando Davi ainda a falar com eles, eis que vinha subindo do exército dos filisteus o duelista, cujo nome era Golias, o filisteu de Gate; e falou as mesmas coisas que antes falara, e Davi o ouviu. Todos os israelitas, vendo aquele homem, fugiam de diante dele, e temiam grandemente, e diziam uns aos outros: Vistes aquele homem que subiu? Pois subiu para afrontar a Israel. A quem o matar, o rei o cumulará de grandes riquezas, e lhe dará por mulher a filha, e à casa de seu pai isentará de impostos em Israel.”

Nos versos 4 a 30 há um claro contraste entre o jeito como Golias vem para o combate e a maneira como Davi se apresenta para enfrentá-lo. A figura marcante de Golias é previsível, até mesmo esperada. Ele é um soldado experiente, um lutador arrogante (se não corajoso), um campeão cuja função é lutar no território entre os exércitos oponentes. Davi está envolvido nesta batalha de uma forma diferente. Jamais esperaríamos isto dele e, provavelmente, nem ele. Ele nem mesmo está no exército. Seus três irmãos mais velhos estão, mas há ainda outros quatro que são mais velhos do que ele e que também não estão lutando. Davi é o mais novo de oito filhos. Seu trabalho é tocar harpa para Saul e apascentar as ovelhas de seu pai. Quem poderia imaginar que ele acabaria aceitando o desafio de Golias?

A chegada de Davi à cena do conflito não é conseqüência de sua própria iniciativa. Ele está mais do que ocupado cuidando de Saul e das ovelhas de seu pai (verso 15). Seus três irmãos mais velhos estão lutando contra os filisteus poucas milhas a oeste e, aparentemente, já faz algum tempo que Jessé recebeu alguma notícia deles. Devido à sua idade avançada, Jessé não pode viajar para muito longe; portanto, ele chama Davi e o instrui a ir ao acampamento do exército israelita. Aparentemente, o propósito de sua visita é levar alguns suprimentos para seus irmãos e seu comandante (versos 17-18). No entanto, sente-se que o que Jessé mais deseja é ter notícias em primeira mão sobre o rumo das coisas e sobre seus filhos.

Estou certo de que Jessé não deseja colocar seu filho mais novo em perigo. Creio que ele espera que Davi chegue enquanto os soldados estão no acampamento, não na frente de batalha. Ele quer que Davi entregue os suprimentos, fale diretamente com seus irmãos, e depois se apresse em voltar prá casa com as notícias, sem se envolver na luta. Simplesmente não acontece desse jeito. Deus providencialmente orquestra os fatos para que ocorra uma série de acontecimentos bem diferentes.

Depois de cuidar para que alguém tomasse conta de seu rebanho de ovelhas, Davi parte logo cedo, viajando aproximadamente 12 milhas para oeste, rumo ao acampamento israelita. Se ele tivesse chegado alguns minutos antes, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ele teria encontrado seus irmãos ainda no acampamento, onde simplesmente lhes teria dado os suprimentos enviados por Jessé, perguntado sobre seu bem-estar e depois iniciado a volta para casa antes que eles fossem para a frente de batalha.

Mas Davi chega justamente quando os soldados israelitas estão deixando o acampamento e indo apressadamente para a linha de frente, dando um impressionante grito de guerra enquanto atacam - aproximando-se, mas nem tanto, dos filisteus. Davi tem pouca opção, a não ser deixar a comida que trouxe de casa com o soldado que está na retaguarda com os suprimentos, e ir atrás de seus irmãos na frente de batalha. Ali ele encontra os irmãos e, enquanto conversa com eles, Golias se adianta para repetir seu desafio pela 41ª vez. Golias diz o de sempre, mas esta é a primeira vez que Davi o ouve. Ele ouve o desafio do gigante e sua blasfêmia contra Israel e seu Deus. Ele vê os apavorados israelitas (incluindo seus irmãos) baterem em retirada, sua coragem estraçalhada pelas palavras e pela aparência deste homem.

Providencialmente, alguns soldados israelitas conversam com Davi ou, pelo menos, conversam na sua frente. As palavras que ele ouve o pegam totalmente desprevenido, tanto que ele pede que sejam repetidas e confirmadas diversas vezes por diversas pessoas. Todos dizem a mesma coisa, que o rei Saul expediu um edito convocando voluntários para lutar com Golias, e que também ofereceu uma recompensa substancial ao homem que se apresentasse e aceitasse o desafio. Saul promete dar a essa pessoa grandes riquezas, assim como uma de suas filhas por esposa. Ele também promete isentar de impostos a família do pai do voluntário.

Admito que é mera especulação, mas não creio que esta tríplice oferta seja feita de uma só vez. Creio que tenha sido feita de modo progressivo. Você já esteve no portão de embarque de um aeroporto prestes a embarcar, quando o atendente anuncia que o vôo está com excesso de reservas? A princípio, a companhia aérea pode oferecer US$ 100 de crédito a quem se dispor a ceder seu assento. Depois, se ainda forem necessários outros assentos, a companhia aumenta a oferta. E então, a pessoa que devolve sua passagem recebe um crédito de US$ 200. Finalmente, se ainda for necessário, a companhia oferece passagens grátis de ida e volta para qualquer lugar do país.

Acho que é isto que Saul faz. Ele não está disposto a enfrentar Golias pessoalmente, por isso convoca um voluntário. Ninguém se apresenta. Então ele oferece uma quantia substancial em dinheiro (ou terras, ou o que quer que seja em forma de riqueza) a qualquer voluntário. Ninguém ainda. Poucos dias depois, Saul lança a oferta de uma de suas filhas como esposa - sem voluntários. Finalmente, ele acrescenta mais um benefício ao pacote - ele isentará de impostos a família do homem. Eis um negócio que Saul acha irrecusável.

Davi também acha irrecusável. Quando fica sabendo o que está sendo oferecido por Saul, ele acha tão incrível que pede a confirmação de diversas pessoas antes de acreditar. Em minha opinião, Davi não é totalmente motivado pelo que é oferecido. Pelo contrário, ele fica espantado que tal oferta tenha sido feita, pois espera que um verdadeiro soldado aproveite a oportunidade - o privilégio - de enfrentar Golias. Afinal, este homem está afrontando o povo de Deus e, portanto, o próprio Deus. Davi está certo de que Deus dará a vitória àquele que lutar com Golias. É batata! E além da grande honra e do privilégio de lutar com Golias, o rei está oferecendo todos estes prêmios! Não dá para entender. Davi pergunta mais e mais vezes para ter certeza de que ouviu corretamente. É alguma pegadinha? Por que será que ninguém quer aceitar a oferta de Saul?

A Discussão de Davi com Eliabe
(17:28-30)

“Ouvindo-o Eliabe, seu irmão mais velho, falar àqueles homens, acendeu-se-lhe a ira contra Davi, e disse: Por que desceste aqui? E a quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção e a tua maldade; desceste apenas para ver a peleja. Respondeu Davi: Que fiz eu agora? Fiz somente uma pergunta. Desviou-se dele para outro e falou a mesma coisa; e o povo lhe tornou a responder como dantes.”

A maioria das pessoas pensa que o milagre deste capítulo seja a derrota de Golias por Davi. Embora seja um grande milagre, não vamos nos esquecer que muitos obstáculos precisam ser superados antes que Davi possa confrontar Golias. O primeiro é a sua situação. Ele é jovem e nem mesmo está no exército de Saul. Ele é um jovem pastor que cuida do rebanho de seu pai a algumas milhas do lugar onde os dois exércitos estão frente a frente. Além de Golias, Davi também precisa passar por seu irmão mais velho, Eliabe, e por Saul. Ele precisa primeiro obter permissão oficial para entrar em combate com Golias no campo de batalha. O primeiro obstáculo está em vias de ser removido. Agora Davi está tratando do segundo obstáculo – seu irmão mais velho, Eliabe – nos versos 28 a 30.

Vamos relembrar as palavras de Eliabe a Davi à luz daquilo que já aprendemos sobre ele no capítulo 16. Eliabe é o mais velho dos oito filhos de Jessé; Davi é o mais novo. Eliabe deve ser “alto, moreno e bonito”, pois Samuel espera que ele seja ungido rei de Israel. Eliabe é rejeitado (junto com os outros seis irmãos mais velhos de Davi), porque Deus não escolherá o rei com base na aparência, mas com base num coração segundo o Seu próprio coração (13:14; 16:7). Eliabe não possui o “coração” que Davi possui. Além disso, Samuel ungiu Davi na presença de seus irmãos (16:13) para que Eliabe soubesse de sua eleição como rei.

Perto do final do capítulo 17, Eliabe não está com boa cara. Quando ouve Davi perguntando a alguns de seus companheiros de batalha sobre as recompensas oferecidas por Saul ao homem que derrotar Golias, Eliabe fica extremamente irado e descarrega sua raiva em Davi. Primeiro ele o acusa de vir ao campo de batalha pelos motivos errados. Especificamente, ele acusa Davi de querer ser um espectador da peleja por pura diversão, não muito diferente de ir a um circo. Ou ele não sabe que Davi veio em obediência às instruções de seu pai ou mentalmente põe isso de lado. Depois, ele ataca Davi acusando-o de deixar suas responsabilidades com relação ao seu trabalho de cuidar das ovelhas de seu pai. Ele acusa Davi de abandonar o rebanho e junta um insulto à injúria, acrescentando a palavra “poucas” (“poucas ovelhas”, verso 28), sugerindo que a tarefa de Davi não é apenas doméstica (cuidar de ovelhas), mas também banal (só umas “poucas ovelhas”). Na verdade, Davi não negligenciou seu rebanho, mas assegurou-se de que alguém cuidasse dele na sua ausência (verso 20). No entanto, o pior de tudo é que Eliabe ousa julgar o coração de seu irmão mais novo, acusando-o de agir com maldade.

Ironicamente, em todas as áreas em que Eliabe acusa Davi, seu irmão mais novo não é somente inocente, mas é digno de elogio. Davi vem ao campo de batalha para trazer comida a seus irmãos e levar notícias deles a seu pai - ele vem em obediência às instruções de seu pai. Davi não abandonou seu rebanho; ele se assegurou de que alguém cuidasse dele enquanto estivesse ausente. Davi não é culpado de ter um coração maléfico; ele é escolhido por Deus porque é “um homem segundo o coração de Deus”. E Davi não deve ser tratado com desrespeito, uma vez que em breve será o rei de Israel (e isto inclui Eliabe).

Examinando todas as acusações de Eliabe, o ponto principal é: a juventude de Davi. Davi é acusado de vir à cena da batalha por curiosidade infantil. Isto é injusto. É acusado de abandonar suas responsabilidades como faria uma criança, e também é acusado da insolência e maldade que as crianças são capazes. Que ousadia Davi vir e levantar questões pertinentes ao pedido de Saul e ao desafio de Golias!

Se Davi tivesse voltado direto para casa e desse ao seu pai um relato honesto e completo sobre a guerra e a conduta de seus irmãos mais velhos, o que ele teria dito a Jessé? Teria relatado que absolutamente nenhum progresso tinha sido feito para derrotar os filisteus, e que Eliabe, Abinadabe e Samá correram como covardes quando Golias se aproximou. Teria que dizer a seu pai que, ao trazer à baila a questão do voluntário para lutar com Golias, foi severamente “cortado” por seu irmão mais velho. Não é interessante que a arrogância e as blasfêmias de Golias são minimizadas por Eliabe, enquanto Davi é falsamente acusado de maldade por fazer e falar o que é certo?

Davi talvez fique aflito e desapontado pelas cruéis palavras acusatórias de seu irmão, mas não é barrado por elas. Ele responde a seu irmão e o desafia a ser específico quanto aos erros que cometeu, dizendo o que ele fez. Ele parece insistir que o assunto sobre o qual está falando não é inadequado. Sobre o que mais alguém deveria conversar, a não ser sobre enfrentar Golias e ir buscar a recompensa oferecida por Saul? Assim, Davi continua o que estava fazendo - perguntando àqueles ao seu redor se o seu entendimento sobre a oferta de Saul é correto.

Davi e o Golias de Golias (Saul)
(17:31-39)

“Ouvidas as palavras que Davi falara, anunciaram-nas a Saul, que mandou chamá-lo. Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu. Porém Saul disse a Davi: Contra o filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois tu és ainda moço, e ele, guerreiro desde a sua mocidade. Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. Disse mais Davi: O SENHOR me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu. Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o SENHOR seja contigo. Saul vestiu a Davi da sua armadura, e lhe pôs sobre a cabeça um capacete de bronze, e o vestiu de uma couraça. Davi cingiu a espada sobre a armadura e experimentou andar, pois jamais a havia usado; então, disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois nunca o usei. E Davi tirou aquilo de sobre si.”

Se for do jeito de Eliabe, Davi voltará para casa humilhado. Felizmente para Israel, Davi não fica arrasado e nem é dissuadido pela sarcástica repreensão de seu irmão, que tenta “podá-lo”. Eliabe poderia ter ordenado que ele fosse para casa, se Saul não tivesse ouvido sobre o interesse de Davi em seu programa de incentivos para enfrentar Golias. Sem levar Eliabe em consideração, Saul convoca Davi, cujas primeiras palavras ao rei são piedosas e animadoras:

“Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu.” (v. 32)

Embora o sentido das palavras de Davi vá muito além de Saul, o foco principal está sobre ele, pois está apavorado com a presença agourenta de Golias e dos filisteus. Davi bondosamente e, um tanto indiretamente, encoraja Saul a não temer. Ele fala isto porque está disposto a ir e lutar com Golias. Ele está disposto a fazer aquilo que nem Saul, nem qualquer outro soldado em Israel, está disposto a fazer - lutar com Golias.

Antes de considerar a fé de Davi, vamos ponderar por alguns instantes sobre os temores de Saul. Sou forçado a concluir que ele, por natureza, não é nenhum pouco corajoso. Seu pai foi “um homem de bens” (9:1), mas o mesmo não é dito a seu respeito. Saul é aquele que se esconde entre a bagagem quando é indicado para ser rei de Israel (10:22). Quando o Espírito desce sobre ele, ele se torna um novo homem, com um novo coração (10:9). Davi parece ser um homem segundo o coração de Deus antes mesmo do Espírito Santo descer sobre ele. Quando enfrenta a oposição dos filisteus, Saul é passivo, não ofensivo, embora a luta contra os filisteus seja uma parte significativa de seu chamado como rei (9:16). Somente quando o Espírito de Deus desce poderosamente sobre ele, Saul parece agir decisivamente contra seus inimigos (11:6). Por natureza, de maneira alguma Saul é corajoso; somente no Espírito ele é um verdadeiro líder.

Assim dizendo, devo admitir que sinto certa compaixão (ou pelo menos pena) de Saul. De diversas formas, sua recusa em lutar com Golias (individual ou coletivamente) é totalmente lógica. Afinal, disseram-lhe que seu reinado estava praticamente no fim (13:13-14; 15:23). Samuel o deixou, não vendo sua face novamente (15:35). E o Espírito de Deus se apartou dele, sendo substituído por um “espírito maligno da parte do Senhor” (16:14). Acho que eu também não estaria fazendo qualquer coisa perigosa ou corajosa.

Davi é um homem intrépido e, até aqui, o único israelita com coragem no campo de batalha. Onde ele a consegue? Deixe-me sugerir algumas fontes. Primeiro, sua coragem tem origem em sua teologia - seu entendimento de Deus. Ele é “um homem segundo o coração de Deus” (13:14, 16:7). Uma pessoa não pode ser um “homem segundo o coração de Deus” a menos que conheça o Seu coração, e isto só ocorre quando se entende Deus por meio de Sua Palavra (veja, por exemplo, o Salmo 119). Davi conhece a Deus não só de forma histórica (como Deus libertou Israel no passado) e teológica, mas também de forma prática, como em breve irá demonstrar a Saul.

Davi age como um rei de Israel deveria agir. Ele precisa confiar em Deus, incentivar seus colegas israelitas a fazer o mesmo, e derrotar os inimigos de Deus, especialmente os filisteus. Quando ele foi ungido como o futuro rei de Israel (capítulo 16), deve ter gasto um bom tempo meditando no significado destas coisas, bem parecido com o que Maria faria séculos depois (ver Lucas 2:19, 51). O que significa ser rei de Israel? O que ele deve fazer como rei? Suas ações no dia em que ele enfrenta Golias, sem dúvida, são conseqüências de suas meditações. Este jovem não é um soldado, e alguns diriam até que ele é jovem demais para lutar, mas Davi é providencialmente colocado numa situação em que precisa confiar em Deus e obedecer à Sua Palavra, ou então acovardar-se em incredulidade e desobediência, como Saul e os demais.

Saul dá a Davi todas as oportunidades para arranjar uma desculpa e voltar para a casa de seu pai e suas ovelhas, sem culpa ou vergonha. Há certa bondade em suas palavras quando tenta convencê-lo a não lutar com Golias. Ele não diz que Davi é muito pequeno para lutar, mas que é muito jovem e, por isso, inexperiente. Golias é um campeão maduro, com muitos anos de experiência em combates. Davi é apenas um garoto, sem nenhuma experiência. Ou pelo menos é isto que Saul supõe; no entanto, Davi diz o contrário, com tanta convicção que Saul permite que ele represente Israel na luta contra Golias.

Davi é jovem, mas seu dever, aparentemente banal, de cuidar de um pequeno rebanho de ovelhas o preparou muito bem para lutar com Golias. Eliabe jamais esteve tão errado a seu respeito, como demonstram as palavras de Davi a Saul. Esta manhã, junto com seus irmãos, Davi vê e ouve o que qualquer outro soldado israelita vê e ouve na frente de batalha. A diferença é que o que ele vê é muito parecido com as coisas que já enfrentou como pastor. Golias é forte e poderoso, capaz de destruir um homem? Leões e ursos também, e Davi os derrubou e matou. Poucas criaturas são mais assustadoras quando rugem do que um urso ou um leão (ver I Pe. 5:8). Ao desempenhar seus deveres como pastor Davi matou tanto ursos quanto leões (versos 34-36).

Quando Davi arrisca sua vida para salvar uma ovelha que está sob seus cuidados, Deus o salva. Será que ele está preocupado por ter que enfrentar Golias? Não, pois o Deus que o salvou das garras do leão e das garras do urso também o salvará das mãos de Golias. Repare que Davi fala em ser salvo das “mãos” ou das “garras” de um leão ou urso, não das “presas”. Isto porque a fera tinha um cordeiro em sua boca e não queria soltá-lo, tendo que lutar com Davi com suas patas e garras. Golias não representa nenhuma ameaça e, uma vez que Davi, com a ajuda de Deus, destruiu com suas próprias mãos o leão e urso que rugiam, ele também pode destruir os filisteus que urram. Golias fala (urra) de um jeito que assusta as forças israelitas? Ele não assusta Davi. Davi já viu isso antes.

Creio que a fé de Davi em Deus seja contagiosa e que Saul, de alguma forma, crê que haja uma boa chance de ele prevalecer contra Golias. Saul lhe dá permissão para lutar e lhe oferece sua armadura. A armadura não é uma boa idéia, e Davi a recusa, mas ela é uma forte implicação de que Davi luta com Golias em lugar de Saul, como representante oficial do exército israelita. Se for esse o caso, a vitória de Davi deve ser a vitória de Israel (o que acabará sendo). Caso contrário, sua derrota irá parecer a derrota de Israel, pelo menos nos termos especificados por Golias (ver versos 8 e 9). Davi não está travando esta luta sozinho. Ele está lutando por Deus, por Saul e por todo o povo de Israel.

Não quero ser muito prolixo a respeito da armadura de Saul, a qual ele oferece a Davi. Pode parecer, pelo menos à distância (e para aqueles mal informados), que é Saul quem esteja saindo contra Golias. Afinal, quem mais tem uma armadura como a dele? Isto também sugere que Davi não pode ser tão pequeno em estatura, ou a armadura nem mesmo serviria nele. Ele a coloca e depois a tira, porque não sabe lutar com ela - em suas palavras, ele nunca a “usou”. Davi irá contra Golias com as mesmas armas que costuma usar, aquelas que Deus lhe deu habilidade para usar.

Davi e Golias
(17:40-54)

“Tomou o seu cajado na mão, e escolheu para si cinco pedras lisas do ribeiro, e as pôs no alforje de pastor, que trazia, a saber, no surrão; e, lançando mão da sua funda, foi-se chegando ao filisteu. O filisteu também se vinha chegando a Davi; e o seu escudeiro ia adiante dele. Olhando o filisteu e vendo a Davi, o desprezou, porquanto era moço ruivo e de boa aparência. Disse o filisteu a Davi: Sou eu algum cão, para vires a mim com paus? E, pelos seus deuses, amaldiçoou o filisteu a Davi. Disse mais o filisteu a Davi: Vem a mim, e darei a tua carne às aves do céu e às bestas-feras do campo. Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do SENHOR dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel. Saberá toda esta multidão que o SENHOR salva, não com espada, nem com lança; porque do SENHOR é a guerra, e ele vos entregará nas nossas mãos. Sucedeu que, dispondo-se o filisteu a encontrar-se com Davi, este se apressou e, deixando as suas fileiras, correu de encontro ao filisteu. Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; a pedra encravou-se-lhe na testa, e ele caiu com o rosto em terra. Assim, prevaleceu Davi contra o filisteu, com uma funda e com uma pedra, e o feriu, e o matou; porém não havia espada na mão de Davi. Pelo que correu Davi, e, lançando-se sobre o filisteu, tomou-lhe a espada, e desembainhou-a, e o matou, cortando-lhe com ela a cabeça. Vendo os filisteus que era morto o seu herói, fugiram. Então, os homens de Israel e Judá se levantaram, e jubilaram, e perseguiram os filisteus, até Gate e até às portas de Ecrom. E caíram filisteus feridos pelo caminho, de Saaraim até Gate e até Ecrom. Então, voltaram os filhos de Israel de perseguirem os filisteus e lhes despojaram os acampamentos. Tomou Davi a cabeça do filisteu e a trouxe a Jerusalém; porém as armas dele pô-las Davi na sua tenda.”

A ironia deste incidente é que a armadura de Davi (ou a falta dela) parece “desarmar” Golias. Eis um homem cujo ego parece tão grande ou maior do que sua estrutura. Ele é arrogante, orgulhoso e blasfemo. Ele desafia os israelitas a lhe enviar seu melhor guerreiro, e o vencedor leva tudo. Você pode imaginar que choque para Golias e seu ego quando Davi aparece? Eis aqui um jovem sem nenhuma proteção e, aparentemente, sem nenhuma arma ofensiva. Davi leva uma funda, mas ainda não colocou nela uma pedra, por isso, com certeza, não parece ameaçador. O que Golias vê é o cajado que Davi leva nas mãos. Ele parece concluir que esta seja sua única arma. Ainda hoje as pessoas carregam pedaços de pau - para afastar cachorros inoportunos. Será que é por isso que Davi carrega seu cajado, para tratar Golias como a um cachorro? Golias profere maldições pelos seus deuses (verso 43). Ele é de Gate; será que ele sabe como Deus tratou seu “deus” Dagon?

Que insulto para Golias mandarem um rapazinho sem nenhuma armadura e com um pedaço de pau! É assim que o levam a sério? Será que fazem tão pouco de suas habilidades que mandam alguém como este? Golias é louco e, com certeza, pretende matar Davi e dar sua carcaça como alimento às aves do céu e às bestas do campo (verso 44). Será que a ameaça também pretende intimidar Davi? Não. De qualquer forma, isto confirma a fé de Davi. A imagem do cadáver de um inimigo alimentando as aves e as feras não começou com Golias:

“O SENHOR te fará cair diante dos teus inimigos; por um caminho, sairás contra eles, e, por sete caminhos, fugirás diante deles, e serás motivo de horror para todos os reinos da terra. O teu cadáver servirá de pasto a todas as aves dos céus e aos animais da terra; e ninguém haverá que os espante.” (Dt. 28:25-26)

Deus usou esta expressão para descrever o destino dos israelitas que rejeitarem Sua Palavra, mas a imagem também pode ser empregada com relação aos inimigos de Deus, quem quer que sejam (ver Jr. 7:33; 15:3; 16:4; 19:7; 34:20; Ez. 29:5). Golias espera assustar Davi, ameaçando matá-lo e dar seu corpo como alimento às aves e às feras? Simplesmente ele relembra a Davi a promessa de Deus com relação a Seus inimigos. É por isso que Davi pode reverter sua maldição:

“Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel.” (I Sam. 17:46)

Não é o corpo de Davi que virará comida de passarinho neste dia, mas o de Golias. Davi deixa bem claro que sua disputa com Golias não é apenas uma questão pessoal - Davi luta com ele para a glória de Deus, e a favor da nação de Israel. Sua vitória será uma lição para todos de que “a batalha é do Senhor”, da mesma forma que a vitória (verso 47).

Isto faz Golias se mover. Davi não espera que Golias venha até ele. Em vez disto, ele corre em sua direção, pegando uma das cinco pedras na corrida, colocando-a na funda e depois girando enquanto se dirige para o gigante. Você pode imaginar Davi, a esta altura, tentando correr com a armadura de Saul, esperando desferir um golpe fatal contra Golias quando nem mesmo pode estender o braço acima dos ombros com uma espada? A funda é a arma perfeita. Golias está atrás do escudo carregado por seu escudeiro. Ele está protegido dos pés à cabeça, com uma abertura apenas ao redor dos olhos para que possa ver. Esta é a parte exposta de seu corpo. Este é o alvo de Davi, que ele acerta em cheio, ouso dizer, enquanto corre. A pedra se encrava na cabeça de Golias, derrubando-o como a uma árvore. Davi corre para ele, arranca a espada do corpo inerte e corta sua cabeça com ela. Agora o inimigo é comida de passarinho.

Este momento deve ter sido angustiante, quando o mundo todo parecia imóvel e em silêncio. Por alguns instantes os filisteus ficam paralisados, as mentes em disparada tentando captar o que acaba de acontecer diante de seus olhos, enquanto começam a perceber suas implicações. O mesmo deve ser verdade para os soldados israelitas. E então, depois de um instante de paralisia, os filisteus batem em retirada. Com a perda de seu campeão, toda coragem e vontade de lutar vão embora. Os soldados israelitas aproveitam a ocasião e vão atrás dos inimigos que batem em retirada. Não há lugar melhor para lutar com o inimigo como pela retaguarda, onde não existe proteção e o peso da armadura atrapalha sua fuga. Armadura, espada, qualquer coisa que retarde a fuga do inimigo, é deixada prá trás. Os corpos dos filisteus ficam espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas cidades. E no caminho de volta os soldados israelitas voltam carregados dos despojos saqueados dos campos filisteus. Davi parece carregar somente a cabeça do filisteu, junto com suas armas, as quais ele temporariamente coloca em sua tenda.

Uma Passagem Problemática
(17:55-58)

“Quando Saul viu sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o comandante do exército: De quem é filho este jovem, Abner? Respondeu Abner: Tão certo como tu vives, ó rei, não o sei. Disse o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este jovem. Voltando Davi de haver ferido o filisteu, Abner o tomou e o levou à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu. Então, Saul lhe perguntou: De quem és filho, jovem? Respondeu Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita.”

Esta passagem apresenta alguns problemas para os estudiosos. Pode parecer que Saul não conhece Davi e, portanto, não saiba quem seja ele. Devemos começar mostrando o que a pergunta de Saul não é: “Quem é este jovem?”, e sim “De quem é filho este jovem?” Porque deveríamos supor que uma vez que Saul conhece Davi ele também conhece seu pai? No capítulo 16, mensageiros são enviados a Jessé para pedir que ele permita que Davi vá à casa de Saul e toque harpa para ele (16:19). Isto não requer que Saul saiba o nome do pai de Davi. Seus servos podem cuidar de todos os detalhes. Devemos também nos lembrar que Jessé é idoso e não pode viajar, razão pela qual Davi é enviado ao campo de batalha para perguntar sobre o bem-estar de seus irmãos (17:12, 17 e seguintes). Assim, Jessé e Saul, provavelmente, nunca se encontraram. Por que, então, é tão extraordinário que Saul pergunte o nome do pai de Davi, talvez para a papelada fiscal, se ele realmente for isentá-lo?

No capítulo 16, sabemos que Davi vai trabalhar para Saul (16:14-23), e no capítulo 17, somos relembrados deste fato (17:15). No capítulo 18, encontramos Davi tocando sua harpa para o atribulado Saul, como ele faz no capítulo 16 (18:10-12) - e também no capítulo 19 (19:9-10). É difícil evitar o fato de que Saul conhece Davi, apesar de não saber (ou pelo menos não se lembrar) do nome de seu pai, Jessé. Não é nenhuma surpresa que um rei não se lembre do nome do pai de um de seus empregados de meio período. Mesmo que esperássemos que Saul se lembrasse, nosso texto não levanta questões sobre a precisão da passagem, apenas sobre a precisão da memória de Saul. Confuso como Saul está, por que achamos isto estranho?

Entretanto, existe uma coisa nos versos 55 a 58 que deveria nos incomodar - não é a falta de memória de Saul, mas seu desinteresse pela batalha. Mostrei que no capítulo 14 ele está “debaixo de uma romãzeira” (verso 2), enquanto Jônatas, junto com seu escudeiro, está prestes a lutar com alguns filisteus. É como se Saul estivesse no lugar mais confortável em vez de estar no lugar mais estratégico (que é para onde Jônatas vai). Agora, no capítulo 17, Davi acabou de falar com Saul e está saindo para a batalha com Golias. Saul e seu comandante em chefe assistem de um cômodo lugar à distância. Se alguém deveria estar pronto para a batalha, deveria ser estes dois. Saul é aquele cujo dever é ir para a batalha adiante dos israelitas; Abner, “o comandante do exército”, também deve liderar a batalha. No entanto, os dois parecem observar de uma distância segura, enquanto Davi sai para arriscar sua vida.

Podemos comparar esta cena a um jogo de futebol (americano) entre o Dallas Cowboys e o San Francisco Forty-Niners. Olhamos para o campo e vemos grandes jogadores como Jerry Rice e Steve Young pelo San Francisco. Depois, vemos um zagueiro novato em linha pelos Cowboys, junto com outros zagueiros bem leves. Ao correr os olhos pelo estádio, vemos Troy Aikman e o treinador Barry Switzer sentados no banco, observando o jogo com binóculos e perguntando um ao outro o nome do pai do novato. Simplesmente não parece certo, parece?

Eis aqui Saul e Abner, de braços cruzados e a uma distância segura, conversando sobre o pai de Davi. Abner diz a Saul que não sabe. Saul diz a Abner para verificar. Enquanto isso Davi avança contra Golias. Quase posso ouvir Saul, virando-se para Abner, dizer: “passa a pipoca”. Quando Davi volta, depois de matar Golias, Abner o leva a Saul com a cabeça de Golias nas mãos. Saul então pergunta a Davi de quem ele é filho, e ele lhe diz que o nome de seu pai é Jessé, o belemita. Isto é ainda mais bizarro, não é? E quanto à batalha? Por que Saul e Abner não estão envolvidos nela? Como encontram tempo para conversar sobre coisas como o nome do pai de Davi numa hora como esta? Saul não é retratado sob uma luz muito favorável. Se alguém quiser se preocupar, é só pensar no que Saul e Abner estão fazendo, e no que não estão fazendo, em vez de se torturar sobre razão pela qual eles não se lembram do nome do pai de Davi, um homem que, provavelmente, nunca encontraram e cujo nome talvez jamais tenham ouvido.

Conclusão

Sabemos o que Davi considerava em seu coração quando Samuel o ungiu como futuro rei de Israel em lugar de Saul. Imagino que ele tenha se sentido tal como a virgem Maria quando o anjo Gabriel lhe disse que ela estava prestes a se tornar mãe do Messias prometido. Sua resposta foi: — Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? (Lc. 1:34). Davi, da mesma forma, deve ter pensado: — Como posso me tornar rei de Israel, quando sou apenas um jovem que nem mesmo tem idade para estar no exército, e cuja única autoridade está sobre um pequeno rebanho de ovelhas? Os últimos versos do capítulo 16 começam a nos dizer como Deus realizará Sua vontade para Davi. O capítulo 17 é outra parte muito importante no plano para fazer dele um rei. É maravilhoso ver como Deus cuida em cumprir a Sua Palavra. E aquilo que Deus promete, Ele cumpre. Sua Palavra é certa.

Somos propensos a considerar a disputa entre Davi e Golias como algo extraordinário, extremamente incomum. E não é. Deus havia dado instruções bem específicas a respeito desses confrontos:

“Quando saíres à peleja contra os teus inimigos e vires cavalos, e carros, e povo maior em número do que tu, não os temerás; pois o SENHOR, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, está contigo. Quando vos achegardes à peleja, o sacerdote se adiantará, e falará ao povo, e dir-lhe-á: Ouvi, ó Israel, hoje, vos achegais à peleja contra os vossos inimigos; que não desfaleça o vosso coração; não tenhais medo, não tremais, nem vos aterrorizeis diante deles, pois o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco a pelejar por vós contra os vossos inimigos, para vos salvar.” (Dt. 20:1-4)

Alguns versos depois Deus instrui os israelitas a identificarem os covardes para que não minem a fé e a confiança de seus irmãos (verso 8). O problema de Saul e de Israel com os filisteus não é algo fora de série. O problema é o medo de Saul e sua falta de fé, que são contagiosos.

Não é interessante que as tropas fujam quando são lideradas por Saul? (ver I Sam. 13:5-7) Os soldados ficam apavorados porque Saul está aterrorizado (17:11, 24). Davi, um humilde pastorzinho, jovem demais para ser soldado do exército de Saul, se apresenta e, devido à sua fé e coragem, anima os outros a confiarem em Deus quando é usado para matar Golias e dar à Israel a vitória. Repare na longa lista de heróis que há entre os soldados de Israel em II Samuel 23, após Davi ter se tornado rei. Há muitos valentes sob sua liderança, muitos devido à fé e coragem demonstrados pessoalmente por Davi. Fico fascinado em saber que há uma porção de Golias depois deste, e sobre o quê os homens de Davi (assim como Davi) fazem com eles:

“Depois disto, houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; então, Sibecai, o husatita, feriu a Safe, que era descendente dos gigantes. Houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; e Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu a Golias, o geteu, cuja lança tinha a haste como eixo de tecelão. Houve ainda outra peleja; esta foi em Gate, onde estava um homem de grande estatura, que tinha em cada mão e em cada pé seis dedos, vinte e quatro ao todo; também este descendia dos gigantes. Quando ele injuriava a Israel, Jônatas, filho de Siméia, irmão de Davi, o feriu. Estes quatro nasceram dos gigantes em Gate; e caíram pela mão de Davi e pela mão de seus homens.” (II Sam. 21:18-22, compare com I Cr. 20:4-8).

Esse negócio de matar gigantes parece que virou rotina. Uma vez que Davi se levanta contra Golias, outros valentes enfrentam os membros da família de Golias. A coragem de Davi é contagiosa, da mesma forma que foi a covardia de Saul. Deus não pretendia que um gigante fosse morto por ele a fim de que nenhum israelita tivesse que encarar esse problema de novo. Deus pretendia que Davi enfrentasse e matasse o gigante para dar exemplo aos outros e fé para agir da mesma forma.

Digo que Golias sempre terá seus “Davis” e que estes homens sempre terão seus “Golias”. Algumas vezes os “Golias” serão indivíduos; outras, nações, ou até mesmo poderes celestiais. Em cada caso devemos nos lembrar de que “a batalha é do Senhor”. É Ele quem vai adiante de nós dando-nos a vitória.

“O SENHOR, vosso Deus, que vai adiante de vós, ele pelejará por vós, segundo tudo o que fez conosco, diante de vossos olhos, no Egito, como também no deserto, onde vistes que o SENHOR, vosso Deus, nele vos levou, como um homem leva a seu filho, por todo o caminho pelo qual andastes, até chegardes a este lugar. Mas nem por isso crestes no SENHOR, vosso Deus, que foi adiante de vós por todo o caminho, para vos procurar o lugar onde deveríeis acampar; de noite, no fogo, para vos mostrar o caminho por onde havíeis de andar, e, de dia, na nuvem.” (Dt. 1:30-33)

“Porquanto não saireis apressadamente, nem vos ireis fugindo; porque o SENHOR irá adiante de vós, e o Deus de Israel será a vossa retaguarda.” (Is. 52:12)

“Então, romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda;” (Is. 58:8)

“Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos assusteis por causa do rei da Assíria, nem por causa de toda a multidão que está com ele; porque um há conosco maior do que o que está com ele. Com ele está o braço de carne, mas conosco, o SENHOR, nosso Deus, para nos ajudar e para guerrear nossas guerras. O povo cobrou ânimo com as palavras de Ezequias, rei de Judá.” (II Cr. 32:78)

Nosso texto tem muitas coisas a nos ensinar sobre liderança, como ela se desenvolve e como é reconhecida. Devido às circunstâncias familiares e à ordem de nascimento, Davi não parece destinado à liderança. Mas ele é um homem segundo o coração de Deus. Deus providencialmente o prepara enquanto ele cumpre fielmente suas obrigações como pastor. Quando um leão ou um urso ataca uma das ovelhas do rebanho, ele a salva, enfrentando o urso ou o leão. Neste processo, Davi aprende a confiar em Deus e a usar as armas que lhe foram dadas, uma lição para nós também. Davi não busca a liderança; de certa maneira, ela é imposta a ele. Davi se torna um líder por ser um bom crente. Ele vai à cena da batalha em obediência às instruções de seu pai. E quando vê o medo dos israelitas, procura fazer alguma coisa a esse respeito. Ao ouvir Golias blasfemar contra Deus e intimidar os exércitos do Senhor, Davi se propõe a lutar com ele em nome do Senhor. Davi não busca a liderança, mas ela é imposta a ele e ele não procura se esquivar de suas responsabilidades. Quão humildes talvez tenham parecido suas funções de pastor, mas quão bem Deus as usou preparando-o para enfrentar Golias na batalha.

Nosso texto nos ensina sobre meios e métodos. Vivemos numa época em que os homens imitam os métodos de outros homens. Um homem parece ter um negócio ou ministério de sucesso, e escreve um livro contando aos outros “como” ele fez. Outros lêem seu livro, também querendo ser bem sucedidos, e então imitam seus métodos. Davi não luta contra Golias com as armas ou com os métodos de Saul. Davi luta contra Golias com os métodos que desenvolveu e praticou enquanto cuidava de suas ovelhas.

Muitas vezes esperamos que Deus cause a derrota de seus inimigos usando meios incomuns ou espetaculares. De fato, Deus lançou as pragas sobre os egípcios e atraiu seu exército para o Mar Vermelho. Deus usou terremotos, tempestades e enchentes. Deus é capaz de libertar Seu povo do jeito que quiser. Mas, no caso de Golias, Deus usou um rapazinho e uma funda. Em si mesmas estas armas podem não ser muito impressionantes, mas Davi e sua funda causaram grande impressão em Golias! Quando os meios mais comuns são usados por Deus, devemos nos lembrar que até nossa habilidade em atirar uma flecha, ou arremessar uma pedra, ou permanecer num terreno escorregadio vêm Dele:

“O caminho de Deus é perfeito; a palavra do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam. Pois quem é Deus, senão o SENHOR? E quem é rochedo, senão o nosso Deus? O Deus que me revestiu de força e aperfeiçoou o meu caminho, ele deu a meus pés a ligeireza das corças e me firmou nas minhas alturas. Ele adestrou as minhas mãos para o combate, de sorte que os meus braços vergaram um arco de bronze. Também me deste o escudo da tua salvação, a tua direita me susteve, e a tua clemência me engrandeceu. Alargaste sob meus passos o caminho, e os meus pés não vacilaram.” (Sl. 18:30-36)

“Bendito seja o SENHOR, rocha minha, que me adestra as mãos para a batalha e os dedos, para a guerra;” (Sl. 144:1)

Enfim, não é que Davi seja incrível, mas que o Deus a quem ele serve, e que foi adiante dele, é que é incrível. Saul parece ter se concentrado no inimigo em vez de ter se concentrado em Deus. Parece que Deus sempre nos dá inimigos que são bem maiores do que nós, para que lutemos em nossas fraquezas, confiando Nele e não em nós mesmos, dando-Lhe a glória, em vez de tomarmos o crédito para nós mesmos.

Quando chegamos a Davi, chegamos ao rei escolhido de Deus. Este é aquele de cuja descendência virá o Messias prometido, cujo reino não terá fim. E assim Davi, muitas vezes, nos provê uma prefiguração de Cristo. Nosso texto não é exceção. Davi é um tipo de Cristo, como Golias é um tipo de Satanás. Satanás tem o mundo inteiro tremendo de medo dele e da morte (ver Hb. 2:14-15). Nós, como os israelitas do passado, somos impotentes para derrotá-lo. Aquilo que não podemos fazer por nós mesmos, Cristo fez por nós, da mesma forma que Davi lutou com Golias por Saul e pelos israelitas. Jesus veio e enfrentou Satanás face a face e obteve a vitória. Davi fez isto ao matar Golias. Jesus o fez sendo crucificado na cruz do Calvário. Mas depois que Ele morreu para pagar a pena pelos nossos pecados, Ele ressurgiu do túmulo, triunfou sobre Satanás, o pecado e a morte. Em tudo Ele foi vencedor, e Jesus venceu morrendo e ressurgindo da morte. Todos aqueles que reconhecem seus pecados, e desistem de confiar em si mesmos colocando sua confiança em Jesus Cristo, têm o perdão de seus pecados e a segurança da vida eterna em Seu reino. Obrigado, Senhor, por seu campeão, o Senhor Jesus Cristo.

15. Davi se Une à Família de Saul (I Samuel 18:1-30)

Introdução

Há uns 25 anos, quando dava aulas, conheci um jovem que, segundo os boatos, fora membro de uma gangue de motoqueiros. Em conseqüência de um acidente, ele sofrera danos cerebrais e viera para a escola onde eu lecionava para obter ajuda. Certa vez, enquanto falava de Jesus a outro estudante, o motoqueiro com danos cerebrais me interrompeu, prensou-me contra a parede e depois me suspendeu pelo pescoço até alguém vir em meu socorro. O jovem escapou impune, pois se presumia que seus atos fossem conseqüência de suas condições, não de seu pecado e rejeição ao evangelho. Jamais houve qualquer dúvida para mim de que seus atos foram friamente calculados e executados.

Enquanto leio nosso texto em I Samuel 18, penso em meu encontro com este jovem agressivo. Sob todos os aspectos, o comportamento de Saul se parece com os delírios de um homem mentalmente perturbado, não responsável por seus atos. Se Saul fosse acusado de tentativa de assassinato pelas duas vezes em que atirou sua lança em Davi, há pouca dúvida de que alegaria “insanidade temporária”. Creio que nosso texto retrata Saul sob uma luz diferente, algo que está longe de ser lisonjeiro. Neste incidente, e naquele que se segue, creio que talvez tenhamos mal interpretado a narrativa da união de Davi com a família de Saul. Vamos prestar bastante atenção às palavras de nosso texto e à voz do Espírito Santo, enquanto Ele nos fala através deste intrigante capítulo.

Observações Preliminares

Quanto mais alguém lê e medita sobre este texto, mais algumas características vão se tornando evidentes. Permitam-me compartilhar algumas delas para prepará-los para esta exposição e estimulá-los ao seu próprio estudo da passagem.

Primeiro, algumas repetições importantes devem ser registradas:

  • O sucesso de Davi (versos 5, 14, 15, 30)
  • O fato de Deus estar com Davi (versos 12, 14, 28)
  • O amor (versos 1, 13, 16, 20, 22, 28)
  • O medo de Saul (versos 12, 15, 29)
  • As emoções, os pensamentos íntimos e os motivos de Saul são revelados (versos 8-9, 11-12, 15, 17, 20-21, 29)

Segundo, o autor parece comparar a atitude de Saul com a atitude de Jônatas, com relação a Davi e seu reino.

Terceiro, existe um forte senso de progressão ou de desenvolvimento neste capítulo. Por um lado, o entusiasmo de Saul por Davi e seu ministério degenera para a suspeita e depois para o medo. Por outro, a popularidade e a ascensão de Davi em Israel são cada vez mais crescentes. Cada degrau acima para Davi parece ser um degrau abaixo para Saul. E cada tentativa de Saul para reprimir a popularidade de Davi só faz aumentá-la.

Quarto, existe uma sutil ligação entre os esforços de Saul para se livrar de Davi e os esforços posteriores de Davi para se livrar de Urias, o marido de Bate-Seba. Saul tenta colocar Davi em situações militares perigosas para que ele seja morto em batalha. Isto tirará Davi do caminho de maneira a não colocar Saul sob um ângulo desfavorável (compare I Samuel 18:17 com II Samuel 11:14-17). Será que Davi aprendeu esta artimanha com Saul?

Quinto, o medo de Saul e seus intentos para matar Davi são mascarados por ele (Saul) no capítulo 18, mas revelados no capítulo 19. No capítulo 18 Saul tenta acabar com Davi de forma astuciosa. Ele parece promover Davi ao colocá-lo em posição de autoridade sobre seu exército, e depois o recompensando ao lhe oferecer sua(s) filha(s) em casamento. No entanto, por trás disto, há um motivo muito sinistro revelado em nosso texto, mas que não é publicamente revelado aos que viviam naquela época. Saul fala com um vocabulário dos mais santos (“...sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR...” - verso 17), mas sua intenção é totalmente vil (“porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” - verso 17). Quando todas estas artimanhas falham, no capítulo 19, a oposição de Saul a Davi se torna pública, onde ele ordena que Jônatas e seus servos o matem (19:1). Há hipocrisia em toda parte no capítulo 18, mas ela dá lugar à franca hostilidade no capítulo 19. Assim, no capítulo 18 precisamos ver as coisas não do jeito como aparentam ser - o jeito como Saul quer que os outros vejam - mas como elas são, à luz do que é revelado sobre o coração e a mente de Saul, fornecido pelo autor inspirado de I Samuel.

Sexto, o capítulo 18 (como o capítulo 16) não enfoca Davi tanto quanto enfoca Saul, Jônatas e Mical. Podemos dizer que este capítulo “enfoca a família” de Saul. Começa com o amor de Jônatas por Davi e termina com o amor de Mical por ele. Durante todo o tempo, aprendemos sobre o medo e a animosidade crescente de Saul para com Davi, que se torna seu genro, assim como seu oficial.

Sétimo, a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento por volta do segundo século a.C) omite uma porção dos versos encontrados no texto original hebraico (versos 1 a 5, 10-11, 17 a 19).

Davi “Tem um Dia Legal”
(18:1-5)

“Sucedeu que, acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma. Saul, naquele dia, o tomou e não lhe permitiu que tornasse para casa de seu pai. Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto. Saía Davi aonde quer que Saul o enviava e se conduzia com prudência; de modo que Saul o pôs sobre tropas do seu exército, e era ele benquisto de todo o povo e até dos próprios servos de Saul.”

Este deve ter sido um dia glorioso para Davi e, também, um bom dia para Saul. O prolongado impasse entre Israel e os filisteus finalmente chega ao fim. Golias, que aterroriza a cada soldado israelita e prova ser um grande embaraço para Saul, é morto pelas mãos de Davi. Isto leva a uma debandada geral, com corpos e despojos filisteus espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas principais cidades. Quando Davi regressa, após a morte de Golias, ele é levado diante de Saul por Abner. Saul averigua uma vez mais quem é o pai de Davi. Não estou tão certo quanto já estive de que isto fosse para isentar seu pai dos impostos. Pelo fato de Saul ter pedido a permissão de Jessé para empregar Davi por meio período (16:19), parece razoável que ele peça novamente sua permissão para manter Davi consigo em tempo integral.

A conversa de Davi com Saul define a questão para Jônatas (18:1). Sem dúvida, ele fica impressionado com a vitória de Davi sobre Golias, mas, o que mais o impressiona, parece ser as palavras de Davi ao seu pai. Será a fé de Davi em Deus? Será o fato de ele ter cuidado em dar glória a Deus? Será seu espírito humilde e reverente? Será seu cuidado pelo povo de Israel? Não é dito exatamente o que tanto impressiona Jônatas nesta conversa, mas fica claro que daí em diante estes dois homens passam a ser como irmãos.

Somente uma geração má e perversa poderia encontrar nas palavras de nosso texto ocasião para dizer que o relacionamento entre Davi e Jônatas é pervertido. Davi e Jônatas são almas gêmeas. Jônatas ama Davi como a si mesmo. Esta não é a maneira como todo crente deveria se sentir com relação a seus irmãos? Nesse dia, Jônatas e Davi fazem uma aliança. Apesar de não serem fornecidos os detalhes, não é difícil inferir quais sejam. De sua parte, Jônatas parece reconhecer que Davi é aquele que Deus escolheu para ser o próximo rei de Israel. Jônatas fica mais do que feliz em abrir mão da esperança do trono de seu pai em consideração ao escolhido de Deus - Davi.

Creio que isto seja simbolizado pelo fato de Jônatas presentear Davi com sua capa e sua armadura. Sabemos, pelo Velho Testamento, que a túnica de José era símbolo de sua autoridade (Gn. 37:3, 23). Antes de Arão morrer, suas vestes sacerdotais foram removidas para serem usadas por seu filho, Eleazar (Nm. 20:22-28). Elias colocou seu manto sobre Eliseu, que estava para assumir o seu lugar (I Re. 19:19-21).

Em seu livro Considerando o Coração, numa nota de rodapé, Dale Ralph Davis se reporta a um documento acadiano, encontrado em Ugarit, sobre a história de um rei do século XIII que se divorciou da esposa. Seu filho poderia escolher com qual dos pais viveria; mas, se o herdeiro escolhesse viver com sua mãe, ele tinha que abdicar do seu direito ao trono. Se ele escolhesse viver com sua mãe, desistindo, assim, de seus direitos, ele deveria indicá-lo, simbolicamente, deixando suas vestes no trono. Assim se parece o presente de Jônatas a Davi de seu manto e sua armadura. Eis um homem magnífico, com um espírito como o de João Batista (Jo. 3:30) e de Barnabé.

Jônatas está disposto a abrir mão de seu direito ao trono e servir Davi, o escolhido de Deus como o próximo rei. Esse mesmo espírito não é encontrado em Saul. Na melhor das hipóteses, Saul está empolgado por causa daquilo que Davi pode fazer por ele. Como sempre, Saul está ansioso para acrescentar homens militarmente habilidosos às suas tropas. Assim, ele promove Davi a funcionário de tempo integral. Até onde vai o registro bíblico, nada é feito com relação às recompensas que Saul ofereceu ao homem que acabasse com Golias. Davi é um servo fiel de Saul, indo aonde quer que seja enviado, e sendo bem sucedido aonde vai. Todo mundo fica impressionado com ele, mesmo os servos de Saul (que devem fazê-lo com certa precaução, sabendo o quão ciumento Saul pode se tornar - ver 16:2). Davi tem o “toque de Midas”. É como se tudo o que ele tocasse prosperasse, e é assim porque a mão de Deus está sobre ele (verso 12).

Os Músicos Compõem uma Canção Mordaz e as Dançarinas Pisam nos Calos de Saul
(18:6-9)

“Sucedeu, porém, que, vindo Saul e seu exército, e voltando também Davi de ferir os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente, diziam: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares. Então, Saul se indignou muito, pois estas palavras lhe desagradaram em extremo; e disse: Dez milhares deram elas a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão o reino? Daquele dia em diante, Saul não via a Davi com bons olhos.

Você já deve ter ouvido as palavras daquela canção não tão nova que diz: “Que diferença faz um dia...” Nada pode ser mais verdadeiro em nosso texto. É difícil acreditar como a popularidade de Davi tem vida curta com Saul. Um dia ele se apresenta pela fé e derrota Golias, o que resulta na vitória de Israel sobre os filisteus (capítulo 17). Bem no meio da comemoração, as mulheres israelitas entoam uma canção de vitória e azedam a consideração e o respeito de Saul, levando-o a numerosas tentativas para tirar a vida de Davi. Os versos 6 a 9 descrevem este acontecimento decisivo, que muda para sempre o curso da história.

Davi, aparentemente, se juntou aos israelitas enquanto eles perseguiam os filisteus fugitivos e, agora, ele está de regresso. Talvez Saul nem mesmo tenha saído com suas tropas, como parecem indicar os versos finais do capítulo 17. Se for assim, as mulheres de todas as cidades israelitas “foram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando”, onde ele esteve desde o princípio, e foram saudar Davi e os guerreiros israelitas quando voltavam da perseguição aos filisteus fugitivos.

Ninguém poderia prever o resultado desta comemoração. O canto e a comemoração das mulheres não parecem incomuns em Israel. Vimos isto na época em que Deus tirou os israelitas do Egito e lançou os egípcios no Mar Vermelho (ver Ex. 15:1-21). A letra da canção composta às pressas inclui este refrão:

“Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.”

A primeira pergunta que devemos fazer é “Será verdade? Saul mata apenas milhares, enquanto Davi mata dez milhares?” Embora, provavelmente, haja alguma licença poética envolvida, sou propenso a achar que, em essência, os versos sejam verdadeiros. Sabemos, pelo capítulo 14, que a vitória de Israel sobre os filisteus é minimizada devido ao decreto insano de Saul para que seus soldados não comam até o anoitecer. A vitória de Davi (a vitória que Israel obteve porque Davi derrotou Golias) parece mais decisiva. Parece que qualquer coisa que Saul faça, ou tenha feito, Davi faz melhor.

Será que as mulheres querem dizer alguma coisa com o que estão cantando? Acho muito difícil. Elas estão exultantes, regozijando-se com a vitória que Deus lhes deu. Saul contribuiu muito em tempos passados; só que Davi contribuiu muito mais. Saul, que não estava sequer ansioso para se tornar o primeiro do reino, agora está extremamente irritado porque o povo o colocou em segundo plano e a Davi, em primeiro. Eis um homem a quem foi dito que sei reinado chegaria ao fim, e agora ele tem uma forte premonição (se é que a unção de Davi já não se tornou conhecida) de que Davi é aquele que o substituirá. As mulheres estão cantando e dançando, mas Saul não está mexendo os pés. Ele ficou ofendido e a canção não é aquela que o faz querer “cantar junto”. Todos os demais estão celebrando, felizes pela vitória que Deus proporcionou através de Davi - exceto Saul. Eis agora uma aparência horrível em seu rosto e, deste momento em diante, ele olha para Davi com desconfiança.

Maníaco Assassino ou Por Que Davi Não Pode Ficar Quieto!
(18:10-12)

“No dia seguinte, um espírito maligno, da parte de Deus, se apossou de Saul, que teve uma crise de raiva em casa; e Davi, como nos outros dias, dedilhava a harpa; Saul, porém, trazia na mão uma lança, que arrojou, dizendo: Encravarei a Davi na parede. Porém Davi se desviou dele por duas vezes. Saul temia a Davi, porque o SENHOR era com este e se tinha retirado de Saul.” (10-12)

Todos nós sabemos que Saul realmente tem alguns dias bem ruins causados pelo “espírito maligno da parte do Senhor”, que se apossa dele de tempos em tempos. Davi é contratado, em regime de meio período, para tocar sua harpa e acalmar a alma atribulada de Saul (16:14-23). Agora Davi é empregado em tempo integral e parte de seus deveres é continuar a tocar a harpa quando Saul está atribulado. O problema com os problemas de Saul é que Davi se tornou o seu maior problema (pelo menos em sua mente). O ciúme de Saul vira assassinato nos versos 10 a 12.

Antes de nos atermos a estes versos, talvez seja útil um comentário sobre a relação entre os versos 6 a 9 e 10 a 12. Nos versos 6 a 9, Saul está com ciúmes e, nos versos 10 a 12, é dito que o espírito maligno se apossa dele. Alguns dizem, e até mesmo insistem, que os demônios são a fonte da maioria dos males. Já ouvi falar sobre o “demônio do ciúme”, o “demônio do alcoolismo”, o “demônio do orgulho”, e assim por diante. Não estou tentando dizer que a atividade demoníaca não possa produzir tais manifestações, mas preciso dizer que a Bíblia nos fala que estas coisas não vêm de Satanás, mas de nossa própria natureza pecaminosa (ver Gl. 6:16-21). Em nosso texto, o ciúme de Saul (versos 6 a 9) precede a poderosa possessão do espírito maligno sobre ele (verso 10). Entendo que a possessão do espírito maligno sobre Saul é, de alguma forma, conseqüência de seu ciúme. Creio que Satanás seja um oportunista, que se aproveita das fraquezas e do pecado humano (ver, por exemplo, II Co. 2:10-11). O uso de drogas ilegais (e talvez de algumas legais), a entrega ao sexo ilícito ou a acessos de fúria, ou outros tipos de males, podem muito bem abrir as portas para os ataques satânicos e demoníacos. Vamos ter cuidado para não dar a Satanás tanto crédito, fazendo-o a causa do mal em vez de um oportunista que simplesmente promove e aumenta o mal que há em nossa natureza caída.

Estou em dívida com Dale Ralph Davis por sugerir que as atitudes assassinas de Saul para com Davi nos versos 10 a 12 (como em todo o capítulo) ainda não são reconhecidas como tal por Davi ou pelos outros. Deixe-me sugerir por que concordo com ele. Primeiro, a intenção de Saul matar Davi não é conhecida nem mesmo por seu filho Jônatas até o primeiro verso do capítulo 19. Repetidamente, o autor nos diz quais são os verdadeiros motivos de Saul, da mesma forma que faz aqui no verso 11. Mas isto se faz necessário somente se as ações de Saul não forem evidentes. Saul realmente tem acessos ocasionados pelo “espírito maligno”, mas até aqui parece que apenas ele é afetado. Ele está aterrorizado (16:14). Agora, sem mais nem menos, os “acessos” de Saul viram atos homicidas - a lança atirada duas vezes em Davi. Posso até ouvir os servos de Saul desculpando-o e dizendo: “Você terá que desculpar Saul, hoje ele não está em si.” Afirmo que ele está em si.

Em minha opinião, parte do problema deriva da tradução “delirou”, no verso 10. O termo hebraico ocorre mais de 100 vezes no Velho Testamento. Na versão NASB é traduzido por “delirou” apenas duas vezes (aqui e em I Re. 18:29). Jamais é traduzido como “delirar” na versão King James. Praticamente é sempre traduzido como algum tipo de “profecia”. O termo pode se referir à profecia de um verdadeiro profeta (como em Nm. 11:25-26; I Cr. 25:2), ou a profecias enganosas de um falso profeta (como em I Re. 22:10). Parece que, mesmo quando verdadeiros profetas profetizaram, eles se comportaram de maneira diferente (ver I Sam. 19:18-24), o que poderia ser considerado como “delírio” por um observador.

O problema com a tradução “delirou”, em nosso texto, é que também pode ser facilmente mal interpretada como alguma forma de insanidade temporária. De fato, talvez seja como o comportamento de Saul se parece. Também poderia ser o que Saul quer que as pessoas pensem sobre seu comportamento. Afinal, se Saul “age como louco”, atirando a lança em Davi e o matando durante o que parece ser um ataque de insanidade ou um ato incontrolável propiciado por um espírito maligno, ele acaba se safando. O problema em ver Saul como temporariamente insano é que aqui está escrito o que ele pensa no momento em que atira a lança em Davi “Encravarei a Davi na parede.” (verso 11). Saul sabe exatamente o que está fazendo, e faz exatamente o que pretende. Por isso, não estranho que Saul realmente profetize, talvez da maneira como o fazem os demônios do Novo Testamento:

“Achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio imundo, e bradou em alta voz: Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus!” (Lc. 4:33-34)

Portanto, se Saul profetiza, ele percebe que Davi é próximo rei, o que poderia estimulá-lo a se fingir de louco e procurar matar Davi de maneira que pareça um ataque incontrolável ocasionado por um espírito demoníaco. Apesar das duas tentativas de Saul para matar Davi, elas não funcionam. Uma vez mais Davi é bem sucedido enquanto Saul fracassa:

  • Davi: uma pedra acerta Golias bem no meio dos olhos
  • Saul: duas tentativas sem acertar Davi com a sua lança

Porque o Senhor está com Davi, ele não pode ser morto antes do tempo; porque o Senhor deixou Saul, ele não consegue fazer nada direito.

Mate-o com Gentileza ou Assassinato nas Forças Armadas
(I Sam. 18:13-30)

“Pelo que Saul o afastou de si e o pôs por chefe de mil; ele fazia saídas e entradas militares diante do povo. Davi lograva bom êxito em todos os seus empreendimentos, pois o SENHOR era com ele. Então, vendo Saul que Davi lograva bom êxito, tinha medo dele. Porém todo o Israel e Judá amavam Davi, porquanto fazia saídas e entradas militares diante deles. Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus. Respondeu Davi a Saul: Quem sou eu, e qual é a minha vida e a família de meu pai em Israel, para vir a ser eu genro do rei? Sucedeu, porém, que, ao tempo em que Merabe, filha de Saul, devia ser dada a Davi, foi dada por mulher a Adriel, meolatita. Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical. Viu Saul e reconheceu que o SENHOR era com Davi; e Mical, filha de Saul, o amava. Então, Saul temeu ainda mais a Davi e continuamente foi seu inimigo. Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado.” (13-30)

A simples visão de Davi em sua casa enfurece Saul, mas parece que ele não pode matá-lo ali também; assim, Saul tenta afastá-lo, constituindo-o comandante de uma tropa de 1.000 homens. É difícil ver isto como rebaixamento de posto no esboço geral deste capítulo, embora possa ser. Antes, sou propenso a ver como uma clara promoção. Com isto Saul parece mostrar bondade para com Davi, embora, na realidade, esteja procurando ocasião para se livrar dele. Se os filisteus ou algum outro inimigo não matar Davi, pelo menos ele ficará fora de vista e, quem sabe, fora da mente dos israelitas. Simplesmente não funciona desse jeito, de novo. Aonde quer que Davi seja enviado, Deus o faz prosperar, para que sua posição junto ao povo continue a se elevar. Tudo isto é observado por Saul, cujo medo de Davi continua aumentando.

Saul deve pensar que está no caminho certo ao tentar que Davi seja morto pelas mãos de algum dos inimigos de Israel, mas ele precisa atrai-lo a uma empreitada mais perigosa, que certamente será fatal para ele. Assim, Saul lhe oferece sua filha Merabe como esposa (verso 17). Este não é um presente em resposta à morte de Golias. Deveria ser (17:25), mas não é. É como se Saul tivesse se esquecido de sua promessa. Saul faz com que se pareça uma nova oferta e tudo o que Davi precisa fazer é “ganhar” Merabe, sendo “somente filho valente e guerreando as guerras do SENHOR” (verso 17).

Como estas palavras soam piedosas. Felizmente o texto não é do tipo “esfregue e cheire”, porque o cheiro não seria agradável. Lembro-me de uma canção caipira: “‘Trabalhando’ como o diabo, Servindo ao Senhor”. Se fôssemos escrever uma canção sobre Saul, seria “‘Falando’ como o Senhor, Servindo ao diabo”. Suas palavras são realmente religiosas, mas sua intenção é totalmente vil. Saul oferece sua filha a Davi com a esperança de que ela seja a sua morte enquanto ele procura obter sua mão realizando grandes proezas militares.

Certamente Saul não está preparado para a resposta de Davi. Davi rejeita sua oferta. Não é que Davi esteja relutante em se arriscar na batalha. Isto ele faz com toda disposição, sem esperar qualquer recompensa, como desposar uma das filhas de Saul. Davi é realmente um homem humilde, que considera sua posição indigna de tal presente, por isso, ele recusa. Devido à sua recusa, Merabe é dada a outro homem como esposa. Isto não é conseqüência da mudança de opinião de Saul ou da quebra de sua promessa (não que Saul seja incapaz de tais coisas), mas simplesmente porque o texto não sustenta esta conclusão. É estabelecido um tempo, um prazo, dentro do qual Davi deve preencher certos critérios (ver versos 19 e 26). Uma vez que Davi recusa a oferta de Saul, ele não preenche os requisitos dentro do tempo estabelecido, e então Merabe é dada a Adriel (verso 19). O reflexo disto não é tão negativo para Saul quanto é positivo para Davi.

Grandemente desapontado, Saul tem certeza de que se puder fazer Davi se interessar por uma de suas filhas, ele fará alguma loucura suficientemente grande para se matar em batalha. Como Saul fica feliz ao ouvir que sua filha mais nova, Mical, está loucamente apaixonada por Davi. Esta é sua segunda chance. Uma vez que Mical está mais do que disposta a se casar com Davi, com um ligeiro empurrãozinho, desta vez Davi até pode aceitar a oferta. Ainda resta uma esperança de se livrar dele.

Desta vez Saul é bem mais meticuloso. Ele oferece Mical a Davi e então instrui seus servos a falarem bem de sua idéia para que, desta vez, Davi aceite a oferta. Seus servos falam com Davi e dizem que o rei realmente gosta dele e que todos querem que ele se torne seu genro. Como seria de esperar, Davi responde mostrando sua condição humilde e sua incapacidade em dar um dote apropriado a uma mulher tão nobre. O que ele poderia dar em pagamento seria um insulto a Mical e a Saul. Eis como Saul atrai Davi: ele não quer seu dinheiro - o dote pode ser pago com uma moeda diferente - prepúcios de filisteus! Isto, sim, prende o interesse de Davi. Ele quer Mical e está ansioso para batalhar pelo Senhor; assim, aceita a oferta. No entanto, em vez de ser morto, Davi luta contra os filisteus e apresenta ao rei o dobro do número de prepúcios exigido.

Para seu desgosto, Saul agora deve dar a Davi a mão de sua filha em casamento. Isto representa muito mais do que o fracasso de seus planos, de novo - e até pior, Davi é bem sucedido, de novo. Agora, Saul, que teme demais a Davi e quer vê-lo eliminado, tem dois membros de sua própria família ligados a ele por amor e compromisso. O capítulo começa com a narrativa do amor de Jônatas por Davi e sua aliança com ele; e termina com o amor de Mical por Davi e seu compromisso de casamento com ele. De certa forma, Davi saiu-se vitorioso sobre dois membros diretos da família de Saul. Agora, exatamente aqueles que Saul pensava poder confiar para ajudá-lo a se livrar de Davi, estão ao lado deste. Saul, seus planos e seu reino estão se desintegrando.

O casamento que Saul propõe a Davi é planejado como incentivo para engajá-lo numa ousada campanha militar, e assim ele o faz. O único problema é que estes deveres perigosos não livram Saul de Davi; apenas servem para elevar Davi acima de todos os outros comandantes militares. Ele age mais sabiamente do que todos eles e, por isso, é muito querido.

Conclusão

Voltemos um pouco para dar uma olhada mais abrangente no que o capítulo 18 descreve. Primeiro, da forma mais incomum e inesperada, Deus faz acontecer aquilo que Ele planejou e prometeu. Nos capítulos 13 e 15, Deus mostra a Saul que seu reinado chegará ao fim. Em nosso texto, observamos a desintegração de seu reino. Saul continua a perder o controle de sua própria vida e de seu reino. No capítulo 16, Davi é ungido como o novo rei de Israel e vemos como Deus prepara o caminho para o seu reinado. Davi tem ligações estreitas com Saul e seu palácio. Agora ele está intimamente associado aos membros da família real de Saul - seu filho (agora um amigo chegado) e sua filha (agora esposa de Davi). Ele tem autoridade no exército de Saul e, através de suas experiências, revela-se um homem valente e um grande líder. Davi está em ascensão e Saul em queda. Não é do jeito que esperávamos, mas os planos de Deus raramente acontecem do jeito que esperamos (ver Is. 55:8-11; Rm. 11:33-36: I Co. 2:6-16).

Uma segunda observação de nosso texto é que a Palavra de Deus é absolutamente certa e segura. Deus alerta Saul sobre a disciplina que virá se ele não se arrepender e é quase certo que ele não se arrepende. A despeito dos intensos esforços de Saul, Deus cuida para que seu reino seja removido. Por outro lado, Deus prometeu o reino a Davi, e nosso texto nos assegura que nada menos que o total cumprimento de Sua promessa deve ser esperado. Deus mantém Suas promessas, quer sejam de bênção e prosperidade, quer de julgamento.

Terceiro, vemos em Jônatas a mais excelente ilustração do amor que Deus requer de nós. Somos continuamente instruídos a “amar ao próximo como a nós mesmos” (Lv. 19:18; Mt. 19:19; 22:39, Mc. 12:31; Rm. 13:9; Gl. 5:14; Tg. 2:8). Isto é precisamente o que Jônatas faz com relação a Davi (ver verso 1). Assim, Jônatas é um exemplo para nós de como devemos amar o próximo como a nós mesmos. Não vejo qualquer referência a Jônatas amar primeiro a si mesmo, como um tipo de pré-requisito para amar aos outros. O que vejo é auto-sacrifício, quando Jônatas, de bom grado, desiste de seu reino em favor de Davi (sem mencionar seu manto e sua armadura). Jônatas é um amigo leal e fiel, que arriscará sua própria vida para salvar a vida de Davi. Que homem nobre e abnegado Jônatas é! A tanto quanto a Bíblia se refere suas ações não estão “acima e além do chamado do dever”; elas são o cumprimento de seu dever, e do nosso.

Quarto, observamos em Saul aquilo que vemos nos discípulos de nosso Senhor durante Seu ministério terreno, e aquilo que, muitas vezes, vemos na igreja hoje em dia - competição, ciúmes e auto-afirmação. Davi é o servo mais leal que Saul já teve e, no entanto, Saul se sente ameaçado pela sua competência, pelo seu sucesso. Os discípulos estavam sempre procurando se afirmar, perguntando quem seria o maior, e se zangavam quando outro discípulo parecia superá-los. Na igreja de hoje, Deus intencionalmente deu a cada cristão um dom ou dons espirituais, para capacitá-lo a se sobressair em determinado ministério. Podemos nos regozijar na força que Deus dá aos outros, procurando nos beneficiar de seus ministérios, ou podemos resistir a eles com um espírito competitivo. Alguns se perguntam o quanto a crítica, o ministério e a doutrina a outros cristãos estão enraizados em ciúmes e inveja, em vez de estarem enraizados na fidelidade a Deus e à Sua Palavra. Vamos tomar cuidado com o ciúme, não importa quão religioso seja o rótulo que demos a ele ou às suas manifestações.

Jônatas e Saul ilustram, cada um ao seu modo, uma das duas reações lógicas ao fato de Jesus ser o rei de Deus. Davi é o escolhido de Deus como o próximo rei de Israel. Saul parece ter conhecimento disto, e se opõe intensamente, a ponto de fazer todos os esforços para dar cabo de Davi. Jônatas também parece ter conhecimento disto e, mesmo que isto signifique que Davi reinará em seu lugar, Jônatas faz aliança com ele e renuncia a seu direito ao trono.

Deus designou Seu Filho, Jesus Cristo, para estabelecer o Seu Reino e governar sobre todas as criaturas da terra, e do céu. Como Saul, podemos procurar prolongar nosso reinado e resistir ao reino inevitável do rei de Deus. Se assim o fizermos, o faremos para nossa própria destruição. Ou, então, podemos renunciar a todo pensamento de reinar e nos submetermos ao rei de Deus, o Senhor Jesus Cristo, como Jônatas se submeteu a Davi. A escolha certa é renunciar a todo e qualquer pensamento de tentar manter o controle e autoridade sobre a nossa própria vida, e nos submetermos somente Àquele que é qualificado para reinar. Estas são as duas únicas escolhas que Deus nos dá. Não levar Cristo a sério é rejeitar o Seu governo. Resistir ao reino de Cristo é trazer julgamento sobre nós mesmos. Submeter-se a Ele é ter a vida eterna. Qual delas você escolherá? Com quem será parecido: Jônatas ou Saul? Jamais você tomará uma decisão tão importante em toda a sua vida.

16. A Libertação Divina de Davi (I Samuel 18:30 - 19:24)

Introdução

Queria começar esta mensagem comparando Davi a um gato, o qual, dizem, tem “sete vidas”. Mas isso não seria apropriado para Davi, pois parece que ele tem muitas “vidas” mais. Em apenas dois capítulos (I Samuel 18 e 19), Saul tenta matá-lo, pelo menos, doze vezes:

18:11 Saul atira sua lança em Davi duas vezes

18:13 Saul constitui Davi como comandante de 1000 homens, esperando que ele seja morto

18:17 Merabe é oferecida a Davi, se ele “lutar as batalhas do Senhor como um valente”

18:20f. Mical é oferecida a Davi por 100 prepúcios de filisteus e ele traz 200

19:1 Saul ordena que Jônatas e seus servos matem Davi

19:10 Saul arremessa a lança em Davi novamente

19:11f Saul envia mensageiros à casa de Davi para matá-lo

19:18f Saul envia três grupos de homens a Ramá para pegar Davi, indo, depois, ele mesmo

No capítulo 20, Saul não só continua tentando matar Davi, mas também arremessa sua lança em Jônatas por defendê-lo (20:33). No capítulo 22, Saul mata Aimeleque e toda a casa de seu pai (exceto um) e depois aniquila aqueles que vivem em Nobe, a cidade dos sacerdotes.

Não posso evitar, mas acho que se Saul tivesse se empenhado para matar os inimigos de Israel (como os filisteus) como se empenhou para matar seus servos leais (tais como Davi, Jônatas e Aimeleque), ele teria sido um grande rei e líder militar. Em seu estado mental desordenado, seus maiores aliados são considerados inimigos e seus inimigos se tornam seus aliados (para matar Davi). Saul se torna um homem extremamente paranóico. Ele teme seu servo mais leal, Davi, o qual não matará seu rei nem mesmo quando tem o que parece ser a oportunidade perfeita para isso. Inicialmente Saul procura esconder sua animosidade, seu ciúme e seu ódio de Davi, mas isto acaba no primeiro versículo do capítulo 19. Daí em diante Saul atenta abertamente contra a vida de Davi e qualquer um que ele ache que o apóie ou defenda.

Nosso texto descreve quatro libertações divinas de Davi das mãos do rei Saul. A primeira é descrita nos versos 1 a 7, quando Jônatas censura seu pai e argumenta com ele sobre sua reação ao sucesso de Davi. A segunda está registrada nos versos 8 a 10, quando Saul, providencialmente, não acerta sua lança em Davi. A terceira vem de Mical, a esposa de Davi e filha de Saul. Ela desce Davi pela janela e depois engana seu pai e seus servos para dar tempo a Davi de escapar. Finalmente, há a libertação religiosa de Davi por meio de Samuel e as profecias dos homens enviados por Saul em sua captura, nos versos 18 a 24.

Esta mensagem será pregada na manhã do domingo que antecede o Natal. Alguns podem estranhar a razão pela qual farei isto, uma vez que a passagem parece não ter nada a ver com a festividade que estamos prestes a comemorar. Permitam-me assegurar-lhes que a estreita relação entre este texto e a história do Natal não é forçada. Atentando às palavras de nosso texto, aprenderemos o que existe em Saul que é tão contraditório ao espírito do Natal e, na realidade, ao espírito cristão. Nosso texto é importante para aqueles que conhecem a Cristo como Salvador e para aqueles que precisam conhecê-Lo desta forma.

Salvo pela Razão
(18:30 - 19:7)

“Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado. Falou Saul a Jônatas, seu filho, e a todos os servos sobre matar Davi. Jônatas, filho de Saul, mui afeiçoado a Davi, o fez saber a este, dizendo: Meu pai, Saul, procura matar-te; acautela-te, pois, pela manhã, fica num lugar oculto e esconde-te. Eu sairei e estarei ao lado de meu pai no campo onde estás; falarei a teu respeito a meu pai, e verei o que houver, e te farei saber. Então, Jônatas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e lhe disse: Não peque o rei contra seu servo Davi, porque ele não pecou contra ti, e os seus feitos para contigo têm sido mui importantes. Arriscando ele a vida, feriu os filisteus e efetuou o SENHOR grande livramento a todo o Israel; tu mesmo o viste e te alegraste; por que, pois, pecarias contra sangue inocente, matando Davi sem causa? Saul atendeu à voz de Jônatas e jurou: Tão certo como vive o SENHOR, ele não morrerá. Jônatas chamou a Davi, contou-lhe todas estas palavras e o levou a Saul; e esteve Davi perante este como dantes.”

Uma coisa que Saul não suporta em seus servos é o sucesso. Como Satanás, Saul não admite ficar em segundo plano (ver Isaías 14; Ezequiel 28). Assim, quando os comandantes israelitas saem à batalha, Davi está entre eles (ver 18:13) e se sai melhor do que todos eles (18:30). Sem nenhuma pretensão, a fama de Davi continua a crescer. Sua sabedoria (sem dúvida produto do Espírito Santo, ver 16:13) o distingue dos demais comandantes. Ele é muito querido.

É justamente isso o que Saul mais teme. Abandonando suas táticas de capa e espada, ele dá ordens a seus servos - incluindo Jônatas - para matar Davi. Jônatas fez uma aliança com Davi, a qual, com toda a certeza, não pretende quebrar. Mas a verdadeira razão para ele não fazer nenhum mal a Davi é por ser “mui afeiçoado a ele”. Proteger Davi é mais do que um dever para Jônatas; ele se deleita em Davi. Jônatas realmente ama Davi como a si mesmo (18:1). Portanto, ele começa a reverter a ordem de seu pai para matá-lo. Se for necessário, Jônatas transgredirá esta ordem, mas ele prefere argumentar com seu pai para revogá-la. Nos versos 1 a 7 ele consegue seu intento.

Primeiro Jônatas previne Davi sobre as ordens de seu pai. Ele insiste para Davi ficar alerta e se esconder até que ele fale com seu pai. Estranhamente, ele diz a Davi que irá se encontrar com seu pai exatamente no mesmo lugar onde Davi deve se esconder (versos 2 e 3). Será que isto é para que Davi observe a coisa toda? Será que Jônatas quer garantir a Davi que nada acontecerá pelas suas costas? Além disso, ele promete informar Davi sobre o resultado da discussão.

A maneira como Jônatas lida com seu pai a favor de Davi é um modelo para nós em diversos aspectos. Primeiro, encontramos aqui o exemplo de um amigo que ama o próximo como a si mesmo. Confrontar (ou deveríamos dizer “contradizer”) Saul é um negócio perigoso (ver 16:2, 4; 20:33; 22:11-19); mesmo assim, ele o faz. Segundo, Jônatas se submete, e a seus interesses pessoais (o trono, por exemplo), aos interesses de Davi (ver 23:17). Terceiro, Jônatas é um filho fiel e submisso a seu pai. Ele o aborda diretamente e lhe fala com respeito. Ele fala bem de Davi. Por um lado, Jônatas suplica pela vida de Davi; por outro, suplica que seu pai faça aquilo que é melhor para ele mesmo. Ele relembra a Saul que Davi é seu servo mais fiel e dedicado, cujas ações sempre o beneficiaram. Ele também o relembra que, quando Davi matou Golias, o próprio Saul se regozijou com a vitória, pois também era a sua vitória (19:5). Agir de maneira hostil contra Davi não seria justo ou sábio, e ainda pior, seria pecado, pois seria derramar sangue inocente (19:4-5).

Por ora, Saul é persuadido pelos argumentos de Jônatas. Ele jura que “tão certo como vive o SENHOR” Davi não será morto (verso 6). Não é uma promessa que durará muito tempo, mas é uma admissão de culpa, temporária e parcial, da parte de Saul, e uma confissão da inocência de Davi. Jônatas chama Davi, fala sobre o encontro com seu pai e o resultado, e depois o leva à presença dele. Por algum tempo, pelo menos, as coisas são como costumavam ser (verso 7).

Um Resgate Providencial
(19:8-10)

“Tornou a haver guerra, e, quando Davi pelejou contra os filisteus e os feriu com grande derrota, e fugiram diante dele, o espírito maligno, da parte do SENHOR, tornou sobre Saul; estava este assentado em sua casa e tinha na mão a sua lança, enquanto Davi dedilhava o seu instrumento músico. Procurou Saul encravar a Davi na parede, porém ele se desviou do seu golpe, indo a lança ferir a parede; então, fugiu Davi e escapou.”

Parece que Saul quer as duas coisas: não parece ansioso para sair com seus homens e lutar com os filisteus; mas, quando Davi sai contra eles e volta como herói, ele se enche de fúria e ciúmes. Não há indicação de que Saul vá à guerra contra os filisteus, mas sabemos que Davi vai e obtém uma vitória importante (verso 8). Isso acarreta uma reprise literal do capítulo 18, versos 6 a 9. O “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul, que está sentado em sua casa com a lança na mão. (Davi também está na casa, com a harpa nas mãos - verso 9). Cheio de ciúmes, Saul tenta encravar Davi na parede com sua lança, mas Davi, de alguma forma, se desvia e foge de sua presença na escuridão da noite, escapando da morte uma vez mais (verso 10).

A estreita relação entre o ciúme de Saul e a possessão do “espírito maligno da parte do Senhor” no verso 9 é digna de nota. Sabemos que este “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul com a saída do Espírito Santo (16:14-15). Também sabemos que este espírito não possui Saul da mesma forma todas as vezes. Anteriormente, quando o espírito vinha sobre ele, Davi era convocado para tocar sua harpa e o espírito se afastava (16:23). Embora saibamos que a harpa tocada por Davi fazia o espírito deixar Saul, não é dita a razão pela qual o espírito se apossava dele. O ciúme e a fúria de Saul poderiam ser a causa da possessão do espírito, talvez até mais do que uma conseqüência. Quando Saul estivesse “cheio” de ciúmes ou de fúria, o espírito viria sobre ele naquele momento, quando estava mais vulnerável. Quando perdemos o autocontrole, seja pela raiva, por ambição, pelas drogas ou por imoralidade sexual (para dar alguns exemplos), nos expomos às influências satânicas ou demoníacas. Creio que seja por isto que Saul é possuído pelo espírito maligno quando reage incontrolavelmente ao sucesso de Davi na guerra.

Davi na Corda Bamba ou A Grande Descida
(19:11-17)

“Porém Saul, naquela mesma noite, mandou mensageiros à casa de Davi, que o vigiassem, para ele o matar pela manhã; disto soube Davi por Mical, sua mulher, que lhe disse: Se não salvares a tua vida esta noite, amanhã serás morto. Então, Mical desceu Davi por uma janela; e ele se foi, fugiu e escapou. Mical tomou um ídolo do lar, e o deitou na cama, e pôs-lhe à cabeça um tecido de pêlos de cabra, e o cobriu com um manto. Tendo Saul enviado mensageiros que trouxessem Davi, ela disse: Está doente. Então, Saul mandou mensageiros que vissem Davi, ordenando-lhes: Trazei-mo mesmo na cama, para que o mate. Vindo, pois, os mensageiros, eis que estava na cama o ídolo do lar, e o tecido de pêlos de cabra, ao redor de sua cabeça. Então, disse Saul a Mical: Por que assim me enganaste e deixaste ir e escapar o meu inimigo? Respondeu-lhe Mical: Porque ele me disse: Deixa-me ir; se não, eu te mato.”

Davi pode ter escapado noite adentro, mas Saul não está disposto a abandonar seu plano de capturá-lo e matá-lo. Ele coloca alguns de seus homens de emboscada do lado de fora da casa de Davi. Suas ordens são para que esperem até de manhã e então o matem. Davi parece se sentir seguro quando chega à sua casa. Mical conhece seu pai bem melhor. Enfaticamente ela diz a Davi que, a menos que ele fuja enquanto ainda está escuro, não viverá mais um dia. A hora de Davi escapar é esta. Até posso ver Mical enfrentando Davi, com as mãos na cintura, dizendo ao seu ingênuo marido como são as coisas com papai.

A relutância de Davi talvez esteja relacionada à única forma de ele poder escapar. Não será uma saída muito honrosa. Se ele quiser viver, terá que deixar sua dignidade para trás. A casa deles deve estar localizada junto aos muros da cidade. Mical tem que descer seu marido pela janela para ele alcançar o chão, fora dos muros da cidade, e desaparecer na escuridão da noite.

O outro lado da fuga também não é muito glorioso. Uma coisa é Davi sair de casa, à noite e sem ser notado. No entanto, Mical também sabe que precisa ganhar tempo para ele, a fim de que sua fuga seja bem sucedida. Quando os servos de Saul batem à porta, Mical está pronta para recebê-los. Ela tem tudo preparado. Na cama, ela colocou um ídolo com as roupas de Davi, para dar a impressão de sua forma, com um tecido de pelos de cabra na cabeça. À distância, sem poder olhar de perto, alguém poderia pensar que Davi estivesse de cama, talvez muito doente.

Os mensageiros de Saul retornam e relatam o que Mical lhes disse. Saul fica desconfiado e manda os mensageiros de volta à casa de Mical para trazerem Davi, a fim de matá-lo pessoalmente. Deve ter sido uma piada quando estes caras arrancam as cobertas e descobrem um ídolo do lar, habilmente colocado ali para enganá-los. Talvez vermelhos de vergonha, os mensageiros retornam e dizem a Saul que foram enganados. Saul fica furioso com sua filha por tê-lo enganado e por ter deixado Davi escapar. Uma vez mais Mical tenta enganar seu pai, dizendo-lhe que Davi ameaçou matá-la se ela não cooperasse. Isto se encaixa muito bem à avaliação distorcida que Saul tem de Davi, embora esteja longe da verdade.

Certamente há um toque de humor neste episódio. Ele mostra como os planos de Saul para matar Davi são inúteis. Devemos fazer uma pausa por um momento para relembrar como Davi conseguiu sua esposa. Anteriormente, quando Golias ridicularizava Saul e o exército de Israel, o rei ofereceu sua filha ao homem que o enfrentasse e matasse (17:25). Por direito, Davi deveria ter recebido uma das filhas de Saul como esposa. Depois de Davi ficar famoso e Saul sentir ciúmes dele, Saul lhe faz outra oferta de uma esposa:

“Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” (I Sam. 18:17)

Davi recusa a oferta crendo, sinceramente, ser indigno de receber uma das filhas de Saul como esposa, e também consciente de não poder pagar o dote exigido (18:18, ver também o verso 23).

Quando Saul lhe oferece novamente uma de suas filhas, ele é bem mais perspicaz na maneira como trata do assunto:

“Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. Tendo os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical.” (I Sam. 18:20-27)

Quando fica claro que Davi quer se casar com Mical e que, alegremente, providenciará o número de prepúcios filisteus exigido (na verdade, o dobro = 200), Saul fica pasmo. Saul tem certeza que o amor de Mical por Davi (e o dele por ela) acarretará a morte deste quando ele tentar matar esse tanto de filisteus. Uma vez mais, os planos de Saul vão para o espaço. Davi consegue os prepúcios (duas vezes mais) e recebe uma das filhas de Saul como esposa. Ela ama Davi e não está disposta a fazer parte de qualquer complô para matá-lo. Mais do que isto, é ela quem salva Davi de seu pai. Uma vez mais, Saul atirou em seu próprio pé (ou devo dizer furou) tentando matar o ungido do Senhor. Não ouço Saul rindo, mas deve ter havido bem mais do que um risinho abafado nos palácios celestiais.

Ao deixarmos este salvamento, não devemos negligenciar o Salmo 59, que é a reflexão de Davi sobre esta libertação. Embora não ousemos tentar tratar deste salmo em detalhes, duas observações podem ser feitas. Primeira, você perceberá que Mical não é mencionada no salmo. Não que é ela seja de alguma forma menosprezada por Davi, como se não tivesse participado de seu salvamento. Neste salmo Davi não está olhando para a causa imediata de sua libertação, mas para a causa principal - Deus. Assim, Davi louva a Deus por salvar sua vida. Segunda, a descrição de Davi de seus perseguidores soa como se eles fossem gentios, não judeus (ver Sl. 59:5-8). Não ficaria surpreso se os homens que Saul enviou para capturar Davi fossem gentios. Sabemos que ele contratava mercenários (ver I Sam. 14:52). Tais homens não teriam escrúpulos para ajudar a matar Davi, quando os israelitas poderiam ter. Que conveniente é para Saul (um judeu) utilizar esses mercenários (gentios) para se opor ao rei de Deus, da mesma forma que os líderes religiosos judaicos se opuseram a Cristo anos mais tarde. Finalmente, Davi fala dos homens que procuram capturá-lo como mentirosos (Sl. 59:12). Seriam estes homens alguns daqueles que falsamente acusaram Davi diante de Saul? (ver I Sam. 24:9; 26:19)

Um Resgate Religioso: Salvo pelo Espírito ou Pelos Esforços de um Verdadeiro Profeta
(19:18-24)

Assim, Davi fugiu, e escapou, e veio a Samuel, a Ramá, e lhe contou tudo quanto Saul lhe fizera; e se retiraram, ele e Samuel, e ficaram na casa dos profetas. Foi dito a Saul: Eis que Davi está na casa dos profetas, em Ramá. Então, enviou Saul mensageiros para trazerem Davi, os quais viram um grupo de profetas profetizando, onde estava Samuel, que lhes presidia; e o Espírito de Deus veio sobre os mensageiros de Saul, e também eles profetizaram. Avisado disto, Saul enviou outros mensageiros, e também estes profetizaram; então, enviou Saul ainda uns terceiros, os quais também profetizaram. Então, foi também ele mesmo a Ramá e, chegando ao poço grande que estava em Seco, perguntou: Onde estão Samuel e Davi? Responderam-lhe: Eis que estão na casa dos profetas, em Ramá. Então, foi para a casa dos profetas, em Ramá; e o mesmo Espírito de Deus veio sobre ele, que, caminhando, profetizava até chegar à casa dos profetas, em Ramá. Também ele despiu a sua túnica, e profetizou diante de Samuel, e, sem ela, esteve deitado em terra todo aquele dia e toda aquela noite; pelo que se diz: Está também Saul entre os profetas?

Os esforços de Mical para retardar os perseguidores de Davi dão resultado. Davi escapa noite adentro e foge para Ramá, onde se encontra com Samuel e lhe conta tudo o que Saul fez. Então, ele e Samuel deixam Ramá e vão para Naiote. A notícia de que Davi e Samuel estão em Naiote chega aos ouvidos do rei que, então, envia alguns de seus homens para prender Davi. Quando estes homens chegam a Naiote, encontram um grupo de profetas que está profetizando. Samuel está entre eles, presidindo o grupo. O Espírito de Deus desce sobre os homens enviados por Saul para capturar Davi e eles também começam a profetizar.

Não é dito o que estes homens fazem quando estão possuídos pelo Espírito, exceto que profetizam, mas podemos nos aventurar a supor que talvez não estejam muito longe do alvo. Sabemos, com certeza, que eles não prendem Davi ou fazem mal a Saul. Se eles profetizam, é razoável supor que suas palavras incluam o louvor a Deus. Também é possível que profetizem a respeito do próximo rei de Israel. Se estes homens, sob o controle do Espírito de Deus, proclamam Davi como o próximo rei, como podem tomar parte no plano de Saul para matá-lo? Do ponto de vista de Saul, este primeiro grupo de homens está fora.

Saul não aprende muito bem a lição. Não sabemos exatamente que tipo de relatório chega a ele sobre a primeira “companhia” enviada para prender Davi. O texto só indica que “foi dito a Saul”. Se ele é informado de que o Espírito de Deus desceu sobre seus homens e eles profetizaram, ele não capta o sentido da mensagem. Assim, ele envia um segundo grupo para prender Davi. (Temos certeza que, desta vez, ele escolhe homens que não sejam tão inclinados à “espiritualidade”). No entanto, quando este segundo grupo chega, acontece exatamente a mesma coisa com eles. Saul, então, envia um terceiro destacamento, só para que a mesma coisa se repita novamente.

Saul simplesmente ainda não entendeu que seus esforços são inúteis. Se na última tentativa ele disse a si mesmo “agora vai!”, desta vez deve ter pensado: “se quiser algo bem feito, faça você mesmo”. E assim ele chega à Ramá e vai até o grande poço que está em Seco. Lá, ele pergunta onde Samuel e Davi podem ser encontrados. Dizem a ele que ambos estão em Naiote, em Ramá, por isso ele prossegue até Naiote. No caminho, o Espírito de Deus desce sobre o próprio Saul e ele profetiza até chegar ao seu destino.

Deve ter sido um grande espetáculo. Saul, com certeza, estava muito irritado por ter enviado três destacamentos para prender Davi sem nenhum sucesso. Agora, ele está determinado a fazer o serviço ele mesmo. Você pode imaginar o seu humor quando se aproxima do lugar onde estão Davi e Samuel? De repente, o Espírito de Deus o domina, fazendo-o tirar sua túnica e estender-se nu diante de Samuel pelo resto do dia e durante toda a noite.

Saul pretende matar Davi e eliminar a ameaça ao trono? Ele não consegue nem mesmo prendê-lo e, agora, talvez esteja até profetizando que Davi certamente será rei. Saul chega como rei, com toda a autoridade e poder, determinado a realizar seu plano? Agora ele jaz nu diante de Samuel.

A notícia da chegada de Saul e sua conduta inesperada circulam rapidamente. Imagino que as pessoas que ouvem a notícia vêm averiguar e ver por si mesmas. Nu em pelo, Saul não parece tão valentão (perdão pela expressão). Estou mais interessado na questão dos lábios daqueles que vêem Saul neste estado espiritual: “Está Saul entre os profetas?” (verso 24).

Como a chegada e a conduta de Saul podem ser explicadas? Será que todo mundo sabe que ele está procurando matar Davi? Se não sabem, sua chegada e sua conduta são ainda mais misteriosas. Que outra razão haveria para Saul agir como profeta, entre profetas? Nós sabemos. Nenhum homem pode ser controlado pelo Espírito de Deus e executar seu plano demoníaco para matar o ungido de Deus. Eis um jeito de Deus garantir a segurança de Davi. Mesmo quando tenta fazer o serviço ele mesmo, Saul não consegue ter sucesso para impedir o intento de Deus. Como disse o Cristo glorificado anos mais tarde a “Saul(o)” (Paulo, o apóstolo): “Dura cousa é recalcitrares contra os aguilhões” (At. 26:14).

Precisamos observar mais uma coisa neste parágrafo final do capítulo 19: sua semelhança com o incidente ocorrido anteriormente na vida de Saul:

“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas?” (I Sam. 10:5-12)

Não parece coincidência demais que esta expressão encontrada no capítulo 10 seja, literalmente, repetida no capítulo 19? A primeira vez é no início do reinado de Saul. O Espírito desceu sobre Saul como prova de que ele era o rei escolhido de Deus, e também para capacitá-lo a agir como rei. Assim, o coração de Saul é mudado e ele “se torna outro homem” (10:6, 9-10). O Espírito de Deus desce sobre ele quando ele encontra um “grupo de profetas” (10:5, 10). Quando Saul profetiza com os outros profetas, as pessoas que testemunham o fato ficam surpresas e dizem “Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está Saul entre os profetas?” (10:11) Estes dizeres, então, se tornam um provérbio entre o povo (10:12).

As semelhanças entre os dois incidentes são marcantes, embora separadas por muitos anos. Nos dois casos, o Espírito de Deus desce sobre Saul e ele profetiza com os outros profetas. Aqueles que testemunham este acontecimento ficam surpresos e perguntam “Está também Saul entre os profetas?”. Em nenhum dos casos o fenômeno profético dura mais do que um dia, e depois cessa (muito parecido com aquilo que vemos em Nm. 11:16-30).

No entanto, há também algumas diferenças. O primeiro fenômeno profético acontece bem no início do reinado de Saul. Na realidade, a vinda do Espírito sobre ele é uma evidência de que Deus o preparou para desempenhar seus deveres como rei (compare com Nm. 11:16-30). Parece ser um tipo de credenciamento de Saul como rei de Israel. O segundo e último fenômeno chega no final de sua carreira, depois que lhe é dito que seu reinado chegaria ao fim. Quando Saul profetiza nesta última vez, é mais como um credenciamento de Davi (talvez meio indireto) do que de Saul. É quase como se Deus usasse o primeiro fenômeno como prova de que Saul é o rei e o segundo como prova de que seu reino está próximo do fim. Eis aqui algo para meditarmos um pouco mais.

Conclusão

Alguns podem estranhar porque, no domingo antes do Natal, não deixei de lado esta série em I Samuel e preguei uma “mensagem de Natal”, como já fiz outras vezes. Quando estudei o texto, percebi o quanto é parecido com a história do “primeiro Natal”. Temos Davi, a quem Deus escolheu e ungiu como rei de Israel. O rei Saul sabe que Davi é o rei de Deus e, por isso, sente-se ameaçado, embora Davi não procure tirá-lo do trono para reinar em seu lugar. Cheio de ciúmes, Saul tenta matá-lo e, não importa o quanto tente capturá-lo e matá-lo, seus planos sempre fracassam. Não existe jeito de Davi - o rei de Deus - ser morto por um homem como Saul, ou por qualquer outro. Em certo sentido, podemos dizer que Davi leva uma vida encantada, pois é o propósito de Deus para ele que se torne o próximo rei.

A história do Natal é sobre um outro rei, o “Filho de Davi”, a quem Deus constituiu para governar sobre o povo de Israel. Quando este rei nasceu, os magos do Oriente O buscaram para adorá-Lo. O rei Herodes, junto com o povo de Jerusalém, fica muito atribulado (não deleitado!) porque estes nobres estão à procura do “Rei dos judeus” (Mt. 2:1-3). Ele chama os líderes religiosos judaicos, procurando saber o lugar onde este “Rei” pode ser encontrado. Ele também diz aos magos para avisá-lo quando encontrarem este “Rei”. Ele não faz isto para adorar o Senhor Jesus (como os magos), mas para matá-lo. Herodes tem tamanha intenção de se livrar deste “Rei”, o qual ele acha ser uma ameaça ao seu reino, que mata todos os meninos na área de Belém, na esperança de que o “Rei” esteja entre eles. A despeito de todos os seus esforços, Herodes fracassa.

Como o rei Saul, Herodes não aprende a lição que todos os reis terrenos deveriam saber: que o monarca ungido de Deus, Jesus Cristo, o Messias prometido, não pode ser derrotado ou destruído. Esta é a lição ensinada no Salmo segundo:

“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.”

Os sábios do Oriente estão certos e Herodes (como Saul) totalmente errado. Ninguém pode derrotar o ungido de Deus. E esse rei é Jesus Cristo. Ele virá outra vez e subjugará os Seus inimigos. E então reinará sobre todas as coisas. Aqueles que se submetem a Ele como o rei ungido e designado por Deus, com Ele reinarão; os que resistirem serão destruídos.

O bebê na manjedoura, Jesus Cristo, é o Messias prometido, o rei que governará sobre todas as coisas. Ele é também o descendente de Davi. Deus não somente designa Davi como o rei de Israel, Ele o designa como aquele do qual nascerá o Rei. Que tolice é Saul tentar destruir Davi. Da mesma forma que Saul cai prostrado e humilhado diante do profeta Samuel, todo aquele que resistir a Jesus Cristo, o rei de Deus, um dia cairá diante Dele e O professará como o Rei dos reis:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Fp. 2:5-11).

Esta é a mensagem do Natal. Esta é a mensagem do evangelho. Deus enviou Seu filho para ser o Salvador do mundo. Ele O enviará segunda vez para ser o Rei dos Reis. Todos aqueles que rejeitaram a Jesus como Salvador serão Seus inimigos quando Ele voltar. E todos aqueles que O resistirem agora, um dia cairão diante Dele como o Aquele que os derrotou. Todos aqueles que O receberem agora, como o único meio de Deus para salvação de seus pecados, reinarão com Ele quando Ele voltar. Se Saul nos ensina alguma coisa, é que é uma tolice resistir ao rei designado por Deus. Não vamos cometer o mesmo erro.

17. Quando Saul Arremessa Sua Lança, Jônatas Entende (I Samuel 20:1-42)

Introdução

Minha esposa tem o mesmo nome que uma tia que morreu no ano passado aos 90 anos. Não tenho certeza de quão bem aos 90 anos, mas relativamente bem. “Titia J” (J de Jeanette) era muito ativa e bondosa. Em seus últimos meses sua memória começou a falhar. Não era como se ela se esquecesse de tudo, mas era como se suas informações estivessem arquivadas no lugar errado. (Para o pessoal da informática era como se suas tabelas de alocação de arquivo estivessem corrompidas). Pedaços de informação de um determinado lugar e de uma determinada época estavam ligados a pedaços de outro lugar e de outra época. Isto resultava em versões totalmente diferentes das histórias relembradas por minha esposa.

Um dia, quando visitávamos Tia J, a discussão girou em torno dos tempos passados. Tia J se lembrava de uma certa história e minha esposa, Jeanette, corrigia os detalhes, dizendo algo como: “Não, tia J, não se lembra que, quando a visitei, você estava vivendo numa casa assim e assim, em São Francisco?” Bem, Tia J não se lembrava de maneira alguma desse jeito. Este ciclo de ouvir as lembranças de Tia J e depois ouvir as correções editoriais de minha esposa continuou durante algum tempo. Finalmente, depois de uma história, minha esposa disse: “Não, Tia J, não foi desse jeito, foi daquele...” Tia J podia estar ficando velha, e sua mente podia estar lhe pregando algumas peças, mas ainda era afiada como uma navalha. Sua resposta à correção de minha esposa foi: “se você diz...” Que resposta! Embora Tia J não se lembrasse detalhadamente da história, para ela, sua memória era muito clara. Ela não queria magoar os sentimentos de minha esposa, mas também não estava disposta a concordar com alguma coisa que se lembrasse de forma diferente. Sua resposta “se você diz” foi perfeita; ela não estava disposta a concordar, mas também não desejava discordar.

Enquanto leio o capítulo 20 de I Samuel, lembro-me de Tia J e de sua resposta. Ela me faz lembrar de Jônatas e sua resposta às palavras de Davi, no começo deste capítulo. Davi recorre a Jônatas, convencido de que seu pai, Saul, está tentando matá-lo. Davi procura saber o que fez para que Saul se sinta desse jeito com relação a ele. Jônatas não pode acreditar em seus ouvidos. Para ele é simplesmente inconcebível que seu pai realmente tenha voltado atrás em sua palavra, depois de prometer que não mataria Davi (19:6). Davi está determinado a convencê-lo de que seus temores não são ilusões paranóicas, como o medo de Saul. Assim, ele faz um juramento para garantir a Jônatas que está falando a verdade. A resposta de Jônatas, como a de Tia J, foi “O.K. aceitarei sua palavra. Deve ser do jeito que você diz.”

Este é um triste capítulo nas vidas de Saul, Jônatas e Davi. Fica muito claro que Saul está decidido a matar Davi, e que ele matará até mesmo seu próprio filho, caso ele atrapalhe suas tentativas. É um momento decisivo no relacionamento entre Davi e Jônatas e entre Davi e Saul. É ocasião para a confirmação da aliança entre Davi e Jônatas e também para uma separação muito triste. Contudo, há alguns pontos brilhantes neste capítulo sombrio, e algumas lições muito importantes para os cristãos atuais aprenderem destas palavras inspiradas.

Davi Propõe um Teste
(20:1-23)

“Então, fugiu Davi da casa dos profetas, em Ramá, e veio, e disse a Jônatas: Que fiz eu? Qual é a minha culpa? E qual é o meu pecado diante de teu pai, que procura tirar-me a vida? Ele lhe respondeu: Tal não suceda; não serás morto. Meu pai não faz coisa nenhuma, nem grande nem pequena, sem primeiro me dizer; por que, pois, meu pai me ocultaria isso? Não há nada disso. Então, Davi respondeu enfaticamente: Mui bem sabe teu pai que da tua parte achei mercê; pelo que disse consigo: Não saiba isto Jônatas, para que não se entristeça. Tão certo como vive o SENHOR, e tu vives, Jônatas, apenas há um passo entre mim e a morte. Disse Jônatas a Davi: O que tu desejares eu te farei. Disse Davi a Jônatas: Amanhã é a Festa da Lua Nova, em que sem falta deveria assentar-me com o rei para comer; mas deixa-me ir, e esconder-me-ei no campo, até à terceira tarde. Se teu pai notar a minha ausência, dirás: Davi me pediu muito que o deixasse ir a toda pressa a Belém, sua cidade; porquanto se faz lá o sacrifício anual para toda a família. Se disser assim: Está bem! Então, teu servo terá paz. Porém, se muito se indignar, sabe que já o mal está, de fato, determinado por ele. Usa, pois, de misericórdia para com o teu servo, porque lhe fizeste entrar contigo em aliança no SENHOR; se, porém, há em mim culpa, mata-me tu mesmo; por que me levarias a teu pai? Então, disse Jônatas: Longe de ti tal coisa; porém, se dalguma sorte soubesse que já este mal estava, de fato, determinado por meu pai, para que viesse sobre ti, não to declararia eu? Perguntou Davi a Jônatas: Quem tal me fará saber, se, por acaso, teu pai te responder asperamente? Então, disse Jônatas a Davi: Vem, e saiamos ao campo. E saíram. E disse Jônatas a Davi: O SENHOR, Deus de Israel, seja testemunha. Amanhã ou depois de amanhã, a estas horas sondarei meu pai; se algo houver favorável a Davi, eu to mandarei dizer. Mas, se meu pai quiser fazer-te mal, faça com Jônatas o SENHOR o que a este aprouver, se não to fizer saber eu e não te deixar ir embora, para que sigas em paz. E seja o SENHOR contigo, como tem sido com meu pai. Se eu, então, ainda viver, porventura, não usarás para comigo da bondade do SENHOR, para que não morra? Nem tampouco cortarás jamais da minha casa a tua bondade; nem ainda quando o SENHOR desarraigar da terra todos os inimigos de Davi. Assim, fez Jônatas aliança com a casa de Davi, dizendo: Vingue o SENHOR os inimigos de Davi. Jônatas fez jurar a Davi de novo, pelo amor que este lhe tinha, porque Jônatas o amava com todo o amor da sua alma. Disse-lhe Jônatas: Amanhã é a Festa da Lua Nova; perguntar-se-á por ti, porque o teu lugar estará vazio. Ao terceiro dia, descerás apressadamente e irás para o lugar em que te escondeste no dia do ajuste; e fica junto à pedra de Ezel. Atirarei três flechas para aquele lado, como quem atira ao alvo. Eis que mandarei o moço e lhe direi: Vai, procura as flechas; se eu disser ao moço: Olha que as flechas estão para cá de ti, traze-as; então, vem, Davi, porque, tão certo como vive o SENHOR, terás paz, e nada há que temer. Porém, se disser ao moço: Olha que as flechas estão para lá de ti. Vai-te embora, porque o SENHOR te manda ir. Quanto àquilo de que eu e tu falamos, eis que o SENHOR está entre mim e ti, para sempre.”

Quero dizer que posso entender por que Davi “fugiu” de Ramá para encontrar Jônatas naquele que deve ter sido o palácio de Saul (verso 1). Em Ramá, Davi está com Samuel, o profeta. Em Ramá, Saul não pode por as mãos em Davi. Quando Saul envia os três destacamentos para prender Davi, eles são divinamente proibidos por uma obra miraculosa do Espírito de Deus. Isto também acontece com Saul (19:18-24). Por que, então, Davi “foge” para o palácio onde vivem Saul e Jônatas? A única explicação que faz sentido é que é lá que pode ser encontrado seu querido amigo. Davi não parece estar fugindo de Saul, mas fugindo para Jônatas, da mesma forma como fugiu para Aimeleque e Samuel anteriormente.

A menos que Davi seja hipócrita naquilo que diz para Jônatas, ele humildemente assume uma posição digna de elogio. Ele não começa acusando ou atacando Saul. Ele começa enfocando seu próprio pecado. Repare na dupla referência ao pecado (“culpa”, “pecado”) no verso 1. Davi parece estar genuinamente interessado em saber se fez algo errado que tenha ocasionado o tratamento que Saul está dispensando a ele.

Inicialmente Jônatas está com dois pés atrás com Davi. Ele não responde à pergunta sobre sua culpa mas, em vez disto, contesta a avaliação de Davi sobre estar em perigo mortal - por parte de Saul! Ele contesta a afirmação de que Saul está perseguindo sua vida, em vez de responder a pergunta acerca de seu pecado. Jônatas é um tanto ingênuo aqui, pois garante a Davi que, se seu pai tivesse a intenção de matá-lo, certamente lhe contaria primeiro - a ele, seu filho.

Davi insistentemente discorda da avaliação de Jônatas da situação. Ele faz um juramento solene para ressaltar sua seriedade sobre o assunto. Não deixa que Jônatas ignore suas preocupações tão depressa. Agora que Saul sabe que Davi e Jônatas são amigos, unidos por uma aliança, por que seria tão tolo a ponto de revelar seus planos de matar Davi para Jônatas? Saul propositadamente mantém silêncio sobre seus planos a fim de que Jônatas não saiba o que ele está fazendo.

Davi afirma, então, com as palavras mais enérgicas possíveis, o fato de que sua vida está em perigo mortal. Sua vida está por um fio. Jônatas agora percebe a seriedade de Davi e como ele se sente sobre este perigo. Ele entende que Davi quer realmente que ele o leve a sério e, assim, demonstra compaixão, garantindo-lhe que fará qualquer coisa que ele queira. Jônatas pode ainda não estar convencido das más intenções de seu pai, mas está convencido de que Davi está aflito e teme por sua vida. Jônatas decide acreditar na palavra de Davi.

No verso 5 e seguintes, Davi propõe um plano que demonstrará as intenções de Saul para com ele. Isto parece ser tanto para o benefício de Jônatas quanto para o benefício de Davi. O plano é simples. No dia seguinte é lua cheia e, portanto, época de Saul fazer o sacrifício e compartilhar a refeição sacrificial. Davi faz parte de sua casa e por isso espera-se que esteja presente. Se Saul de fato pretende matá-lo, ficará muito preocupado quando descobrir que ele não está presente à refeição. Se Saul não planeja matá-lo, sua ausência não será problema. E assim Davi planeja ausentar-se e, com sua ausência, testar as intenções de Saul.

A ausência de Davi precisará ser explicada de tal forma que pareça razoável a ele estar ausente. Davi já preparou a explicação. Uma vez que Jônatas estará presente à celebração, ele pode dar a desculpa por Davi. Se, e quando Saul perguntar sobre sua ausência, Jônatas pode dizer ao rei que Davi pedira sua permissão para faltar à celebração porque sentiu que deveria ir a Belém ficar com sua família durante os festejos. É uma explicação razoável, que não deverá causar a Saul nenhum problema, a menos que, de fato, ele esteja procurando uma desculpa para si mesmo - uma desculpa para matar Davi.

Mas, por que a ausência de Davi seria tão importante para Saul? Penso que Davi não tenha feito muitas refeições à mesa de Saul ultimamente. Duas vezes Saul tentou matá-lo com sua lança enquanto ele estava em sua casa. Davi fugiu da casa de Saul e até mesmo de sua própria casa, acabando em Ramá junto com Samuel. Durante algum tempo Davi ficou ausente. Esta refeição festival devia ser como o Natal é para nós, um tempo para a família quando se espera que os membros estejam presentes. Não importa que Davi tenha sua própria família e que eles queiram que esteja com eles. Saul espera que Davi fique consigo, o que lhe dará outra oportunidade para liquidá-lo. Se Davi não comparece à refeição, Saul não tem idéia de quando ocorrerá a próxima oportunidade para matá-lo. Portanto, a ausência de Davi deve ser um teste para as intenções de Saul.

Davi apela para Jônatas realizar seu plano e ver se Saul ainda pretende mesmo matá-lo. A base para este apelo é o amor que os dois homens sentem um pelo outro e a aliança que fizeram (ver 18:1-4; 19:1). Davi fala com Jônatas como se ele fosse seu senhor e ele seu servo (20:8). De fato, isto é verdade. Jônatas é, nesse momento, o filho do rei, e Davi, seu subordinado. Davi apela para a aliança que os dois fizeram e pede que Jônatas realize o plano proposto por ele. Em vez de Davi se entregar a Saul, ele pede que Jônatas mesmo o execute, se realmente for culpado de algum pecado. Jônatas fica apavorado ante tal sugestão. Davi realmente pensa que ele o trairia entregando-o a seu pai para ser morto? Se Jônatas soubesse de qualquer complô de seu pai contra ele, Davi realmente supõe, mesmo que por um momento, que seu amigo não o avisaria em vez de traí-lo?

Jônatas deixa claro que avisará Davi sobre qualquer complô contra ele. Se seu pai realmente pretende matá-lo, ele pode ter certeza de que Jônatas o avisará. No entanto, há uma possibilidade do plano falhar. Suponha que Saul de fato pretenda matar Davi, e que ele mate Jônatas por tentar saber quais são suas intenções contra ele. Se Saul matar Jônatas por tentar ajudar Davi, quem o avisará? Aquilo que expliquei rudemente, Davi diz com toda delicadeza:

“Quem tal me fará saber, se, por acaso, teu pai te responder asperamente?” (verso 10b)

A esta altura Jônatas faz algo estranho e totalmente inesperado. Ele não fala mais nada até que estejam no meio do campo (verso 12). Este parece ser o campo onde Jônatas discute com seu pai, enquanto Davi observa (19:1-6). Creio que Jônatas está começando a perceber como a situação se tornou séria. Se Saul está louco de ciúmes e planejando matar Davi, é provável que alguém que, por acaso ouça a conversa entre eles, possa relatá-la a Saul. Os dois não estão indo ao campo tomar ar fresco. Estão saindo para onde olhos curiosos e ouvidos atentos não possam entender o que está sendo dito entre eles. Uma vez que este também é o lugar onde Jônatas dirá a Davi o resultado do “teste”, eles poderão marcar o lugar onde cada um ficará.

Se o teste mostrar que Saul mudou de idéia e que suas intenções são favoráveis, então Jônatas mandará dizê-lo a Davi (verso 12). Mas, se as intenções de Saul ainda forem hostis, Jônatas então levará a notícia a Davi, para que possa fugir. Se for este o caso, e Davi tiver que fugir (como agora Jônatas parece temer), então ele fará Davi saber que vai com sua bênção e com seu amor (verso 13).

Agora, se Davi precisar fugir, Jônatas tem um pedido para ele, um pedido baseado na aliança que os dois fizeram. Se ele sobreviver ao teste, Davi poupará sua vida, da mesma forma que ele procurou proteger a vida de Davi. Jônatas sabe que Davi sobreviverá e se tornará rei de Israel. Quando Davi for rei, Jônatas pede que ele poupe sua vida. Ele sabe muito bem que, quando um rei substitui outro, o rei que está no controle mata quaisquer outros rivais ao trono, incluindo seus herdeiros. Jônatas quer que Davi garanta que ele e seus herdeiros não serão aniquilados, como é de praxe. Os dois homens aperfeiçoam e reafirmam sua aliança, como manifestação de seu amor. Há uma diferença muito importante entre esta aliança elucidada e aperfeiçoada e aquela feita anteriormente. A anterior era uma aliança entre dois homens, Davi e Jônatas. Esta é um aliança entre duas famílias, entre duas dinastias. Esta é a aliança entre os descendentes de Davi e os descendentes de Jônatas.

Uma mudança sutil, claramente percebida nos versos 18 a 23, aconteceu. Jônatas assumiu o controle da situação. A princípio, a iniciativa foi de Davi. Davi fugiu de Ramá e procurou por Jônatas. Jônatas reluta em acreditar naquilo que ele lhe diz a respeito de seu pai. Depois, percebendo a seriedade de Davi sobre este assunto, ele concorda em ajudá-lo da forma que ele achar melhor. Davi propõe um plano que revelará os planos de Saul com respeito a ele. Depois, no verso 11, Jônatas leva Davi para campo aberto onde continuam sua conversa. Acho que deste ponto em diante, Jônatas toma conta do problema. Ele não é mais um ouvinte relutante ou um auxiliar complacente de Davi, ele é o líder.

Nos versos 18 a 23 Jônatas cuidadosamente explica o plano pelo qual dará o resultado do teste a Davi. Davi deve se esconder por três dias, enquanto o teste estiver sendo levado a cabo. Então, no final deste período, ele deve vir ao campo onde estão neste momento. Ali, Jônatas informará o resultado do teste. Jônatas atirará três flechas, como se mirasse num alvo. Depois mandará um rapaz pegar as flechas. Se Jônatas disser ao jovem para procurar as flechas em sua direção, Davi deverá entender que as intenções de Saul são boas, e dessa forma, poderá sair do esconderijo. Mas, se Jônatas disser ao rapaz para procurá-las além de onde está, então Davi deve entender que Saul pretende prejudicá-lo, e deve fugir.

Uma vez mais, a aliança entre eles é mencionada com relação ao plano. Jônatas garante a Davi que fará tudo o que prometeu, por causa da aliança. O uso do termo para sempre, no verso 23, indica que esta aliança agora é vista como sendo entre Jônatas e seus descendentes, e Davi e seus descendentes. Esta aliança extensiva é a base de sua amizade e confiança mútua.

Saul Não Passa no Teste
(20:24-34)

“Escondeu-se, pois, Davi no campo; e, sendo a Festa da Lua Nova, pôs-se o rei à mesa para comer. Assentou-se o rei na sua cadeira, segundo o costume, no lugar junto à parede; Jônatas, defronte dele, e Abner, ao lado de Saul; mas o lugar de Davi estava desocupado. Porém, naquele dia, não disse Saul nada, pois pensava: Aconteceu-lhe alguma coisa, pela qual não está limpo; talvez esteja contaminado. Sucedeu também ao outro dia, o segundo da Festa da Lua Nova, que o lugar de Davi continuava desocupado; disse, pois, Saul a Jônatas, seu filho: Por que não veio a comer o filho de Jessé, nem ontem nem hoje? Respondeu Jônatas a Saul: Davi me pediu, encarecidamente, que o deixasse ir a Belém. Ele me disse: Peço-te que me deixes ir, porque a nossa família tem um sacrifício na cidade, e um de meus irmãos insiste comigo para que eu vá. Se, pois, agora, achei mercê aos teus olhos, peço-te que me deixes partir, para que veja meus irmãos. Por isso, não veio à mesa do rei. Então, se acendeu a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho de mulher perversa e rebelde; não sei eu que elegeste o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha do recato de tua mãe? Pois, enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem seguro o teu reino; pelo que manda buscá-lo, agora, porque deve morrer. Então, respondeu Jônatas a Saul, seu pai, e lhe disse: Por que há de ele morrer? Que fez ele? Então, Saul atirou-lhe com a lança para o ferir; com isso entendeu Jônatas que, de fato, seu pai já determinara matar a Davi. Pelo que Jônatas, todo encolerizado, se levantou da mesa e, neste segundo dia da Festa da Lua Nova, não comeu pão, pois ficara muito sentido por causa de Davi, a quem seu pai havia ultrajado.”

No dia seguinte Jônatas se senta à mesa com seu pai e outras pessoas, como sempre faz. O rei Saul se senta de “costas para a parede” (verso 25), o que lhe dá grande segurança (deste jeito, ninguém pode apunhalar ou atirar em alguém pelas costas). Jônatas senta-se em frente a ele e Abner ao lado do rei. Todo mundo parece estar sentado no lugar de costume. Evidentemente, o lugar de Davi à mesa está vazio. Saul não diz nada. Ele pensa consigo mesmo que Davi, de alguma forma, está impuro e não possa participar da refeição.

No outro dia o lugar de Davi ainda está vazio. Tentando parecer casual, Saul pergunta a Jônatas por que “o filho de Jessé” não aparece há dois dias. Jônatas dá a Saul a desculpa que ele e Davi ensaiaram. Davi, responde Jônatas, pediu permissão a ele para se ausentar, a fim de que pudesse celebrar com sua família em Belém. O irmão de Davi o pressionou e ele pediu permissão a Jônatas para se ausentar, e Jônatas concedeu. Simples - sem grandes problemas.

Mas, com toda certeza, é um problema para Saul! Ele fica furioso, e sua fúria se concentra em Jônatas. É tudo culpa de Jônatas, Saul conclui. Ele chama seu próprio filho dos nomes mais ofensivos. Todas as acusações de Saul são, em essência, verdadeiras e baseadas na aliança que Jônatas e Davi fizeram. Jônatas é o primogênito de Saul, o herdeiro do trono. Jônatas está jogando tudo isto fora por prometer amor e lealdade a Davi. Se Davi viver, o trono será seu e não de Jônatas. Por isso, Saul ordena que Jônatas traga Davi para que seja morto.

As razões de Saul são interesseiras e de modo algum piedosas. Saul não dá importância ao fato de que Deus indicou através de Samuel que seu reino seria tirado dele (13:13-14; 15:22-23). Ele despreza o fato de Samuel ter ungido Davi como o próximo rei de Israel (16:13). Matar Davi será matar o ungido de Deus. Ainda que Davi não faça isto a ele, Saul com toda certeza pretende matá-lo. Jônatas pressiona seu pai a pensar em termos de justiça bíblica. Se Davi vai ser morto, por cometer qual pecado deve ser executado? Qual pecado seu merece a pena de morte? Se não existe razão nas Escrituras para matá-lo (quer dizer, na lei de Moisés), então Saul é o único que está pecando, não Davi.

Saul agora é realmente perverso. Ele pega sua lança, que está sempre ao seu lado, e a atira em seu próprio filho, Jônatas. Saul atira a lança, e Jônatas entende. Ele não acerta. Felizmente Saul não melhorou sua pontaria. Não há mais dúvidas na cabeça de Jônatas. Agora há dois lugares vazios na mesa, o de Davi e o de Jônatas. Que conveniente! Jônatas está profundamente pesaroso. Seu pesar, você notará, não é devido à humilhação que seu pai lhe impôs à mesa do jantar, mas devido à maneira como seu pai desonrou Davi (verso 34). O tempo todo Davi estava certo, absolutamente certo. Saul realmente pretende matá-lo, e também matará qualquer um que tente pará-lo.

Uma Despedida Triste
(20:35-42)

“Na manhã seguinte, saiu Jônatas ao campo, no tempo ajustado com Davi, e levou consigo um rapaz. Então, disse ao seu rapaz: Corre a buscar as flechas que eu atirar. Este correu, e ele atirou uma flecha, que fez passar além do rapaz. Chegando o rapaz ao lugar da flecha que Jônatas havia atirado, gritou Jônatas atrás dele e disse: Não está a flecha mais para lá de ti? Tornou Jônatas a gritar: Apressa-te, não te demores. O rapaz de Jônatas apanhou as flechas e voltou ao seu senhor. O rapaz não entendeu coisa alguma; só Jônatas e Davi sabiam deste ajuste. Então, Jônatas deu as suas armas ao rapaz que o acompanhava e disse-lhe: Anda, leva-as à cidade. Indo-se o rapaz, levantou-se Davi do lado do sul e prostrou-se rosto em terra três vezes; e beijaram-se um ao outro e choraram juntos; Davi, porém, muito mais. Disse Jônatas a Davi: Vai-te em paz, porquanto juramos ambos em nome do SENHOR, dizendo: O SENHOR seja para sempre entre mim e ti e entre a minha descendência e a tua.”

Agora é hora de Jônatas realizar seu plano. Ele precisa dizer a Davi que ele estava certo, que Saul realmente pretende matá-lo. Como combinado, Jônatas vai ao campo onde sabe que Davi está escondido e observando. Ele manda seu jovem servo ir pegar suas flechas. Ele atira a primeira flecha além de onde está o jovem, e então grita que ela está adiante dele. Davi agora sabe. Saul está tentando matá-lo. Ele precisa escapar tão rápido quanto possível. Quando o jovem traz a flecha de volta, Jônatas o manda retornar à cidade.

Se o plano é que Davi escape despercebido pela floresta, ele não é executado. Os dois homens sabem que daí em diante suas vidas jamais serão as mesmas. Talvez não se vejam novamente, e se o fizerem, será em segredo, e por pouco tempo. Assim, Davi sai do esconderijo e se aproxima de Jônatas e lhe dá um doloroso adeus. Os dois se beijam e choram, Davi mais do que Jônatas. Esta vai ser uma grande perda para ele, e ele sabe disso. Quando se separam, Jônatas fala sobre a aliança que fez com Davi e sua descendência e reafirma seu compromisso em mantê-la. Davi se levanta e parte, e Jônatas retorna à cidade. As coisas jamais serão as mesmas novamente, e ambos sabem disso.

Conclusão

Neste capítulo podemos perceber um ponto muito importante no que se refere ao relacionamento de Davi com Saul e com Jônatas. Antigamente, Davi fugia da presença de Saul, mas isto era sempre temporário. Agora, é permanente. Davi não se sentará à mesa de Saul outra vez, não tocará sua harpa para acalmar o espírito atribulado do rei outra vez, não lutará por Saul no exército israelita outra vez. Davi se tornará um fugitivo que estará constantemente fugindo de Saul, que procura matá-lo. Por isso, a amizade que Davi gozou com Jônatas também não será a mesma outra vez. E assim, Davi e Jônatas dizem este triste adeus de nosso texto. Eles se encontrarão novamente, mas não será com freqüência, ou por muito tempo.

Uma palavra resume todo este capítulo, e essa palavra é aliança. Davi foge para Jônatas, num momento de puro desespero, porque eles têm um relacionamento pactual que garante a Davi o amor e o apoio de Jônatas. Esta aliança de mútuo amor e boa vontade será a razão para Jônatas levar Davi tão a sério, que se disporá a realizar o teste proposto por ele. Também é a razão pela qual Jônatas toma essas elaboradas precauções de segurança (sair para o campo, comunicando-se com Davi através de um tipo de sinal). Esta aliança é realmente elucidada e estendida em nosso texto. O que, originalmente, era uma aliança entre dois homens, agora se torna uma aliança entre duas famílias. O que era uma aliança geral, vaga, feita na época em que não havia animosidade da parte de Saul contra Davi, agora é elucidada para cuidar de sua hostilidade e de seus intentos violentos contra ele. A aliança entre Jônatas e Davi também é o ponto forte da fúria de Saul contra ambos, Davi e Jônatas. A aliança que une estes dois homens e suas famílias provocou a ira de Saul contra Davi e contra seu filho, Jônatas. Saul não poderia se opor a um sem se opor ao outro.

Esta aliança é o fundamento e a diretriz do relacionamento entre Davi e Jônatas. Ela dá a ambos a sensação de segurança e expressa a submissão e a servidão de um ao outro. Este é um assunto de tal importância que devemos fazer uma pausa para refletir sobre ele. Primeiramente, vamos discutir esta aliança como sendo relevante aos nossos relacionamentos com as outras pessoas. E depois concluiremos explorando a maneira pela qual uma “aliança” determina o nosso relacionamento com Deus.

Uma Aliança Determina Nosso Relacionamento com As Outras Pessoas

Mesmo no mundo em que vivemos somos governados com fundamento numa aliança que os homens fazem entre si. A Declaração de Independência dos Estados Unidos foi escrita, em parte, porque o povo da nação sentia que a Inglaterra quebrara a aliança com aqueles que eram governados por ela. Nossa Constituição é um tipo de aliança, que nos une como nação. Seja escrito ou oral, implícito ou expresso, o governo é estabelecido com base numa aliança feita por homens.

Creio que o casamento é uma das mais importantes alianças que um homem pode fazer com uma mulher. Ainda é comum para algumas pessoas que vivem juntas sem serem casadas, dizer: “Amamos um ao outro e não precisamos de um pedaço de papel para nos manter juntos.” Nosso texto deixa claro que uma aliança é a conseqüência natural do amor, uma expressão do amor. Davi e Jônatas fizeram uma aliança porque eles se amavam. Em suas mentes, teria sido inconcebível não fazerem uma aliança. Por que dois homens, que se amam como irmãos, não estariam dispostos a assumir compromissos que eles juram manter para sempre?

Uma aliança é prova de amor. Uma aliança é um acordo mútuo sobre a definição de como o amor será refletido num relacionamento. Acho que também é certo dizer que um relacionamento pactual se desenvolve. Quando o ciúme de Saul se torna evidente, tanto Davi como Jônatas modificam (ou elucidam) sua aliança para que as novas circunstâncias sejam levadas em conta. Mas o compromisso que têm um com o outro não diminui por causa dos tempos difíceis que sobrevêm sobre seu relacionamento; os tempos difíceis fazem com que os dois se comprometam ainda mais um com o outro. A mesma coisa se aplica aos votos do casamento. Quando um homem e uma mulher se juntam para se tornar marido e mulher, eles fazem votos que são, na realidade, a definição da aliança que está sendo feita. Esta aliança não deve ser quebrada. Esta aliança é o fundamento e o esteio quando os problemas chegam, mesmo quando o amor parece faltar. Uma aliança dá ao casamento a estabilidade que os sentimentos românticos não podem dar, porque não são constantes.

Para todos os crentes em Cristo não há somente uma aliança individual entre eles e Jesus Cristo, há também um relacionamento pactual entre todos os crentes. Nós formamos uma comunidade pactual, unidos pela aliança. Repare como o profeta Malaquias repreende os antigos israelitas por falharem em manter suas alianças:

“Não temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou o mesmo Deus? Por que seremos desleais uns para com os outros, profanando a aliança de nossos pais? Judá tem sido desleal, e abominação se tem cometido em Israel e em Jerusalém; porque Judá profanou o santuário do SENHOR, o qual ele ama, e se casou com adoradora de deus estranho. O SENHOR eliminará das tendas de Jacó o homem que fizer tal, seja quem for, e o que apresenta ofertas ao SENHOR dos Exércitos. Ainda fazeis isto: cobris o altar do SENHOR de lágrimas, de choro e de gemidos, de sorte que ele já não olha para a oferta, nem a aceita com prazer da vossa mão. E perguntais: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher da tua aliança. Não fez o SENHOR um, mesmo que havendo nele um pouco de espírito? E por que somente um? Ele buscava a descendência que prometera. Portanto, cuidai de vós mesmos, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR, Deus de Israel, diz que odeia o repúdio e também aquele que cobre de violência as suas vestes, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto, cuidai de vós mesmos e não sejais infiéis.” (Ml. 2:10-16)

Uma Aliança Determina Nosso Relacionamento com Deus

Aquilo que eu disse sobre as alianças determinarem os relacionamentos entre os homens é conseqüência natural de uma verdade mais elevada: Deus determina o relacionamento do homem Consigo mesmo por meio de uma aliança. Quando Deus destruiu toda a raça humana por causa de seu pecado, Ele estabeleceu uma aliança com Noé e seus descendentes. Quando Deus passou a relacionar-se com Abrão (antes dele ser chamado Abraão), Ele o fez por meio de uma aliança, a Aliança Abraâmica (Gn. 12:1-3, etc.). Quando Deus libertou o povo de Israel da escravidão do Egito, Ele passou a relacionar-se com eles, e este relacionamento foi governado pela Aliança Mosaica. As ações de Deus em Israel no Antigo Testamento podem ser vistas como o cumprimento dessa aliança. Deus agiu de acordo com Sua aliança.

Todos os tratos de Deus com os homens podem ser vistos como o cumprimento de Sua aliança com eles. Mas, enquanto Deus sempre mantém os termos de Sua aliança, o homem consistentemente tem demonstrado que é um transgressor dessa aliança. Se nossa salvação dependesse de guardarmos a aliança de Deus, jamais seríamos perdoados de nossos pecados e jamais faríamos parte de Seu Reino. Deus sabia que, apesar dos homens terem prometido guardar a aliança mosaica, eles jamais o fariam:

“Ouvindo, pois, o SENHOR as vossas palavras, quando me faláveis a mim, o SENHOR me disse: Eu ouvi as palavras deste povo, as quais te disseram; em tudo falaram eles bem. Quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos, para que bem lhes fosse a eles e a seus filhos, para sempre!” (Dt. 5:28-29)

Tempos depois na história de Israel, quando Josué disse ao povo suas palavras de despedida, uma vez mais eles prometerem guardar esta aliança (mosaica). Josué os conhecia muito melhor:

“Então, Josué disse ao povo: Não podereis servir ao SENHOR, porquanto é Deus santo, Deus zeloso, que não perdoará a vossa transgressão nem os vossos pecados. Se deixardes o SENHOR e servirdes a deuses estranhos, então, se voltará, e vos fará mal, e vos consumirá, depois de vos ter feito bem. Então, disse o povo a Josué: Não; antes, serviremos ao SENHOR. Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos de que escolhestes o SENHOR para o servir. E disseram: Nós o somos. Agora, pois, deitai fora os deuses estranhos que há no meio de vós e inclinai o coração ao SENHOR, Deus de Israel. Disse o povo a Josué: Ao SENHOR, nosso Deus, serviremos e obedeceremos à sua voz. Assim, naquele dia, fez Josué aliança com o povo e lha pôs por estatuto e direito em Siquém.” (Js. 24:19-25)

Havia apenas uma solução. Precisava haver uma salvação que não dependesse da perfeição e do desempenho do homem. Precisava ser uma salvação que dependesse da perfeição e do desempenho de Deus. E, assim, no Velho Testamento, Deus começou a falar da “nova aliança” que faria com os homens, a qual resultaria na salvação eterna:

“Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o SENHOR. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o SENHOR. Pois perdoarei as suas iniqüidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.” (Jr. 31:31-34)

Esta “nova aliança” foi cumprida pelo Messias prometido, o Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo.

“E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós.” (Lc. 22:19-20)

“E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica. E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto de os filhos de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desvanecente, como não será de maior glória o ministério do Espírito! Porque, se o ministério da condenação foi glória, em muito maior proporção será glorioso o ministério da justiça. Porquanto, na verdade, o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobreexcelente glória. Porque, se o que se desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente.” (II Co. 3:4-11)

“Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança, a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados.” (Hb. 9:11-15)

Tudo se reduz a isto. Deus sempre se relacionou com os homens com base numa aliança. Em todos os casos os homens falharam em guardar a aliança de Deus, embora Deus tenha fielmente mantido sua aliança e suas promessas. A fim de salvar os homens de seus pecados e lhes dar acesso a Seu reino, Deus substituiu a(s) antiga(s) aliança(s) por uma nova e melhor. Esta aliança não depende do nosso desempenho, mas do desempenho de Deus. Deus enviou Seu Filho, Jesus Cristo, para viver um vida sem pecado, para cumprir perfeitamente a antiga aliança mosaica. E depois, quando morreu na cruz do Calvário, Ele suportou a pena pelos pecados dos homens. Quando Ele ressurgiu da morte, demonstrou a satisfação de Deus e Sua (de Cristo) Justiça. Pela morte, funeral e ressurreição de Cristo Deus deu aos homens uma nova aliança, segundo a qual pôde ser garantido aos homens o perdão dos pecados e a vida eterna. Para que sejamos salvos, precisamos apenas abraçar esta aliança como nossa única esperança e meio de salvação. Esta aliança foi conquistada de uma vez por todas. Ela não pode ser deixada ou anulada. Precisa apenas ser abraçada. Pelo reconhecimento de nossa incapacidade de agradar a Deus pelos nossos próprios esforços, e por confiar na obra de Cristo feita em nosso favor, fazemos parte desta nova aliança e de todos os seus benefícios. Você já faz parte desta aliança? Eu o incentivo a fazer isto hoje. Que grandioso Deus nós temos, que nos oferece este relacionamento pactual com Ele.

18. Um Homem Sem Pátria (I Samuel 21:1-22:5)

Introdução

Antes de começar a Faculdade, eu tinha dois empregos de verão. Trabalhei numa loja de autopeças durante dois anos, mas quando os negócios ficaram um pouco devagar, arranjei outro emprego para completar minha renda trabalhando para a Sorveteria Queen, bem em frente à loja de autopeças. Meu emprego não consistia em trabalhar na sorveteria, mas trabalhar para ela, dirigindo uma pequena scooter Cushman, do tipo que era construída como miniatura de uma caminhonete de entregas. Na carroceria desse veículo havia um freezer carregado de Dilly Bars. Na frente da scooter tinha uma pequena cabine sem portas. Meu serviço consistia em dirigir pela cidade onde morava, Shelton, Washington, vendendo Dilly Bars a todas as crianças que me ouviam chegando e corriam para comprar sorvete. Subir e descer as ladeiras de Shelton era um desafio, mas o maior problema era escapar dos cachorros. Alguns me perseguiam, enquanto que os piores pareciam querer se juntar a mim na cabine, ou, pior ainda, tentavam me arrancar dela. Como o trabalho não tinha grande status social, eu procurava atrair os jovens clientes enquanto tentava rechaçar os cães.

Numa determinada ocasião, encontrei-me num grande dilema. Precisava ficar na loja e também sair com a scooter para a sorveteria. Quando falei com meu pai sobre o problema, ele se ofereceu para ficar (ou sentar) em meu lugar na scooter. Tudo corria razoavelmente bem. Meu pai andava prá cima e prá baixo com a scooter e os cachorros da vizinhança até que se comportavam. Então, uma cliente aproximou-se para comprar sorvete para seus filhos. Quando ela olhou para dentro da scooter, tanto ela quanto o motorista foram pegos de surpresa. Ela era esposa de um dos membros da diretoria do colégio e meu pai era o diretor. Tentando achar graça da situação, ela disse Compre um sorvete e ajude um aluno a ir prá Faculdade? Ambos tiveram que rir.

A vida tem momentos embaraçosos, não é? Lembro-me de um domingo na igreja, quando a Sra. Drebick desmaiou e pediram ajuda para carregá-la prá fora. Quando dois homens discretamente tentaram tirá-la de seu assento, de repente sua perna se esticou, dando um pontapé no chapéu da mulher que estava sentada à sua frente, fazendo com que seu cabelo despencasse sobre seu rosto. Sei que não deveria ter rido...

Um dos momentos mais embaraçosos da minha vida foi quando fui escolhido para testemunhar diante da igreja sobre o acampamento de verão a que tinha ido. Tudo corria razoavelmente bem quando subi na plataforma e dei meu recado. No entanto, o pastor tocava uma guitarra para acompanhar nossos cânticos e, quando tentei deixar o púlpito e descer da plataforma, meus pés se enroscaram no fio da guitarra. Tropecei e cambaleei, escapando por pouco de me esparramar na plataforma diante de toda a igreja, mas o que consegui mesmo foi arrebentar o fio da guitarra.

Todos nós temos nossos momentos embaraçosos e gostaria de ouvir os seus. Até o rei Davi os teve. Em nosso texto, Davi tem diversas experiências humilhantes, todas devido ao ciúme de Saul e suas tentativas de matá-lo. Tanto quanto foram ruins no momento, estes episódios dolorosos também provaram ser benéficos a Davi. Ao ver as coisas que lhe aconteceram, começamos a perceber como Deus usa situações parecidas em nosso benefício. Vamos ver com cuidado o que Deus tem a nos ensinar em nosso texto.

Breve Revisão

Nem sempre as coisas foram ruins entre Saul e Davi. Às vezes Saul era muito cordial com ele (16:21), e houve época em que se regozijou com sua vitória sobre Golias e os filisteus (19:5). A unção de Davi como substituto de Saul não foi devido à sua ambição, mas conseqüência da própria loucura de Saul. Num momento de pânico, Saul desobedeceu as instruções de Samuel para esperá-lo (10:8), oferecendo ele mesmo o sacrifício (capítulo 13). Samuel o repreendeu por isso, mas ele jamais se arrependeu totalmente de seu pecado. Posteriormente, ele falhou em aniquilar totalmente os amalequitas como Deus o instruíra no capítulo 15. Tudo isto explica o fim da dinastia de Saul e Samuel disse isto a ele.

Sabemos que o Espírito de Deus deixou Saul e foi substituído por um espírito maligno da parte do Senhor. Sabemos também que o Espírito de Deus desceu com poder sobre Davi (16:13-14). Isto abriu as portas para que Davi fosse empregado para acalmar o espírito atribulado de Saul ao tocar sua harpa (16:14-23). Apesar de no início Saul ter amado Davi, logo ele se tornou muito ciumento. Saul não podia sequer ouvir a canção entoada pelas mulheres a respeito de Davi (18:7), nem sobre o profundo amor e afeição demonstrados a ele por sua própria família (18:1-5, 20), nem sobre o respeito e admiração que ganhou junto aos homens de seu exército (18:13-16, 30). Saul desconfiava de qualquer atitude de Davi. Finalmente, a canção que as mulheres entoavam, comparando e contrastando as vitórias de Davi com as dele, levou Saul ao auge da insanidade.

Saul fez inúmeras tentativas contra a vida de Davi. Algumas foram às ocultas, tais como lhe oferecer uma de suas filhas em casamento (o que requeria que Davi agisse corajosamente na guerra para provar seu valor como marido - 18:17-29). Outras foram mais explícitas, tais como quando procura traspassar Davi com sua lança (18:10-12). Finalmente, Saul deu ordens para que ele fosse morto (19:1). Em conseqüência do apelo de seu filho Jônatas, sua ordem foi cancelada durante algum tempo (19:1-7), mas logo depois ele novamente fez de tudo para matá-lo (19:8 e ss). Jônatas e Davi se encontraram e desenvolveram um plano que deixaria claro que Saul realmente tinha intenção de matar Davi. Isto resultou na sua fuga e na triste despedida de Jônatas (capítulo 20).

Agora, no capítulo 21, encontramos Davi num refúgio político, um homem sem pátria. Chegamos a uma nova etapa de sua vida. É uma época dolorosa de separação: de sua esposa, de sua posição como empregado de Saul e de seu estimado amigo Jônatas. É também uma época perigosa, mas na qual o ungido de Deus não pode ser morto, não importa quão grande o perigo possa parecer. É tempo de crescimento e de preparação, tempo que o prepara para o dia em que governará Israel como o rei ungido de Deus.

Pão Emprestado
(21:1-9)

Então, veio Davi a Nobe, ao sacerdote Aimeleque; Aimeleque, tremendo, saiu ao encontro de Davi e disse-lhe: Por que vens só, e ninguém, contigo? Respondeu Davi ao sacerdote Aimeleque: O rei deu-me uma ordem e me disse: Ninguém saiba por que te envio e de que te incumbo; quanto aos meus homens, combinei que me encontrassem em tal e tal lugar. Agora, que tens à mão? Dá-me cinco pães ou o que se achar. Respondendo o sacerdote a Davi, disse-lhe: Não tenho pão comum à mão; há, porém, pão sagrado, se ao menos os teus homens se abstiveram das mulheres. Respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, como sempre, quando saio à campanha, foram-nos vedadas as mulheres, e os corpos dos homens não estão imundos. Se tal se dá em viagem comum, quanto mais serão puros hoje! Deu-lhe, pois, o sacerdote o pão sagrado, porquanto não havia ali outro, senão os pães da proposição, que se tiraram de diante do SENHOR, quando trocados, no devido dia, por pão quente. Achava-se ali, naquele dia, um dos servos de Saul, detido perante o SENHOR, cujo nome era Doegue, edomita, o maioral dos pastores de Saul. Disse Davi a Aimeleque: Não tens aqui à mão lança ou espada alguma? Porque não trouxe comigo nem a minha espada nem as minhas armas, porque a ordem do rei era urgente. Respondeu o sacerdote: A espada de Golias, o filisteu, a quem mataste no vale de Elá, está aqui, envolta num pano detrás da estola sacerdotal; se a queres levar, leva-a, porque não há outra aqui, senão essa. Disse Davi: Não há outra semelhante; dá-ma.

Onde Davi poderia encontrar refúgio ou mesmo pedir ajuda? Certamente Aimeleque, o sumo sacerdote, é confiável. E, assim, Davi foge para Nobe, a cidade dos sacerdotes, poucas milhas ao norte e a oeste de Jerusalém (algumas milhas ao sul de Gibeá, a cidade de Saul). Davi está ciente da influência de Saul e de seu potencial para a violência. Assim, ele guarda o verdadeiro propósito de sua vinda, talvez pensando que esteja fazendo um favor ao sacerdote. Acaba não sendo desse jeito, como veremos.

Aimeleque também não é nenhum tolo. Quando vê Davi, vai tremendo ao seu encontro (compare com 16:1-5). Em especial, ele fica perturbado por vê-lo chegando sozinho, e o questiona sobre isso. Davi foi feito comandante de mil homens por Saul. Se estiver vindo em missão oficial (como o fez inúmeras vezes no passado - ver 22:15), então deve estar com seus homens. Onde estão? estranha o sacerdote. E pergunta a Davi por que ele vem sozinho.

Davi já tem uma história pronta para o sacerdote. Não sei se ele acredita ou não, mas acha melhor não pressionar Davi. Ele aceita suas palavras sem pensar muito no assunto. Davi acredita que, se mantiver Aimeleque na ignorância, certamente Saul não lhe fará mal. Ele está errado. Davi lhe diz que está a serviço do rei, e que ele o enviou em missão secreta, que não pode ser descrita. Davi diz que não está sozinho; que seus homens estão escondidos a pouca distância. Todo esse mistério dá um ar de importância à missão, ou, pelo menos, Davi assim espera.

Agora Davi dá a razão de sua visita: ele precisa de mantimentos. Continuando a encenação, ele diz a Aimeleque que precisa de pão. O único pão que o sacerdote tem às mãos é pão sagrado, pão da proposição, que geralmente é comido só pelos sacerdotes. Se Davi e seus homens não estiverem cerimonialmente impuros por terem tido relações sexuais com mulheres, o sacerdote lhe dará cinco dos pães sagrados. Davi lhe garante que não estão. Se, em condições normais, sempre foi assim, quanto mais agora. O sacerdote lhe dá o pão sagrado, mas enquanto o faz, Doegue, o edomita, observa com grande interesse. Doegue é o maioral dos pastores de Saul, um serviço que Davi cuidaria muito bem. Não muito tempo depois Doegue relata a Saul aquilo que viu, ocasionando a morte de quase todos na cidade de Nobe (ver 22:6-23).

Davi então pede uma espada a Aimeleque. Poucas espadas podem ser encontradas em todo o reino, menos ainda no campo dos sacerdotes. Que necessidade ele tinha de armas? Havia somente uma nas imediações, a espada de Golias, a espada que Davi conseguira com a vitória sobre o gigante filisteu. A espada era uma espécie de troféu, um memorial da vitória que Deus deu a Israel através de Davi. Na verdade, ela pertencia a Davi, portanto o sacerdote a dá a ele de bom grado, sem dúvida estranhando por que ele veio tão despreparado para a batalha. Davi dá a desculpa de que estava com tanta pressa que não teve tempo de pegar sua espada ou outra arma. Isto deve ter produzido um olhar confuso no rosto do sacerdote, à medida que fica cada vez mais difícil acreditar nessa história. Apesar disto, ele lhe dá a espada de Golias, e parece que em seguida Davi parte para Gate.

Procurando Fazer de Aquis um Aliado
(21:10-15)

Levantou-se Davi, naquele dia, e fugiu de diante de Saul, e foi a Aquis, rei de Gate. Porém os servos de Aquis lhe disseram: Este não é Davi, o rei da sua terra? Não é a este que se cantava nas danças, dizendo: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares? Davi guardou estas palavras, considerando-as consigo mesmo, e teve muito medo de Aquis, rei de Gate. Pelo que se contrafez diante deles, em cujas mãos se fingia doido, esgravatava nos postigos das portas e deixava correr saliva pela barba. Então, disse Aquis aos seus servos: Bem vedes que este homem está louco; por que mo trouxestes a mim? Faltam-me a mim doidos, para que trouxésseis este para fazer doidices diante de mim? Há de entrar este na minha casa?

Como professor das Escrituras, ministrei um bom número de seminários em prisões. Sempre existe a possibilidade de ocorrerem alguns problemas. Às vezes pensava no que faria se algum tipo de tumulto irrompesse enquanto estivesse lá dentro. Em alguns casos, preferiria estar atrás daquelas grades, com presidiários crentes, do que do lado de fora, com guardas incrédulos. Estes seminários na prisão ajudaram-me a entender estes incríveis versos finais de I Samuel 21.

É realmente impressionante o que Davi faz. Ele foge de Israel para a terra dos filisteus. Ele troca o povo de Deus pelos inimigos de Deus. Ele procura refúgio com o rei Aquis, com quem antes batalhou. Davi já foi a Gate anteriormente - bem, quase foi. Depois de matar Golias, o campeão filisteu, ele e os israelitas perseguiram os filisteus, matando-os até as cidades de Gate e Ecrom (I Sam. 17:51-52). Agora Davi se aproxima de Gate novamente, mas, desta vez, como um refugiado político pedindo asilo a Aquis.

Davi chega a Gate procurando proteção e abrigo, mas esta é a cidade de Golias (17:23), a quem ele matou. Para tornar as coisas ainda piores, ele está carregando a espada de Golias (versos 8 e 9). Acho que Davi devia estar louco para ir a Gate, mais louco ainda que sua conduta posterior (verso 13). Se estes versos nos dizem alguma coisa é sobre o quanto Saul está decidido a matá-lo. Se Davi é forçado a procurar abrigo entre seus inimigos, o que isto que dizer sobre seu amigo Saul? Esta nada mais é senão outra confirmação da hostilidade (até mesmo da insanidade) de Saul. Realmente a situação é desesperadora!

O autor desta narrativa não está tão interessado em nos dizer sobre a chegada de Davi em Gate, quanto está em descrever sua partida. Quaisquer que sejam as razões de Davi para ir até lá é bastante óbvio que Deus não o quer ali. Deus usa os servos de Aquis para pressioná-lo a tomar Davi como uma séria ameaça à segurança dos filisteus. Tanto aqui quanto nos capítulos 27 a 29, Aquis é apresentado como alguém ingênuo, sem nenhuma astúcia. De certo modo ele toma gosto por Davi. Ele parece muito confiante na submissão dele e no seu valor como aliado. Ele não está disposto a alimentar o pensamento de que Davi ainda é um israelita leal, prestes a assumir o trono de Israel.

Não era incomum que os reis aceitassem refugiados políticos das nações vizinhas (ver, por exemplo, I Reis 11:40; II Reis 25:27-30). Se lhes fosse dado abrigo, poderiam se tornar gratos aliados, quando não servos leais. Estes refugiados eram uma espécie de troféu, um testemunho vivo do domínio e poderio militar da nação anfitriã. Aquis é trazido de volta à realidade por seus servos. O rei não se lembra de que Davi foi designado como o próximo rei de Israel? Não se lembra da morte de Golias e da derrota para Israel sob a liderança de Davi? Já se esqueceu da canção sobre Davi, proclamando-o maior que Saul:

Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares?

Aquis é forçado a pensar muito bem na oferta de asilo feita a Davi. Enquanto ele está pensando sobre isso, Davi também está pensando. Ele ouviu o conselho que os servos dão a Aquis. Ele sabe que, se o conselho deles for ouvido, ele pode ser morto. Ele está metido em encrenca, em muita encrenca. Como poderá sair dessa enrascada com vida?

Mas há um jeito. Davi escapa com vida, mas não com dignidade. Se ele chegou como um temível guerreiro, ainda maior que Golias, agora ele parte como um lunático. De alguma forma, ele tem a idéia de agir como louco. Se puder convencer o rei de que perdeu a sanidade, não será mais levado a sério, e pode até ser que o deixem com vida. Assim Davi começa a realizar seu plano. Ele arranha os portões da cidade e deixa a saliva escorrer pelo queixo e pela barba. Ele é patético e repugnante.

Agindo assim ele convence ninguém menos que o rei. De qualquer forma, Aquis não quer realmente matar Davi. Ele parece sinceramente gostar dele. Esta é a sua saída. O rei não precisa levar a sério um cara louco! Não há glória em matar Davi. Não há benefício em mantê-lo em Gate. Gate não é um asilo de loucos! Eles já têm bastante filisteus doidos na cidade; não precisam de um louco israelita também. E assim Aquis expulsa Davi da cidade. A vida dele é poupada e acabam-se as preocupações de seus conselheiros. Esta, ao que parece, é uma situação vantajosa para os dois lados.

Davi se Torna um Habitante das Cavernas e Comandante
(22:1-2)

Davi retirou-se dali e se refugiou na caverna de Adulão; quando ouviram isso seus irmãos e toda a casa de seu pai, desceram ali para ter com ele. Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens.

Davi retorna ao território de Judá, mas não muito distante da fronteira de Israel com a Filistia. Ele se esconde na caverna de Adulão. A localização de Adulão não é exata, mas parece ter se sido há algumas milhas a leste de Gate, na direção de Belém e Jerusalém. Parece que Davi encontrou um esconderijo isolado e seguro, longe o suficiente de Gate e não muito perto de Saul.

Davi parece estar sozinho, até agora. Mas, quando se esconde na caverna de Adulão, uma porção de gente começa a chegar esperando juntar-se a ele. Os primeiros a ouvir sobre seu paradeiro parecem ser os de sua família, que se unem a ele na caverna. Eles devem sentir que, uma vez que Davi é visto como inimigo de Saul, eles também não estão seguros. Parece que é uma suposição acertada, com base no destino dos sacerdotes (ver capítulo 22). Outros os seguem, aqueles que estão em perigo, em dívida, ou não são a favor de Saul. Eles vêm a Davi como seu novo líder. Será que estes homens, como os discípulos do Senhor, esperam um novo rei e um novo reino que derrubará o antigo? Aqueles que se juntam a Davi durante sua estadia na caverna chegam aproximadamente a 400 homens.

Indo e Voltando de Moabe
(22:3-4)

Dali passou Davi a Mispa de Moabe e disse ao seu rei: Deixa estar meu pai e minha mãe convosco, até que eu saiba o que Deus há de fazer de mim. Trouxe-os perante o rei de Moabe, e com este moraram por todo o tempo que Davi esteve neste lugar seguro. Porém o profeta Gade disse a Davi: Não fiques neste lugar seguro; vai e entra na terra de Judá. Então, Davi saiu e foi para o bosque de Herete.

Da caverna abandonada, ou de seu famoso esconderijo, Davi vai para Mispa de Moabe procurar um lugar de refúgio para seus pais já idosos (ver I Sam. 17:12). Eles não estão seguros em Belém, pois Saul pode facilmente entrar em contato com eles, e com Davi através deles. Tampouco podem seguir o ritmo de Davi e dos outros que estão com ele, mudando-se rapidamente de um lugar para outro no deserto. Eles não são forjados para a vida de fugitivos. Assim Davi procura um lugar seguro para eles em Moabe. Você deve se lembrar que Rute, a bisavó de Davi, era moabita (ver Rute 1:4; 4:13-17). Isto pode ter disposto o rei de Moabe a atender ao pedido de Davi. Também parece colocar os seus pais fora de perigo durante os anos em que ele foge de Saul.

Enquanto Davi se esconde na fortaleza de Moabe, o profeta Gade chega com um recado de Deus para ele. Ele não deve continuar se escondendo ali. Deve partir e retornar ao território de Judá. Davi obedece à ordem do profeta, ainda que possa estranhar a razão para retornar a Judá em vez de ficar em Moabe. Quando chegarmos ao capítulo 26, Davi saberá o porquê e nos dirá (e a Saul). Davi volta para Judá, escondendo-se no bosque de Herete, uma espécie de Robin Hood antigo.

Conclusão

Uma coisa evidente nesta passagem das Escrituras é a verdade das palavras escritas pelo apóstolo Tiago no Novo Testamento:

Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou, com instância, para que não chovesse sobre a terra, e, por três anos e seis meses, não choveu. (Tg. 5:17)

Muitos gostam de pensar em Davi como um homem de verdade. Creio que nosso texto o retrata como um homem de verdade. Nem sempre ele pensa ou faz algo espiritual. Ele tem um coração segundo o coração de Deus, mas também tem pés de barro. Davi procura refúgio com Aimeleque, contudo, reconhece que estava errado. Ele admite ser o responsável pelas mortes dos sacerdotes e de suas famílias (22:22). Ele foge para a Filistia, procurando abrigo com seus inimigos, em vez de procurá-lo em Deus. Então foge para Moabe, onde um profeta precisa lhe dizer para ir para casa. Davi não faz nada certo. Ele é um homem de verdade, não uma caricatura, e não uma lenda criada pela imaginação de algum escritor. Muitas vezes, é por causa das falhas de Davi que somos encorajados e temos esperança, pois ele é um homem semelhante a nós. Deus nos trata graciosamente como tratou Davi.

Alguns poderiam facilmente passar pelo nosso texto sem dar uma segunda olhada. Para um olhar destreinado, parece que Davi tem muita sorte, pelo menos em duas ocasiões. Primeiro ele consegue fugir para Nobe onde não há pão, exceto aquele que é reservado aos sacerdotes. Aimeleque faz uma exceção e lhe dá um pouco desse pão. Segundo, Davi foge para o território filisteu carregando a espada de Golias, achando-se na cidade do gigante. Ele parece marcado para morrer, mas sua fingida loucura lhe consegue uma escolta prá fora da cidade. Como pode ser um cara de sorte?

Outros textos da Escritura deixam claro que isto não é sorte, nem que a libertação de Davi é conseqüência desse ardil. Esta libertação é divina. De fato, logo veremos (capítulo 22) que, enquanto Davi foge de Nobe para Gate, os sacerdotes e suas famílias não têm tanta sorte. O véu é levantado para nós nos Salmos. O cenário histórico do Salmo 52 é o relato de Doegue, que viu Davi em Nobe, para Saul. Os Salmos 34 e 56 são escritos durante a estadia de Davi em Gate. Os Salmos 57 e 142 são escritos enquanto Davi se esconde na caverna. Estes Salmos são as reflexões e considerações de Davi sobre o que realmente aconteceu em nosso texto. Vamos fazer uma pausa para meditar brevemente em algumas lições que os Salmos nos mostram.

(1) A Libertação é Divina. Deus é o Único que salva. Conseqüentemente, é o Único a quem devemos clamar por libertação (Sl. 34:4-7; 57:1-3; 142). Ele é também o Único a quem devemos louvar por nos libertar. Nem sempre pode parecer que Deus seja aquele que liberta, mas todas as libertações são Dele. Pelas aparências, alguns não veriam Deus como o Libertador de Davi quando Ele poupa sua vida em Gate, mas o Salmo 34 deixa muito claro que a libertação de Davi vem de Deus.

(2) Deus é o nosso Libertador daqueles que procuram a nossa destruição (Sl. 56:1-7; 57:4-6). Davi vê sua destruição como intento de homens vis e Deus como o Único que livra os homens das suas mãos.

(3) A libertação divina é dada àqueles que amam a Deus e confiam Nele, e que clamam a Ele por sua salvação (Sl. 56:3-4, 9-11; 57:1-3; 142:1-2). Deus cuida de Seus amados e, desta forma, protege aqueles que procuram refúgio Nele. Ele liberta os que O temem e que clamam a Ele por sua salvação.

(4) A libertação de Deus não é algo merecido, é um presente de Sua graça (Sl. 57:1). A libertação divina não é concedida pelos méritos dos homens, mas porque Deus é gracioso e misericordioso. Ele é movido por compaixão pelas nossas aflições (Sl.17-18; 56:8). Sua libertação muitas vezes resulta das conseqüências de nossas tolices e pecados.

(5) Deus livra os homens para que Lhe sejam gratos, para que O louvem e para que Lhe dêem glória (Sl. 56:12; 57:5, 8, 9, 11; 142:7). Quando Deus livra os homens de suas aflições, espera-se que eles O agradeçam e O louvem por Sua bondade, e, desta forma, O glorifiquem publicamente. Assim, nossa libertação divinamente operada não é somente para o nosso bem, mas para a glória de Deus.

(6) Deus também liberta os homens para que aprendam mais sobre Ele e instruam outros naquilo que aprenderam (Sl. 34:8-14). Creio que Davi escreve sobre o temor de Deus no Salmo 34 porque aprendeu muito sobre temor. Primeiramente Davi teme aos homens. Esta parece ser a razão para fugir para Gate. Ele teme Saul. Depois, parece temer os filisteus. Davi aprende que Deus lança fora os medos e dessa forma aprendemos a temer a Deus em vez dos homens. Este temor de Deus nos ensina a refrear a língua do mal e os lábios de falar dolosamente (Sl. 34:13). Creio que Davi reconhece a importância de dizer a verdade, e quando ele vem a temer a Deus mais do que aos homens, ele fala a verdade e incentiva os outros a fazerem o mesmo. A libertação de Davi o capacita a instruir outros naquilo que ele aprendeu.

(7) Deus livra, mesmo quando parece que a libertação é operada por outros meios (34). Quem pensaria que a falsa loucura de Davi e sua expulsão de Gate venham das mãos de Deus? Não é por sorte, ou porque ele age com rapidez? Não na cabeça de Davi. É Deus quem o liberta de Gate, mesmo quando os meios empregados por Ele sejam a falsa loucura de Davi. (Não foi Deus quem plantou a idéia da encenação em sua cabeça?)

(8) Deus opera através de meios que parecem normais e talvez até desagradavelmente humanos (Sl. 34). Você já assistiu a algum filme que procurava retratar um tema religioso ou espiritual? Mesmo quando estou longe da televisão, ouvindo apenas o som, posso dizer quando uma cena espiritual está ocorrendo. Quase sempre há um fundo musical celestial. Não sei como descrevê-lo, mas é uma música com uma auréola audível. É música que associamos a coisas celestes ou espirituais (geralmente são usados violinos e harpas para surtir o efeito desejado).

Você se lembra de ler o aviso colocado junto à estrada antes de chegar a um trecho em obras ou em construção? Ele diz Devagar, Homens Trabalhando. Creio que este é o jeito que muitos cristãos esperam que Deus aja. Quando Deus está livrando alguém na Bíblia, esperamos realmente ver um aviso que diz Devagar, Deus Trabalhando. Queremos ouvir algum tipo de música celestial tocando ao fundo, ou algo que nos diga que Deus está presente. Mas estes sinais externos não são evidentes na época em que os irmãos de José o vendem como escravo. Não são evidentes quando Satanás torna miserável a vida de Jó, pelo menos para ele. Tampouco são evidentes quando Davi está babando e arranhando os portões de Gate. Mas Deus está em ação, mesmo quando isto não é aparente aos nossos olhos. Posteriormente no livro de II Samuel veremos que Salomão se torna herdeiro do trono de seu pai (Davi), apesar de ter nascido de Bate-Seba, aquela que foi mulher de Urias. O templo será construído no terreno que Davi comprou porque deliberadamente fez o censo de Israel, sabendo que estava errado. Foi na eira de Araúna, o jebuseu, que Davi ofereceu sacrifício quando Deus cessou a praga (II Samuel 24). Deus está em ação quando não esperamos ver Suas mãos.

(9) A libertação de Deus muitas vezes ocorre em circunstâncias nas quais escapar parece impossível (142:4). Deus Se deleita em deixar que nos envolvamos em situações impossíveis, para que, quando Ele nos salve, fique bem claro que foi Ele que o fez. Davi, em seus salmos, faz um retrato desolador de sua condição, e então prossegue descrevendo a maneira como Deus o resgata.

(10) Deus nos livra de formas que não são lisonjeiras, mas humilhantes. Às vezes as cenas do telejornal mostram o resgate de alguém da forma mais desfavorável. Pode ser uma mulher com os cabelos desgrenhados, o rosto sujo e com roupas em condições deploráveis. Ninguém gosta de ser salvo deste jeito ou nestas condições, mas se tiver de escolher entre ser resgatado de forma humilhante ou não ser resgatado de jeito nenhum, a decisão é óbvia. Deus salva Davi de uma forma que o deixa muito humilhado. Deus não pretende levantar o moral de Davi; Ele pretende salvá-lo de forma que o humilhe e o faça voltar-se para Ele para ser liberto. É estranho, mas é verdade, que Deus nos humilhe primeiro, para que percebamos nossa situação desesperadora, e para que humildemente clamemos a Ele por socorro.

Ao meditar sobre a Bíblia, percebo quantas vezes Deus salva ou livra os Seus da destruição, mas de forma muito humilhante. Penso em Abrão, que fugiu para o Egito procurando socorro no tempo da fome. Fazendo isto, ele colocou não apenas sua vida em risco, mas também a promessa de Deus de que ele e Sarai teriam um filho, através do qual viriam as bênçãos sobre si e sobre o mundo inteiro (ver Gn. 12:1-3 e ss). Abrão mentiu sobre Sarai, dizendo que ela era sua irmã em vez de sua esposa e, como conseqüência, ela foi levada para o harém de Faraó. Deus livrou Abrão e Sarai, mas de um jeito que foi humilhante. Faraó os expulsou de sua terra, fornecendo-lhes o que parece ser uma escolta armada para fora da cidade (ver Gn. 12:17-20).

Uma das libertações mais humilhantes (além desta de Davi) é a de Naamã. Talvez você se lembre de que Naamã, o comandante do exército sírio, também era leproso. Através de uma jovem escrava israelita, Naamã fica sabendo que há um profeta em Israel que pode curá-lo. Mas, quando chega à porta do profeta, este não o recebe pessoalmente, mas manda um servo que o instrui a se banhar sete vezes no rio Jordão. Naamã fica furioso, porque não é tratado como um alto oficial. Finalmente, depois de receber um sábio conselho de seu servo, o comandante sírio obedece e fica livre de sua enfermidade. Deus o salva, mas de maneira que o humilhe (ver II Reis 5).

(11) A libertação de Deus é mais do que temporal, mais do que apenas física; ela inclui a libertação da condenação eterna (Sl. 34:21-22; 56:13). É interessante que no Novo Testamento a palavra que muitas vezes é traduzida por salvo é usada com sentido muito mais amplo do que apenas salvação espiritual. É usada como cura física e outros atos de livramento. Em nosso texto, Deus salva a vida de Davi, mas, em seus salmos, ele informa aos leitores que esta salvação temporal é um protótipo da salvação eterna que Deus também realiza. O Deus que nos salva de nossas aflições e de nossos inimigos, é o mesmo Deus que nos salva de Sua ira eterna.

A Libertação de Davi e Nosso Senhor Jesus Cristo

A libertação de Davi tem ligação direta com o Novo Testamento e, particularmente com nosso Senhor Jesus Cristo. Considere o uso de nosso texto pelo Senhor, em Mateus 12:

Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes. Porque o Filho do Homem é senhor do sábado. (Mateus 12:1-8)

Os fariseus ficam muito perturbados por aquilo que consideram violações do Sábado, feitas por nosso Senhor e Seus discípulos. Quando os discípulos (não Jesus, observe) colhem algumas espigas e as comem no Sábado, os fariseus vêem isto como flagrante violação da lei. Afinal, isto é trabalho, pensam eles. Portanto, fazem questão de confrontar Jesus com este exemplo de Seu desrespeito ao Sábado.

Jesus vira a mesa sobre os fariseus. Em essência, eles persistem em Lhe perguntar: Quem você pensa que é? Como ousa violar o Sábado curando e permitindo que Seus discípulos colham espigas no dia santo? Jesus responde a este desafio de várias formas. Ele mostra que Seus oponentes são hipócritas, porque não guardam o Sábado da mesma forma que exigem que Ele o faça (eles trabalharão para tirar um boi de uma cova). Tampouco é errado fazer o bem no Sábado. Eles falham na compreensão de que o Sábado foi criado para o benefício do homem, não o homem para o Sábado. Outra resposta de Jesus é que Ele trabalha no Sábado para imitar Seu Pai, que também trabalha, salvando os homens.

Mas aqui Jesus faz uma abordagem diferente. Jesus volta ao nosso texto, relembrando a Seus oponentes que Davi comeu pão sagrado, mesmo não sendo sacerdote. Como é que eles não se preocupam com isto? A resposta, Jesus sugere, é: quem são vocês para fazer qualquer distinção. Eles não protestam por Davi ter comido o pão sagrado porque ele é Davi. Em breve irá se tornar o rei de Israel. Isto coloca toda a questão sob uma luz inteiramente diferente. O mesmo é verdade para os sacerdotes do templo. Eles trabalham no sábado, mas não são condenados por isso, e com razão, pois são sacerdotes.

Um das razões pelas quais Jesus não se sente obrigado a seguir as regras dos Fariseus a respeito do Sábado é porque Ele é o Filho de Deus. Ele é o Messias de Deus, Aquele a quem Deus designou para governar sobre toda a terra como Rei. Se Davi pode comer o pão sagrado porque ele é quem é, e se os sacerdotes podem violar o Sábado porque são quem são, então, certamente, nosso Senhor não deve ser desafiado da maneira como os Fariseus estão fazendo. Quem são vocês para fazer qualquer distinção. Este é o princípio ilustrado em nosso texto, como indicado por nosso Senhor.

Quem são vocês para fazer qualquer distinção. Sem Cristo, somos alienados e estranhos ao Reino de Deus. Somos inimigos de Deus. Somos pecadores, condenados com razão à morte e à danação eterna. Em Cristo, somos perdoados, purificados, justificados e destinados à vida eterna. Davi é salvo muitas vezes em sua vida. A libertação de nosso texto é realmente a mais humilhante. Não é do jeito que ele preferia, mas é liberto da morte e de seus inimigos. É uma libertação humilhante, mas é divina. Por isso, Davi dá glória a Deus.

Como Davi, estamos condenados à morte. Sem a graça divina, somos tão bons quanto os mortos. Nosso problema está no nosso próprio pecado, que nos torna inaceitáveis à vista de Deus. Ele nos coloca debaixo da condenação divina e da danação eterna. Deus, em Sua misericórdia nos deu um meio de escape. Os meios de libertação de Deus não nos lisonjeiam, mas sempre glorificam a Ele. Ele enviou Seu Filho à terra como homem (o perfeito Deus-Homem), para viver uma vida perfeita e morrer como inocente como pagamento por nossos pecados. A cruz não foi um acontecimento para inflar o ego. Foi a morte horrível de nosso Senhor em favor de pecadores culpados. Mas Deus levantou Jesus da morte, glorificando-O e aqueles que, pela fé, estão Nele. É pela fé em Jesus Cristo que pecadores indignos são libertados da morte eterna, para a glória de Deus. Você já recebeu o perdão de seus pecados, este presente da justiça de Deus em Cristo? Tudo o que precisa fazer é reconhecer seu pecado e confiar em Jesus como único meio de Deus para sua libertação. Eu o incentivo a fazer isto hoje.

19. Saul Perde o Juízo (I Samuel 22:5-23:14)

Introdução

Um amigo conta a história de um senhor que se queixava daquelas coisas que aparecem com a idade. “Não me incomoda ter que tirar os óculos à noite. Também não me incomoda ter que tirar meus dentes para dormir. E também meu aparelho auditivo, que coloco no criado-mudo ao lado da cama. Não sinto falta de uma boa visão, de bons dentes, nem de um bom ouvido - mas de uma coisa sinto falta: da minha memória!”

Alguns de nós que ainda não chegaram a este ponto poderiam estranhar se começassem a perder a memória. Se alguém devia estar “perdendo a memória”, esse alguém é o rei Saul. A essa altura de sua vida ele já estava com alguns problemas. Ele ficou encantado quando encontrou Davi para tocar harpa e acalmar seu espírito atribulado (16:14-23). Também se regozijou grandemente quando Davi enfrentou Golias e o venceu (capítulo 17, ver também 19:5). Mas, quando as mulheres israelitas começaram a celebrar, dando a Davi maior honra do que a ele, o rei começou a ver Davi com desconfiança (18:6-9). Rapidamente dominado pelo ciúme, tentou matá-lo de forma a não ficar mal diante do povo (18:10-29). Pouco tempo depois, ordenou a seus servos que o matassem (19:1). Jônatas o dissuadiu de seus planos por algum tempo (19:1-7), mas isto não durou muito. Logo Saul estava arremessando sua lança em seu próprio filho (20:33). Deus poupou a vida de Davi de várias formas, mas, finalmente, foi necessário que ele fugisse da presença do rei. Primeiro ele fugiu para Aimeleque, o sumo sacerdote, que consultou o Senhor para ele (22:10, 15) e lhe deu um pouco do pão sagrado, junto com a espada de Golias (21:1-9). Nosso texto descreve as conseqüências que se seguem a este episódio.

Quando chegamos ao capítulo 22, vemos um rei que perdeu totalmente o juízo, mentalmente falando. Em seu estado, Saul seria admitido em qualquer hospício. Seus ataques de depressão e de ciúmes parecem cada vez mais intensos e mais freqüentes. Agora parece que seu estado é de constante medo e ciúmes, com breves lampejos de sanidade. Em nosso texto, Saul chega ao auge de sua depressão, pois seu medo de Davi o leva a matar pessoas inocentes. Sua fúria ciumenta o faz ordenar a morte de todos os sacerdotes, algo quase inconcebível.

Nas instruções dadas anteriormente a Israel e seu rei, sobre seu papel e responsabilidade no governo da nação, encontramos estas instruções acerca dos sacerdotes:

“Quando alguma coisa te for difícil demais em juízo, entre caso e caso de homicídio, e de demanda e demanda, e de violência e violência, e outras questões de litígio, então, te levantarás e subirás ao lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher. Virás aos levitas sacerdotes e ao juiz que houver naqueles dias; inquirirás, e te anunciarão a sentença do juízo. E farás segundo o mandado da palavra que te anunciarem do lugar que o SENHOR escolher; e terás cuidado de fazer consoante tudo o que te ensinarem. Segundo o mandado da lei que te ensinarem e de acordo com o juízo que te disserem, farás; da sentença que te anunciarem não te desviarás, nem para a direita nem para a esquerda. O homem, pois, que se houver soberbamente, não dando ouvidos ao sacerdote, que está ali para servir ao SENHOR, teu Deus, nem ao juiz, esse morrerá; e eliminarás o mal de Israel, para que todo o povo o ouça, tema e jamais se ensoberbeça.” (Dt. 17:8-13)

O rei Saul está prestes a matar não somente um sacerdote, mas a executar todos eles e suas famílias - a despeito das palavras dadas por Deus sobre o respeito e obediência aos sacerdotes. Vamos prestar atenção ao nosso texto para ver como Saul chegou tão baixo em sua vida e em sua liderança, enquanto vemos também o que Deus tem a nos ensinar.

A Orientação Profética
(22:5)

“Porém o profeta Gade disse a Davi: Não fiques neste lugar seguro; vai e entra na terra de Judá. Então, Davi saiu e foi para o bosque de Herete.”

Parece que, quando Davi vai até Aimeleque, o sumo sacerdote, uma de suas intenções é obter orientação divina. Pelo menos é isso o que Doegue diz a Saul, e Aimeleque parece confirmar (22:10; 15). Uma vez que Davi oculta o fato de estar fugindo de Saul, não se sabe qual orientação ele recebeu de Aimeleque. No entanto, sabemos que depois disto ele foge do país. Primeiro ele vai a Gate, de onde é expulso por agir como doido (21:10-15); depois para a caverna de Adulão (22:1-2), e então para Moabe (22:3-4), onde deixa seu pai e sua mãe, talvez se escondendo num lugar seguro.

Como Melquisedeque em Gênesis 14, o profeta Gade surge do nada e instrui Davi a não ficar nesse lugar seguro, mas a entrar no território de Judá. Se entendo corretamente, ele diz a Davi para parar de se esconder fora do território de Israel. Davi deve encontrar abrigo em Israel, especificamente no território de sua própria tribo, Judá. Afinal, Judá é a primeira tribo a reconhecer Davi como rei (II Samuel 2:4). Davi obedece, fazendo do bosque de Herete o seu esconderijo. O lugar exato deste bosque não é muito claro, mas, pela leitura de II Samuel 18:8, é um lugar perigoso, onde Saul e seus homens relutarão em entrar. Este bosque parece ser para Davi e seus homens o que foi a floresta de Sherwood para Robin Hood e seu bando.

Faltam Informações a Saul e Ele as Obtém de Doegue, o Edomita
(22:6-10)

“Ouviu Saul que Davi e os homens que o acompanhavam foram descobertos. Achando-se Saul em Gibeá, debaixo de um arvoredo, numa colina, tendo na mão a sua lança, e todos os seus servos com ele, disse a todos estes: Ouvi, peço-vos, filhos de Benjamim, dar-vos-á também o filho de Jessé, a todos vós, terras e vinhas e vos fará a todos chefes de milhares e chefes de centenas, para que todos tenhais conspirado contra mim? E ninguém houve que me desse aviso de que meu filho fez aliança com o filho de Jessé; e nenhum dentre vós há que se doa por mim e me participe que meu filho contra mim instigou a meu servo, para me armar ciladas, como se vê neste dia. Então, respondeu Doegue, o edomita, que também estava com os servos de Saul, e disse: Vi o filho de Jessé chegar a Nobe, a Aimeleque, filho de Aitube, e como Aimeleque, a pedido dele, consultou o SENHOR, e lhe fez provisões, e lhe deu a espada de Golias, o filisteu.”

Confesso que às vezes me deixo levar pela imaginação. Quando leio que Saul está sentado debaixo de uma árvore com a lança na mão, não consigo deixar de pensar quais os tipos de arma que ele teria se vivesse hoje em dia. Consegue imaginá-lo com um par de pistolas automáticas no coldre, uma espingarda dupla de cano curto e uma uzi nas mãos? Este cara é paranóico. Ele parece jamais estar sem sua lança ou o que parece ser uma legião de guarda-costas.

Ele parece achar que o mundo todo está contra ele e a favor de Davi. O termo conspirastes aparece duas vezes em nosso texto (nos versos 8 e 13). Nos versos 6 a 10, Saul se comporta como uma espécie de Rodney Dangerfield, que lamenta e choraminga porque ninguém “o respeita”. Literalmente ele acusa todo mundo de fazer parte dum plano sinistro contra ele, quando, na realidade, Deus é quem está tirando seu reino, devido ao seu próprio pecado (ver 13:8-14; 15:1-31). Tendo em vista o sentimento de culpa lançado por Saul sobre seus servos, Doegue o informa sobre a visita de Davi a Aimeleque e a inocente concessão deste ao pedido de Davi.

Não é nenhuma surpresa que Saul acuse Davi de conspirar contra ele. Afinal, é isso que ele pensa. Mas Saul não tem razão para acusá-lo. Davi não está “armando alguma cilada”, como ele afirma (22:8;13), esperando o momento oportuno para por fim à sua vida. Davi se esconde procurando se esquivar de Saul e escapar de suas tramas para matá-lo.

O que é espantoso nestes versos são as acusações feitas por Saul contra seu próprio filho, Jônatas. Devido à aliança de Jônatas com Davi, não ficaríamos surpresos se lêssemos que Saul o acuse de ser enganado, de ser recrutado por Davi, para se juntar a ele numa conspiração. Mas Saul acusa Jônatas de corromper Davi, de instigá-lo contra ele (22:8). Esta acusação tem um peso impressionante. A “conspiração” contra ele, se investigada a fundo, tem sua origem em Jônatas, não em Davi. Saul perdeu o juízo.

Mas a teoria da conspiração vai ainda mais além. Saul não acusa somente Jônatas e Davi de conspirarem contra ele, ele também acusa seus servos - todos eles! Saul está rodeado por seus servos enquanto se senta debaixo do arvoredo próximo à sua casa em Gibeá (verso 6). Ele começa por relembrá-los sobre a natureza dos políticos e dos favores decorrentes da vitória e do poder. Como recompensa por sua lealdade a ele, os Benjamitas receberam propriedades e autoridade como favor político. Será que eles pensam que, quando Davi se tornar rei, eles desfrutarão desses mesmos privilégios? É claro que não. Agora o ponto alto do momento - Saul faz com que se lembrem que eles são seus devedores. Ele quer retribuição - quer que o informem sobre o paradeiro de Davi. Ele diz que, ficando silêncio e ocultando qualquer informação sobre Davi e seu paradeiro, eles estão se unindo a ele na conspiração. Doegue, o edomita, acha que esta é uma ótima razão para transmitir a Saul aquilo que viu em Nobe.

Doegue acabou de ver Davi. Enquanto estava em Nobe, ele o viu chegar e tratar com o sumo sacerdote, Aimeleque. O sumo sacerdote consultou o Senhor para ele e também lhe deu do pão sagrado e a espada de Golias, a qual estivera guardando. Todas estas coisas são verdadeiras, mas o que Doegue não diz (talvez não soubesse) é que Davi não disse a Aimeleque que estava fugindo de Saul. Ele não revelou ao sumo sacerdote qualquer coisa que o tornasse um conspirador contra Saul. Mas Saul não está interessado em saber a verdade. Ele está cego de ciúmes e do desejo de se livrar de qualquer um que ache que é uma ameaça ao seu trono.

O Massacre de Nobe
(22:11-23)

“Então, o rei mandou chamar Aimeleque, sacerdote, filho de Aitube, e toda a casa de seu pai, a saber, os sacerdotes que estavam em Nobe; todos eles vieram ao rei. Disse Saul: Ouve, peço-te, filho de Aitube! Este respondeu: Eis-me aqui, meu senhor! Então, lhe disse Saul: Por que conspirastes contra mim, tu e o filho de Jessé? Pois lhe deste pão e espada e consultaste a favor dele a Deus, para que se levantasse contra mim e me armasse ciladas, como hoje se vê. Respondeu Aimeleque ao rei e disse: E quem, entre todos os teus servos, há tão fiel como Davi, o genro do rei, chefe da tua guarda pessoal e honrado na tua casa? Acaso, é de hoje que consulto a Deus em seu favor? Não! Jamais impute o rei coisa nenhuma a seu servo, nem a toda a casa de meu pai, pois o teu servo de nada soube de tudo isso, nem muito nem pouco. Respondeu o rei: Aimeleque, morrerás, tu e toda a casa de teu pai. Disse o rei aos da guarda, que estavam com ele: Volvei e matai os sacerdotes do SENHOR, porque também estão de mãos dadas com Davi e porque souberam que fugiu e não mo fizeram saber. Porém os servos do rei não quiseram estender as mãos contra os sacerdotes do SENHOR. Então, disse o rei a Doegue: Volve-te e arremete contra os sacerdotes. Então, se virou Doegue, o edomita, e arremeteu contra os sacerdotes, e matou, naquele dia, oitenta e cinco homens que vestiam estola sacerdotal de linho. Também a Nobe, cidade destes sacerdotes, passou a fio de espada: homens, e mulheres, e meninos, e crianças de peito, e bois, e jumentos, e ovelhas. Porém dos filhos de Aimeleque, filho de Aitube, um só, cujo nome era Abiatar, salvou-se e fugiu para Davi; e lhe anunciou que Saul tinha matado os sacerdotes do SENHOR. Então, Davi disse a Abiatar: Bem sabia eu, naquele dia, que, estando ali Doegue, o edomita, não deixaria de o dizer a Saul. Fui a causa da morte de todas as pessoas da casa de teu pai. Fica comigo, não temas, porque quem procura a minha morte procura também a tua; estarás a salvo comigo.”

Depois de Saul intimidar seus servos, Doegue revela que Davi foi até Aimeleque, o sumo sacerdote, o qual consultou o Senhor para ele e lhe deu do pão sagrado e a espada de Golias. Saul ouviu tudo o que achava necessário saber. Em sua cabeça, não só Aimeleque, mas todos os sacerdotes fazem parte da “conspiração” contra ele. Aimeleque e os sacerdotes são convocados para comparecer diante dele. Duvido que você e eu possamos sequer imaginar o clima nefasto deste encontro. Vivemos num país onde o Presidente pode ser questionado, ter oposição e até mesmo ser removido do cargo. Quando ele fala, seus oponentes podem vaiá-lo sem medo. Não é assim na corte de Saul.

Recentemente li um artigo que descrevia o terror habilmente produzido por Joseph Stalin no coração de seus ministros.

Os jantares de Stalin no Kremlin duravam a noite toda. Ele se sentava numa longa mesa e forçava seus ministros e camaradas a beber, hora após hora, enquanto os enredava, sondava, bajulava e aterrorizava. De madrugada, quando suas mentes já estavam entorpecidas de medo, vodca e confusão, o NKVD poderia levar um ou dois deles, sem nenhuma explicação, para ser eliminado. Era um tipo de estudo de laboratório sobre paranóia: para toda ação existe uma reação contrária de mesma força e intensidade (no caso do Kremlin, ligeiramente desiguais). Paranóia induz à paranóia. Stalin desviava o medo através do álcool, e depois presidia um jogo psicológico mútuo que terminava em morte.

Uma coisa é ter um louco no poder, a quem você pode refrear e até mesmo destituir. Outra é ter um louco como ditador, alguém como Stalin, Nero ou Hitler. Tais homens detêm o poder absoluto. Eles podem fazer o que quiserem, mesmo que isto seja irracional e insano, sem que alguém que os detenha. Assim é com Saul. Saul está louco e não tem ninguém que o detenha. Saul imagina que Davi, Jônatas e até mesmo seus servos sejam conspiradores? Quem há para corrigi-lo? Agora, esse doido tem uma audiência com todo o sacerdócio. Na ocasião, não serão os sacerdotes que julgarão Saul, mas ele os julgará. Podemos apenas tentar imaginar o clima de terror desse momento, a terrível sensação de medo que devem sentir todos os que estão diante de Saul.

Saul mostra seu desdém por Davi e Aimeleque pela forma como se dirige a eles. Ele os chama pelo nome de seus pais: “o filho de Jessé” (verso 8) e “o filho de Aitube” (verso 12). No pecado descrito no capítulo 13, quando Saul oferece o holocausto, ele se faz igual a Samuel. Aqui, ao tratar com Aimeleque e os outros sacerdotes, Saul se faz superior a eles. Ele não busca a verdade, mas rapidamente condena os sacerdotes como traidores do trono. Ele não pergunta se Aimeleque o traiu, mas por que (verso 13).

Aimeleque responde com extraordinário equilíbrio. Ele não aproveita a oportunidade para culpar Davi por tê-lo enganado, o que Davi realmente fez. Pelo contrário, Aimeleque permanece diante de Saul, falando a favor de Davi, e relembrando ao rei que Davi não é apenas seu servo mais leal, mas também um homem honrado pelo povo, a quem Saul promoveu a posições de autoridade e poder. Se nada disso importa, pelo menos Saul deve se lembrar de que Davi é seu genro (verso 14).

Aimeleque também fala em sua defesa e a favor de todos os sacerdotes convocados por Saul.

Aimeleque realmente ajudou Davi ao consultar o Senhor para ele e ao lhe dar do pão sagrado e a espada de Golias. Ele não o ajudou intencionalmente em qualquer ato de conspiração. E o fato de tê-lo ajudado não é nada de novo ou inédito, muito menos inadequado. Certamente não foi a primeira vez que Davi lhe pediu para consultar o Senhor. Por isso, podemos deduzir que Davi, com freqüência, procurava orientação divina ao sair em missão para o rei. Saul não deveria ver esta visita de Davi, ou a concessão de Aimeleque, como algo extraordinário ou proibido.

Aimeleque está com a razão e Saul fica furioso. O rei pronuncia a sentença de morte, não apenas para Aimeleque, mas para todos os sacerdotes que reuniu. Parece que esta era sua intenção desde o princípio. Ele ordena aos guardas de prontidão que matem os sacerdotes. Não importa o quanto estes homens temam Saul, eles não estão dispostos a matar os sacerdotes. Deve ter sido um momento muito doloroso, quando todos ficam imóveis, se recusando a cumprir as ordens de Saul.

Mas Saul não será demovido de sua decisão. Ele se vira para Doegue, o edomita, e lhe ordena que destrua os sacerdotes, o que ele faz. Agora Saul irá matar o “rei dos judeus” (Davi) e qualquer um que o apóie (como os sacerdotes), e pedirá a ajuda dos gentios se for necessário. Doegue mata 85 sacerdotes naquele dia, mas isto não é o bastante para Saul. Ele vai, então, a Nobe, a cidade dos sacerdotes, e continua a aniquilar as famílias e até mesmo o gado dos sacerdotes. É impressionante! Saul, aquele que não teve zelo para matar os amalequitas, mesmo tendo sido ordenado por Deus, agora é zeloso para matar os sacerdotes e seu gado, embora proibido por Deus. Até onde vai a decadência de Saul?

Apenas um sacerdote, Abiatar, sobrevive e corre até Davi para lhe contar o que Saul fez aos sacerdotes. Davi assume total responsabilidade, admitindo que vira Doegue em Nobe, e que sabia que esse homem provavelmente falaria a Saul sobre sua visita. Não há nada que Davi possa fazer por aqueles que foram assassinados, mas ele oferece refúgio a Abiatar.

Davi Salva Queila
(23:1-14)

“Foi dito a Davi: Eis que os filisteus pelejam contra Queila e saqueiam as eiras. Consultou Davi ao SENHOR, dizendo: Irei eu e ferirei estes filisteus? Respondeu o SENHOR a Davi: Vai, e ferirás os filisteus, e livrarás Queila. Porém os homens de Davi lhe disseram: Temos medo aqui em Judá, quanto mais indo a Queila contra as tropas dos filisteus. Então, Davi tornou a consultar o SENHOR, e o SENHOR lhe respondeu e disse: Dispõe-te, desce a Queila, porque te dou os filisteus nas tuas mãos. Partiu Davi com seus homens a Queila, e pelejou contra os filisteus, e levou todo o gado, e fez grande morticínio entre eles; assim, Davi salvou os moradores de Queila. Sucedeu que, quando Abiatar, filho de Aimeleque, fugiu para Davi, a Queila, desceu com a estola sacerdotal na mão. Foi anunciado a Saul que Davi tinha ido a Queila. Disse Saul: Deus o entregou nas minhas mãos; está encerrado, pois entrou numa cidade de portas e ferrolhos. Então, Saul mandou chamar todo o povo à peleja, para que descessem a Queila e cercassem Davi e os seus homens. Sabedor, porém, Davi de que Saul maquinava o mal contra ele, disse a Abiatar, sacerdote: Traze aqui a estola sacerdotal. Orou Davi: Ó SENHOR, Deus de Israel, teu servo ouviu que Saul, de fato, procura vir a Queila, para destruir a cidade por causa de mim. Entregar-me-ão os homens de Queila nas mãos dele? Descerá Saul, como o teu servo ouviu? Ah! SENHOR, Deus de Israel, faze-o saber ao teu servo. E disse o SENHOR: Descerá. Perguntou-lhe Davi: Entregar-me-ão os homens de Queila, a mim e aos meus servos, nas mãos de Saul? Respondeu o SENHOR: Entregarão. Então, se dispôs Davi com os seus homens, uns seiscentos, saíram de Queila e se foram sem rumo certo. Sendo anunciado a Saul que Davi fugira de Queila, cessou de persegui-lo. Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou nas suas mãos.”

Os servos de Davi lhe trazem a notícia de que Queila está sob o ataque dos filisteus. Na realidade, a responsabilidade de lidar com os filisteus é de Saul (I Sam. 9:16), mas ele está mais interessado em matar israelitas do que em lidar com os invasores filisteus. Numa reação bem mais nobre, Davi se sente na obrigação de ir em socorro de seus irmãos israelitas e procura orientação divina para saber de deve travar, ou não, batalha com os filisteus. O Senhor o instrui a atacá-los e libertar Queila.

Os homens de Davi ficam inquietos com a decisão de enfrentar os filisteus e dizem a ele. Sua apreensão não é muito difícil de entender. Afinal, este pequeno exército de 600 homens (23:13) não é um grupo de soldados altamente treinados, mas um grupo desconjuntado de homens descontentes que fugiram de Saul (22:2). A maioria deles uniu forças a Davi quando ele se escondia na caverna de Adulão. Esta caverna provavelmente ficava em território filisteu, ou bem próximo à fronteira do território de Israel. Dali Davi e seus homens foram para Moabe, onde se esconderam num “lugar seguro” (22:4-5). O profeta Gade disse a Davi para parar de se esconder em território estrangeiro e retornar ao território de sua própria tribo, Judá, o que ele fez, escondendo-se no bosque de Herete (22:5). No terreno denso e difícil desta floresta, os homens de Davi devem se sentir em relativa segurança, fora do alcance de Saul. Mas, quando Davi recebe instrução para lutar com os filisteus em Queila, a questão é totalmente diferente. A aventura agora é bem mais difícil e perigosa. Para lutar com os filisteus eles terão que sair do esconderijo para campo aberto, sabendo que isto os exporá ao ataque das forças de Saul. Uma vez que Queila está localizada a aproximadamente 20 milhas a sudeste de Gate, Davi e seus homens não estarão mais nas montanhas, escondendo-se seguramente na floresta, mas em terras baixas, em campo aberto, onde podem ser vistos pelo exército de Saul e confrontados pelos carros filisteus. Quando contestam a decisão de Davi de salvar o povo de Queila, eles parecem fazê-lo com base num risco bastante elevado. Não é seguro. Seria bem mais seguro se esconder de Saul na floresta do que atacar os filisteus em campo aberto.

Davi ouve as objeções levantadas por seus homens, mas tem intenção de obedecer a Deus, não a homens. Ele “consulta o Senhor” uma segunda vez (23:4) e recebe a mesma resposta, com a garantia de que Deus já lhes deu a vitória. Com esta garantia, Davi e seus homens chegam a Queila e atacam os filisteus, obtendo uma vitória decisiva, livrando os israelitas da derrota e tomando o rebanho dos filisteus (23:5). Como são estranhos os caminhos de Deus. Uma semana antes, qual deles teria pensado que comeria filé mignon do gado filisteu?

Tendo livrado o povo de Queila da derrota para os filisteus, alguns poderiam pensar que este povo seria um dos maiores defensores de Davi. Com toda certeza dariam abrigo a ele e seus homens. No entanto, Saul fica sabendo da presença de Davi em Queila, e convoca todo o Israel para atacar a cidade, certo de que isto resultará na sua captura e de seus homens. Afinal, Queila é uma cidade fortificada. Saul supõe que as “portas e ferrolhos” da cidade não vão impedi-lo de entrar, mas, em vez disto, encerrarão Davi e seus homens lá dentro.

Davi fica sabendo do ataque de Saul e se pergunta se é sábio ficar em Queila. Parece que ele quer evitar sua própria captura, mas ele também está preocupado com o bem-estar do povo da cidade. Ele os livrou dos filisteus só para que o exército de Saul destrua a cidade? Felizmente, quando Abiatar fugiu para se juntar a Davi, levou consigo a estola sacerdotal, o instrumento pelo qual a vontade de Deus poderia ser consultada (23:6). Desejando saber e fazer a vontade de Deus, Davi consulta o Senhor por meio da estola. Ele tem duas perguntas a fazer. Primeira, Saul realmente virá a Queila como ouviu? A sua informação está correta? Segunda, se Saul realmente vier, o povo da cidade trairá Davi e o entregará a Saul?

A resposta às duas perguntas é “Sim”. Repare, no entanto, que a resposta a ambas é hipotética, com base em algumas suposições. Se Davi ficasse em Queila, os homens de Saul viriam e atacariam a cidade. Se Davi ficasse e os homens de Saul viessem e atacassem a cidade, os homens de Queila o entregariam a Saul. Mas, sabendo destas coisas, Davi deixa Queila antes de Saul chegar. Conseqüentemente, Saul, na verdade, não ataca a cidade, nem os homens de Queila entregam Davi a ele. Mas teriam, se Davi tivesse ficado.

A primeira coisa a se notar sobre o questionamento de Davi e a resposta divina é: Deus não apenas sabe todas as coisas que acontecerão, Ele também sabe as que poderiam acontecer, sob quaisquer circunstâncias. Uma coisa é saber o que o futuro reserva. Outra, imensamente maior, é saber o que o futuro poderia reservar sob diferentes circunstâncias. A onisciência de Deus (onisciência = conhecer todas as coisas) é tal que Ele sabe todas as coisas existentes e todas as coisas possíveis. É exatamente assim que Deus pode estar no controle de todas as coisas (soberania de Deus), sem ser responsável pelo pecado dos homens. Por exemplo, Deus sabia que, em dadas circunstâncias, Judas trairia o Senhor Jesus por 30 moedas de prata. A traição de Jesus era uma parte necessária do plano de Deus, e não havia dúvida quanto a isto. A onisciência de Deus tornou tudo possível, sem torná-Lo culpado pelo pecado do homem. A mesma coisa pode ser vista nas palavras de Pedro aos judeus (e gentios) que foram responsáveis pela morte de nosso Senhor na cruz do Calvário:

“Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos.” (Atos 2:22-23)

E assim é que, informado por Deus sobre as conseqüências de ficar em Queila, Davi deixa a cidade com seus 600 seguidores. Ele retorna ao deserto, escondendo-se nos lugares seguros que encontra. Sabendo de sua partida, Saul faz seus homens retornarem e, desta forma, a cidade de Queila é poupada, não apenas dos filisteus, mas também de Saul. Contudo, aqueles que deviam suas vidas a Davi o teriam traído sem piedade. Em tudo isto, Davi também é poupado da ira e do ciúme de Saul, pois Deus não entregaria Seu futuro rei em suas mãos.

Conclusão

Embora muitas lições possam ser extraídas de nosso texto, uma delas parece ser mais importante e estar acima de todas as outras, e pode ser resumida nestas palavras:

Quando o mundo inteiro parece imprevisível e sem sentido e, quando os loucos têm poder para realizar seus planos infames, que resultam no sofrimento e na morte de pessoas inocentes, Deus ainda está no controle. Ainda que não seja aparente em meio aos caos e à confusão, os planos e intentos de Deus estão sendo realizados, mesmo através de loucos que procuram destruir os Seus propósitos e Suas promessas.

Ao longo da história, muitos cristãos têm vivido em épocas que são melhores descritas pelas palavras “loucura” e “insanidade”. Como podemos explicar por que um terrorista coloca uma bomba num prédio, matando centenas de pessoas a quem nunca conheceu? Que sentido faz um homem que rouba um trabalhador com pouco dinheiro e depois o mata desnecessariamente? Por que um adolescente atacaria uma escola, esvaziando uma arma automática numa porção de estudantes? Muita coisa que vemos acontecer em nosso mundo não faz sentido - é insano. Vamos torcer as mãos em desespero, como se, em meio ao caos e violência, Deus não estivesse no controle?

Nosso texto nos assegura que, mesmo em meio à insanidade, Deus está no controle. O rei Saul está louco quando ordena que Doegue, o edomita, mate todos os sacerdotes e suas famílias. Tudo parece sem sentido e insano. Sabemos que muitos inocentes foram mortos nesse dia e, de maneira alguma, tentamos justificar isto. No entanto, ao mesmo tempo, não devemos fazer vistas grossas ao fato de que Deus usou Saul - mesmo nos momentos mais irracionais - para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Nos capítulos 2 e 3 de I Samuel é dito a Eli que, devido à maldade de seus filhos, seu sacerdócio seria retirado:

“Veio um homem de Deus a Eli e lhe disse: Assim diz o SENHOR: Não me manifestei, na verdade, à casa de teu pai, estando os israelitas ainda no Egito, na casa de Faraó? Eu o escolhi dentre todas as tribos de Israel para ser o meu sacerdote, para subir ao meu altar, para queimar o incenso e para trazer a estola sacerdotal perante mim; e dei à casa de teu pai todas as ofertas queimadas dos filhos de Israel. Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel? Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos. Eis que vêm dias em que cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais velho nenhum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, a um tempo com o bem que fará a Israel; e jamais haverá velho em tua casa. O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade. Ser-te-á por sinal o que sobrevirá a teus dois filhos, a Hofni e Finéias: ambos morrerão no mesmo dia.” (I Samuel 2:27-34)

“Disse o SENHOR a Samuel: Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos. Naquele dia, suscitarei contra Eli tudo quanto tenho falado com respeito à sua casa; começarei e o cumprirei. Porque já lhe disse que julgarei a sua casa para sempre, pela iniqüidade que ele bem conhecia, porque seus filhos se fizeram execráveis, e ele os não repreendeu. Portanto, jurei à casa de Eli que nunca lhe será expiada a iniqüidade, nem com sacrifício, nem com oferta de manjares.” (I Samuel 3:11-14)

Devido ao pecado de Eli, que falhou em corrigir seus filhos, o sacerdócio lhe foi tirado. O sinal de que isto ocorreria foi a morte de seus dois filhos, Hofni e Finéias (2:34). A fase seguinte do cumprimento desta profecia está em nosso texto, ocasionada pelo ciúme insano de Saul, quando ordena que Doegue, o edomita, mate todos os sacerdotes e suas famílias. Apenas um sobrevivente é deixado, exatamente como Deus indicara (2:33). A próxima fase desse cumprimento virá nos dias de Salomão, quando o sacerdócio será tomado de Abiatar, o descendente de Itamar, filho de Arão, e dado a Zadoque, descendente de Arão por meio de Eleazar (I Reis 2:27, 35). O cumprimento total e final parece ser a vinda do Senhor Jesus Cristo, que é sacerdote para sempre (ver Salmo 110; Hebreus 5:6; Apocalipse 19:16).

Quem teria pensado que a profecia dos capítulos 2 e 3 seria cumprida como descrito no capítulo 22 por um cara literalmente louco? Mesmo em sua desobediência e insanidade, mesmo em sua rebelião contra Deus pela matança dos sacerdotes, Saul está sendo usado por Deus para cumprir Sua promessa, e de forma a não se opor ao caráter de Deus.

Repare na semelhança entre as profecias de Deus a respeito do sacerdócio de Eli nos capítulos 2 e 3 e as profecias Deus a respeito do reinado de Saul nos capítulos 13 e 15. Devido ao seu pecado de não corrigir seus filhos pelo abuso de seu sacerdócio, o sacerdócio é tirado de Eli. Uma parte importante disto vemos descrita no capítulo 22. Será que o cumprimento da promessa de Deus a Eli não foi dado neste ponto da história para apoiar a profecia de Deus a respeito do reinado de Saul? Da mesma forma que o sacerdócio de Eli foi retirado alguns anos e alguns capítulos depois, também o reinado de Saul é retirado alguns anos e alguns capítulos depois. Deus sempre mantém Suas promessas e, algumas vezes, Ele o faz empregando os instrumentos mais improváveis.

Segundo, podemos perceber em nosso texto a que velocidade e a que distância um pecado aparentemente banal pode nos levar. Os pecados de Saul nos capítulos 13 e 15 são muito sérios, mas não parecem ter grandes conseqüências imediatas. Cuidado com os pecados banais, pois não demorará muito para que cresçam significativamente. Saul, que a princípio era receoso e hesitante, deixando de cumprir cabalmente as instruções de Deus, agora é um maníaco furioso, que desceu tão baixo e tão rápido que pode ordenar a morte de todos os sacerdotes. O pecado quase sempre parece inofensivo, até que sua verdadeira natureza seja revelada.

Terceiro, deixe-me fazer uma breve observação e depois uma pergunta. Parece-me que os cristãos, com freqüência, estão entre as pessoas mais passíveis de crer e até mesmo de estimular as teorias da conspiração. Por que o FCC (Federal Communications Commission) recebe tantas cartas de cristãos protestando contra supostas tramas de Madelyn Murray O’Haire para banir programas cristãos do rádio e da televisão? Parece que estamos predispostos a acreditar em conspirações. Pergunto-me por que. Não sejamos paranóicos. Nem nos esqueçamos dos planos de Satanás.

Quarto, vejo em nosso texto três tipos. Saul é tipo dos anticristos que já vieram e que hão de vir, resistindo a Deus e ao Seu Messias, Jesus Cristo. Herodes é um desses anticristos (ver Mateus 2). Os escribas e fariseus são outro exemplo (ver Mateus 27:18; Marcos 15:10; João 11:47-48). Da mesma forma que Saul une forças a Doegue, um gentio, em sua tentativa de dar cabo da ameaça de Davi ao seu trono, os líderes judaicos uniram forças aos gentios para executar a Cristo. Davi é um tipo de Cristo, rejeitado e resistido porque deve se tornar o rei de Deus. Aimeleque é tipo de todos aqueles que sofrem e morrem por se associarem a Jesus, pois ele morreu por sua associação com Davi.

Finalmente, vejo em nosso texto outra lição muito importante, que pode ser resumida da seguinte forma:

A segurança do cristão não é obtida por se isolar ou por se esconder dos perigos deste mundo; ela é encontrada por aqueles que se lançam sobre Deus para orientação e proteção, enquanto procuram desempenhar o Seu serviço e cumprir a Sua vontade.

A princípio, Davi e seus homens parecem pensar que quanto mais distantes estiverem de Saul, mais seguros estarão. Davi não encontra segurança nenhuma em Gate, com os filisteus. Talvez ele tenha se sentido seguro dentro ou nas proximidades de Moabe, mas o profeta Gade o instrui a retornar ao território de Judá. E, quando os homens de Davi se sentem em relativa segurança no bosque de Herete, Deus os manda ir a Queila, onde ficam expostos, não só ao ataque dos filisteus, mas também ao ataque de Saul.

Davi é um homem de Deus, é Seu escolhido como rei, e é indestrutível até que a obra de Deus para ele esteja completa. Ele não precisa se esconder ou se arriscar, especialmente quando isto o impede de desempenhar sua missão e ministério (como salvar o povo de Queila). Davi não tem que calcular sua segurança em termos da distância do perigo; ele calcula sua segurança em termos de sua proximidade de Deus. Uma espécie de escapismo é encontrada nos círculos cristãos atuais, como se a distância fosse chave para a segurança. Sou contra este tipo de pensamento. Deus pode levar alguns a lugares distantes, mas não vamos procurar nos esconder quando Deus nos chama para ser sal e luz nas trevas.

Deixe-me dizer também que confiar em Deus e fazer o que é certo não é garantia de segurança física. Em nosso texto, Aimeleque é um homem piedoso, honrado, que fica contra Saul e a favor de Davi quando sabe dos riscos que corre. Ele é assassinado, junto com sua família e seus companheiros de sacerdócio. Em última análise, Aimeleque e seus companheiros mártires não poderiam estar num lugar mais seguro do que nos braços de Deus. Eles estão tão “seguros” quanto Davi, mas sua missão está terminada, a de Davi ainda não. Viver uma vida piedosa não é garantia de proteção contra o sofrimento, contra os problemas e até mesmo contra a morte. Mas Deus não permitirá que estas coisas nos afastem daquilo para o que Ele nos chamou. Até que nosso serviço para Ele esteja completo, ninguém pode estar mais seguro do que o cristão confiante e obediente, mesmo nas circunstâncias mais perigosas.

20. Um Amigo de Verdade (I Samuel 23:15-29)

Introdução

De todos os anos anteriores ao reinado de Davi sobre Israel, estes devem ter sido os mais negros de sua vida. Não parece ser exagero dizer que, a esta altura dos acontecimentos, o ânimo de Davi está muito abalado. A habilidade e coragem que lhe foram dadas por Deus lhe trazem grande sucesso, o que, por sua vez, lhe traz popularidade. A alegria e satisfação inicial de Saul logo se transformam em medo e suspeita e, finalmente, em tentativa de assassinato. Agora, Davi é o homem mais procurado de Israel, sem qualquer culpa além da de servir fielmente a Deus e ao seu rei. Davi foge para Aimeleque, o sumo sacerdote, o qual lhe dá do pão sagrado e a espada de Golias, e também consulta o Senhor para ele (21:1-9). Isto resulta no massacre de Aimeleque, dos sacerdotes e de suas famílias - tudo devido à conclusão errada de Saul de que eles haviam se unido a Davi numa conspiração (22:6-19).

Do quartel-general de Aimeleque em Nobe, Davi foge para Gate, procurando a proteção de Aquis, o rei filisteu. Os servos do rei Aquis vêem Davi como a mais perigosa das ameaças. Para salvar sua vida, ele se finge de louco, a fim de ser expulso de Gate (21:10-15). De lá, ele encontra um esconderijo na caverna de Adulão, onde sua família se junta a ele, junto com muitos outros homens que não estão em boa situação com Saul (22:1-2). Os seguidores de Davi agora são aproximadamente 400 homens (22:2), e ele os leva até Moabe, procurando um lugar de refúgio para seus pais (22:3-4), enquanto eles se escondem num lugar seguro das proximidades, mas ainda no território de Moabe.

É neste ponto que vou me aventurar a uma pequena especulação com base no texto. Devo admitir que fico perturbado por Davi buscar refúgio para seus pais em Moabe. Sei que Rute, a mulher da qual Davi é descendente, é moabita, e isto pode ter dado a ele um pequeno crédito junto ao rei daquele lugar. Mas, ainda assim, os moabitas são inimigos de Israel. Por que Davi deixa seus pais ali?

Uma possível explicação pode ser encontrada no Salmo 27, um salmo de Davi, onde lemos sobre sua confiança em Deus na época em que malfeitores estão atrás dele. Talvez este seja o período que estamos tratando em nosso texto. No verso 10 deste salmo, lemos:

“Porque, se meu pai e minha mãe me desampararem, o SENHOR me acolherá.”

Entendo estas palavras no sentido literal e, por isso, preciso fazer uma pergunta: “Quando seu pai e sua mãe o abandonaram?” Talvez tenha sido exatamente nessa época. Pergunto-me se os membros da família de Davi não foram os últimos a reconhecê-lo como rei, da mesma forma que os irmãos e irmãs de nosso Senhor também não O reconheceram como o Rei dos judeus (ver João 7:2-5). Sabemos que seu irmão mais velho, Eliabe, o repreende por sua atitude na frente de batalha (I Sam. 17:28). Quando sua família vai à caverna de Adulão (22:1), provavelmente, é porque agora entendem o perigo que correm como membros de sua família. Se Saul não poupa nem a família dos sacerdotes, que ele acha que conspiram com Davi, por que pouparia a família de Davi?

Creio que a família de Davi seja literalmente forçada a ir à caverna de Adulão e que isto não seja realmente o que querem. Talvez estejam ressentidos e achem que Davi seja o responsável por seu sofrimento. Quando fica claro que estar com Davi significa se esconder em lugares remotos e inacessíveis, seus pais podem tê-lo rejeitado e exigido que ele encontrasse um lugar de refúgio que não os obrigasse a ficar com ele. Se for isso mesmo, a rejeição de seus pais seria apenas um golpe a mais no seu estado de espírito. Uma coisa é ser rejeitado por seus inimigos, como os filisteus, ou até mesmo por Saul. Outra é ser rejeitado por seus irmãos israelitas, ou até mesmo pelos mais próximos, os judeus. Mas, ser rejeitado por seus pais seria um golpe fatal.

Além do mais, a chegada de Jônatas ao esconderijo de Davi cai bem no meio do capítulo 23, um fato importante em virtude daquilo que está no começo e no final do capítulo. A primeira parte é a narrativa do salvamento do povo de Queila por Davi. Ele deixa a segurança do denso bosque de Herete para descer à Queila, em campo aberto. Ele decide sair do esconderijo para enfrentar os filisteus e, talvez, até mesmo o próprio Saul. Em resposta ao abnegado salvamento daquela cidade, Davi descobre que eles o teriam entregado a Saul, caso ele tivesse vindo e sitiado a cidade. Nos versos finais do capítulo descobrimos que os zifeus, sem nenhuma ameaça por parte de Saul, vão até ele e se oferecem para trair Davi e ajudar na sua captura.

A esta altura dos acontecimentos, as coisas devem parecer terrivelmente negras e agourentas para Davi. Eis um homem com a cabeça a prêmio e que não pode confiar em ninguém. Em Nobe, Davi tem lá suas dúvidas sobre Doegue, o edomita; agora ele duvida até dos seus parentes. É possível também que seu pai e sua mãe tenham se distanciado dele. Parece que não há ninguém para quem se voltar. Há Jônatas, é claro, mas ele está um tanto distante e parece difícil que possa estar com Davi neste momento...

Quando Davi abraça o amigo querido, naquele esconderijo desolado, que visão Jônatas deve ter sido para aqueles olhos tristes. Grandes homens de Deus como Davi, Paulo e muitos outros, incluindo nosso Senhor, experimentaram períodos de desânimo e até mesmo de depressão. Parece que este é um desses momentos para Davi. Em Sua graça, Deus lhe manda uma visita, Jônatas, que muito o anima. Em meio à traição do povo de Queila e dos zifeus, existe a devoção e o amor leal de seu amigo mais chegado, Jônatas. Ele não apenas tem muito ânimo a trazer para Davi, ele também tem muito a nos ensinar sobre isso. Vamos examinar nosso texto para aprender os aspectos mais importantes de ministrar aos outros.

Davi Corre perigo
(23:15)

“Vendo, pois, Davi que Saul saíra a tirar-lhe a vida, deteve-se no deserto de Zife, em Horesa.”

Creio que o verso 15 pretende dizer bem mais do que o simples fato de Davi ter conhecimento de que Saul está atrás dele. O que há de novo nisso? Apenas que Saul está perto. Mas a expressão “ficou ciente que” literalmente significa “viu”. Davi viu que Saul saíra para lhe tirar a vida. A palavra para “viu” é tão parecida com a palavra para medo que alguns até sugerem que o autor queria dizer que Davi estava com medo. Prefiro não mudar o texto sem alguma base, mas o sentido é quase esse. Todo o peso da perseguição de Saul e suas implicações parecem recair sobre Davi. Talvez, abatido de corpo e alma, Davi se angustie ao ouvir que, uma vez mais Saul está por perto, totalmente decidido a matá-lo. Muitas evidências mostram que, se tiver chance, Saul o matará. Lembro-me de vários provérbios que podem nos dar uma idéia daquilo que está implícito no texto:

“O semblante alegre do rei significa vida, e a sua benevolência é como a nuvem que traz chuva serôdia.” (16:15)

“Como o bramido do leão, assim é a indignação do rei; mas seu favor é como o orvalho sobre a erva.” (19:12)

“Como o bramido do leão, é o terror do rei; o que lhe provoca a ira peca contra a sua própria vida.” (20:2)

“Como leão que ruge e urso que ataca, assim é o perverso que domina sobre um povo pobre.” (28:15)

Palavras Bem-vindas de Um Visitante Bem-vindo
(23:16-18)

“Então, se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi para Davi, a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus, e lhe disse: Não temas, porque a mão de Saul, meu pai, não te achará; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo, o que também Saul, meu pai, bem sabe. E ambos fizeram aliança perante o SENHOR. Davi ficou em Horesa, e Jônatas voltou para sua casa.”

Enquanto leio estas palavras, lembro-me novamente de alguns provérbios:

“Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo.” (25:11)

“Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto.” (25:25)

Saul pode estar à procura de Davi, mas quem o encontra é Jônatas. Ele não poderia ter aparecido em ocasião mais oportuna, nem suas palavras poderiam ter sido mais bem escolhidas. O propósito de sua visita é fortalecer Davi em Deus. Seu encorajamento está resumido no verso 17, com os seguintes elementos:

(1) Jônatas diz para Davi não temer. Com todos os recursos de Saul, parece literalmente impossível que Davi escape de suas garras. Saul ordenou publicamente que Davi fosse detido e levado a ele, ou, pelo menos, que lhe fosse revelado o lugar de seu esconderijo. Saul tem poder e determinação para retaliar qualquer um que pareça apoiar Davi de alguma maneira. O número de mortos em Nobe é testemunho disto. Saul também recompensará qualquer um que lhe seja leal e o ajude a dar cabo de Davi. Os temores de Davi não são infundados; no entanto, Jônatas lhe diz para não temer.

(2) Jônatas assegura a Davi que, apesar de todos os esforços de Saul, ele não conseguirá encontrá-lo.

(3) A certeza de Jônatas parece ter base em sua confiança de que Deus designou a Davi como o futuro rei de Israel. Se Davi é o escolhido de Deus como o próximo rei de Israel, então, ninguém, incluindo Saul, será capaz de matá-lo e frustrar os intentos e as promessas de Deus. A segurança de Jônatas tem suas raízes na soberania do Deus a quem ele e Davi servem, e a quem Saul procura resistir.

(4) Jônatas procura encorajar Davi, garantindo-lhe sua submissão e lealdade a ele como o futuro rei de Israel. Jônatas sabe que Deus, de algum modo, removerá seu pai do trono e investirá Davi como o próximo rei de Israel. Jônatas não só aceita alegremente este fato, como também se propõe a ser o servo mais leal de Davi e seu maior defensor. Davi não só escapará das mãos de Saul e subirá ao trono, ele encontrará Jônatas assentado ao seu lado para lhe ajudar.

(5) Finalmente, a lealdade de Jônatas não é nenhum segredo. Saul, o pai de Jônatas, está totalmente ciente da lealdade de seu filho a Davi, embora não goste disso. Jônatas não mantém seu relacionamento com Davi em segredo. Certamente isto poderia encorajar outras pessoas a apoiarem Davi.

Jônatas é o Barnabé do Velho Testamento. Que grandes encorajadores são estes dois homens. No livro de Atos, Barnabé começa como um líder proeminente e Saulo (o apóstolo Paulo) nada mais é do que alguém a quem Barnabé toma sob seus cuidados. À medida que o tempo passa, fica claro que Deus escolheu Paulo para assumir o papel principal. Quando isto se torna evidente, Barnabé alegremente aceita este fato e se torna o defensor mais leal de Paulo.

O mesmo espírito é visto em Jônatas. Ele é o sucessor do trono, o descendente de Saul que todos esperam que governe em lugar de seu pai. Devido aos pecados de Saul, Deus o rejeita e designa Davi como o próximo rei. Jônatas percebe isto e, como Barnabé na época do Novo Testamento, se torna o defensor e amigo mais leal de Davi. Quando Davi está em perigo e seu ânimo parece arrefecer, Jônatas atravessa o deserto à sua procura para encorajá-lo. E é óbvio que ele consegue.

O resultado é outra aliança entre eles. De fato, é mais provável que esta seja repetição da aliança feita anteriormente, talvez com alguns detalhes a mais. A primeira aliança está em 18:1-4, onde os termos não são fornecidos, mas o significado é transmitido simbolicamente quando Jônatas tira sua armadura e a dá a Davi. No capítulo 20, Davi pede a ajuda de Jônatas com base na aliança que fizeram (verso 8), e depois Jônatas apela a Davi que poupe a sua vida e a de seus descendentes (verso 14 a 17). Novamente, nos versos 41 e 42 do capítulo 20, eles renovam sua aliança, como algo que permanecerá ao longo de sua descendência. Parece haver pouca dúvida quanto à natureza desta aliança no capítulo 23.

Antes de continuarmos com o restante do capítulo, vamos refletir sobre a natureza do ministério de Jônatas a Davi e como isto ilustra a natureza e a prática do encorajamento em todas as épocas, incluindo a nossa.

Primeiro, o encorajamento chega no momento certo e tem as palavras certas a dizer. Muitos teriam sido como um dos amigos de Jó neste momento da vida de Davi. Poderiam ter dito: “O que é que há com você, Davi? Não sabe que é pecado ficar com depressão? Leia a Bíblia e ore.” O livro de Provérbios tem muito a nos dizer sobre esta questão.

Segundo, o encorajamento afasta o medo e incentiva a coragem. Este é um elemento muito importante de minha definição de encorajamento. Ao longo dos anos, tenho ouvido uma porção de gente falar sobre o dom do encorajamento, ou o dom da exortação, como se ele lhes desse algum direito de intromissão na vida das outras pessoas por aconselhá-las. Receio que, mais comum ainda, seja a presunção de que o encorajamento está intimamente ligado à bajulação. Uma porção de “conselheiros” que tenho visto fazem disto uma prática para elogiar as pessoas por trabalhos bem feitos. Não sou contrário a dar uma palavra de elogio àqueles que fazem um bom trabalho, embora devamos ter cuidado para sermos honestos e não bajuladores. No fundo, encorajamento é ajudar a infundir coragem naqueles que estão amedrontados.

Considere esta passagem na epístola de Paulo aos Tessalonicenses:

“Exortamo-vos, também, irmãos, a que admoesteis os insubmissos, consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos.” (I Ts. 5:14)

Em nosso texto, Jônatas encoraja (literalmente, fortalece a mão de) Davi, dizendo-lhe para não temer. Encorajamento é a capacidade de sentir o medo ou o temor de outras pessoas e ministrar infundindo-lhes coragem.

Terceiro, o encorajamento dá coragem para agir. Já disse que o encorajamento afasta o medo e infunde a coragem. Mas o encorajamento que Jônatas ilustra é bem mais do que isto. O verdadeiro encorajamento não cuida das pessoas só para que elas se sintam melhor, cuida para que elas tenham coragem de fazer coisas difíceis, coisas que estão com receio de fazer. O encorajamento “fortalece a mão” daquele que é encorajado. É a “mão” que, então, trabalha, fazendo o serviço que foi dado por Deus.

Quarto, o encorajamento bíblico fortalece os desanimados fazendo seus olhos se voltarem para Deus. Jônatas encoraja Davi no Senhor. Ao que tudo indica Davi não viveria nem mais uma semana, quanto mais tempo suficiente para se tornar o rei de Israel. Mas Deus o ungiu pelas mãos de Samuel. Está nos planos e nos propósitos de Deus que Davi reine sobre Israel e, se é assim, os planos de Deus não podem ser frustrados. O único fundamento para a coragem de Davi é sua fé em Deus, em Sua Palavra, em Suas promessas, em Seu poder e em Sua fidelidade para completar aquilo que começou. Jônatas faz os olhos de Davi se voltarem para Deus, de onde vem a coragem. Em toda a Bíblia a mensagem é sempre a mesma: a coragem vem de Deus (Is. 35:4; 54:4; Jr. 30:10; Zc. 9:9; Jo. 12:15). A coragem vem pelo Espírito Santo (Mq. 3:7-8; Os. 2:3-5). A coragem vem de nosso Senhor (ver Mt. 9:2, 22; 14:27; Jo. 16:33; At. 23:11).

Quinto, o encorajamento é bem mais do que palavras; o encorajamento vem de pessoas que dão exemplos de coragem e não apenas falam sobre isso. É difícil encorajar os outros quando os nossos próprios joelhos estão tremendo. A coragem é contagiosa, assim como o medo. Saul é um homem cuja vida é caracterizada pelo medo ao invés de fé. Seria de se admirar que o exército de Saul se evapore quando “a coisa engrossa”? Claro que não! O medo de Saul toma conta de seu exército, por isso, seus soldados fogem (ver I Samuel 13:5-7; 17:11, 24, 32). Os covardes não encorajam os outros. São os corajosos que o fazem. Se o escritor de I Samuel quer nos dizer alguma coisa, é que Jônatas, diferentemente de seu pai, é um homem corajoso (ver I Sam. 13:3; 14:1-14). Ele deve ter tido muita coragem para procurar Davi na floresta, enquanto seu próprio pai está nas proximidades tentando matá-lo.

Quando vejo “encorajadores” no Novo Testamento, vejo homens de coragem. Barnabé é um dos grandes encorajadores do livro de Atos. Ele nos é apresentado no capítulo 4, onde é dito por Lucas que este homem vende um campo e coloca o rendimento aos pés dos apóstolos (4:36-37). Digo que Barnabé não é somente um homem generoso, mas um homem corajoso. Por que não dou mais aos outros? Se for honesto comigo mesmo, não dou mais porque tenho medo, medo de dar e não ter o suficiente para mim e para minha família. Será que não foi por isso que Ananias e Safira mentiram sobre o valor de sua oferta, retendo uma parte do dinheiro, talvez para os “momentos difíceis” (ver Atos 5)?

Com certeza, ir ao auxílio de Paulo, em Atos 9, foi um ato de coragem de Barnabé. Eis aqui um homem, Saulo, que prende cristãos e até mesmo os mata. Agora ele chega a Jerusalém, afirmando ter sido convertido ao cristianismo. Você pode culpar os cristãos por duvidarem de sua história e evitar o contato com ele? No entanto, Barnabé é um homem de fé e coragem. Ele crê que Deus pode salvar um homem como Saulo (a maioria dos crentes concordaria com isto), e vai mais além quando crê que Deus salvou Saulo (aqui é onde a maioria de nós pularia fora). Barnabé arrisca sua vida (agindo com coragem) e, desta forma, ele não só encoraja Saulo (Paulo), mas incentiva a igreja a ter coragem e a abraçar seu antigo inimigo como uma nova criatura em Cristo. É preciso coragem para encorajar.

Há muito tempo considero Barnabé um grande encorajador, mas agora sou forçado a reconhecer que grande encorajador Paulo veio a se tornar (em parte, graças a Barnabé). O encorajamento de Paulo se desenvolve a partir de sua própria coragem. Em Filipenses 1:14, Paulo escreve que muitos “ousam falar com mais desassombro a palavra de Deus” por causa de sua própria perseverança nos sofrimentos por amor do evangelho (ver 1:12-13). Repare como, em meio a uma incrível tormenta, a coragem de Paulo tem um impacto positivo até mesmo sobre aqueles que não são salvos:

“Havendo todos estado muito tempo sem comer, Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Senhores, na verdade, era preciso terem-me atendido e não partir de Creta, para evitar este dano e perda. Mas, já agora, vos aconselho bom ânimo, porque nenhuma vida se perderá de entre vós, mas somente o navio. Porque, esta mesma noite, um anjo de Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas! É preciso que compareças perante César, e eis que Deus, por sua graça, te deu todos quantos navegam contigo. Portanto, senhores, tende bom ânimo! Pois eu confio em Deus que sucederá do modo por que me foi dito. Porém é necessário que vamos dar a uma ilha... Enquanto amanhecia, Paulo rogava a todos que se alimentassem, dizendo: Hoje, é o décimo quarto dia em que, esperando, estais sem comer, nada tendo provado. Eu vos rogo que comais alguma coisa; porque disto depende a vossa segurança; pois nenhum de vós perderá nem mesmo um fio de cabelo. Tendo dito isto, tomando um pão, deu graças a Deus na presença de todos e, depois de o partir, começou a comer. Todos cobraram ânimo e se puseram também a comer. Estávamos no navio duzentas e setenta e seis pessoas ao todo.” (Atos 27:21-26; 33-37)

Tudo leva a uma só coisa: aqueles que encorajam, antes de mais nada, o fazem por serem pessoas de coragem, e depois, para infundir coragem nos outros, apontando para Deus, de onde vem a santa coragem. Jônatas é um desses homens, tal como nosso Senhor, Barnabé e Paulo. Eles são modelos que devemos imitar.

Escapando Por Um Triz
(23:19-29)

“Então, subiram os zifeus a Saul, a Gibeá, dizendo: Não se escondeu Davi entre nós, nos lugares seguros de Horesa, no outeiro de Haquila, que está ao sul de Jesimom? Agora, pois, ó rei, desce conforme te impõe o coração; toca-nos a nós entregarmo-lo nas mãos do rei. Disse Saul: Benditos sejais vós do SENHOR, porque vos compadecestes de mim. Ide, pois, informai-vos ainda melhor, sabei e notai o lugar que freqüenta e quem o tenha visto ali; porque me foi dito que é astutíssimo. Pelo que atentai bem e informai-vos acerca de todos os esconderijos em que ele se oculta; então, voltai a ter comigo com seguras informações, e irei convosco; se ele estiver na terra, buscá-lo-ei entre todos os milhares de Judá. Então, se levantaram eles e se foram a Zife, adiante de Saul; Davi, porém, e os seus homens estavam no deserto de Maom, na planície, ao sul de Jesimom. Saul e os seus homens se foram ao encalço dele, e isto foi dito a Davi; pelo que desceu para a penha que está no deserto de Maom. Ouvindo-o Saul, perseguiu a Davi no deserto de Maom. Saul ia de um lado do monte, e Davi e os seus homens, da outra; apressou-se Davi em fugir para escapar de Saul; porém este e os seus homens cercaram Davi e os seus homens para os prender. Então, veio um mensageiro a Saul, dizendo: Apressa-te e vem, porque os filisteus invadiram a terra. Pelo que Saul desistiu de perseguir a Davi e se foi contra os filisteus. Por esta razão, aquele lugar se chamou Pedra de Escape. Subiu Davi daquele lugar e ficou nos lugares seguros de En-Gedi.”

Jônatas vai prá casa enquanto Davi permanece nos lugares seguros de Horesa (versos 18-19). A situação de Davi não mudou, mas temos boas razões para supor que sua visão das coisas tenha mudado significativamente. As pessoas desse lugar eram conhecidas como zifeus, o povo de Zife (verso 19 e seguintes). Como Davi, eles são da tribo de Judá. Apesar disto, eles vão até Saul, em Gibeá, fornecendo-lhe a localização de Davi, a fim de que ele seja capturado. Eles parecem ansiosos para obter o favor de Saul e, também, com toda a probabilidade, em evitar sua ira. Assim, eles estão dispostos a lhe entregar Davi.

A linguagem de Saul no verso 21 é trágica. Soa muito espiritual; no entanto, suas santas palavras são apenas um véu para encobrir a maldade de suas intenções. “Benditos sejais vós do SENHOR...” O que poderia soar mais espiritual do que isto? Este uso do nome de Deus é “vão”, vulgar e profano. É aquilo que Deus proíbe - usar Seu nome em vão, de maneira vulgar e desprezível (Deuteronômio 5:11). Saul não ousa abençoar em nome do Senhor aqueles que se rebelam contra ele, mas abençoa aqueles que o ajudam em sua rebelião contra Deus. Não é espiritual abençoar aqueles que amaldiçoariam o ungido de Deus. Não é espiritual trair alguém de sua própria parentela. Como é irônico que os zifeus se compadecessem de Saul, enquanto Jônatas, seu próprio filho, se compadece de Davi.

Saul está começando a ficar esperto. Ele não convoca de imediato suas tropas para outra tentativa de capturar Davi. Afinal, parece que ele acabou de retornar de sua última tentativa frustrada. Desta vez ele pretende ser mais cuidadoso, pois não seria bom voltar de mãos vazias. Ele diz aos zifeus para observarem cuidadosamente os movimentos de Davi, tomando nota de seus esconderijos e suas rotas de fuga, para, então, o avisarem quando souberem exatamente onde Davi está. Assim, Saul tem certeza de que capturará seu inimigo.

O verso 22 é digno de nota. Saul conta aos zifeus que dizem que Davi é astutíssimo. Por que ele não diz que ele mesmo pensa assim? Talvez seja porque grande parte de suas informações sobre Davi venham de segunda mão, daqueles em quem ele não deveria realmente confiar, homens como Doegue, o edomita. Veremos mais sobre isto quanto chegarmos ao verso 9 do capítulo 24. Informação de segunda mão, na verdade, é fofoca, e não deveria ser tomada como se fosse uma verdade suprema.

Os zifeus retornam à sua terra, prontos e dispostos a cumprir as ordens de Saul. Nesse meio tempo, Davi se move umas poucas milhas em direção ao território descampado (ou deserto) de Maom (verso 25). Saul e seus homens aparecem uma vez mais em árdua perseguição. Que lugar para uma caçada de helicóptero! Davi se apressa para escapar de Saul e seus homens, enquanto ladeia a montanha. Atrás, em seu encalço, estão Saul e seus homens. Eles continuam ganhando terreno, ou talvez venham na direção contrária, para encontrar Davi quase de frente. Pode até ser que Saul tenha tropas no encalço de Davi vindas de ambas as direções. De uma forma ou de outra, Davi e seus homens estão sendo cercados. É apenas uma questão de tempo antes que caiam nas garras de Saul. Podemos ver seus homens se aproximando cada vez mais. Também podemos ver que todas as rotas de fuga estão bloqueadas. Não há saída. Eles estão no fim da linha.

De repente, quando os homens de Saul estão quase sobre eles, ouve-se um grito. Um mensageiro chama por Saul, informando-o que Israel está sob ataque filisteu. Não deve ser em Queila, pois parece que Saul não se importa com os problemas dessa cidade com os filisteus. Seria perto de Gibeá, a cidade de Saul? A situação é vista como sendo tão séria que Saul desiste de sua perseguição, a apenas alguns instantes do sucesso. Ele ordena a seus homens que dêem meia volta e desçam a montanha, reunindo-se para marchar contra o exército filisteu.

O suspense é tão intenso, tão denso, que alguém poderia cortá-lo com uma faca. Davi e seus homens parecem perdidos, mas são poupados por Deus. A ironia é que, embora Saul seja inimigo de Davi, os filisteus, inconscientemente, viram seus aliados. Seu ataque é um meio de Deus para livrar Seu rei ungido, Davi, das garras do rei Saul.

Conclusão

Quem acreditaria nisso? Quem imaginaria que Saul pudesse chegar tão perto de Davi, e então fizesse meia volta no último minuto? Quem teria acreditado que um ataque hostil contra Israel pudesse ser um meio de Deus para preservar a vida do futuro rei? Aqueles que conhecem a Deus crêem nisso. Na verdade, quase deveríamos esperar por isso. Os recursos de Deus são tão infinitos, que Ele não é forçado a livrar Seus escolhidos sempre da mesma maneira enfadonha, repetindo infinitamente o mesmo milagre. Muitas vezes Deus salva quando toda esperança humana já se foi, e assim, de formas que jamais esperaríamos ou prediríamos. Ele faz assim porque é Deus, porque Seus recursos são ilimitados e porque Sua maneira de fazer as coisas está muito além das nossas mais loucas fantasias.

Deus não apenas livra Davi da forma mais extraordinária, Ele também o encoraja de uma forma única. Deus o encoraja com uma visita inesperada, num lugar ermo e difícil de ser encontrado. Este lugar não está no caminho de Jônatas. É um lugar onde Davi pretende não ser encontrado; no entanto, ele é. E aquele a quem Deus escolhe para encorajar Davi, arduamente perseguido pelo rei Saul, é nenhum outro, senão o filho do rei, Jônatas.

Devemos concluir esta lição com as palavras das Escrituras que expressam tudo isto muito melhor do que poderíamos:

“Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao SENHOR, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos. Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.” (Isaías 55:6-11)

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! QUEM, POIS, CONHECEU A MENTE DO SENHOR? OU QUEM FOI O SEU CONSELHEIRO? OU QUEM PRIMEIRO DEU A ELE PARA QUE LHE VENHA A SER RESTITUíDO? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)

21. Matar ou Não Matar (I Samuel 24:1-22)

Introdução

Este incidente na caverna poderia facilmente ser uma reprise da execução de Eglom, rei de Moabe, conforme descrito em Juízes 3:12-31. Os moabitas estão oprimindo Israel e Deus ouve o clamor de Seu povo. Ele levanta Eúde como um dos juízes de Israel. Eúde, um benjamita canhoto, vai a Eglom para entregar o dinheiro do “tributo” que os israelitas pagam para Moabe. Ele porta uma espada feita sob medida na coxa direita, por baixo da capa. Parece que antes de ser admitido à presença de Eglom, ele é revistado, mas apenas do lado esquerdo, onde todos os homens destros guardam suas armas. Eúde chega quando o rei está em seu aposento privativo, sem mais ninguém por perto. Ele encontra o rei em sua sala de verão, onde fica o banheiro. Eúde assassina Eglom e foge, mas não pela entrada normal. Em vez disso, ele fecha e tranca a porta da sala privativa do rei, escapando sem ser visto. À medida que o tempo passa e o rei não sai de lá de dentro, seus servos ficam cada vez mais nervosos - mas ninguém quer interrompê-lo. Quando, finalmente, destrancam a porta, eles encontram o rei morto.

A mesma coisa poderia ter acontecido na caverna onde Davi e seus homens estão escondidos, e onde Saul decide se aliviar. Davi poderia facilmente tê-lo morto neste momento vulnerável, ou, pelo menos, poderia ter permitido que um de seus homens o fizesse. Em vez disso, Davi poupa a vida do rei, permitindo que ele deixe a caverna ileso, sem nem sequer saber que ele está por perto. O que Davi faz a seguir é ainda mais surpreendente, conforme veremos em breve. A reação de Saul é igualmente espantosa.

A história que vamos estudar é uma grande história. A sensação dramática é intensa. Encontramos nesta narrativa: perigo, suspense e surpresas. Mas, esta não é somente uma história bem escrita, legal e divertida. É uma história que tem grande aplicação para todos os cristãos ainda hoje. Como? Davi é um homem designado e ungido como o futuro rei de Israel. Os acontecimentos que estamos estudando têm lugar nesse meio tempo entre a sua designação e a sua nomeação como rei.

Nós, os que confiam em Jesus Cristo para o perdão de nossos pecados e para a nossa salvação eterna, somos aqueles que serão “reis e sacerdotes”.

“e perseveramos, também com ele reinaremos...” (II Tm. 2:12a)

“e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.” (Ap. 5:10)

“Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.” (Ap. 20:6)

“Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos.” (Ap. 22:5)

Essa questão de esperar para reinar é muito importante. Uma porção de erros encontrados nos círculos cristãos atuais (e ao longo da história da igreja) tem a ver com o relacionamento entre a nossa vida presente e o futuro reinado de Cristo junto com Seus santos. Alguns se enganam ao supor que podemos “reinar” desde já, gozando todos os benefícios futuros no presente. Nosso texto, como em todo o Velho e Novo Testamento, se baseia no fato de que, ainda que venhamos a reinar no futuro, no presente Deus está nos preparando mediante a rejeição e o sofrimento. Da mesma forma como Deus lidou com Davi nessa área, Ele também lida conosco hoje. Portanto, prestemos bastante atenção, pois não estamos lendo uma simples historinha. Este texto é a instrução de Deus para nós, através do exemplo de santos como Davi, e até mesmo de pessoas patéticas como Saul.

Davi se Recusa a Ceder à Pressão
(24:1-7)

“Tendo Saul voltado de perseguir os filisteus, foi-lhe dito: Eis que Davi está no deserto de En-Gedi. Tomou, então, Saul três mil homens, escolhidos dentre todo o Israel, e foi ao encalço de Davi e dos seus homens, nas faldas das penhas das cabras monteses. Chegou a uns currais de ovelhas no caminho, onde havia uma caverna; entrou nela Saul, a aliviar o ventre. Ora, Davi e os seus homens estavam assentados no mais interior da mesma. Então, os homens de Davi lhe disseram: Hoje é o dia do qual o SENHOR te disse: Eis que te entrego nas mãos o teu inimigo, e far-lhe-ás o que bem te parecer. Levantou-se Davi e, furtivamente, cortou a orla do manto de Saul. Sucedeu, porém, que, depois, sentiu Davi bater-lhe o coração, por ter cortado a orla do manto de Saul; e disse aos seus homens: O SENHOR me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do SENHOR. Com estas palavras, Davi conteve os seus homens e não lhes permitiu que se levantassem contra Saul; retirando-se Saul da caverna, prosseguiu o seu caminho.”

No capítulo 23, Saul parece ter Davi em suas mãos. Ele está bem perto de Davi quando um mensageiro o informa que Israel está sob ataque, forçando-o a desistir de sua perseguição, para lutar com os filisteus. Não sabemos como Saul se sai no confronto, mas sabemos que ele retorna são e salvo, disposto a capturar Davi. Alguém o informou que Davi está no deserto de En-Gedi.

Saul espera encontrar Davi no sopé das “penhas das cabras montesas” (24:2) e parte naquela direção. Acho que Saul devia conhecer bem esta região e deve ter concluído que aquele ponto remoto nas montanhas da Judéia provavelmente seria o esconderijo de Davi, caso este soubesse que ele estava em sua perseguição. Parece que Davi faz exatamente o oposto. Em vez de fugir do deserto de En-Gedi para as “penhas das cabras montesas”, Davi vai em direção oposta, direto para Saul. O caminho dos dois se cruza num aprisco de ovelhas, onde também existe uma caverna. Saul sente o chamado da natureza e começa a procurar um lugar nos arredores onde possa se aliviar em particular.

Pense em si mesmo como um dos homens de Davi espreitando para fora da caverna, vendo Saul e seu exército se aproximar, e então parar. Posso até sentir a tensão quando os olhos de Saul se voltam para a caverna. Os homens de Davi se agacham na sua parte posterior e gemem silenciosamente, enquanto vêem Saul se aproximando. Eles não sabem o que Saul tem em mente. Deve parecer como se estivessem liquidados. Saul se aproxima, enquanto Davi e seus homens agarram suas armas, prontos para se defender. O que se segue não precisa ser descrito, exceto para dizer que foi um alívio tanto para Saul quanto para os homens de Davi.

Os homens de Davi agora estão mais calmos e começam a pensar no significado deste momento. Parece-lhes que Deus lhes deu uma oportunidade de matar Saul. Eles citam uma profecia que diz:

“Eis que te entrego nas mãos o teu inimigo, e far-lhe-ás o que bem te parecer.” (verso 4)

Pela reação de Davi, podemos chegar a uma destas alternativas: Primeiro, pode-se dizer que esta profecia é falsa, que deve ser rejeitada (ver I Reis 22). Segundo, talvez seja uma profecia relacionada a alguma outra pessoa (algum inimigo) que não Saul, e erroneamente aplicada a ele pelos homens de Davi. Terceiro, talvez a profecia seja verdadeira e se relacione a Saul, mas é erroneamente interpretada e aplicada pelos homens de Davi. Sou favorável à terceira opção.

Furtivamente, Davi vai até Saul, que está alheio ao que se passa atrás dele. Aparentemente, seu manto tinha sido retirado e posto de lado, longe o suficiente para que Davi pudesse alcançá-lo e cortasse um pedaço de sua orla. Imediatamente a consciência de Davi o acusa. Há aqueles que crêem que isto tenha sido muito significativo, de alguma forma desafiando ou contestando o direito de Saul reinar. Acho que não. Parece-me que a intenção de Davi é apenas obter uma prova de que ele conseguiu chegar a uma distância surpreendente e mesmo assim não causou nenhum dano a Saul. Intrinsecamente isto não teria perturbado Davi, mas o fato é que ele danifica a roupa de Saul. Em linguagem atual, é como se Davi tivesse estourado os pneus do carro de Saul. É mais ou menos como vandalismo.

O gesto de Davi não deve ser julgado pelo valor prejuízo, mas em termos de contra quem foi praticado. Um ato aparentemente banal seria muito grave se fosse contra o Presidente dos Estados Unidos. O ato de Davi foi cometido contra o seu rei. Não interessa se foi um gesto insignificante, certamente banal se comparado ao assassinato pretendido por seus homens. Ele levantou a mão contra o seu rei, e com isto, levantou a mão contra seu Deus. Foi Deus que levantou Saul e é Deus quem o destituirá do trono, de alguma forma que não inclui Davi agir com hostilidade contra ele:

“Acrescentou Davi: Tão certo como vive o SENHOR, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto.” (I Sam. 26:10)

Ainda que Saul seja destituído, é Deus quem o fará, não Davi. Até que Deus o destitua, o dever de Davi é servir fielmente a seu rei, e cortar um pedaço de seu manto não foi pelo bem de Saul. Por isso, a consciência de Davi o perturba.

Davi está com a consciência pesada por ter tirado um pedaço do manto de Saul. Seus homens, por outro lado, estão planejando coisas bem piores. O sucesso de Davi em cortar o manto de Saul incentiva seus homens a resolver o problema de uma vez por todas. Neste momento Saul está vulnerável. Seus homens estão fora de vista (com certeza Saul quer fazer suas necessidades em particular), e assim os homens de Davi podem dar cabo dele sem mais rodeios. Parece que é isto o que eles pretendem fazer e só a atitude enérgica de Davi os demove de sua intenção. A tradução do verso 7, na maioria das versões, é surpreendentemente branda (“persuadiu”, NASB - “conteve”, ARA) comparada à palavra empregada pelo autor (a nota da margem da versão NASB indica que a tradução literal seria repreendeu severamente). Ante a menção de matar o rei, Davi literalmente ataca seus homens, defendendo ferozmente a vida do rei e exigindo que, da mesma forma que ele não levantaria a mão contra ele, eles também não o farão. Enquanto os homens de Davi o olham com estranheza, Saul termina o serviço, veste seu manto (agora meio estragado) e sai da caverna.

Davi e o Golias II
(24:8-15)

Depois, também Davi se levantou e, saindo da caverna, gritou a Saul, dizendo: Ó rei, meu senhor! Olhando Saul para trás, inclinou-se Davi e fez-lhe reverência, com o rosto em terra. Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal? Os teus próprios olhos viram, hoje, que o SENHOR te pôs em minhas mãos nesta caverna, e alguns disseram que eu te matasse; porém a minha mão te poupou; porque disse: Não estenderei a mão contra o meu senhor, pois é o ungido de Deus. Olha, pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão. No fato de haver eu cortado a orla do teu manto sem te matar, reconhece e vê que não há em mim nem mal nem rebeldia, e não pequei contra ti, ainda que andas à caça da minha vida para ma tirares. Julgue o SENHOR entre mim e ti e vingue-me o SENHOR a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti. Dos perversos procede a perversidade, diz o provérbio dos antigos; porém a minha mão não está contra ti. Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? Seja o SENHOR o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão.

Matar Saul é agir contra o ungido do Senhor, e essa não é uma atitude cristã. Assim, o uso da revelação divina pelos homens de Davi está errado, por isso, ele é inflexível. Davi deve fazer para Saul “aquilo que lhe parece bom”. E o que lhe parece bom é sujeitar-se a seu rei e servi-lo fielmente, buscando o seu bem. Certamente isto significa que Davi não deve se opor a Saul ou agir de forma que lhe seja prejudicial. Para Davi, ser submisso ao rei significa muito mais do que isto. Significa agir de maneira a buscar o bem de Saul. A interpretação de Davi daquilo que “é bom”, com referência a Saul, com certeza surpreende o próprio Saul e, indubitavelmente, qualquer um que testemunhe o próximo acontecimento.

Davi e seus homens estão seguramente escondidos dentro da caverna. Tudo o que precisam fazer é ficar quietos e deixar que Saul e seus homens vão embora. Depois eles podem escapar na direção oposta. Abandonando todos os esforços para se proteger e fugir, Davi emerge da caverna, gritando para Saul. Ele se dirige a Saul como “Ó rei, meu senhor!” (verso 8), e um pouco adiante como ”pai” (verso 11). Davi se prostra em terra, mostrando sua reverência e submissão a Saul como rei (verso 8). Ele apela para o rei não levar em consideração as coisas ditas a seu respeito, para ouvir suas palavras e as comparar com suas ações, e então julgar por si mesmo sua culpa ou inocência.

Davi contesta a acusação de estar buscando a morte ou a derrota de Saul. Ele não está tentando tirá-lo do trono. Mostrando a Saul o pedaço do manto que ele cortou, Davi o desafia a reconhecer que, embora pudesse tê-lo morto, ele não o fez. Saul é o ungido de Deus. Prejudicar o rei é agir em rebelião contra Deus, que o colocou no trono. Quando a vida de Saul esteve nas mãos de Davi, este o protegeu, impedindo seus homens de matá-lo. E agora, Davi coloca sua vida nas mãos de Saul e, em última análise, nas mãos de Deus, pois é a Deus que ele faz seu último apelo. É para Ele que Davi clama por justiça. É por isso que ele não precisa agir contra o próprio Saul.

Davi relembra ao rei que os homens podem ser conhecidos por seus frutos. Das palavras de um antigo provérbio, Davi cita: “Dos perversos procede a perversidade” (verso 13). Davi nada fez de mal a Saul, e lhe garante que sua mão não será contra ele no futuro (verso 13). Ele também relembra ao rei que seus temores a seu respeito são exagerados. Davi se compara a um cão morto e a uma pulga (verso 14). Como pode um grande homem como Saul, com todo o seu poderio militar, ter tais temores a respeito de Davi?

Davi encerra sua argumentação dizendo a Saul que ele se entregou aos cuidados de Deus. Ele deixou o juízo e a retribuição para Deus. Ele espera na justiça e proteção de Deus dos ataques de Saul (verso 15). Com isto Davi encerra seu caso. Agora é hora de Saul responder, o que ele faz.

O “Arrependimento” e o Pedido de Saul
(24:16-22)

Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. Disse a Davi: Mais justo és do que eu; pois tu me recompensaste com bem, e eu te paguei com mal. Mostraste, hoje, que me fizeste bem; pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. Portanto, jura-me pelo SENHOR que não eliminarás a minha descendência, nem desfarás o meu nome da casa de meu pai. Então, jurou Davi a Saul, e este se foi para sua casa; porém Davi e os seus homens subiram ao lugar seguro.

Saul fica em estado de choque ao ouvir seu nome. Ele mal pode crer em seus ouvidos, que é realmente Davi quem chama por ele. Saul eleva sua voz, chorando, chamando Davi de ”filho”. Como isto fica mais fácil depois que Davi o chama de “pai” no verso 11 e se curva diante dele como um servo fiel a seu rei. É óbvio que Davi tem a vida de Saul em suas mãos, e que ele o poupa. Como Davi é diferente dele! Saul confessa que Davi é justo, mas ele não. Ele fez o mal para Davi e, mesmo assim, Davi lhe retribuiu com o “bem”. Davi não o teria deixado ir se fosse seu inimigo; portanto, ele deve ser seu amigo. E assim Saul invoca a bênção de Deus sobre ele.

O verso 20 é uma espantosa confissão de Saul. Pela primeira vez registrada nas Escrituras, Saul diz a verdade. Samuel lhe disse que seu reino não iria durar (13:14), e que ele foi rejeitado por Deus como rei de Israel (15:26). No capítulo 18 (versos 8-9), Saul menciona que Davi é tão popular, que a única coisa que lhe falta é a posse do reino. Em 20:31, Saul diz a Jônatas que ele não herdará o trono enquanto Davi estiver vivo. Em outro lugar, Saul trata Davi como um traidor, que planeja matá-lo e se apossar do reino (ver 22:6-13). Mas, aqui, pela primeira vez, Saul reconhece que Deus está tirando seu reino e dando-o a Davi. Ele admite a ascensão de Davi ao trono como certa.

Por isso, Saul suplica que Davi jure que não irá matar seus descendentes (24:21). As preocupações de Saul não são totalmente infundadas. Eliminar todos os possíveis herdeiros era uma prática comum para os homens que ascendiam ao trono, especialmente os descendentes do rei que ele havia deposto ou substituído (ver II Re. 10:11; 15-17; 11:1). A ironia do pedido de Saul é que esta questão já havia sido tratada na aliança entre Davi e Jônatas (I Sam. 20:14-17; 41-42). Apesar disto, Davi promete a Saul que ele não irá destruir nenhum de seus descendentes.

Os dois vão-se embora. Davi sobe para o lugar seguro, enquanto Saul volta prá casa (24:22). É provável que Davi tenha esperanças de que seus problemas com Saul tenham terminado, mas ele não é tolo. Saul já se “arrependeu” outras vezes (ver 19:1-7), mas não durou muito. Davi vai ver o que é uma resposta duradoura de Saul observando à distância. O outro lado da moeda talvez seja que, na verdade, Davi está servindo a Saul de maneira indireta. Será que as pessoas estão se voltando para Davi e desprezando Saul? Então, Davi manterá distância, ficando fora de vista, para que a popularidade de Saul não seja diminuída.

Conclusão

Esta história é realmente incrível. Quem teria pensado que um “chamado da natureza” acabaria numa despedida pacífica entre Davi e Saul? Deus é soberano. Ele está no controle absoluto de todas as coisas, e “todas as coisas” incluem coisas elementares como um “chamado da natureza”. Devido a este acontecimento tão natural (nossos filhos diriam “nojento”, ou coisa parecida), algumas coisas sobrenaturais aconteceram. Primeiro, Davi e Saul se encontraram e se separaram; no entanto, sem qualquer derramamento de sangue. Saul confessou coisas que jamais esperaríamos dele. Davi não só se arrependeu de cortar um pedaço do manto de Saul, como impediu seus homens de matá-lo. E todas estas coisas são conseqüência de Saul procurar um lugar para parar e achar a mesma caverna onde Davi e seus homens “tinham acabado” de se esconder. Deus é capaz de empregar a “natureza” para alcançar Seus propósitos. Que Deus maravilhoso nós servimos!

Em seu livro Liderança Espiritual, J. Oswald Sanders fala sobre três princípios que governam a liderança espiritual:

Soberania

Sofrimento

Sujeição

Creio que este querido irmão esteja absolutamente certo, e que estes três princípios podem ser vistos na vida de Davi enquanto Deus o prepara para a liderança espiritual. Vamos considerar cada um dos três.

    Soberania

O primeiro fator em liderança espiritual é a soberania de Deus. Participei de um encontro onde Sanders nos contou sobre como Deus o chamou à liderança. Ele estava engajado num tipo de ministério bem diferente, no qual esteve durante a maior parte de sua vida, quando foi contatado para se tornar o líder de uma grande organização missionária. Levou um ano para que Sanders (e a esposa) reconhecesse a persistência dessa organização como evidência do soberano chamado de Deus. Deus é quem soberanamente levanta líderes espirituais (ver a maneira como Deus levantou Saulo/Paulo em Atos).

A soberania de Deus também é um dos principais fatores no pensamento de Davi sobre liderança. Deus soberanamente levantou Saul como rei de Israel. Embora Samuel tenha ungido Davi como o futuro rei, Davi crê que é Deus quem destituirá Saul e que esta tarefa não é sua. Enquanto Deus mantiver Saul no poder, levantar a mão contra ele é levantar a mão contra Deus. As circunstâncias podem ter sido favoráveis a Davi ou a um de seus homens para matar Saul, no entanto, a crença de Davi na soberania de Deus o impediu de fazê-lo.

Satanás se rebelou contra o governo soberano de Deus. Ele não estava disposto a servir a Deus, mas queria liderar, como Deus. Pecado é rebelião contra Deus, contra Sua soberania. É tentar se elevar acima de Deus. Davi se submete à soberania de Deus. E ele o faz deixando a vingança para Deus. O comentário de John Murray de Romanos 12:19 é muito pertinente:

“Aqui temos a essência da verdadeira religião. A essência da pecaminosidade é que ousamos assumir o lugar de Deus, tomando as coisas em nossas mãos. Fé é nos entregarmos a Deus, lançando nossos cuidados sobre Ele e investindo todos os nossos interesses Nele. Quanto ao assunto em questão, as injustiças de que somos vítimas, o jeito da fé é reconhecer que Deus é o juiz e deixar que Ele execute a vingança e a retribuição.”

    Sofrimento

O segundo fator em liderança espiritual é o sofrimento. Oswald Sanders nos contou sobre um de seus primeiros sermões (de uns 65 anos atrás!). Ele disse que depois de sua mensagem, não pôde deixar de ouvir duas mulheres discutindo sobre seu sermão. Uma delas perguntou à outra: “Bem, o que você achou?” Ao que a segunda respondeu: “Não foi mal, mas ele será muito melhor quando tiver sofrido”. Sanders, então, prosseguiu, descrevendo como Deus o fez passar pelo sofrimento com a morte de duas esposa e uma sobrinha. Quando ouço alguns músicos cristãos contemporâneos, sinto-me como aquela mulher que ouviu o primeiro sermão de Sanders. Creio que serão muito melhores depois de terem experimentado o sofrimento. Eles sempre escrevem e cantam suas músicas como pessoas jovens e inexperientes. A maioria ainda não provou a taça de sofrimento e dor. O sofrimento muda você e sua mensagem.

Desde quando foi ungido até a época em que é designado rei, Davi passa por muito sofrimento. A maior parte de seu sofrimento vem das mãos de Saul. A ascensão de Davi ao trono não é a despeito de seu sofrimento, mas por meio dele. O sofrimento é o meio mediante o qual Deus prepara Davi para a liderança. E isto não é exceção. O sofrimento de José às mãos de seus irmãos o preparou para liderar e um meio de salvação para sua família. O sofrimento de Israel no Egito preparou o povo de Deus para o êxodo e sua vida como homens e mulheres livres. O sofrimento de nosso Senhor O preparou para o ministério que Ele terá como o Rei dos reis e Senhor dos senhores. O nosso sofrimento faz exatamente a mesma coisa.

Seus homens estão tentando Davi para que ele mate Saul, a fim de encurtar seu sofrimento e apressar seu governo como rei. Sua tentação não é diferente da tentação de Satanás a nosso Senhor no deserto, no início de Seu ministério público (ver Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-12). Nós também somos tentados a evitar o sofrimento e ir direto para a glória, mas sofrer é o meio designado por Deus para nos levar para a glória. Davi está disposto a sofrer para obedecer a Deus, mesmo que isto pareça inconsistente com seu futuro reinado.

    Sujeição

O fator final que Sanders descreve em relação à liderança espiritual é a sujeição. Em minha mente, sujeição e submissão estão intimamente relacionadas. Ambas estão muito envolvidas na preparação de Deus para o reinado de Davi. Servo é aquele que serve fielmente a outrem. Davi é um servo fiel de Saul, mesmo quando Saul procura tirar sua vida. Submissão é sujeitar seus próprios interesses para servir a outrem.

Davi serve seu senhor, Saul, fielmente. Sua consciência o atormenta quando ele corta um pedaço do manto de Saul. Isto não é servi-lo fielmente. Ele se recusa a considerar a morte de Saul, ou a permitir que seus homens o façam. Isto não é servir Saul. Sofrimento é o preço que Davi está disposto a pagar para servir Saul fielmente. Saul, em certo sentido, é inimigo de Davi, e Deus colocou sua vida nas mãos de Davi. No entanto, Davi crê que, para fazer o que lhe parece certo, ele terá que servir Saul, não destruí-lo. E, a fim de servir Saul, ele terá que colocar em risco sua própria vida. Assim, Davi deixa Saul sair e depois se revela a ele fora da caverna. Davi chega a repreender humildemente Saul, mostrando-lhe que não é seu inimigo e que só tem feito o bem para ele. Davi jamais deixará de servir humildemente Saul, enquanto ele estiver vivo e enquanto for o rei de Deus. Davi lhe faz o “bem”, como o próprio Saul confessa, e ele o faz sofrendo às suas mãos, servindo-o e submetendo-se a ele, esperando, enfim, pela justiça e retribuição do Deus soberano.

Estes princípios: soberania, sofrimento e sujeição - capacitam Davi a discernir a vontade de Deus em quaisquer circunstâncias. Os homens de Davi (I Samuel 24:4), assim como Saul (I Samuel 23:7), discernem a vontade de Deus com base nas circunstâncias favoráveis: Deus lhes dá a oportunidade de matar Saul, então deve ser a vontade de Deus que eles o façam. Davi discerne a vontade de Deus por princípio. Ele decide lutar com Golias, não porque que a vitória pareça certa (embora ele tenha certeza, ninguém mais tem), mas porque este homem blasfema contra Deus. Davi não está disposto a tirar vantagem das circunstâncias, pois ele pensa como um líder espiritual, do ponto de vista da soberania de Deus, do sofrimento como parte da vontade de Deus e da sujeição.

Atualmente vejo bem menos discernimento a respeito da vontade de Deus como o de Davi, do que vejo como o de Saul ou dos homens de Davi. Ouço muitos cristãos que pensam e ensinam que o sofrimento não é da vontade de Deus, e que a verdadeira fé será recompensada por bênçãos imediatas e pela ausência de dor. Encontro muitas pessoas discernindo a vontade de Deus olhando apenas para as circunstâncias favoráveis, em vez de viver pela fé na palavra de Deus, e não pela vista. Vejo muitos cristãos recebendo orientação de cristãos desorientados, em vez de se firmarem em princípios bíblicos. Sejamos como Davi a este respeito, e não como seus homens que só querem por um fim ao sofrimento, matando o ungido de Deus. Essa visão interesseira é justamente o que vemos nos escribas e fariseus (junto com as multidões, incluindo os romanos), quando rejeitaram a Cristo e O crucificaram, libertando Barrabás em Seu lugar.

Vejo na vida de Davi, como descrito em I Samuel, um exemplo e ilustração de muitos textos bíblicos a respeito de sofrimento, sujeição e submissão. Ainda que não possamos considerá-los agora, deixe-me simplesmente relacionar alguns textos para sua posterior meditação: Salmo 7, Mateus 5:44, Romanos 12:17, 19, I Pedro 2:11-22, 4:12-19. Procuremos ser homens e mulheres como Davi, com um coração segundo o coração de Deus, para Sua glória e para o nosso bem.

22. Querida Abi (I Samuel 25:1-44)

Introdução

Às vezes, não como muita freqüência, sinto ter feito alguma coisa certa. O pior é que parece que, logo em seguida, faço algo estúpido e pecaminoso. Meu único consolo (não desculpa, veja bem) é que muita gente me faz companhia nesse estado de espírito. A primeira pessoa em que penso é Pedro (quem não pensa?), o primeiro discípulo a dar a resposta certa à pergunta de nosso Senhor “quem dizeis que eu sou?” (Mateus 16:13-20). Nosso Senhor o elogiou por isto, e no entanto, momentos depois, Ele o repreendeu com estas palavras “Arreda, Satanás” (verso 23), por Pedro tentar convencê-lO a não morrer na cruz do Calvário. Mais tarde, Pedro garante ao Senhor que, mesmo que todos os outros apóstolos O neguem, ele Lhe será fiel (Lucas 22:3134). Apenas alguns versos e poucas horas depois Pedro nega o Senhor, não uma, mas três vezes (Lucas 22:54-62).

No Velho Testamento, vemos a mesma inconstância de fé e obediência, mesmo num homem tão querido (hoje) como Davi. O capítulo 24 de I Samuel certamente é um dos mais marcantes em relação à sua fé. O rei Saul decide parar numa caverna para utilizá-la como banheiro e, inconscientemente, coloca sua vida nas mãos de Davi e de seus homens, escondidos no interior da caverna. Davi se recusa a levantar a mão contra o rei e proíbe seus homens de fazer mal a ele. Ele mesmo lamenta sua atitude de cortar um pedaço do manto de Saul. Finalmente, ele se coloca em grande risco ao se revelar ao rei para lhe mostrar que é um servo fiel, e não um criminoso à espera do momento certo para tirar sua vida.

Um capítulo depois, Davi perde a cabeça por ser insultado por um tolo. Davi está disposto a matar não apenas este ricaço doido, mas também a todos os homens de sua casa. Uma sábia mulher, por sua conta e risco, é quem age de forma a poupar a vida de seu marido e impedir Davi de agir como louco. Creio que o autor de I Samuel quer que vejamos Abigail, a esposa de Nabal, não apenas como uma mulher sábia e bonita, mas como um exemplo de submissão cristã. Uma vez que sua submissão tem uma forma incomum, precisamos prestar bastante atenção ao texto que vamos estudar.

Davi Sofre uma Grande Perda
(25:1)

“Faleceu Samuel; todos os filhos de Israel se ajuntaram, e o prantearam, e o sepultaram na sua casa, em Ramá. Davi se levantou e desceu ao deserto de Parã.”

Samuel foi um dos principais personagens do I livro de Samuel, que tem esse nome por sua causa. Foi ele quem designou e ungiu Saul como o primeiro rei de Israel (capítulos 9 e 10). Foi ele também o profeta que comunicou a Saul que seu reinado seria retirado dele (capítulos 13 e 15). Samuel foi o profeta que ungiu Davi como substituto de Saul (capítulo 16). Samuel foi um homem para quem Davi poderia fugir quando estivesse sendo perseguido por Saul (19:18-24). E agora, Samuel está morto. Que grande perda para Davi. Samuel está morto, ele se encontrou com seu querido amigo Jônatas pela última vez (capítulo 23), e sua esposa, Mical, que também é filha de Saul, foi dada por esposa a outro homem (25:44). Além de tudo isto, os pais de Davi estão sob os cuidados do rei de Moabe (22:3). É verdade que Davi tem 600 homens com ele, mas nenhum deles parece partilhar de suas convicções a respeito de sua submissão ao rei Saul. Como Davi deve estar solitário.

Davi, junto com muitos outros israelitas, vai à casa de Samuel em Ramá, onde pranteia por este grande homem de Deus. Terminado o tempo de luto, Davi uma vez mais se refugia no deserto de Parã. Este é o deserto onde Agar e seu filho Ismael viveram depois que foram mandados embora por Abraão e Sara (Gênesis 21:21). Também é o lugar onde os israelitas acamparam depois de deixar o Monte Sinai, e de onde os doze espias foram enviados para espiar a terra de Canaã (Números 10:12; 13:13). Agora, é o lugar do refúgio de Davi.

Tempo de Tosquia é Tempo de Dividir
(25:2-8)

Havia um homem, em Maom, que tinha as suas possessões no Carmelo; homem abastado, tinha três mil ovelhas e mil cabras e estava tosquiando as suas ovelhas no Carmelo. Nabal era o nome deste homem, e Abigail, o de sua mulher; esta era sensata e formosa, porém o homem era duro e maligno em todo o seu trato. Era ele da casa de Calebe. Ouvindo Davi, no deserto, que Nabal tosquiava as suas ovelhas, enviou dez moços e lhes disse: Subi ao Carmelo, ide a Nabal, perguntai-lhe, em meu nome, como está. Direis àquele próspero: Paz seja contigo, e tenha paz a tua casa, e tudo o que possuis tenha paz! Tenho ouvido que tens tosquiadores. Os teus pastores estiveram conosco; nenhum agravo lhes fizemos, e de nenhuma coisa sentiram falta todos os dias que estiveram no Carmelo. Pergunta aos teus moços, e eles to dirão; achem mercê, pois, os meus moços na tua presença, porque viemos em boa hora; dá, pois, a teus servos e a Davi, teu filho, qualquer coisa que tiveres à mão.

Aqui somos apresentados a dois personagens muito importantes de nossa história, um homem chamado Nabal, e sua esposa, Abigail. Nabal é um homem muito abastado (pelos padrões de antigamente). Sua casa fica em Maon, e seu gado é mantido no monte Carmelo, a algumas milhas dali. É aqui, próximo ao Carmelo, que Davi e seus homens se escondem durante algum tempo. O nome Nabal significa tolo, e é o que ele é. Está escrito que ele é rude e maligno em seu trato (verso 3). Sua esposa é um contraste animador. Abigail é uma bela mistura de boa aparência e boa cabeça.

Davi fica sabendo que Nabal está tosquiando suas ovelhas. Quando a tosquia é feita, há um período de comemoração para todos os trabalhadores, e para qualquer um nas proximidades que não seja tão afortunado. Foi nesta época que Judá subiu a Timna e ali engravidou sua nora, Tamar (Gênesis 38:12-16). Foi durante esta comemoração que Absalão persuadiu Davi a deixar seus filhos virem à sua casa, possibilitando que ele se vingasse de Amnom e o matasse (II Samuel 13:23-29). Sabemos que em tais ocasiões a lei de Moisés instruía os israelitas a serem generosos com aqueles que não fossem tão afortunados (ver Dt. 14:28-29; 26:10-13; Nm. 8:10-12). Assim sendo, Davi pedir um presente a Nabal, não é nenhum pouco incomum. E, uma vez que os homens de Davi contribuíram para o bem-estar e prosperidade de Nabal, o pedido é ainda mais razoável.

Davi envia dez de seus rapazes a Nabal, os quais o cumprimentam em seu nome e pronunciam uma bênção sobre ele e sua casa. Eles chamam a atenção de Nabal para o fato de ser época de tosquia, lembrando-lhe que a presença deles não lhe foi prejudicial, mas que lhe prestaram um grande serviço. Os homens de Davi não fizeram nenhum mal aos servos de Nabal. Pelo contrário, Davi e seus homens protegeram o rebanho de Nabal e seus pastores. Nabal é encorajado a perguntar a seus servos e verificar a veracidade destas palavras. E assim é que, com muita educação, eles solicitam uma oferta a Nabal, esperando paciente e ansiosamente por sua resposta.

Nabal paga o bem com o mal
(25:9-13)

“Chegando, pois, os moços de Davi e tendo falado a Nabal todas essas palavras em nome de Davi, aguardaram. Respondeu Nabal aos moços de Davi e disse: Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos são, hoje em dia, os servos que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm? Então, os moços de Davi puseram-se a caminho, voltaram e, tendo chegado, lhe contaram tudo, segundo todas estas palavras. Pelo que disse Davi aos seus homens: Cada um cinja a sua espada. E cada um cingiu a sua espada, e também Davi, a sua; subiram após Davi uns quatrocentos homens, e duzentos ficaram com a bagagem.”

Lá estão os dez homens de Davi diante de Nabal aguardando sua resposta, ou melhor, sua oferta. Nabal tem várias opções: 1) Ele pode mandá-los de volta com uma palavra de agradecimento e uma oferta generosa; 2) Pode mandá-los de volta com uma oferta não tão generosa, simplesmente para cumprir sua obrigação; 3) Pode mandá-los de volta com uma desculpa (ou uma palavra de agradecimento), mas sem nenhuma oferta; 4) E pode mandá-los de volta sem nenhuma oferta, insultando-os junto com a recusa. Para seu total prejuízo, Nabal escolhe a última opção.

À primeira vista, pelas palavras de Nabal, parece que ele nem mesmo sabe quem seja Davi. Se isso fosse verdade, Nabal estaria simplesmente se recusando a dar uma oferta a um estranho. Mas ele sabe quem é Davi. Ele nos diz, com suas próprias palavras, que Davi é “o filho de Jessé”. Ele sabe que Davi é descendente de Judá, tal como ele. Nabal é “da casa de Calebe” (verso 3), e sabemos que Calebe foi o representante da tribo de Judá enviado à Canaã para espiar a terra (Números 13:6). Em outras palavras, Davi é um parente distante de Nabal; contudo, ele se mostra indiferente ao pedido de Davi nesta época de comemoração.

Entretanto, Nabal sabe bem mais do que isso. Ele não só sabe que Davi é um “filho de Jessé”, mas também está totalmente ciente da tensão existente entre ele e Saul. Nabal fala de Davi como um ”servo de Saul”, que está “fugindo de seu senhor”. Abigail, a mulher de Nabal, sabe que Davi é aquele que foi designado para reinar em lugar de Saul (versos 30-31). Nabal fala de Davi apenas como um servo que foge de seu senhor, como se ele fosse simplesmente um escravo fugitivo. Não acho que Nabal recuse o pedido de Davi por temer uma represália de Saul, sabendo o que aconteceu a Abimeleque, e aos sacerdotes, quando este deu a Davi do pão sagrado, junto com a espada de Golias. Sua mensagem a Davi não é por medo de represália, mas por puro egoísmo e maldade. Ele não dividirá com Davi e seus homens qualquer coisa que seja sua (repare na repetição do pronome “meu” no verso 11).

As últimas palavras da recusa de Nabal são dignas de nota. Ele diz aos mensageiros de Davi: “Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (verso 11, ênfase minha). Se compreendo bem suas palavras, aqui ele revela todo seu orgulho e arrogância. Nabal é da “casa de Calebe”. Ele vem de uma família proeminente. Por outro lado, Davi e seus homens parecem vir de alguma raiz obscura e desconhecida. Por que um homem da posição de Nabal deveria dar qualquer coisa a essa gentalha? A grande ironia é que Davi e Nabal vêm da mesma raiz, Judá. E se Nabal pensa que pode se gabar por Calebe fazer parte de sua árvore genealógica, ele deveria se tocar e perceber que ele não é nada parecido com seu antepassado, Calebe, mas Davi é exatamente esse mesmo tipo de herói.

Os homens de Davi voltam de mãos vazias. Eles repetem as palavras de Nabal e Davi “perde completamente a paciência”. “Cinjam suas espadas!” ele ordena, enquanto agarra sua espada e parte para fazer Nabal pagar de um jeito bem diferente: com a sua vida e a de todos os homens de sua casa. Em termos atuais, Davi “perde a cabeça”. Nos versos 21 e 22, Davi ainda está fumegando e, quando suas palavras são reveladas, entendemos o por quê:

Ora, Davi dissera: Com efeito, de nada me serviu ter guardado tudo quanto este possui no deserto, e de nada sentiu falta de tudo quanto lhe pertence; ele me pagou mal por bem. Faça Deus o que lhe aprouver aos inimigos de Davi, se eu deixar, ao amanhecer, um só do sexo masculino dentre os seus.

Davi fica furioso porque aquilo que fez não trouxe o resultado esperado. Ele não está pensando na questão “a longo prazo”. De seu ponto de vista, ele tratou Nabal de modo amigável, e agora é a vez de Nabal tratá-lo da mesma maneira. Mas, em vez de abençoar Davi e seus homens, ele os insulta e manda embora com as mãos abanando. Davi conclui que todas as coisas boas que fez foram à toa. E se Nabal devolve o bem com o mal, Davi agora tem uma justificativa para devolver o mal com o mal.

Seria bom que fizéssemos uma pausa para refletir sobre a atitude e as ações de Davi. Deixe-me resumir seu raciocínio.

Davi faz coisas boas para Nabal e sua família.

Davi espera que Nabal responda com bondade e, em vez disso, recebe apenas um insulto.

Davi agora se sente justificado em sua intenção de matar Nabal e os homens de sua família.

Quase todos nós raciocinamos da mesma forma que Davi. No entanto, preciso lhe dizer que ele está errado, absolutamente errado. Ele não tem razão em esperar que o bem que fazemos seja retribuído da mesma forma. Ele fez o bem para Saul; ele o serviu fielmente e se recusou a tirar sua vida quando teve oportunidade para isso. Mas Saul retribuiu com o mal ao invés de com o bem, o que confessou a Davi:

Pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. (I Sam. 24:17b-18).

Por alguma razão, Davi está disposto a relevar o tratamento que lhe é dispensado por Saul, mas não os insultos de Nabal. Por quê? Acho que talvez tenhamos uma pista. Primeiro, Saul é o superior de Davi, em questão de autoridade. Davi é seu servo. Ele está disposto a aceitar um tratamento injusto de seu superior. Segundo, o reino foi prometido a Davi, já que Saul está fora do páreo. Davi pode lidar com os maus tratos de Saul porque sabe que em pouco tempo ocupará seu trono.

Nabal não é seu superior e Davi não gosta nenhum pouquinho do tratamento recebido dele. Além do mais, quando sai para matar Nabal e os homens de sua família, Davi não está pensando ou agindo como um homem de fé. Ele espera um “retorno” imediato de seu “investimento” em Nabal. Ele espera que a retribuição venha já. Portanto, ele não procura uma recompensa celestial.

Quantos de nós não ministram aos outros com uma fita métrica nas mãos? Estamos dispostos a amar e a servir aos outros com sacrifício, mas com algumas expectativas. Esperamos que o amor e o sacrifício sejam retribuídos. Quando, em retribuição pelas coisas boas que fazemos, nosso próximo nos paga com o mal, ficamos loucos da vida e procuramos um jeito de nos vingar, da mesma forma que Davi. A gente se esquece que, como Cristo, nossas palavras e ações podem trazer perseguição e sofrimento, em vez de aprovação e gratidão. Nossa recompensa no céu será grande, mas talvez não haja tais recompensas na terra. Sejamos diligentes em fazer boas obras para o Senhor, esperando Nele a nossa recompensa, e não naqueles que são alvo de nosso sacrifício. Davi talvez tenha descoberto que o problema em agir como servo é que as pessoas começam a tratá-lo como tal. Uma coisa é servir para ser promovido; outra, totalmente diferente, é servir para ser rebaixado.

O Apelo Secreto a Abigail
(25:14-17)

Nesse meio tempo, um dentre os moços de Nabal o anunciou a Abigail, mulher deste, dizendo: Davi enviou do deserto mensageiros a saudar a nosso senhor; porém este disparatou com eles. Aqueles homens, porém, nos têm sido muito bons, e nunca fomos agravados por eles e de nenhuma coisa sentimos falta em todos os dias de nosso trato com eles, quando estávamos no campo. De muro em redor nos serviram, tanto de dia como de noite, todos os dias que estivemos com eles apascentando as ovelhas. Agora, pois, considera e vê o que hás de fazer, porque já o mal está, de fato, determinado contra o nosso senhor e contra toda a sua casa; e ele é filho de Belial, e não há quem lhe possa falar.

Um dos rapazes que servem a Nabal observa o encontro entre seus servos e os servos de Davi. Ele sabe o quanto Davi e seus homens beneficiaram seu senhor e o quanto a resposta de Nabal será ofensiva a Davi. De alguma forma ele sabe que Davi está vindo e que, se algo dramático não for feito imediatamente, todos terão muitos problemas. Ele também sabe que Nabal é louco, alguém com quem não se pode argumentar. Assim, o servo não fala com Nabal, mas rapidamente coloca Abigail a par da situação e da necessidade de uma ação imediata. Parece que este servo tem grande respeito por Abigail e seu discernimento, e é por isso que ele a procura. Ele não sugere a Abigail o que fazer, simplesmente lhe conta os fatos e a incentiva a agir com sua reconhecida sabedoria.

Abigail Age Enquanto Davi Reage
(25:18-22)

Então, Abigail tomou, a toda pressa, duzentos pães, dois odres de vinho, cinco ovelhas preparadas, cinco medidas de trigo tostado, cem cachos de passas e duzentas pastas de figos, e os pôs sobre jumentos, e disse aos seus moços: Ide adiante de mim, pois vos seguirei de perto. Porém nada disse ela a seu marido Nabal. Enquanto ela, cavalgando um jumento, descia, encoberta pelo monte, Davi e seus homens também desciam, e ela se encontrou com eles. Ora, Davi dissera: Com efeito, de nada me serviu ter guardado tudo quanto este possui no deserto, e de nada sentiu falta de tudo quanto lhe pertence; ele me pagou mal por bem. Faça Deus o que lhe aprouver aos inimigos de Davi, se eu deixar, ao amanhecer, um só do sexo masculino dentre os seus.

Precisamos observar que Abigail não pergunta ou informa a Nabal sobre o que está fazendo. Ela não pergunta porque sabe qual será sua resposta. E não o informa porque, sem dúvida, ele ordenará a seus servos que não sigam suas instruções. Logo veremos que a atitude de Abigail é um exemplo de verdadeira submissão, mesmo que aparentemente não seja.

Agindo rapidamente, Abigail reúne porções generosas de alimento, que envia adiante dela por seus servos. Rapidez é essencial. Davi está a caminho, e está determinado a matar todos os homens que encontrar na casa de Nabal, incluindo o próprio Nabal. Parece que os suprimentos alcançam Davi e seus homens antes de Abigal, embora isto não esteja explícito. Só está escrito que ela envia os suprimentos adiante de si, para não retardar sua entrega a Davi.

Não posso deixar de imaginar onde Abigail conseguiu todos esses suprimentos com tanta rapidez. Acho que sei e, se estiver certo, realmente é uma situação muito engraçada. Sabemos que Abigail envia a Davi 200 pães, 2 odres de vinho, 5 ovelhas já preparadas, além de uma generosa porção de trigo, uvas passas e figos. Também sabemos que, enquanto Abigail está indo, Nabal está dando uma festa em sua casa, uma festa digna de um rei (verso 36). Creio que os suprimentos que ela envia a Davi venham dos suprimentos que Nabal planeja consumir em sua festa. Você pode imaginar a cara dele quando entra na despensa e descobre que uma boa parte de seu banquete desapareceu? Mesmo assim, é evidente que nada vai faltar.

Tendo enviado os alimentos à sua frente, Abigail avança montanha abaixo, fora da vista de Davi e seus homens. Da mesma forma, Davi vem de um ponto mais alto, só que ainda está remoendo os insultos de Nabal e ensaiando o que fará quando puser as mãos naquele déspota ingrato. Sem que qualquer dos dois grupos perceba, Davi e Abigail se encontram e, de repente, estão face a face.

Sábias Palavras Esfriam uma Cabeça Quente
(25:23-31)

Vendo, pois, Abigail a Davi, apressou-se, desceu do jumento e prostrou-se sobre o rosto diante de Davi, inclinando-se até à terra. Lançou-se-lhe aos pés e disse: Ah! Senhor meu, caia a culpa sobre mim; permite falar a tua serva contigo e ouve as palavras da tua serva. Não se importe o meu senhor com este homem de Belial, a saber, com Nabal; porque o que significa o seu nome ele é. Nabal é o seu nome, e a loucura está com ele; eu, porém, tua serva, não vi os moços de meu senhor, que enviaste. Agora, pois, meu senhor, tão certo como vive o SENHOR e a tua alma, foste pelo SENHOR impedido de derramar sangue e de vingar-te por tuas próprias mãos. Como Nabal, sejam os teus inimigos e os que procuram fazer mal ao meu senhor. Este é o presente que trouxe a tua serva a meu senhor; seja ele dado aos moços que seguem ao meu senhor. Perdoa a transgressão da tua serva; pois, de fato, o SENHOR te fará casa firme, porque pelejas as batalhas do SENHOR, e não se ache mal em ti por todos os teus dias. Se algum homem se levantar para te perseguir e buscar a tua vida, então, a tua vida será atada no feixe dos que vivem com o SENHOR, teu Deus; porém a vida de teus inimigos, este a arrojará como se a atirasse da cavidade de uma funda. E há de ser que, usando o SENHOR contigo segundo todo o bem que tem dito a teu respeito e te houver estabelecido príncipe sobre Israel, então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar ao coração o sangue que, sem causa, vieres a derramar e o te haveres vingado com as tuas próprias mãos; quando o SENHOR te houver feito o bem, lembrar-te-ás da tua serva.

Repentinamente os caminhos de Abigail e Davi se cruzam, e Abigail imediatamente desmonta, prostrando-se sobre seu rosto diante de Davi (exatamente como Davi fez com Saul no capítulo passado). Tudo o que Abigail faz e diz demonstra sua submissão. Por seis vezes neste parágrafo ela fala de si mesma como serva de Davi, e por catorze vezes se dirige a ele como “meu senhor” (seis e oito vezes em Português - ARA). Ela começa suplicando que ele lance toda a culpa sobre ela, somente sobre ela. Davi não planeja se vingar, matando Nabal e todos os homens de sua família? Abigail suplica que Davi desconte sua raiva nela, se ele quiser. Assim, não só ela tenta salvar a vida de seu marido, como também a de todos os homens de sua família.

Além de se oferecer como bode expiatório para a ira de Davi, Abigail insiste em que ele escute o que ela tem a lhe dizer. Nesse sentido, Davi é bem diferente de Nabal, que não escuta ninguém (verso 17). Para o seu próprio benefício, Davi escuta. Ela começa suplicando que ele não leve a sério seu marido. Ela diz que não fez parte da decisão de Nabal de insultar Davi e despachar seus servos de mãos vazias. As jumentas que estão por ali, carregadas com os suprimentos, certamente dão credibilidade à sua afirmação. Ela diz a Davi que o caráter de seu marido é tal qual seu nome, que quer dizer “louco”.

Como é que esta mulher pode chamar seu marido de “louco” e ser tão considerada, como é óbvio em nosso texto? A resposta não é tão difícil. Seu marido é louco. Sem discussão. Seu servo sabe disso (verso 17) e todos os que o conhecem. Mas, em nosso texto, há uma boa razão para Abigail chamá-lo de louco. Talvez seja o que o mantenha vivo. Lembra-se de quando Davi procurou refúgio em Gate, a cidade de Golias? Quando percebeu que sua vida estava em perigo, Davi fingiu ser um lunático. Sem dúvida o rei o teria matado, se pensasse que ele era são. Mas, quando ficou convencido de que Davi estava doido, ele não o matou, somente o expulsou da cidade. Não há honra, nem status em matar gente louca. Fingir-se de louco salvou a vida de Davi. Chamar Nabal de louco pode ter salvo sua vida.

Se Abigail conseguiu convencer Davi de que matar Nabal não valerá o esforço, agora ela insiste em lhe mostrar o quanto a vingança lhe será prejudicial. Ela inicia mostrando a Davi que o Senhor o impediu de derramar sangue e de se vingar com suas próprias mãos (verso 26). Será que ela se refere a este exato momento ou está falando da maneira como Deus o impediu de se vingar de Saul, um capítulo antes? Não tenho certeza. Mas, com estas palavras ela indica que a mão de Deus está em todas as coisas, que Deus está impedindo Davi de derramar sangue inocente e de se vingar. Ela tem certeza de que, se Davi deixar a vingança para Deus, Ele lidará com Nabal da maneira apropriada, assim como com todos os outros que intentarem o mal contra Davi.

Abigail suplica que Davi aceite seu presente e o divida com seus homens. Ela implora que ele perdoe sua transgressão contra ele, como se toda a culpa fosse dela. A seguir, ela tem seu melhor momento. Seu marido, Nabal, despreza Davi como se ele fosse um joão-ninguém, um simples arruaceiro? Pois ela, não. Abigail lhe assegura que ele se tornará o rei de Israel e que seu reino permanecerá. Davi luta as batalhas do Senhor, diz ela, e por isso, nele não será achado mal em todos os seus dias. Se alguém se levantar contra ele para lhe tirar a vida, ele deve saber que sua vida é preciosa para Deus. Por outro lado, a vida de seus inimigos não tem valor. Deus as arrojará como se as atirasse da cavidade de uma funda.

Para Abigail não há dúvida de que Davi será o próximo rei de Israel. A promessa de Deus a ele a esse respeito será cumprida, e Deus o estabelecerá no governo de Israel (verso 30). Que trágico seria para Davi ter uma nuvem negra sobre seu reinado, uma nuvem produzida por uma atitude intempestiva em busca vigança e derramamento de sangue inocente. A Lei de Moisés no Velho Testamento estabelece um princípio de justiça: olho por olho, dente por dente (ver Êxodo 21:24; Levítico 24:20; Deuteronômio 19:22; ver também Mateus 5:38). Nabal insultou Davi. Esse crime é seu. Pelo que é dito, os homens de sua família não fizeram nada de errado para Davi ou seus homens. Matar Nabal e os homens de sua família por ele ser egoísta e ofensivo é derramar sangue inocente, pois o castigo é pior do que o delito.

Abigail assegura a Davi que Deus fará o bem que disse a seu respeito. Se os planos de Deus são para o bem, por que Davi tem tanta intenção em fazer o mal? Sua atitude e seu comportamento não estão de acordo com a vontade e as palavras de Deus. Davi é um homem segundo o coração de Deus, por isso, ele verdadeiramente se arrependerá de todas as coisas que intenciona fazer neste momento. Ele lamentará e sentirá o coração pesado por aquilo que está prestes a fazer. Da mesma forma que sua consciência o acusou quando ele estava na caverna no capítulo 24, ela o acusará novamente. Por que não acabar logo com isso, deixando de lado essa raiva descabida?

Alguns poderiam se perguntar se Abigail ouviu algum comentário sobre o encontro de Davi com Saul naquela caverna, que fica nas proximidades, conforme descrito no capítulo anterior. Se ela ouviu, ela se utiliza daquilo que sabe. Se não, Deus colocou em sua boca as palavras que fazem Davi pensar naquele incidente. Abigail simplesmente incentiva Davi a agir de acordo com seus próprios padrões, com seus princípios, como ele os expressou no capítulo 24. Abigail o encoraja a lidar com Nabal da mesma forma que lidou com Saul. Deixando a vingança para Deus, sem derramar sangue inocente.

Quando Davi se recordar deste incidente e reconhecer que Abigail lidou com ele com sabedoria, ele se lembrará dela. Não creio que ela perceba as implicações do que está dizendo, ou de como Deus em breve a abençoará, dando cabo de Nabal e tornando-a esposa de Davi. Suas palavras soam como as palavras de José, ditas ao copeiro de Faraó em Gênesis 40:14-15.

Bendita Sabedoria
(25:32-35)

Então, Davi disse a Abigail: Bendito o SENHOR, Deus de Israel, que, hoje, te enviou ao meu encontro. Bendita seja a tua prudência, e bendita sejas tu mesma, que hoje me tolheste de derramar sangue e de que por minha própria mão me vingasse. Porque, tão certo como vive o SENHOR, Deus de Israel, que me impediu de que te fizesse mal, se tu não te apressaras e me não vieras ao encontro, não teria ficado a Nabal, até ao amanhecer, nem um sequer do sexo masculino. Então, Davi recebeu da mão de Abigail o que esta lhe havia trazido e lhe disse: Sobe em paz à tua casa; bem vês que ouvi a tua petição e a ela atendi.

As palavras de Abigail soam verdadeiras a Davi. O que ela lhe diz se enquadra em tudo o que Deus tem ensinado a ele. Ele sabe que ela tem razão, e admite isso elogiando-a na frente de seus homens. Davi reconhece que Abigail, literalmente, é uma dádiva de Deus, e que por meio de sua atitude e de suas palavras, Deus o impediu de fazer a coisa errada vigando-se de Nabal, derramando, assim, sangue inocente. Se ela não tivesse agido rapidamente, Davi teria concretizado seu plano. Ela o salvou de agir com estupidez e culpa e, ao mesmo tempo, poupou a vida de seu marido e de todos os homens de sua família. Atendendo ao seu pedido, Davi aceita seu presente e a manda para casa em paz.

Nabal nas Mãos de Deus
(25:36-38)

“Voltou Abigail a Nabal. Eis que ele fazia em casa um banquete, como banquete de rei; o seu coração estava alegre, e ele, já mui embriagado, pelo que não lhe referiu ela coisa alguma, nem pouco nem muito, até ao amanhecer. Pela manhã, estando Nabal já livre do vinho, sua mulher lhe deu a entender aquelas coisas; e se amorteceu nele o coração, e ficou ele como pedra. Passados uns dez dias, feriu o SENHOR a Nabal, e este morreu.”

Totalmente sem noção da estupidez de sua atitude, e do quanto esteve próximo da morte, Nabal está festejando como um rei em sua casa, quando Abigail regressa. Ele está com o coração alegre, o que, provavelmente, só acontece quando está bêbado, como agora. Sabiamente, Abigail não lhe diz nesse momento o que aconteceu durante o dia. Quando amanhece, Nabal acorda com a cabeça mais desanuviada, e então Abigail o informa de tudo o que aconteceu no dia anterior. A cor some do rosto de Nabal quando ele começa a compreender a magnitude de sua loucura. Ele fica paralisado de medo. Nosso texto diz “e se amorteceu nele o coração, e ficou ele como pedra”. Talvez isto signifique que ele tenha tido um ataque do coração. Dez dias depois, o Senhor o fere de morte. Como foi melhor este louco morrer pelas mãos do Senhor do que pelas mãos de Davi.

A Recompensa de Davi e Abigail
(25:39-44)

“Ouvindo Davi que Nabal morrera, disse: Bendito seja o SENHOR, que pleiteou a causa da afronta que recebi de Nabal e me deteve de fazer o mal, fazendo o SENHOR cair o mal de Nabal sobre a sua cabeça. Mandou Davi falar a Abigail que desejava tomá-la por mulher. Tendo ido os servos de Davi a Abigail, no Carmelo, lhe disseram: Davi nos mandou a ti, para te levar por sua mulher. Então, ela se levantou, e se inclinou com o rosto em terra, e disse: Eis que a tua serva é criada para lavar os pés aos criados de meu senhor. Abigail se apressou e, dispondo-se, cavalgou um jumento com as cinco moças que a assistiam; e ela seguiu os mensageiros de Davi, que a recebeu por mulher. Também tomou Davi a Ainoã de Jezreel, e ambas foram suas mulheres, porque Saul tinha dado sua filha Mical, mulher de Davi, a Palti, filho de Laís, o qual era de Galim.”

Davi recebe a notícia de que Nabal está morto. Ele reage com surpresa e gratidão. Ele louva ao Senhor por pleitear sua causa e afastar sua represália contra Nabal. Ele declara que Deus realmente o impediu de fazer o mal. Agora ele percebe como foi melhor deixar a vingança para Deus. O Senhor eliminou Nabal, não Davi. É assim que deve ser, e tudo devido à sabedoria de uma mulher, Abigail.

Mensageiros de Davi chegam à casa de Abigail. Eles têm uma mensagem simples. Não é bem uma proposta de casamento, parece mais como uma convocação: “Davi nos mandou a ti, para te levar por sua mulher.” Não é preciso pedir duas vezes a esta mulher decidida. Rapidamente ela se prosta em terra, aceitando humildemente a proposta. Ela não se considera como rainha de Davi, mas como uma serva, que lavará com alegria os pés de seus servos. Ela se levanta, e acompanhada por cinco de suas criadas, segue os homens de Davi até seu esconderijo, onde se torna sua esposa.

Os versos finais deste capítulo nos informam que Abigail é a segunda mulher de Davi. Ele já havia tomado por esposa a Ainoã de Jezreel. Mical também foi sua esposa, mas na época em que ele se escondia de Saul, o rei a deu por esposa a Palti, o filho de Laís.

Conclusão

Cada um dos personagens principais deste capítulo tem algo a nos ensinar. Vamos concluir observando as lições que podemos aprender de Abigail, Nabal e Davi.

    Abigail

O capítulo 25 de I Samuel parece começar e terminar com comentários casuais sem nenhuma relação entre eles. O verso um diz que Samuel morreu. Nos versos 43 e 44, somos informados que, enquanto Davi ganhou uma segunda esposa, ele perdeu outra (Mical). Não acho que estas observações sejam casuais. Creio que foram incluídas com um propósito específico. Davi sofreu a perda de duas pessoas importantes em sua vida. Samuel foi o profeta de Deus que o ungiu e aquele a quem ele poderia recorrer quando fosse perseguido por Saul (ver 19:18-24). Realmente não sabemos muita coisa sobre Ainoã, a primeira esposa de Davi. Sabemos que era uma Jezreelita, e que foi a mãe de Amnon (II Samuel 3:2), o filho de Davi que violentou sua irmã, Tamar (II Samuel 13). Mical, no entanto, foi a segunda filha oferecida por Saul a Davi como esposa (I Samuel 18), e parece ter havido um amor especial entre eles, pelo menos a princípio (18:20-29). O fato de ela ter sido dada a outro homem como esposa deve ter sido um duro golpe prá Davi.

Pela seqüência dos acontecimentos descritos no capítulo 25, concluo que Deus providencia uma companheira muito sábia para Davi para compensá-lo pela perda de Samuel e Mical. As palavras de Abigail soam praticamente como um eco das profecias de Samuel a respeito de Davi. Sua sabedoria permite que ela seja íntima e conselheira de seu marido. Sua beleza deve ter ido muito além de amenizar a perda de Mical. Modificando a expressão bíblica, temos: ”o SENHOR o tomou e o SENHOR o deu” (ver Jó 1:21). Como a providência de Deus é maravilhosa. É Ele quem cuida de Nabal, muito melhor do que Davi. É Ele quem dá, então, a viúva de Nabal a Davi, uma mulher que ele pode amar e respeitar. Deus fielmente provê as nossas necessidades, no tempo em que Ele sabe que precisamos.

Abigail é uma ilustração (um tipo, se preferir) da providência de Deus para a salvação do homem. Devido à loucura de Nabal, toda a família de Abigail está em perigo. Todos os homens estão condenados à morte. A menos que ela faça alguma coisa, eles serão mortos por Davi. Com sabedoria e humildade, Abigail se apresenta, assumindo a culpa por todos os condenados, oferecendo-se em seu lugar (ver o verso 24). Este não é um retrato, um tipo de nosso Senhor Jesus Cristo? Devido ao pecado de Adão, e ao nosso próprio pecado, todos fomos condenados à morte. O dia do julgamento se aproxima, mas o Senhor Jesus Cristo (que foi totalmente inocente e sem culpa) Se apresentou, levando sobre Si os nossos pecados e a nossa culpa. Ele Se ofereceu em nosso lugar na cruz do Calvário. Ele suportou a pena pelos nossos pecados. E, mediante a fé Nele, podemos entrar na vida eterna. E, Nele, nos tornamos a noiva de Cristo.

Além disso, Abigail ilustra as características da verdadeira submissão. Sem dúvida, esta afirmação o pegará de surpresa. Como uma mulher, que se recusa a consultar o marido, que age contrariamente à sua vontade e à sua ordem, e que o chama de louco, pode ser considerada uma esposa submissa? Gostaria de sugerir que ela parece insubmissa somente na aparência. É claro que ela age independentemente de seu marido. O que ele se recusa a fazer é exatamente o que ela faz. No entanto, em seu íntimo, ela é realmente submissa. Pensar que submissão é mera obediência cega, ou sujeição à vontade e aos desejos de uma autoridade superior, é insuficiente para caracterizar a verdadeira submissão. Verdadeira submissão é buscar eficazmente o bem de outra pessoa, pela sujeição de nossos próprios interesses. A verdadeira submissão está definida em Filipenses 2:

Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há entranhados afetos e misericórdias, completai a minha alegria, de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento. Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.

Abigail não age de forma que pareça ser por interesse pessoal. Seria muito melhor agir como uma esposa perfeita, fazendo exatamente o que Nabal quer. Se ela tivesse simplesmente ficado em casa, servindo outro drinque a Nabal, ela seria “libertada” por Davi. Seu marido inútil teria sido morto, e ela ficaria livre de sua tirania. Abigail é verdadeiramente submissa naquilo que procura salvar seu marido (e todos os outros homens de sua família). Ao procurar salvá-los, ela coloca sua vida em risco. Ela sai, sozinha, para se encontrar com um homem que está disposto e é capaz de matar toda a sua família. Quando ela se encontra com Davi, ela pede que ele lance toda a sua raiva sobre ela, somente sobre ela. Ela é submissa ao agir de maneira que beneficie seu marido, mesmo que seja às suas próprias custas. Não fazer nada (parecendo, assim, submissa), favorecerá a ela às custas de seu marido.

Quero ser muito cuidadoso naquilo que estou dizendo, e naquilo que você pensa que estou dizendo. Na maioria das vezes, a submissão é demonstrada pela obediência a alguma autoridade superior. Na maioria das vezes, nossa submissão é demonstrada quando procuramos honrar alguém a quem estamos sujeitos. Mas há vezes em que a submissão irá se parecer com algo além. Há vezes em que devemos agir de modo contrário aos desejos daquele a quem estamos sujeitos. Isto só pode acontecer quando a vontade de Deus é claramente contraditória à vontade e aos desejos de nosso superior. Isto só pode acontecer quando agirmos de forma que nos seja custosa, mas verdadeiramente benéfica para o outro.

Estou tentanto dizer que esta forma de submissão - a de Abigail - é uma exceção, não a regra. No entanto, há vezes em que procuramos nos consolar “sujeitando-nos” àquilo que é errado, e chamamos a isso de submissão. A submissão cristã sempre se submete primeiro a Deus, e depois aos homens que estão em conformidade com a submissão a Deus. A submissão cristã sempre procura o interesse dos outros acima de seus próprios interesses. E, às vezes, a submissão cristã requer até mesmo agir de modo contrário à vontade e aos desejos daquele a quem estamos sujeitos. Eu disse essas coisas não para que você jogue fora sua definição de submissão, mas para que você a amplie. Tenhamos muito cuidado para não fazer disto um pretexto para o nosso próprio pecado.

Finalmente, aprendamos com Abigail que submissão talvez seja a melhor postura para admoestar e corrigir um irmão crente. Você reparou que Abigail não tenta corrigir Nabal? Tenho a impressão de que seja porque ela já tentou argumentar com ele antes e descobriu que não é sensato tentar corrigir um tolo. Seu servo também sabia disso, conforme indicado por suas palavras. Mas desejo mostrar que Abigail não é apenas submissa a seu marido, ela também é submissa ao seu futuro rei. Como poderia Abigail submeter-se a Deus sem também submeter-se a Davi como futuro rei? Nosso texto deixa bem claro que Abigail, com toda humildade e submissão, procura repreender e admoestar Davi. No momento, ele está de cabeça quente e agindo como tolo. A atitude dela, e suas palavras, o fazem mudar de idéia. E isto acontece devido à sua submissão.

Estar sujeito a outra pessoa (especialmente a outro crente) não é desculpa para fazer vista grossa ao ver alguém agindo de modo contrário à vontade e à Palavra de Deus. Com muita freqüência ouço as pessoas se isentarem do dever fraterno de advertir e repreender alguém porque estão sujeitos a essa pessoa. De acordo com nosso texto, gostaria de sugerir que atitude e conduta submissas sejam a melhor postura para procurar corrigir alguém. Quando procuramos corrigir “de cima para baixo” é muito mais difícil demonstrar humildade e santo temor. Encaremos nossa responsabilidade procurando aquilo que é melhor para os nossos superiores, repreendendo-os quando for necessário, de maneira que continue a demonstrar nossa humildade e submissão.

“Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana. Mas prove cada um o seu labor e, então, terá motivo de gloriar-se unicamente em si e não em outro. Porque cada um levará o seu próprio fardo.”

    Davi

Já mostrei que Davi erra ao buscar recompensa por seus esforços na vida presente, não na eternidade. Ele está disposto a ajudar Nabal, mas só se sentir que isso vale a pena. Quando percebe que Nabal não tem nenhuma intenção de demonstrar gratidão, Davi está pronto a se vingar. Uma vez mais, ele quer se vingar nesta vida em vez de deixar o problema com Deus. Nesse momento, Davi vive para o aqui e agora, não para a eternidade. Os apóstolos do Novo Testamento nos exortam a viver agora à luz da eternidade:

“Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra contra a alma, mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação.”

“Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus.”

A galeria da fé de Hebreus 11 está cheia de homens e mulheres que viveram suas vidas terrenas à luz das promessas de Deus e, desta forma, na certeza das recompensas eternas.

A vida de Abraão é um exemplo de nossa instabilidade como cristãos, da inconstância da nossa fé e obediência. Alguns poderiam pensar que depois das conseqüências dolorosas de fazer Sara se passar por sua irmã no Egito, ele jamais faria isso de novo. No entanto, quando lemos Gênesis 20, vemos que Abraão tinha este artifício acerca de sua esposa como questão de política externa, que ele usava onde quer que fossem (20:13). Os triunfos do passado não garantem as vitórias do futuro. Devemos sempre estar atentos à nossa falibilidade, e sempre depender de Deus, por intermédio de Sua Palavra e de Seu Espírito.

Davi, como todos nós, fracassa na área da “conectividade”. Ele podia ver a “conexão” entre sua fé, as promessas de Deus e sua atitude para com Saul na caverna (capítulo 24). Mas, por alguma razão, os mesmos princípios que o guiaram no capítulo 24 são completamente ignorados no capítulo 25. As sábias palavras de Abigail o raelembram da “conexão” destas verdades com os insultos e a loucura de Nabal. Penso nos apóstolos e líderes da igreja em Jerusalém, conforme descrito em Atos 10 e 11. Eles desceram a lenha em Pedro por ir à casa de um gentio e pregar o evangelho àqueles que estavam ali reunidos. Logo depois chegaram à conclusão de que Deus realmente salvava tanto gentios como judeus (Atos 11:18). No entanto, quando saíam para pregar, continuavam evangelizando apenas os judeus (Atos 11:19). Eles não viam a “conexão” entre a lição dada por Deus e suas vidas. E assim é com cada um de nós.

Davi é um lembrete da maravilhosa graça que Deus nos concede, especialmente (neste capítulo) por Suas intervenções divinas que nos impedem de agir com estupidez. Sabemos que somos salvos somente pela graça de Deus, sem quaisquer obras de nossa parte. Sabemos também que as coisas boas e que são claras em nossa vida são resultados da graça de Deus. Como uma senhora certa vez se exprimiu com bastante entusiasmo: “É tudo de graça.” E é, e, dentre as coisas que fazem parte da graça, está a intervenção divina que nos afasta do pecado e da nossa própria loucura. Não estou dizendo que Deus nos afasta de todos os pecados; estou dizendo que, não fosse a intervenção de Deus em nossos afazeres diários, haveria muito mais pecado do que há. Se fosse deixado por sua conta, Davi teria feito realmente uma grande confusão quando atacasse Nabal e sua casa. Pergunto-me quantas coisas estúpidas faríamos se Deus não bloqueasse nosso caminho, da mesma forma que o anjo de Deus bloqueou o caminho de Balaão. Graças a Deus por Suas intervenções!

Finalmente, aprendemos com Davi sobre sua disposição em aprender com um subordinado. Davi é o homem designado como próximo rei de Israel. Ele tem consigo 600 homens, incluindo Abiatar, o sacerdote, e também a “estola sacerdotal”, pela qual a vontade de Deus pode ser consultada. A despeito de todos estes meios de orientação divina, ele se dispõe a ouvir as palavras desta mulher, Abigail. Davi talvez esteja agindo como tolo, mas, pelo menos, está disposto a reconhecer a sabedoria das palavras de Abigail. Ele a ouve e entende. Ele parece compreender que a verdade nem sempre segue uma ordem hierárquica. Algumas pessoas só ouvirão alguém que tenha autoridade sobre elas. Elas pensam que não podem aprender com um subordinado. Muitos maridos não conseguem compreender que a sabedoria de Deus pode lhes ser transmitida através de suas esposas, e até mesmo de seus filhos. Devemos reconhecer que a sabedoria e os dons espirituais não correspondem, necessariamente, ao posto ou ao lugar de alguém na cadeia de comando. Vamos aprender a reconhecer a sabedoria e a recebê-la de qualquer fonte usada por Deus.

    Nabal

Nabal representa grande parte daquilo que há de pior nos homens. Ele é arrogante e autosuficiente. Não reconhece que sua prosperidade vem de Deus. Ele julga os homens por padrões externos, tais como seus antepassados e sua popularidade. Ele não dá valor à sabedoria e não ouvirá aqueles que poderiam poupá-lo de muitos problemas, e até mesmo salvar sua vida. Ele não dá valor à sua esposa e à sabedoria que Deus lhe deu. Ele acha que a riqueza é a medida de um homem e, desta forma, sente que não precisa de ninguém além de si mesmo. Ele é um homem que não tem a mínima noção da destruição que jaz à sua frente. Nabal é o pior tipo de homem que existe. Ele é totalmente carente da graça de Deus, mas completamente confiante naquilo que pode fazer por si mesmo. Nabal não é capaz, e nem o será, de reconhecer o rei de Deus quando o vir, nem quando lhe for apresentado. Nabal é um homem destinado à morte.

Nabal é o que há de pior, e Davi também não tão parece bom, exceto pelo ministério de Abigail. Vamos considerar o valor desta mulher por sua sabedoria, e dar a ela a honra que ela merece:

“Enganosa é a graça, e vã, a formosura, mas a mulher que teme ao SENHOR, essa será louvada. Dai-lhe do fruto das suas mãos, e de público a louvarão as suas obras.”

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