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7. A Constituição do Primeiro Rei de Israel (I Sam. 9:1 - 11:13)

Introdução

Há mais de quarenta anos atrás, meus pais moravam num pequeno povoado que tinha vista para Puget Sound, no Estado de Washington (a vista era tão espetacular que meu pai construiu uma ala da casa no alto da colina, de frente para a paisagem e para a estrada). Um domingo à tarde, enquanto meus pais estavam tirando uma soneca, minha irmã e eu brincávamos junto à estrada, quando um carro parou ao nosso lado e o motorista perguntou se tínhamos visto um porco. Ele nos contou que o porco dera um jeito de escapar de seu cercado e estava andando à solta em algum lugar das proximidades. Decidindo que a caça ao porco seria uma grande atividade para a tarde, minha irmã e eu entramos no carro para ajudar a procurar o porco.

O motorista nos avisou que a serra no assoalho traseiro acabara de ser afiada, mas o aviso veio tarde demais. Minha irmã já passara a perna nos dentes afiados, produzindo vários cortes profundos. O motorista entrou em pânico, enrolando um trapo nada esterilizado em seu tornozelo para diminuir o sangramento. O hospital mais próximo ficava a 8 ou 10 milhas de distância, e ele nos levou para lá tão rápido quanto pôde. Foi do hospital que liguei para meus pais, que ainda dormiam. Pensando que Ruth e eu estávamos ali fora, eles levaram um choque ao saber que eu estava ligando do hospital e que minha irmã tinha um grande número de pontos na perna.

Essa foi uma caçada ao porco que saiu às avessas. Aquilo que parecia ser uma aventura excitante revelou-se não apenas uma aventura mal sucedida, mas extremamente dolorosa e dispendiosa. Nosso texto nos fala de uma caçada que acabou saindo exatamente o contrário. Ela começa com várias jumentas vagando perdidas, com Saul e seu servo em seu encalço. De fato, eles jamais encontraram os animais perdidos, mas, como veremos, a jornada em busca destes animais errantes bem valeu o esforço. Aquilo que talvez tenha começado como uma tarefa quase irritante termina com uma revelação que deve ter feito a cabeça de Saul girar de surpresa e excitação.

O estado de ânimo da maioria dos Israelitas é de grande expectativa. Os anciões da nação, fortemente apoiados pelo povo, tinham vindo a Samuel para exigir um rei que os governasse, como em todas as nações ao seu redor. Samuel não se agrada. Ele sente que isto não foi movido por fé e obediência a Deus, e Deus confirma suas suspeitas enquanto o conforta da afronta feita pela exigência dos anciões. Como no passado, os Israelitas ainda se voltam para os ídolos. O povo não está rejeitando Samuel como juiz; eles estão rejeitando a Deus como seu rei. A despeito de seu pecado em pedir um rei, Deus instrui Samuel a avisar o povo sobre os altos custos de um rei, informando-os a seguir que eles realmente terão um rei (8:22).

Esquecidos dos avisos e da seriedade de seu pecado, os Israelitas ficam empolgados com seu futuro rei. Como Deus já instruíra em Deuteronômio 17:15, o rei deve ser alguém de Sua escolha. Certamente isto significa que Samuel será aquele que nomeará o escolhido de Deus. Todos os olhos estão sobre Samuel. Cada homem que cruza o caminho deste juiz e profeta é visto como candidato a rei. Não é de estranhar que o tio de Saul esteja tão interessado naquilo que Samuel tem a lhe dizer (10:14-16).

Ninguém jamais teria imaginado como Deus faria conhecida Sua escolha. Os capítulos 9 a 11 de I Samuel nos dizem. Os acontecimentos destes três capítulos têm um propósito muito importante, pois demonstram enfaticamente que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, e que Deus o capacitou totalmente para desempenhar esta tarefa. Os acontecimentos do capítulo 9 deixam claro a Samuel que Saul é o escolhido de Deus. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que devem convencer Saul de que ele é escolhido de Deus. E os capítulos 10 e 11 registram o sorteio, a designação de Saul, e a grande vitória militar sobre Naás e os amonitas, que convencem os Israelitas de que Saul é seu rei. Estas três passagens da transmissão de cargo podem ser ilustradas desta maneira:

9:1 9:17

Para o benefício de Samuel

9:1 9:18 10:9

Para o benefício de Saul

9:1 10:10 11:13

Para o benefício de Israel

Samuel Entende a Mensagem: Saul Será o Rei de Israel
(9:1-17)

Havia um homem de Benjamim, cujo nome era Quis, filho de Abiel, filho de Zeror, filho de Becorate, filho de Afias, benjamita, homem de bens. Tinha ele um filho cujo nome era Saul, moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo. Extraviaram-se as jumentas de Quis, pai de Saul. Disse Quis a Saul, seu filho: Toma agora contigo um dos moços, dispõe-te e vai procurar as jumentas. Então, atravessando a região montanhosa de Efraim e a terra de Salisa, não as acharam; depois, passaram à terra de Saalim; porém elas não estavam ali; passaram ainda à terra de Benjamim; todavia, não as acharam. Vindo eles, então, à terra de Zufe, Saul disse para o seu moço, com quem ele ia: Vem, e voltemos; não suceda que meu pai deixe de preocupar-se com as jumentas e se aflija por causa de nós. Porém ele lhe disse: Nesta cidade há um homem de Deus, e é muito estimado; tudo quanto ele diz sucede; vamo-nos, agora, lá; mostrar-nos-á, porventura, o caminho que devemos seguir. Então, Saul disse ao seu moço: Eis, porém, se lá formos, que levaremos, então, àquele homem? Porque o pão de nossos alforjes se acabou, e presente não temos que levar ao homem de Deus. Que temos? O moço tornou a responder a Saul e disse: Eis que tenho ainda em mãos um quarto de siclo de prata, o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho. (Antigamente, em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia: Vinde, vamos ter com o vidente; porque ao profeta de hoje, antigamente, se chamava vidente.) Então, disse Saul ao moço: Dizes bem; anda, pois, vamos. E foram-se à cidade onde estava o homem de Deus. Subindo eles pela encosta da cidade, encontraram umas moças que saíam a tirar água e lhes perguntaram: Está aqui o vidente? Elas responderam: Está. Eis aí o tens diante de ti; apressa-te, pois, porque, hoje, veio à cidade; porquanto o povo oferece, hoje, sacrifício no alto. Entrando vós na cidade, logo o achareis, antes que suba ao alto para comer; porque o povo não comerá enquanto ele não chegar, porque ele tem de abençoar o sacrifício, e só depois comem os convidados; subi, pois, agora, que, hoje, o achareis. Subiram, pois, à cidade; ao entrarem, eis que Samuel lhes saiu ao encontro, para subir ao alto. Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim. Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo.

Ainda que os acontecimentos deste texto sejam para o benefício de Saul e de todo Israel, seu benefício primário é para Samuel. Afinal de contas, por instrução de Deus, Samuel prometeu um rei a Israel, e agora ele deve compreender exatamente quem pode ser esse rei. Os acontecimentos de nosso texto levam Saul ao contato com Samuel de um jeito que faz este profeta ter certeza de que ele é o escolhido de Deus.

Quis, o pai de Saul, é um homem de certa reputação da tribo de Benjamim. Nosso texto nos informa que ele é um homem de bens (9:1). Esta expressão pode ser entendida como se referindo à coragem de um homem, seu sucesso e suas habilidades militares, ou mesmo à sua riqueza. Por uma razão ou outra, ele é um homem de renome. Saul vem de uma boa descendência. E ainda que Saul não tenha estabelecido sua própria reputação, ele tem todos os atributos físicos que o tornarão extremamente útil ao povo. Em resumo, ele é aquilo que nossas adolescentes chamariam de um gato. É alto (mais alto quer qualquer outro Israelita), moreno (como as pessoas daquela parte do mundo - e, uma vez que ele trabalha no campo, deveria ter um bronzeado espantoso), e lindo. No entanto, será necessário muito mais do que isto para que Saul cumpra seu chamado como rei.

E assim é que alguns animais do rebanho de Quis se perdem. Não sabemos como as jumentas se soltaram, mas, de alguma forma elas fugiram de sua fazenda. Quis manda seu filho, Saul, atrás dos animais perdidos, instruindo-o a levar consigo um dos servos para ajudar. Os dois partem para uma busca mal sucedida, até que as jumentas perdidas se transformam numa preocupação, mas algo que, de certa forma, acaba sendo proveitoso. Nos três dias seguintes eles cobrem uma grande área, mas não encontram as jumentas. Saul está prestes a jogar a toalha e desistir de tudo. Com toda a certeza seu pai começará a se preocupar mais com eles do que com as jumentas.

O jovem servo de Saul não tem tanta certeza. Ele sabe que chegaram muito próximo do lugar onde vive o homem de Deus. Parece que nem o servo, nem Saul conhecem este homem de Deus pelo nome, e que o servo sabe muito mais sobre ele do que Saul. Este homem de Deus é um vidente, nome antigamente usado para designar um profeta. O servo conhece Samuel por sua reputação, não pelo nome. Ele é um homem muito estimado, cujas palavras se cumprem - um verdadeiro profeta. Talvez possam lhe perguntar sobre sua jornada e descobrir o paradeiro das jumentas.

Saul parece gostar da idéia, mas levanta um problema muito prático - eles não têm nada para oferecer ao vidente. Suas reservas estão completamente vazias. Eles consumiram todos os seus suprimentos e sequer têm pão para comer. Como podem solicitar seus serviços sem nada lhe oferecer em troca? O servo também tem solução para este problema. Ele tem uma moeda que prata que será suficiente. Com este incentivo, Saul consente em pedir ajuda ao homem de Deus, ao que parece, completamente esquecido de quem ele é ou a que isto pode levar.

Quando Saul e o servo alcançam as imediações da cidade, encontram algumas jovens indo buscar água, e indagam se o vidente está lá. Elas dizem que o homem realmente está lá e que, se eles se apressarem, podem pegá-lo enquanto ainda está disponível. Ele está para abençoar o sacrifício e então celebrar a refeição com alguns convidados. Logo que tudo comece, Saul e seu servo terão que esperar algum tempo, uma vez que não são convidados e não ousariam interromper o sacrifício e a celebração. Este é o momento certo, mas precisam se apressar.

Saul e seu servo continuam subindo em direção à cidade. Quando se aproximam, Samuel os vê chegando. É neste ponto que encontramos outro parêntese, descrito nos versos 15 e 16. Do ponto de vista meramente humano, a chegada de Saul é improvável (eles vagueavam por lá, mal sucedidos em encontrar os animais perdidos, e agora estão sem comida e ansiosos por voltar prá casa). Do ponto de vista das jovens, eles estavam com sorte. Do ponto de vista divino eles eram esperados, como veremos a seguir. Um dia antes Deus falou com Samuel, indicando que ele encontraria o novo rei no dia seguinte. Será alguém da tribo de Benjamim e deve ser ungido por Samuel. Este rei é um gracioso presente de um Deus misericordioso, que ouviu o clamor de Seu povo e está levantando este homem para livrar Israel das mãos dos filisteus. Quando Samuel levanta os olhos e vê Saul e seu servo chegando à cidade, Deus lhe diz que este é o homem. Dessa forma Samuel sabe que aquele que vem em sua direção é o escolhido de Deus como rei de Israel.

Saul é Informado e Transformado
(9:17 - 10:9)

Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo. Saul se chegou a Samuel no meio da porta e disse: Mostra-me, peço-te, onde é aqui a casa do vidente. Samuel respondeu a Saul e disse: Eu sou o vidente; sobe adiante de mim ao alto; hoje, comereis comigo. Pela manhã, te despedirei e tudo quanto está no teu coração to declararei. Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? Então, respondeu Saul e disse: Porventura, não sou benjamita, da menor das tribos de Israel? E a minha família, a menor de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com tais palavras? Samuel, tomando a Saul e ao seu moço, levou-os à sala de jantar e lhes deu o lugar de honra entre os convidados, que eram cerca de trinta pessoas. Então, disse Samuel ao cozinheiro: Traze a porção que te dei, de que te disse: Põe-na à parte contigo. Tomou, pois, o cozinheiro a coxa com o que havia nela e a pôs diante de Saul. Disse Samuel: Eis que isto é o que foi reservado; toma-o e come, pois se guardou para ti para esta ocasião, ao dizer eu: Convidei o povo. Assim, comeu Saul com Samuel naquele dia. Tendo descido do alto para a cidade, falou Samuel com Saul sobre o eirado. Levantaram-se de madrugada; e, quase ao subir da alva, chamou Samuel a Saul ao eirado, dizendo: Levanta-te; eu irei contigo para te encaminhar. Levantou-se Saul, e saíram ambos, ele e Samuel. Desciam eles para a extremidade da cidade, quando Samuel disse a Saul: Dize ao moço que passe adiante de nós, e tu, tendo ele passado, espera, que te farei saber a palavra de Deus. Tomou Samuel um vaso de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Não te ungiu, porventura, o SENHOR por príncipe sobre a sua herança, o povo de Israel? Quando te apartares, hoje, de mim, acharás dois homens junto ao sepulcro de Raquel, no território de Benjamim, em Zelza, os quais te dirão: Acharam-se as jumentas que foste procurar, e eis que teu pai já não pensa no caso delas e se aflige por causa de vós, dizendo: Que farei eu por meu filho? Quando dali passares adiante e chegares ao carvalho de Tabor, ali te encontrarão três homens, que vão subindo a Deus a Betel: um levando três cabritos; outro, três bolos de pão, e o outro, um odre de vinho. Eles te saudarão e te darão dois pães, que receberás da sua mão. Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.

Enquanto Samuel sabe que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, Saul não tem este conhecimento. A próxima seção é amplamente dedicada ao processo usado por Deus para informar e transformar Saul como novo rei. Fica evidente pelo nosso texto que Saul não conhece Samuel. Quando chega à entrada da cidade, Saul se volta para a primeira pessoa que vê e pergunta o caminho para a casa do vidente. Samuel é aquele a quem Saul faz a pergunta. Ele o informa que é o vidente. Antes mesmo de Saul poder deixar escapar sua pergunta, Samuel lhe diz palavras que ele nunca pensou que ouviria. Samuel o instrui a subir à sua frente ao alto, onde o sacrifício e a refeição cerimonial estão prestes a serem realizados. Saul deve comer com Samuel nesse dia, e depois passar a noite. Na manhã seguinte Samuel lhe dirá tudo quanto está no seu coração e depois o despedirá. Tendo dito isto, Samuel prossegue dizendo algo que deve deixar Saul espantado: Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? (9:20)

Saul nem mesmo tem que fazer a pergunta, pois Samuel já sabe o que ele quer saber. Sem Saul nem mesmo perguntar, Samuel lhe diz o que está faltando, há quanto tempo estão procurando, e o que foi encontrado. Se isto surpreende Saul, mais surpresas ainda estão por vir. Samuel disse a Saul que lhe contaria tudo quanto estava em seu coração... no dia seguinte (verso 19). Se esta questão das jumentas perdidas não é o que está em seu coração, então, o que é? Creio que são as coisas ditas a seguir por Samuel a Saul, no verso 20: E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? As palavras que Saul diz em resposta a Samuel, registradas no verso 21, são a essência daquilo que Saul terá em seu coração a partir de agora, uma vez que a questão das jumentas já foi resolvida. O que significam as palavras de Samuel? E por que Samuel as diz a Saul? Como pode ser isto, se ele nem mesmo é de uma tribo ou família importante? Creio que isto seja o que Samuel coloca na cabeça de Saul, e que ele explicará mais detalhadamente na manhã seguinte. E assim será.

Samuel, Saul e seu servo seguem seu caminho para o alto, onde Samuel lhes dá o lugar de honra à cabeceira da mesa dos convidados. Samuel é um homem de fé. Quando Deus o informa que o rei virá no dia seguinte (9:16), ele deixa reservado para Saul o lugar do convidado de honra na refeição cerimonial (9:23-24). Ele separou uma porção escolhida, dizendo ao cozinheiro para servi-la quando instruído a fazê-lo (tão logo surgisse o rei prometido). Quando Saul e seu servo se assentam, Samuel instrui o cozinheiro a trazer a porção que estava reservada, à espera de sua chegada. O homem que parece ser um visitante inesperado é, na realidade, esperado, e nenhum outro senão o convidado de honra.

Há mais uma conversa entre Samuel e Saul sobre o eirado antes que Saul se prepare para a noite. Logo cedo na manhã seguinte, Samuel desperta Saul para despachá-lo em particular antes que o povo esteja circulando e observando com grande curiosidade e interesse. Quando eles estão deixando a cidade, Samuel instrui Saul a enviar seu servo adiante para que possa lhe falar em particular. Quando ele faz isto, Samuel toma seu vaso de azeite e unge sua cabeça, beijando-o, e informando que Deus de fato o escolheu para governar sobre todo Israel.

Sem dúvida, esta é uma bomba para Saul. Pelos acontecimentos dos dias anteriores e pelas misteriosas afirmações que Samuel lhe fez, era evidente que ele só poderia estar falando de Saul como o futuro rei. Mas agora não há lugar para mal-entendidos. As palavras e as ações de Samuel (a unção) deixam muito claro que Saul foi designado e ungido para ser o rei. Mas Saul é um homem que precisa de algum convencimento (ver 10:22). Então Samuel profetiza a respeito dos acontecimentos que ocorrerão nas próximas horas. Primeiro, na estrada para o túmulo de Raquel, eles encontrarão dois homens que os informarão sobre aquilo que Samuel já lhes dissera, ou seja, que as jumentas perdidas foram encontradas, e que o pai de Saul estava agora preocupado com seu filho.

Mais adiante, quando alcançarem o carvalho de Tabor, irão encontrar três homens subindo para adorar a Deus em Betel. Um dos homens terá três cabritos, o outro três pedaços de pão, e o terceiro um odre de vinho. Estes três não somente saudarão a Saul e seu servo, eles lhes darão dois pedaços de pão, que eles devem pegar. Este pão servirá como mantimento pelo restante do caminho prá casa.

Os versos 14 a 16 do capítulo 10 são parte da confirmação particular de Deus a Saul de sua escolha como rei de Israel. O escritor descreve os acontecimentos seguintes ao encontro de Saul com Samuel em ordem cronológica; assim, a chegada de Saul em sua casa, e seu diálogo com o tio, vêm depois dele se tornar profeta por algum tempo (versos 10-13). Mas, para seguir com o argumento, a conversa com o tio é parte da confirmação particular de Saul.

Quando Saul chega em casa, seu tio lá está para saudá-lo e questioná-lo sobre o que ele fez nos últimos dias. Saul dá apenas um resumo dos fatos, para que a questão da sua unção não seja levantada ou discutida. Talvez o silêncio de Saul tenha apenas estimulado seu tio, pois, certamente ele está interessado no que aconteceu, especialmente por saber que Saul se encontrou com Samuel. Saul está disposto a lhe dizer somente a parte referente às jumentas; assim, terá que ser Samuel aquele que apresentará publicamente Saul como rei de Israel, o que acontece na próxima seção.

O Rei é Apresentado a Israel
(10:10 - 11:13)

Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas? E, tendo profetizado, seguiu para o alto. Perguntou o tio de Saul, a ele e ao seu moço: Aonde fostes? Respondeu ele: A buscar as jumentas e, vendo que não apareciam, fomos a Samuel. Então, disse o tio de Saul: Conta-me, peço-te, que é o que vos disse Samuel? Respondeu Saul a seu tio: Informou-nos de que as jumentas foram encontradas. Porém, com respeito ao reino, de que Samuel falara, não lho declarou. Convocou Samuel o povo ao SENHOR, em Mispa, e disse aos filhos de Israel: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Fiz subir a Israel do Egito e livrei-vos das mãos dos egípcios e das mãos de todos os reinos que vos oprimiam. Mas vós rejeitastes, hoje, a vosso Deus, que vos livrou de todos os vossos males e trabalhos, e lhe dissestes: Não! Mas constitui um rei sobre nós. Agora, pois, ponde-vos perante o SENHOR, pelas vossas tribos e pelos vossos grupos de milhares. Tendo Samuel feito chegar todas as tribos, foi indicada por sorte a de Benjamim. Tendo feito chegar a tribo de Benjamim pelas suas famílias, foi indicada a família de Matri; e dela foi indicado Saul, filho de Quis. Mas, quando o procuraram, não podia ser encontrado. Então, tornaram a perguntar ao SENHOR se aquele homem viera ali. Respondeu o SENHOR: Está aí escondido entre a bagagem. Correram e o tomaram dali. Estando ele no meio do povo, era o mais alto e sobressaía de todo o povo do ombro para cima. Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa. Também Saul se foi para sua casa, a Gibeá; e foi com ele uma tropa de homens cujo coração Deus tocara. Mas os filhos de Belial disseram: Como poderá este homem salvar-nos? E o desprezaram e não lhe trouxeram presentes. Porém Saul se fez de surdo. Então, subiu Naás, amonita, e sitiou a Jabes-Gileade; e disseram todos os homens de Jabes a Naás: Faze aliança conosco, e te serviremos. Porém Naás, amonita, lhes respondeu: Farei aliança convosco sob a condição de vos serem vazados os olhos direitos, trazendo assim eu vergonha sobre todo o Israel. Então, os anciãos de Jabes lhe disseram: Concede-nos sete dias, para que enviemos mensageiros por todos os limites de Israel e, não havendo ninguém que nos livre, então, nos entregaremos a ti. Chegando os mensageiros a Gibeá de Saul, relataram este caso ao povo. Então, todo o povo chorou em voz alta. Eis que Saul voltava do campo, atrás dos bois, e perguntou: Que tem o povo, que chora? Então, lhe referiram as palavras dos homens de Jabes. E o Espírito de Deus se apossou de Saul, quando ouviu estas palavras, e acendeu-se sobremodo a sua ira. Tomou uma junta de bois, cortou-os em pedaços e os enviou a todos os territórios de Israel por intermédio de mensageiros que dissessem: Assim se fará aos bois de todo aquele que não seguir a Saul e a Samuel. Então, caiu o temor do SENHOR sobre o povo, e saíram como um só homem. Contou-os em Bezeque; dos filhos de Israel, havia trezentos mil; dos homens de Judá, trinta mil. Então, disseram aos mensageiros que tinham vindo: Assim direis aos homens de Jabes-Gileade: Amanhã, quando aquentar o sol, sereis socorridos. Vindo, pois, os mensageiros, e, anunciando-o aos homens de Jabes, estes se alegraram e disseram aos amonitas: Amanhã, nos entregaremos a vós outros; então, nos fareis segundo o que melhor vos parecer. Sucedeu que, ao outro dia, Saul dividiu o povo em três companhias, que, pela vigília da manhã, vieram para o meio do arraial e feriram a Amom, até que se fez sentir o calor do dia. Os sobreviventes se espalharam, e não ficaram dois deles juntos. Então, disse o povo a Samuel: Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Trazei-os para aqui, para que os matemos. Porém Saul disse: Hoje, ninguém será morto, porque, no dia de hoje, o SENHOR salvou a Israel.

Finalmente Saul e seu servo alcançam o monte de Deus, onde a tropa dos filisteus está acampada, e onde ocorre o terceiro sinal. O terceiro sinal é diferente dos dois primeiros em pelo menos duas coisas. Primeiro, é testemunhado publicamente e, pelo menos parcialmente compreendido como algo importante. Já fomos informados sobre a profecia que Samuel deu a Saul a respeito dos dois homens que ele encontraria e depois dos três homens a caminho de Betel, mas não temos um relato completo de como estas coisas ocorrem. Apenas temos a informação geral de que todos esses sinais se deram naquele mesmo dia (10:9). Mas, quando chega a terceira profecia - aquela que fala sobre o Espírito vindo sobre Saul - temos um relato que inclui o impacto que isto tem sobre a nação. Os dois primeiros sinais são quase inteiramente para o benefício exclusivo de Saul. Somente a ele foi dito que estas coisas aconteceriam. Qualquer um que presenciasse o cumprimento destas duas profecias não entenderia que são sinais, pois ignoraria sua predição detalhada. Mas este terceiro sinal é algo que chama a atenção do povo, tanto que se transforma em provérbio.

Segundo, o que acontece a Saul no monte de Deus não é normal, é sobrenatural. O Espírito de Deus desce sobre ele e ele profetiza, junto com aqueles que são conhecidos como profetas. Não há dúvida por parte daqueles que testemunham este acontecimento surpreendente - Saul está entre os profetas. Então, por que isto é importante? É importante porque é uma demonstração pública de que Deus capacitou Saul para julgar a nação. Em Êxodo 18, Jetro, o sogro de Moisés, o aconselha a distribuir o peso do trabalho de julgar a nação. A indicação daqueles 70 juízes é descrita em Números 11, onde todos os 70 profetizam diante dos olhos da nação, demonstrando que o Espírito de Deus está sobre eles, capacitando-os a servirem como juízes. A mesma coisa está acontecendo agora com Saul. O Espírito de Deus veio sobre ele, capacitando-o a julgar a nação como seu rei. Este acontecimento é claramente sobrenatural, e é público. De fato, a mudança de Saul se torna proverbial, para que mesmo aqueles que não testemunhem este sinal possam ouvir falar sobre ele. Esta é a primeira indicação pública de que Saul deve ser o rei de Israel.

A próxima indicação será muito mais notória. Samuel convoca todo o Israel a Mispa (o lugar onde se arrependeram e se voltaram para Deus no início do ministério de Samuel - ver capítulo 7), onde ele se defronta com uma audiência muito ansiosa. Em todo o seu entusiasmo e otimismo pelo que está por vir, Samuel uma vez mais relembra aos Israelitas que sua exigência por um rei é uma manifestação de desobediência e incredulidade. Samuel indica que isto foi (no capítulo 8), e ainda é neste mesmo dia, uma rejeição a Deus. Este Deus, que eles trocaram por um rei humano, é o Único que os livra de todas as suas dificuldades. Não é o seu novo rei quem os livrará delas, pois foi Deus quem sempre os livrou, e quem continuará a livrá-los. A despeito do pecado de Israel, Deus está prestes a lhes dar graciosamente o rei que estão exigindo.

O rei, como visto em Deuteronômio 17:15, deve ser um homem da escolha de Deus, e esta escolha será indicada por sorteio. A primeira restrição é para a linhagem de Benjamim e então, finalmente, para Saul, exatamente aquele que Deus já indicou previamente a Samuel, aquele que Samuel já ungiu como rei. Mas este processo é para o benefício das pessoas da nação, para que sejam convencidos de que Saul é o escolhido de Deus.

Quando Saul é indicado por sorteio, ele não pode ser encontrado em parte alguma. Ninguém parece saber dele ou de seu paradeiro. É por meio de mais uma indagação ao Senhor que Ele indica que Saul está escondido entre a bagagem. O povo corre até lá, encontra Saul e o traz a Samuel. Quando as pessoas olham para Saul, ficam muito impressionadas. Eis um homem que já sabemos que é muito bonito (9:2), e uma vez mais é dito que ele é mais alto que qualquer outro israelita. De fato, Saul é o Golias de Israel, um gigante, e, fora isto, um homem extremamente atraente. De uma perspectiva meramente física, Saul é material de primeira.

Samuel mostra ao povo o que a escolha extremamente agradável de Deus faz. Deus não faz e não dá nenhuma tranqueira. Saul é um magnífico espécimen humano. Ninguém poderia ter pedido melhor. E assim o povo começar a gritar: Viva o rei!’ (verso 24). Neste ponto Samuel esclarece todas as regras que fazem parte do governo real, escrevendo isto num livro que coloca diante de Deus. E então despede o povo para casa.

Da mesma forma, Saul vai para sua casa, acompanhado por um grupo de homens valentes cujos corações Deus tocou. Estes homens parecem ser algo como o serviço secreto de Saul, acompanhando-o aonde quer que vá, protegendo-o de qualquer um que possa querer prejudicá-lo. Estes valentes são mais uma evidência de que Saul, de fato, é o escolhido de Deus como rei de Israel.

No entanto, nem todo o povo entende desta forma, pois nosso texto nos informa que há um grupo - de desordeiros - que não vê Saul como seu libertador. Será que estes homens conhecem o velho Saul tão bem? Eles o desdenham por ter se escondido em meio à bagagem? Ele não é o seu tipo de líder? Realmente não sabemos porque eles olham Saul com desprezo, mas seu pecado mais grave é duvidar e discutir a escolha de Deus. Enquanto todos os outros trazem presentes para Saul, estes desordeiros não. Seu desdém por Saul é óbvio. Todavia, Saul prefere ficar em silêncio e não fazer nada com eles por enquanto. No entanto, eles aparecerão outra vez em nosso texto.

O que os israelitas realmente querem é um rei que os livre de seus inimigos. Eles querem um rei que vá adiante deles na guerra (8:19-20). E, especificamente, eles querem um rei que lide com Naás, o rei dos amonitas (12:12). A prova da realeza de Saul será conclusiva se ele puder liderá-los na guerra com sucesso. O capítulo 11 é justamente sobre tudo isto.

Naás, o rei amonita, sitiou a cidade israelita de Jabes-Gileade. O povo está prestes a desistir e pedir a Naás que declare seus termos de paz. As pessoas de Jabes-Gileade estão dispostas a lhe serem sujeitas; eles parecem realmente não ter escolha. Mas os termos de paz do rei são severos. Ele não apenas quer que a cidade israelita se renda, mas insiste em vazar o olho direito de cada um deles. Isto causará pelo menos duas coisas: 1) humilhará os israelitas; 2) os incapacitará, fazendo com que lutem com grande dificuldade. (Já tentou apontar uma arma ou mirar um arco e flecha sem o olho direito?)

O povo de Jabes pede a Naás sete dias para pedir auxílio a seus irmãos judeus. Se ninguém vier em seu socorro, eles prometem que se sujeitarão a ele. Mensageiros são enviados por todo o Israel, pedindo auxílio. Parece que nada está sendo feito, e que ninguém pretende se envolver. Mas, finalmente, a mensagem chega a Gibeá de Saul, e quando chega, o povo daquela cidade começa a chorar. Saul está vindo do campo e observa o lamento e pergunta o que aconteceu. Quando lhe dizem, fica furioso. Ele mata uma junta de bois (seus bois, ou de algum espectador indiferente?), parte-os em pedaços e envia os pedaços por todo o território de Israel, avisando que, qualquer um que se recuse a se reunir para a guerra, encontrará seus bois mortos da mesma forma. Parece que alguns estavam se desculpando em vir em auxílio de seus irmãos por não poderem se ausentar de suas fazendas naquele momento. As ações de Saul deixam claro que eles não terão nada com que trabalhar em suas fazendas se eles se recusarem a ajudar seus irmãos. Ele ameaça lhes tirar o equivalente a seus tratores.

Um grandioso montante de 300.000 soldados se reúne, 30.000 dos quais são homens de Judá. Uma mensagem é enviada ao povo de Jabes, assegurando-lhes que a ajuda está a caminho. Os homens de Jabes informam a Naás que no dia seguinte irão se entregar. Naás acha que isto significa que eles pretendem se render. O povo de Jabes espera que isto signifique que irão se entregar à luta. E assim, quando os irmãos israelitas atacam os amonitas no dia seguinte, eles realmente se entregam lutando, e o resultado é uma derrota devastadora dos amonitas. Como o texto indica não ficaram dois deles juntos (verso 11).

Saul vira herói num instante. Uma coisa para Saul é estar entre os profetas; ainda outra coisa é ele ser escolhido rei por sorteio. Mas, quando ele é aquele que pode reunir toda a nação e assim derrotar os amonitas, esta é toda a prova que o povo precisa ou quer. E agora, o povo pergunta, Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Deixem que sejam trazidos à frente e tratados por nós!

O momento mais admirável de Saul não é ao reunir a nação para a guerra, nem ao obter a impressionante vitória sobre os amonitas. Seu momento mais admirável é quando trata daqueles de seu próprio povo que falaram contra ele. Saul pode se vingar, e assim fazendo, trazer grande contentamento ao povo, assim como a si mesmo. Mas Saul se recusa a arrefecer o entusiasmo do dia com tal atitude. Foi o Senhor quem salvou a Israel (verso 13), e assim Saul não levantará a mão contra aqueles que desdenharam dele. Israel verdadeiramente tem seu rei, e alguém bom nisso.

Conclusão

Esta última observação provavelmente é a mais inesperada, ou seja, Saul é um bom rei. Infelizmente, antes disso eu só havia considerado Saul em retrospectiva. Não podia olhar para Saul sem primeiro pensar em Davi. E quando pensava em Saul à luz de Davi, Saul sempre ficava em segundo plano, e com boas razões. Além disso, descobri que sou culpado de ver o início de Saul como rei de Israel apenas sob a luz de seus últimos dias, dias que o colocaram sob uma luz bem obscura.

No entanto, se tomarmos este texto como ele se apresenta, precisamos olhar de modo diferente para Saul, à luz dos seguintes fatos: 1) Saul é um gracioso presente de Deus a Seu povo, a despeito de sua exigência pecaminosa em ter um rei. Deus dá Saul a Israel como seu rei por misericórdia e compaixão, pois notou as calamidades e o sofrimento da nação, e mandou Saul livrar o povo, da mesma forma que fez desde o êxodo (9:16; 10:18). 2) Saul não é dado a Israel porque Deus quer que ele fracasse, escolhendo assim a pior espécie humana possível para dar à nação como rei. Deus escolhe um homem fisicamente superior, cuja aparência e estatura parecem se ajustar perfeitamente à tarefa que lhe está sendo dada. 3) Deus sobrenaturalmente capacita Saul, colocando nele Seu Espírito, para habilitá-lo a julgar e a liderar com sabedoria e poder. Qualquer fraqueza que Saul tenha como homem, Deus a trata sobrenaturalmente, para que ele se torne um outro homem (ver 10:6, 9). 4) E, finalmente, Deus identifica Saul de tal forma que ninguém, exceto alguns tolos desordeiros, negam que ele seja o rei indicado.

Deus não está tentando sabotar o reinado de Saul, ainda que certamente Ele saiba que seu reinado fracassará. As falhas de Saul não são devido à sabotagem de Deus, mas ao seu fracasso pessoal em andar nos caminhos de Deus, ao seu fracasso de confiar em Deus e obedecê-Lo. Saul falha em tomar posse dos recursos que Deus graciosamente lhe deu para capacitá-lo a governar com justiça e retidão. Saul não é um rei de segunda classe, dado por um Deus despeitado; ele é um rei de primeira linha, completamente equipado para sua tarefa, e totalmente responsável por suas falhas. Este rei, sem dúvida, não é um Davi, mas também não é um fracassado. Para mim, este é um novo pensamento, mas um pensamento ensinado em nosso texto.

Como Deus é gracioso conosco, apesar de nosso pecado. Deus dá um rei a Israel, mas este rei não é como o rei das outras nações. Este rei é o ser humano mais magnífico disponível, um homem transformado no coração e sobrenaturalmente capacitado pelo Espírito de Deus. Quando Saul anda no Espírito, age como o libertador do povo de Deus. Quando anda no Espírito, reconhece que as vitórias sobre seus inimigos são vitórias de Deus, não suas. Ele é um homem marcado por humildade e graça. Isto mudará, e bem depressa. Mesmo que saibamos que esta mudança ocorrerá, vejamos quão magnífico é este rei, pelo menos por algum tempo.

A vitória militar dos israelitas liderada por Saul (capítulo 11) não é devido a Israel ter um rei, nem a qualquer mérito por parte de Israel, mas unicamente devido à graça e misericórdia de Deus, que ouve o clamor de Seu povo e uma vez mais vem para salvá-lo. Os israelitas depressa abraçam este novo rei. Ele é o tipo de rei que eles querem. Quando Jesus vem como Rei de Israel, Ele não é nenhum Saul. Não tem uma aparência impressionante, que atrai os homens, e não é abraçado entusiasticamente como o Filho de Deus:

Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. (Is. 53:1-3)

Seus seguidores, e mesmo Seus discípulos mais próximos, querem que Jesus seja um rei como Saul, mas Jesus se recusa. Ele não vem para acabar com o governo romano, mas para dar Sua vida em resgate de muitos. Ele vem a um mundo pecaminoso, e suporta a pena de homens vis, para que possam ter seus pecados perdoados e se tornem filhos de Deus. Este é o tipo de rei que muitos rejeitam hoje. Eles gostariam de um rei mais parecido com Saul. Saul é o primeiro rei de Deus, e no início é um bom rei. Mas, na verdade, há somente um único grande rei, e este é Jesus, o Rei dos judeus, que veio à terra como filho do homem (sem deixar Sua divindade), viveu uma vida sem pecado, e foi crucificado por causa do pecado dos homens, e ressurgiu da morte ao terceiro dia. Este é o mesmo Rei que irá voltar, e então, todos O reconhecerão, e todo joelho se sobrará diante Dele. Ele subjugará todos os Seus inimigos e então governará sobre a terra em perfeita justiça. Este é o Rei pelo qual esperamos.

Finalmente, este texto é uma passagem fascinante no que se refere a conhecer a vontade de Deus. Deus revelou através do profeta Samuel que Ele daria um rei a Israel (I Samuel 8). E então, providencialmente (de forma circunstancial) leva Saul e seu servo ao exato lugar onde está Samuel, e à festa onde Saul é um desconhecido (de nome), mas esperado, convidado de honra. Deus revela diretamente a Samuel que o rei chegará no dia seguinte. Quando Samuel vê Saul pela primeira vez, Deus lhe diz que este é o convidado prometido, que deve ser o rei de Israel. E então, por meio de sinais sobrenaturais, por sorteio, e por uma vitória militar espetacular, Ele indica a Saul e a toda a nação de Israel que este homem deve ser seu rei.

Não vemos Saul buscando o reinado, nem mesmo buscando a Deus em oração. Ele está disposto a encontrar Samuel para pedir orientação divina a fim de encontrar suas jumentas, mas isto somente depois que seu servo dá a idéia e se oferece para pagar por isto. Saul é designado como rei de Israel quando cuida dos afazeres diários da vida. Quem pensaria que este homem começaria procurando jumentas e acabaria sendo apontado como o rei de Israel?

Parece também que Samuel obtém a orientação divina ao cuidar do curso normal de sua vida e ministério. Samuel está ministrando como sempre faz, quando Deus lhe diz que o rei chegará no dia seguinte. Samuel compreende a vontade de Deus a respeito do rei de Israel, quando desempenha fielmente seus deveres como profeta e juiz de Israel. Deus tem um jeito de tornar clara Sua vontade para nós, quando nos é necessário conhecê-la. Ele não tenta esconder Sua vontade, e quando é seu intento revelá-la, não podemos evitá-la. A vontade de Deus não é um segredo que precisa de uma técnica especial para ser conhecido.

Quando você se levantar amanhã de manhã, pense neste texto e no que ele implica. Que tarefa irritante estará em seu caminho? Será procurar jumentas perdidas? Provavelmente não, mas haverá algumas tarefas cotidianas e irritantes, que parecem consumir sua vida com pouco significado. Deus tem um modo de usar tais tarefas irritantes como meios para fins muito maiores.

Israel ansiosamente aguarda a chegada de seu rei. Cada ação, cada palavra de Samuel é vista com grande expectativa e interesse. Se estes antigos israelitas aguardavam tão ansiosamente seu primeiro rei, quanto mais ansiosos devemos estar pela vinda do Rei dos reis, nosso Senhor Jesus Cristo? Será que iniciamos cada dia nos perguntando se este é o dia? Estamos cuidando fielmente de nossas obrigações, ansiosos em agradar ao Rei que vem? Vamos começar cada dia com senso de ansiosa antecipação, sabendo que a vinda de nosso Rei pode ser hoje.

8. Renovando o Reino (I Samuel 11:14 -12:25)

Introdução

Na semana passada, eu e minha esposa Jeanette tivemos uma nova experiência - tornamo-nos avós pela primeira vez! Depois de 25 horas de trabalho de parto (de minha filha), nasceu Taylor Nicole. Há sempre uma sensação de alegria e otimismo no nascimento de uma criança, tal como numa festa de casamento. Mas você e eu sabemos que esta alegria, com o tempo, será vista por outro ângulo. Um pequeno recém-nascido, adorável e indefeso, logo fará dois anos e então será um adolescente! Tempos difíceis virão para seus pais, e todos nós que somos pais sabemos disto. Tempos difíceis virão também para os recém-casados.

Quando penso em nosso texto de I Samuel, lembro-me de um retrato que tirei anos atrás, quando estava no colégio. Nossa família tinha ido acampar... Nosso primeiro e único acampamento. O retrato foi tirado nas montanhas do Parque Nacional Glacier em Montana. Na foto, o céu está azul, com poucas nuvens. Meus pais, minhas duas irmãs e meu irmão caçula estão sentados à frente de nossa barraca, todos com um sorriso no rosto. Que coisa maravilha é acampar! Como podíamos ter perdido tais prazeres até agora? Poucas horas depois, o retrato é completamente diferente - um retrato que só existe na minha cabeça, pois as coisas ficaram caóticas demais para tirar fotos, no meio da noite, em meio a uma tempestade das montanhas, com uma barraca enfiada numa poça d’água de quase cinco cm. (Por que será que ninguém nos falou para armar a barraca num lugar alto com a porta para o lado oposto ao vento?)

As coisas nem sempre terminam do jeito que começam, como vemos com Saul, o novo rei de Israel. Em I Samuel 8, o povo exige um rei para governá-los, como todas as nações. Isto dá a entender que Samuel vai se aposentar e ser substituído. Samuel não gosta daquilo que ouve, e com razão. Ele adverte o povo sobre os altos custos de um rei, e os israelitas dizem que estão dispostos a pagar o preço. Assim, Samuel manda o povo de volta para casa, com a promessa de que terão seu rei. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que levam à designação pública de Saul como rei de Israel. O capítulo 11 fala sobre Naás, o amonita, que sitia Jabes-Gileade e exige a rendição desta cidade israelita, anunciando que, quando se renderem, ele vazará o olho direito de cada inimigo derrotado. O povo da cidade pede tempo para buscar ajuda com seus irmãos, algo que Naás parece entender de modo diferente. Quando os mensageiros são enviados de Jabes-Gileade com o pedido de socorro, a notícia sobre estes irmãos israelitas em apuros chega a Gibeá de Saul. Quando Saul volta do campo, fica sabendo da situação e se enfurece pelo Espírito do Senhor. Ele dilacera uma junta de bois, enviando os pedaços por todo o território de Israel, com o aviso de que, qualquer um que não se ajunte para guerrear encontrará seus bois do mesmo jeito. Todo o Israel se ajunta - 330.000 homens. Deus dá uma grande vitória sobre os amonitas, libertando o povo de Jabes-Gileade de sua tirania.

No que diz respeito ao povo, esta é uma prova positiva de que Saul é o tipo de rei que eles querem. Ele é o homem! A grande comemoração que se segue é mais ou menos como a comemoração de um time vencedor do Super Bowl (torneio de boliche). É como um comercial de cerveja, onde um israelita se vira para outro e diz: “Cara, não tem nada melhor do que isto!” É como um candidato presidencial recebendo a notícia de sua eleição na sede de sua campanha eleitoral. Se os israelitas tivessem uma banda, eles tocariam “Os dias felizes voltaram...”

Neste exato momento, Samuel convoca o povo para ir a Gilgal, onde eles “renovarão o reino” (11:14). Saul é constituído rei, sacrifícios são feitos perante o Senhor e os “homens de Israel muito se alegram” (11:15). Mas que negócio é este de “renovar o reino”? Se Saul é o primeiro rei de Israel, então ele é o “novo” rei. Como, então, eles podem “renovar o reino”, proclamando Saul como rei?

Cheguei à conclusão de que Samuel não está falando sobre a ”renovação” do novo reino que acaba de ser inaugurado com a investidura de Saul como rei, mas da “renovação” do reino de Deus, com Deus como Rei, como já fora estabelecido no êxodo. Existem duas razões muito fortes para isto. Primeiro, há toda a mensagem e ênfase do capítulo 12, que iremos considerar por alguns instantes. Segundo, a “renovação” deve acontecer em Gilgal, não em Mispa (ver 7:5 e ss). Gilgal é a cidade que está daquém (a oeste) do Jordão. É o lugar onde os israelitas cruzaram o rio Jordão pela primeira vez e entraram na terra prometida, o lugar onde foi construído o memorial de 12 pedras. É o lugar onde os israelitas (a segunda geração) foram circuncidados e onde Israel renovou sua aliança com Deus (ver Josué 4 e 5). Gilgal é o lugar aonde o “anjo do Senhor” veio relembrar aos israelitas a sua libertação no êxodo, sua aliança com Deus e a razão para guerrear com as nações à sua volta (Juízes 2:1-5). É também uma das cidades do circuito de Samuel (I Samuel 7:16) e o lugar onde ele diz para Saul esperá-lo (I Samuel 10:8); Gilgal é a cidade que tem maior ligação com a aliança entre Deus e Israel.

A Inocência de Samuel e a Culpa de Israel
(12:1-5)

Então, disse Samuel a todo o Israel: Eis que ouvi a vossa voz em tudo quanto me dissestes e constituí sobre vós um rei. Agora, pois, eis que tendes o rei à vossa frente. Já envelheci e estou cheio de cãs, e meus filhos estão convosco; o meu procedimento esteve diante de vós desde a minha mocidade até ao dia de hoje. Eis-me aqui, testemunhai contra mim perante o SENHOR e perante o seu ungido: de quem tomei o boi? De quem tomei o jumento? A quem defraudei? A quem oprimi? E das mãos de quem aceitei suborno para encobrir com ele os meus olhos? E vo-lo restituirei. Então, responderam: Em nada nos defraudaste, nem nos oprimiste, nem tomaste coisa alguma das mãos de ninguém. E ele lhes disse: O SENHOR é testemunha contra vós outros, e o seu ungido é, hoje, testemunha de que nada tendes achado nas minhas mãos. E o povo confirmou: Deus é testemunha.

Neste parágrafo, Samuel coloca a si mesmo em julgamento diante de Deus e de todo o povo. Creio que seja por causa das acusações que Israel faz ou insinua contra ele no capítulo 8, e que eles consideram ser motivo suficiente para sua substituição por um rei. Em vez de ficar constrangido pelas acusações, Samuel as expõe publicamente, desafiando quem quer que seja a acusá-lo de má conduta, especialmente em relação a seus deveres oficiais.

Várias alegações são feitas no capítulo 8, as quais são consideradas por Samuel em nosso texto. A primeira coisa que Samuel diz ao povo é que ele os ouviu e lhes concedeu o que pediram. Não espere isto de um rei. Samuel não foi insensível aos seus desejos, nem indiferente. Segundo, ele chama a atenção para a sua idade, dizendo-lhes que está “velho e cheio de cãs”. No capítulo 8 eles insinuaram que ele estava velho demais para desempenhar suas tarefas de julgar a nação. Que conclusão absurda! Será que a idade é de alguma forma incompatível com a habilidade de julgar sabiamente? Dê uma olhada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Será que é melhor ter uma corte cheia de jovens recém saídos do colégio ou da Faculdade, ou com pessoas que tenham sido amadurecidas por anos de experiência? Samuel não está velho demais para desempenhar seu chamado como juiz. Ele ainda continuará a servir este povo por algum tempo. Ele não está com o “pé na cova”.

O ministério de Samuel é público, e seus filhos estão lá entre os israelitas. Sua integridade e generosidade devem ser visíveis, assim como seus defeitos. No capítulo 8, os israelitas chamam a atenção para a conduta dos filhos de Samuel. Eles os acusam de não “andar nos caminhos de seu pai” (ver 8:5), e as acusações são verdadeiras (ver 8:1-3). A questão é se Samuel lidou com seus filhos da maneira como deveria. Tudo indica que ele não tem culpa, ao contrário de seu predecessor, Eli.

Se Samuel não tem culpa quanto à sua família, será que ele tem culpa quanto ao seu ministério? Será que Samuel de alguma forma falha em serviço, para que os israelitas peçam sua demissão e substituição por um rei? A resposta é muito clara “não!” Samuel afirma sua inocência e integridade no ministério sob três aspectos. Primeiro, ele não defraudou ninguém. Ele não cometeu nenhuma injustiça para que as pessoas fossem defraudadas devido à distorção ou abuso no processo judicial. Segundo, ao contrário de seus filhos, ele não recebeu suborno para distorcer a justiça em seus julgamentos (ver 8:3). Terceiro, ele garante que não oprimiu ninguém. Ele não abusa de seu poder para oprimir aqueles a quem julga. Ele é “servo”, não “senhor”. Finalmente, Samuel não “tomou o boi ou o jumento de ninguém”. Não creio que ele esteja falando sobre furto. Creio que ele queira dizer que não tomou bois ou jumentos como os reis farão:

“Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.” (I Sam. 8:16)

Como o apóstolo Paulo, Samuel não cobra por seu ministério. Certamente ele vive de sua porção dos sacrifícios, mas não cobra um alto preço por isto. Seus encargos, com toda a certeza, não são tão dispendiosos quanto serão os encargos do rei.

Se Samuel “não é culpado” das acusações feitas pelos israelitas contra ele, então, por inferência, Israel deve ser culpado por fazer acusações infundadas. Os cinco primeiros versos do capítulo 12 demonstram que Samuel é qualificado para julgar Israel e, desta forma, qualificado para julgar o caso de Deus contra eles nos versos seguintes. Samuel é inocente, conseqüentemente, Israel procura injustamente sua destituição. Samuel é inocente, por isso, pode chamar esta nação rebelde a prestar contas de seu pecado contra ele e contra Deus.

Uma Lição da História de Israel
(12:6-11)

“Então, disse Samuel ao povo: Testemunha é o SENHOR, que escolheu a Moisés e a Arão e tirou vossos pais da terra do Egito. Agora, pois, ponde-vos aqui, e pleitearei convosco perante o SENHOR, relativamente a todos os seus atos de justiça que fez a vós outros e a vossos pais. Havendo entrado Jacó no Egito, clamaram vossos pais ao SENHOR, e o SENHOR enviou a Moisés e a Arão, que os tiraram do Egito e os fizeram habitar neste lugar. Porém esqueceram-se do SENHOR, seu Deus; então, os entregou nas mãos de Sísera, comandante do exército de Hazor, e nas mãos dos filisteus, e nas mãos do rei de Moabe, que pelejaram contra eles. E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.”

Aqui vemos outro exemplo de “pensamento histórico” na Bíblia. Samuel leva os israelitas de volta ao início do “reino”, o qual foi estabelecido por Deus no êxodo, e traça brevemente sua história até o presente. Seu objetivo é demonstrar que sua exigência em ter um rei como as demais nações nada mais é senão outro caso de rebelião contra Deus - como a rebelião característica de seus antepassados.

A história de Israel como reino começa no êxodo. A primeira coisa enfatizada por Samuel aos israelitas de seus dias é que, em última análise, não foram Moisés e Arão quem os libertou do cativeiro egípcio - foi Deus (verso 7). Foi Deus quem “designou Moisés”, e foi Deus quem “tirou seus pais da terra do Egito”. Desde o princípio, nunca foram os homens - nem mesmo os grandes homens como Moisés - que libertaram Israel, foi Deus. Deus levanta líderes e Deus liberta Seu povo. Deus usa os homens, é verdade, mas os homens não salvam o povo de Deus.

Com base nesta verdade central – de que foi Deus o libertador de Israel e não os homens - Samuel convoca os israelitas a se colocarem diante do Senhor (verso 7). Os israelitas estão sob julgamento e Samuel é o promotor. A História é a primeira testemunha contra Israel. A história de Israel não é sobre sua retidão e as bênçãos recebidas; a história de Israel é sobre os feitos justos de Deus, realizados em seu benefício, sempre num contexto de pecado de Israel. Foi a justiça de Deus que libertou os antepassados daqueles israelitas que estão diante de Samuel em Gilgal.

Brevemente, Samuel delineia a história de Israel desde o dia do nascimento da nação no êxodo até o presente momento, quando Israel tem o rei exigido. Citando ilustrações dos principais períodos (o êxodo e a peregrinação de Israel no deserto, a posse da terra sob Josué e o período dos juízes, terminando com Samuel), Samuel procura demonstrar um padrão constante no comportamento de Israel, e no trato de Deus com Seu povo. Embora Deus dê graciosamente a Seu povo a libertação de seus inimigos, Israel se esquece de Deus e se volta para outros deuses. Deus entrega a nação a seus vizinhos, que são inimigos de Israel e que oprimem e afligem o povo de Deus. Os israelitas, então, reconhecem seu pecado e clamam a Ele por libertação, o que Ele graciosamente concede. Eles reconhecem sua idolatria e a abandonam, prometendo servir a Deus se Ele os livrar novamente.

A Lição da História e da Exigência de Israel por um Rei
(12:12-18a)

“Vendo vós que Naás, rei dos filhos de Amom, vinha contra vós outros, me dissestes: Não! Mas reinará sobre nós um rei; ao passo que o SENHOR, vosso Deus, era o vosso rei. Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais. Ponde-vos também, agora, aqui e vede esta grande coisa que o SENHOR fará diante dos vossos olhos. Não é, agora, o tempo da sega do trigo? Clamarei, pois, ao SENHOR, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade, que tendes praticado perante o SENHOR, pedindo para vós outros um rei. Então, invocou Samuel ao SENHOR, e o SENHOR deu trovões e chuva naquele dia...”

No verso 12, Samuel relaciona a história que acaba de contar com o tempo presente. Como os antigos israelitas, o povo de Deus uma vez mais está sendo oprimido por uma nação vizinha. Desta vez Naás lidera os amonitas. A reação dos israelitas da época de Samuel à ameaça dos amonitas não é como a reação descrita por ele nos versos anteriores. Quando oprimidos por seus inimigos, os israelitas dos tempos passados viam sua situação à luz da Aliança Mosaica, especialmente à luz de Deuteronômio 28-32. Eles compreendiam que a opressão sofrida às mãos de seus inimigos era devido ao seu pecado. Os antigos israelitas se arrependiam de seus pecados e clamavam a Deus por libertação. Não é assim com estes que estão diante de Samuel em Gilgal. Este pessoal não reconhece que a razão de suas tribulações é o pecado. Eles atribuem seus problemas à “má liderança”, especificamente à “má liderança” de Samuel e seus filhos. Sua solução não é se arrepender de seus pecados e clamar a Deus por libertação; sua solução é se livrar de Samuel e conseguir um rei exatamente como o de outras nações.

Quando Samuel fala sobre Naás e os amonitas no verso 12, ele mostra a verdadeira razão dos israelitas quererem um rei. Eles não reconhecem seu pecado, nem confiam em Deus para libertá-los. Não é que Samuel realmente esteja tão velho, velho demais para continuar julgando. Não é que realmente seus filhos sejam corruptos. É que os israelitas estão com medo da ameaça feita pelo inimigo e não reconhecem que a raiz do problema seja seu próprio pecado. Eles jogam a culpa na má liderança, e por isso se sentem justificados em ter um rei que querem de qualquer jeito.

Anos atrás, dei aulas numa prisão de segurança média que possibilitava aos internos obter seu diploma do segundo grau. Um dia, surgiu o assunto da teoria da evolução, e mostrei que creio na criação, não na evolução. Jamais me esquecerei do que disse um dos internos: “Vou lhe dizer por que acredito na evolução”, disse ele com ousadia, “é porque não acredito em Deus”. Receio que os israelitas dos dias de Samuel fossem como este sujeito. Repare no “não” do começo de sua resposta a Samuel no verso 12. Eles não querem a liberdade do jeito de Deus; querem do seu jeito. Eles realmente querem a liberdade, mas de um jeito que exclua a Deus. Não é de admirar que Deus diga a Samuel que o povo não rejeitou a ele e sim a Deus.

A despeito do pecado de Israel em pedir um rei, Deus é gracioso para com Seu povo, mostrando-lhes “uma saída” nos versos 13-15 (ver I Co. 10:13). A primeira coisa que Samuel diz ao povo sobre este rei é que ele é seu rei, não Seu rei. Este rei é aquele que eles escolheram, que eles pediram (verso 13). Deus lhes dá este rei, mas ele é seu rei. Os versos 14 e 15 devem dar muito que pensar aos israelitas. Será que eles consideram que este rei seja seu libertador? Será que eles põem toda a sua confiança neste homem, ou em qualquer outro (simples) homem? Se for assim, as palavras de Samuel devem ser um choque.

Parece que os israelitas dos dias de Samuel têm a mesma visão de liderança que é tão popular hoje em dia, ou seja:

“Tal líder, tal nação”.

Há certa verdade nisto. Reis corruptos geralmente tendem a levar a nação ao pecado. Líderes justos tendem a levar a nação a praticar a justiça. Mas aqui Samuel está dizendo uma coisa bem diferente. Será que os israelitas estão vendo seu rei como um “deus”, alguém que eles pensam que será seu salvador? Será que eles pensam ter o homem certo para lhes garantir a vitória militar sobre seus inimigos, trazendo paz e prosperidade? Samuel parece dizer que a obediência da nação aos mandamentos do Senhor é que é a chave para a paz e prosperidade nacional - não as proezas de seu líder. Se o povo “temer ao SENHOR, e o servir, e lhe atender à voz, e não lhe for rebelde ao mandado, e seguir o SENHOR, seu Deus, tanto eles (literalmente “vocês”) como o seu rei que governa sobre eles, bem será. (verso 14)

O rei não é a chave para o sucesso de Israel. A chave é Israel confiar em Deus e obedecê-Lo. Uma nação ímpia terá um rei ímpio. Uma nação justa terá um rei justo. Absolutamente nada mudou com a designação de um rei sobre Israel. O princípio dominante ainda é a Aliança Mosaica, resumida em Deuteronômio 28-32. Israel será abençoado enquanto confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos e, da mesma forma, será amaldiçoado por se afastar de Deus e de Suas leis. Se a nação confiar em Deus e obedecê-Lo, Israel terá um rei justo e provará as bênçãos prometidas. Se a nação se afastar de Deus, seu rei certamente não a salvará do julgamento divino. As condições de Deus para Suas bênçãos são as mesmas que eles sempre tiveram e ter um rei não mudará nada. Deus não abdicou de ser o rei de Israel. Sua aliança ainda é a constituição do país.

No auge do sucesso de Israel sob a liderança de seu novo rei, Deus põe os pingos nos is. A mesma aliança, a Aliança Mosaica, ainda rege os tratos de Deus com Seu povo. Samuel informa aos israelitas a gravidade de seu pecado em pedir um rei como fizeram. Ainda assim, suas palavras não causam o efeito desejado; por isso, ele ressalta a seriedade de seu pecado à vista de Deus invocando a disciplina divina. De certo modo, mais ou menos como Elias, Samuel anuncia o julgamento divino como indicação da seriedade do pecado de Israel em pedir um rei. Ele deixa claro que o juízo virá em relação à colheita do trigo, que é iminente. Embora não seja época de tempestade ou chuva de granizo, em resposta à oração de Samuel, um grande temporal desaba sobre o país. Esta questão do rei é muito séria para Deus, e agora também para Seu povo.

O temporal faz o povo se lembrar de que Samuel é profeta de Deus, e que rejeitá-lo não é uma boa idéia. O temporal dá grande ênfase às palavras de Samuel, as quais mostram que a exigência por um rei é pecado. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, isto faça Israel se lembrar de uma verdade muito importante: tanto a calamidade quanto a bênção vêm de Deus:

“Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro. Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas.” (Isaías 45:5-7, ênfase minha)

Os israelitas consideram seu rei como seu libertador. Na cabeça deles, este rei é a chave para o sucesso. Eles acreditam que ele os livrará de seus opressores e que levará a nação à prosperidade. Basicamente, Deus faz Israel se lembrar de que Ele é tanto a fonte de seu sofrimento, quanto de suas bênçãos. A calamidade vem sobre a nação por causa do seu pecado. As bênçãos não vêm sobre a nação devido à sua justiça, mas por causa da graça e da misericórdia de Deus. Sua prosperidade não é porque Israel faz o bem, mas porque quando está sofrendo, ele clama a Deus por libertação. A devoção de Israel a Deus e seu serviço a Ele são frutos da graça de Deus, não a fonte de Suas bênçãos. Em nosso texto esta verdade é claramente transmitida.

Maravilhosas Palavras de Vida
(12:18b -25)

“... pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao SENHOR, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o SENHOR, mas servi ao SENHOR de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são. Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo. Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o SENHOR, deixando de orar por vós; antes, vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.”

Os israelitas investiram demais no novo rei e as palavras e atitudes de Samuel colocam as coisas no lugar certo. Em conseqüência de sua pregação - e, especialmente, do temporal - o povo “...temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel” (verso 18b). É assim que deve ser. Embora não seja dito expressamente, creio que podemos deduzir que a opinião do povo sobre o rei diminui, enquanto seu conceito sobre Samuel e Deus aumenta. Agora, o povo está começando a compreender a enormidade de seu pecado, especialmente o pecado de exigir um rei. Parece que eles temem mais disciplina. Eles rogam a Samuel que ore por eles. As palavras de Samuel em resposta ao seu pedido são realmente “maravilhosas palavras de vida”. Vamos destacar alguns elementos neste parágrafo.

Primeiro, repare que o povo não olha para o rei para ser liberto, mas para Samuel. Agora os israelitas reconhecem que seu principal problema não é a “liderança” política, mas o pecado. Eles entendem perfeitamente que merecem a ira de Deus. Eles sabem que a libertação de que mais precisam não é a de seus vizinhos, mas da justa ira do Deus que eles rejeitaram. Eles sabem que não são dignos da libertação e sentem a necessidade de um intercessor. Por isso, suplicam a Samuel que ore por eles ao Senhor (verso 19).

Segundo, observe que Samuel estimula o povo de Israel a confiar em Deus em vez de confiar nos homens. Suas palavras são cheias de misericórdia, graça e esperança. Sua mensagem não é a das ”uvas azedas” por ter sido rejeitado pelo povo. Ele lhes diz para não temer. O temor que ele procura afastar não é aquele temor saudável de Deus, mas o temor doentio da desesperança, um temor que poderia levar ao desespero. Os israelitas parecem estar a ponto de concluir que seu fracasso tenha sido tão grande que não haja nenhuma esperança de restauração. Sem diminuir a gravidade do pecado, Samuel lhes dá boas razões para ter fé, esperança e paciência. Eles não devem “se desviar de seguir o SENHOR” (verso 20), mas, com toda certeza, deixar de seguir as “coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco podem livrar” (verso 21). A libertação de Israel de seus pecados, e sua esperança para o futuro, requer que o povo pare de adorar e servir seus ídolos para adorar e servir somente a Deus. Especificamente, a ”coisa vã que não beneficia ou liberta Israel” é um rei em quem confiem e sirvam em lugar de Deus. Ter um rei, em si mesmo, não é errado. O que é errado é confiar em qualquer homem para salvação e libertação da culpa pelo pecado. Somente Deus pode verdadeiramente salvar e libertar.

Terceiro, a salvação de Israel não se fundamenta na sua fidelidade ou nas suas boas obras, mas na graça de Deus. Em lugar algum Samuel incentiva Israel a “se esforçar mais” ou a fazer o bem para receber as bênçãos de Deus. Samuel lhes diz para confiar em Deus, cuja fidelidade é a base para sua esperança e salvação. A obediência de Israel e seu serviço a Deus são considerados como conseqüências da graça de Deus, não a sua causa.

“Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez.” (I Sam; 12:24)

Quando Samuel recapitula a história da nação desde o êxodo até seus dias, ele enfatiza de forma consistente os pecados dos israelitas e a graça e misericórdia de Deus. Jamais Samuel fala da salvação de Deus como resposta às boas obras de Seu povo. Deus vem em socorro de Seu povo pecador porque eles “clamam” (12:8, 10) a Ele por libertação, não porque sejam dignos disso. Deus os salva por Sua graça.

Este é um ponto importante que deve ser muito bem esclarecido e enfatizado à luz da Aliança Mosaica. Samuel deixa claro neste capítulo que ter um rei não muda as bases do trato de Deus com Seu povo. A Aliança Mosaica fala das bênçãos e maldições condicionais de Deus (ver Levítico 26; Deuteronômio 28-32). Nesta aliança, muito menor ênfase é dada às promessas de bênçãos por obediência às leis de Deus do que às promessas de maldição por desobediência. Há uma boa razão para isto, como Paulo mostra em Romanos 3:

“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.”

A Lei de Moisés (portanto, a Aliança Mosaica) jamais foi dada aos homens como meio de salvação. Ela, sem dúvida, foi um recurso de Deus para mostrar a pecaminosidade do homem. A Lei condena todos os homens como pecadores, dignos da ira eterna de Deus. Cumprir a Lei não salva o homem, pois nenhum homem jamais conseguiu cumprir toda a Lei. Quando Samuel fala da Aliança Mosaica aos israelitas, ele o faz para mostrar que o julgamento de Deus (entregando-os à opressão de seus vizinhos) é devido ao seu fracasso em cumprir Sua lei. Mas, quando fala da esperança de Israel, Samuel não incentiva o povo a tentar ganhar as bênçãos de Deus cumprindo Sua Lei. Antes, eles os incentiva a confiar na graça e misericórdia de Deus, que os escolheu como Seu povo e que lhes trará salvação para a Sua glória.

Eis o fundamento para a esperança, confiança e serviço de Deus. A Sua fidelidade:

“Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo.” (12:22)

Antes mesmo que o Senhor desse a Lei aos israelitas, eles já tinham se afastado Dele e de Moisés, como vemos em Êxodo 32. Como Samuel, Moisés intercedeu por eles. Ele não apelou para Deus com base em que povo se esforçasse mais, que guardasse Sua Lei. Ele apelou para Deus com base no Seu caráter e na Sua natureza. Deus escolhera esta nação, e propusera e prometera levá-los à Terra Prometida. Sua reputação e Sua glória estavam em jogo no destino de Israel. Por isso, podemos confiar que Deus termina aquilo que começa - não por causa daquilo que somos - mas por causa de quem Ele é. A Lei pode apenas mostrar que os homens são pecadores, dignos do juízo divino. É a graça que salva e santifica. É a graça que capacita e dá fé e obediência. E é a graça, a graça de Deus, que Samuel proclama a este povo cheio de culpa, garantindo-lhes que a salvação de Deus é certa por causa de quem Ele é.

Esta salvação é pela graça - para aqueles que pela Sua graça “temem o Senhor e O servem de todo coração”, com base em “tudo aquilo que Deus fez por eles” (verso 24). Mas, para aqueles que rejeitam esta graça, o juízo divino é tão certo quanto a salvação:

“Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (verso 24)

Se o povo rejeitar a graça de Deus e seguir seus próprios caminhos, eles serão levados para o cativeiro prometido na Aliança Mosaica (ver Levítico 26:33-39; Deuteronômio 28:63-68).

Se Deus é gracioso e fiel em Sua aliança com Israel, Samuel também é. O povo agora lhe pede para interceder por eles junto a Deus, apesar de terem rejeitado sua liderança sobre eles. Como Deus, Samuel age graciosamente e de acordo com seu caráter. Ele garante ao povo que não pecará contra Deus deixando de orar por eles e de ensiná-los “o caminho bom e direito” (verso 23). Como no Novo Testamento, “orar e ministrar a Palavra” (ver Atos 6:4) são prioridades para os líderes espirituais. Samuel não tem nenhuma intenção de pecar contra Deus abandonando seu ministério.

Conclusão

Nosso texto tem muita coisa a dizer aos homens de nossa época, exatamente como tem dito aos homens de todas as épocas. Uma das coisas que ele nos ensina é a termos cuidado para não secularizar o pecado. Os israelitas dos dias de Samuel não conseguem entender que seus problemas (a opressão que sofrem das nações vizinhas) são de origem divina, e que a disciplina divina é conseqüência (e correção) de seus pecados. Eles vêem sua sujeição aos governos estrangeiros como conseqüência de uma liderança inadequada. Deus mostra que o verdadeiro problema é o pecado. Receio que façamos a mesma coisa. Definimos um problema resultante de pecado em termos seculares e depois buscamos uma solução secular.

A igreja de Jesus Cristo está quase acostumada a definir o pecado em termos seculares e a procurar a solução por meios humanos. Quando a igreja trata de suas finanças, busca os mesmos métodos e os mesmos homens que levantam grandes somas de dinheiro para causas seculares. Quando a igreja trata de sua organização e estrutura, busca os mesmos modelos seculares empregados por grandes corporações. Quando a igreja se propõe a evangelizar, busca a mesma estratégia de marketing usada pela Madison Avenue para vender sabonete e creme de barbear. E quando a igreja procura solucionar problemas particulares e pessoais busca terminologia e metodologia psicológica secular. Quando definimos o “pecado” em termos seculares e buscamos sua solução por meios seculares nos metemos numa grande encrenca.

Que grande comentário temos neste texto sobre o caráter de Deus e de Seu servo, Samuel. Não é de admirar que a rejeição a Samuel seja rejeição a Deus. Nem é de se estranhar que a fidelidade de Deus ao povo de Israel tenha seu paralelo na fidelidade de Samuel em ministrar a este povo. O caráter de Samuel é como o caráter de Deus e sua origem está em Deus. Que Deus gracioso nós temos, que nos disciplina quando pecamos, a fim de que nos voltemos novamente para Ele em fé, obediência, amor e gratidão.

Nosso texto fala sobre liderança e sobre como algumas pessoas idolatram seus líderes. A liderança é de vital importância, seja na vida de uma nação, seja na família ou na igreja. Líderes piedosos são exemplos (ver I Timóteo 3, Tito 1, Efésios 5:22-23). No entanto, os líderes sempre correm certo perigo. Deus é o nosso supremo e derradeiro líder; Ele é tudo. Satanás jamais ficará satisfeito com seu papel. Ele quer mais. Ele quer ser “como Deus”, para estar na posição que somente Deus é digno de estar. Alguns cristãos elevam seus líderes acima dos padrões adequados. Erroneamente podemos “idolatrar” nossos líderes e colocar neles a nossa fé em vez de colocá-la em Deus. Foi isto que os israelitas fizeram com Saul, e é por isso que o pecado de Israel é tratado em termos tão dramáticos. Este é um perigo que está sempre diante de nós. Que jamais demos aos homens aquilo que pertence somente a Deus. Que jamais pensemos que “um homem” possa nos salvar e que o nosso futuro ou o futuro de nossa igreja ou de nosso país dependam de um homem. É deveras importante que nos lembremos disto nas eleições presidenciais. Os homens jamais devem ser idolatrados. Deus é a fonte suprema de nossas provações, tribulações e correção, e Deus é a fonte suprema de nossa salvação e bênção. Na melhor das hipóteses, os homens são apenas instrumentos de Deus.

Nosso texto fica como uma palavra de alerta para aqueles que parecem ser bem sucedidos. Certamente o texto coloca o aparente “sucesso” de Saul dentro da perspectiva correta. O povo fica radiante após a vitória sobre os amonitas, mas tende a considerar seu “sucesso” como conseqüência da liderança de Saul. Na verdade, este livramento, como todos os demais antes dele, é reflexo da graça de Deus, não evidência de uma liderança magnífica. Aqueles que parecem ser bem sucedidos devem tomar cuidado com sua definição de sucesso, assegurando-se de atribuir todo sucesso humano à graça divina, não à habilidade e sabedoria humana.

Nosso texto mostra uma palavra de esperança e encorajamento para aqueles que são arruinados por seus pecados e deixam de viver de acordo com os padrões de Deus. Muitos pensam que fracassaram de forma irreversível, que não haja nenhuma esperança de futuro para eles, e por isso ficam tentados a abandonar sua vida cristã. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23). Pelos padrões de Deus, nenhum homem é bem sucedido, todos falham e merecem a ira eterna de Deus. Nossa esperança de salvação não se baseia em nosso desempenho, mas na graça de Deus. Enfim, não somos nós que escolhemos a Ele, é Ele quem nos escolhe, a fidelidade não é nossa, é Dele. Deus é fiel. Deus é misericordioso. Deus é gracioso. Deus é a nossa salvação. Jesus Cristo não veio ministrar para os justos, mas para salvar pecadores. Que todos aqueles que conhecem suas falhas pensem nesta maravilha.

Este texto fala sobre salvação. Os israelitas dos dias de Samuel confiam em Saul (seu rei) para sua salvação, sua libertação. Eles consideram a salvação em termos militares e monetários, não em termos espirituais. Nosso texto nos diz que nenhum “rei” humano pode salvar ou libertar os homens de seus pecados. O que o “rei” de Israel não pode fazer o “Rei” de Deus já fez - a salvação para os homens pecaminosos que clamam por Sua graça. Todos os “reis” de Israel falharam, mesmos os melhores - Davi, Salomão e outros. Os israelitas são tentados a tomar um homem, nomeá-lo como rei e confiar nele como seu deus. Esse rei não pode salvar. Mas Deus enviou o Seu próprio Filho, Jesus Cristo, para ser o “Rei dos Judeus”, para todos os que crêem Nele. Deus (a segunda pessoa da Trindade) Se fez homem, vindo a primeira vez para viver uma vida perfeita, morrer pelos pecados dos homens e ser ressuscitado dos mortos e ascender aos céus. Este, Jesus Cristo, é o Rei de Deus. Ele veio para salvar os homens de seus pecados e em breve voltará para estabelecer Seu reino. Ele é a nossa esperança! Ele é a nossa salvação! Aquilo que um rei dos homens jamais poderia fazer, o Rei de Deus já realizou.

Você não tem que ser bom o bastante para Deus salvá-lo. Você já é ruim o suficiente para estar qualificado para a Sua graça. Se você ainda não reconheceu seu pecado como seu maior problema, como algo que merece a ira eterna de Deus, eu recomendo que o faça agora. E, quando reconhecer seu pecado, confie Naquele que veio para suportar a penalidade de seu pecado, Jesus Cristo. Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Ele ressuscitou dos mortos e está assentado à destra de Deus nos céus. Em breve Ele virá para abençoar Seus santos e derrotar Seus inimigos. Olhe para este Rei e só para Ele para a salvação de seus pecados, e para a esperança de viver para sempre em Seu reino.

9. Saul Sacrifica Seu Reino (I Samuel 13:1-14)

Introdução

Um grande amigo meu e sua esposa decidiram que era hora de vender seu carro antigo e comprar uma minivan nova. Embora o carro antigo lhes servisse muito bem, precisava cada vez mais de reparos. Craig e Grace conversaram muito sobre as vantagens e desvantagens de comprar um novo carro em vez de um usado, decidindo, finalmente, que um carro novo seria melhor. Mesmo concordando que isto aumentaria um pouco seu orçamento, eles cuidariam bem do carro e ele duraria muito tempo. Com menos de 10.000 milhas, a correia de transmissão da minivan quebrou - aquela por onde passa praticamente tudo, da direção hidráulica ao alternador e à bomba d’água. O carro superaqueceu e, mesmo depois que a correia foi trocada, Craig e Grace ainda passaram maus bocados. Depois, quando estavam caminho de casa após um picnic da igreja, desabou um súbito temporal, atingindo o carro com pedras de granizo. Mais incrível ainda, a caminho do centro da cidade, alguém bateu na traseira do carro. Depois destes desastres, Craig confessou, meio irônico: “Nem mesmo lavamos o carro.”

Algumas coisas começam muito bem - e então, de repente, terminam em desastre. Com certeza, foi o que aconteceu a meu amigo, Craig. Durante algum tempo aquela minivan brilhante, reluzente e mecanicamente perfeita foi muito legal, até que graves problemas começaram a surgir. Quando vejo nosso texto, o reinado de Saul me faz lembrar daquela experiência com o carro novo. Seu reinado começa muito bem, vitorioso. Após sua escolha e indicação, ele lidera os israelitas numa impressionante vitória sobre os amonitas (I Sam. 11). Então, no auge da euforia, o povo é trazido de volta à realidade pela dolorosa reprimenda de Samuel no capítulo 12, ratificada pelo próprio Deus, que provoca uma tempestade devastadora no exato momento em que o trigo está pronto para a colheita. Agora, ainda no capítulo 13 de I Samuel, chegamos a um incidente que custa à descendência de Saul a esperança de governar para sempre em lugar de seu pai.

Se formos realmente honestos conosco e com nosso texto, precisamos admitir que a atitude de Saul não parece tão ruim assim. Aparentemente, parece que Samuel está atrasado e que a sobrevivência de Saul e da nação é incerta, a menos que alguém faça alguma coisa bem depressa, e que Saul, com certeza, parece ser o homem para tal. O que há de tão errado com a atitude de Saul, dada a demora de Samuel e a ameaça dos filisteus? Deus, no entanto, leva as ações e atitudes de Saul muito a sério, e nós também devemos levar. Ao estudarmos este texto, procuraremos entender porque isto é tão ruim aos olhos de Deus e averiguar o que aconteceu com Saul. Vamos ainda procurar aprender e aplicar os princípios e as lições que nosso texto traz aos cristãos, pois o pecado de Saul é importante o suficiente para lhe custar o reino, e a seus descendentes, para sempre.

Um Problema Numérico

Os estudiosos da Bíblia apontam vários problemas em relação aos números de nosso texto. Os dois primeiros são encontrados no verso um que, literalmente, diz:

Saul {é} filho de um ano em seu reinado, sim, dois anos ele reinou sobre Israel (Tradução Literal de Young).

Retirando as palavras em itálico (adicionais) da versão NASB, o verso diz:

Saul tinha ... anos quando começou a reinar, e reinou ... dois anos sobre Israel.

Obviamente, temos aqui um problema. Creio que a melhor solução é tirar o máximo sentido das palavras que temos, em vez tentar decidir quais delas aplicar para dar sentido ao texto. A nova versão King James parece fazer isto da melhor forma possível:

Saul reinou um ano, e quando reinara dois anos sobre Israel, Saul escolheu para si 3.000 homens de Israel... (13:1-2a).

Alguns alegam haver um problema numérico no verso 5, onde lemos que 30.000 carros filisteus são despachados para Israel para pelejar contra os israelitas, junto com 6.000 cavaleiros e um exército de soldados a pé como as areias à beira-mar. Eles acham que 30.000 seja um número grande demais, indicando que o termo para 30.000 é muito parecido com o termo para 3.000, sugerindo que 3.000 talvez seja um número mais razoável. Eles também apontam que, tendo em vista haver muito mais carros do que “condutores”, o número deve estar errado. Gosto da maneira como a versão NASB trabalha com isto. Os 6.000 não são “condutores”, mas “cavaleiros”. Embora 30.000 seja um número bastante grande, não é um número impossível, e devemos aceitar o texto como ele se apresenta. O autor está tentando impressionar o leitor com a impossibilidade da situação do ponto de vista dos israelitas. Os números fornecidos são coerentes com o sentido de desesperança que o autor descreve.

Outro Problema:
A Presença dos Filisteus

Devo confessar que enquanto leio I Samuel fica difícil entender exatamente o que está acontecendo. Os filisteus estão por toda parte em Israel. Sabemos por I Samuel 4:9 que os israelitas são, em certo sentido, escravos dos filisteus. No capítulo 4, os filisteus prevalecem sobre eles na guerra, mesmo os israelitas levando consigo a Arca de Deus. No capítulo 10, quando Saul é informado por Samuel que ele é o escolhido de Deus como rei de Israel, ele profetiza numa cidade israelita - que é também um posto avançado dos filisteus (10:5). Apesar disto, o capítulo 11 fala sobre o ataque dos amonitas e a grande vitória israelita. Como os israelitas podem se reunir para a guerra quando seu território está ocupado pelas tropas filistéias? E como Saul mantém um exército permanente de 3.000 homens sem nenhum protesto dos filisteus?

Creio que estou começando a entender um pouco melhor a situação. Em primeiro lugar, devemos nos lembrar que a nação de Israel é cercada de terra por todos os lados, e que esta terra está dividida entre diversos reinos:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Os filisteus habitam na Filistia, que fica na costa do Mediterrâneo, ao sul e a oeste de Israel. A batalha que eles travam no capítulo 4 é na fronteira ocidental de Israel, como seria de se esperar. A arca é levada para a Filistia e depois devolvida para a cidade de Bete-Semes, que fica junto à fronteira israelita-filistéia. No entanto, os amonitas estão localizados do outro lado do rio Jordão, a leste de Israel. O ataque à cidade de Jabes-Gileade é a noroeste de Israel, a aproximadamente 20 milhas da fronteira de Amom, e longe da Filistia, que fica do lado oposto de Israel.

Não creio que os filisteus pretendam ou desejem destruir totalmente os israelitas, mas apenas mantê-los sob jugo. Afinal, os israelitas estão prestes a comerciar sua tecnologia, especialmente nas coisas feitas de ferro (ver 13:19-23). Israel também pode servir como escudo entre os filisteus e outras nações mais agressivas. Quando os israelitas se juntam para lutar contra os amonitas, parece que isto é de grande interesse para os filisteus. Se os israelitas forem enfraquecidos pela guerra não serão ameaça para eles. E, se eles vencerem os amonitas, os filisteus terão um domínio ainda maior, pois os israelitas ainda estão sob seu domínio. O fato de Saul manter uma pequena força de homens como exército permanente também não é nenhuma ameaça aos filisteus. O que um mísero exército de 3.000 homens pode fazer a uma nação cujas forças podem ser contadas como as areias à beira-mar? Sendo assim, Israel pode iniciar uma guerra contra os amonitas enquanto continua sob o domínio dos filisteus.

O Terror no Coração dos Israelitas e de seu Rei
(13:1-7)

“Um ano reinara Saul em Israel. No segundo ano de seu reinado sobre o povo, escolheu para si três mil homens de Israel; estavam com Saul dois mil em Micmás e na região montanhosa de Betel, e mil estavam com Jônatas em Gibeá de Benjamim; e despediu o resto do povo, cada um para sua casa. Jônatas derrotou a guarnição dos filisteus que estava em Gibeá, o que os filisteus ouviram; pelo que Saul fez tocar a trombeta por toda a terra, dizendo: Ouçam isso os hebreus. Todo o Israel ouviu dizer: Saul derrotou a guarnição dos filisteus, e também Israel se fez odioso aos filisteus. Então, o povo foi convocado para junto de Saul, em Gilgal. Reuniram-se os filisteus para pelejar contra Israel: trinta mil carros, e seis mil cavaleiros, e povo em multidão como a areia que está à beira-mar; e subiram e se acamparam em Micmás, ao oriente de Bete-Áven. Vendo, pois, os homens de Israel que estavam em apuros (porque o povo estava apertado), esconderam-se pelas cavernas, e pelos buracos, e pelos penhascos, e pelos túmulos, e pelas cisternas. Também alguns dos hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e o povo que permaneceu com Saul, estando este ainda em Gilgal, se encheu de temor.”

O reinado de Saul em Israel começa com grande alarde. Sob sua liderança, Deus livra muitos israelitas da rendição humilhante a Naás, líder do exército amonita, que ameaçava os habitantes da cidade de Jabes-Gileade. Para tanto, um exército voluntário de 330.000 israelitas é convocado (11:8). Após a vitória, os voluntários retornam às suas casas e Saul fica com um pequeno exército permanente de 3.000 homens.

Por que Saul mantém um exército tão pequeno? O texto não nos diz, mas parece que podemos deduzir que um exército de 3.000 homens seria tolerado pelos filisteus, enquanto um exército maior, não. Saul mantém estes homens porque é o tanto que ele pode manter sem precipitar a ira e a reação dos filisteus. Saul também não parece disposto a “tumultuar as águas” mantendo muitos soldados na ativa ou tomando qualquer atitude a respeito da guarnição(ões?) dos filisteus acampada em Israel.

Jônatas muda tudo, sem o consentimento ou permissão de seu pai. Saul dividiu suas tropas. Ele mantém 2.000 homens com ele em Micmás e na região montanhosa da Judéia; os 1.000 restantes são colocados sob o comando de Jônatas em Gibeá. Desconhecemos as razões para Jônatas atacar a guarnição dos filisteus; só é dito que ele o faz. Pelo que já conhecemos de Jônatas, parece que suas ações são movidas pela fé. Afinal, Deus deu esta terra aos israelitas e os instruiu a expulsar os povos que habitam nela. A sujeição às nações estrangeiras é descrita em Levítico 26 e Deuteronômio 28 a 32, como castigo divino para a incredulidade e desobediência de Israel. O rei não deve facilitar a sujeição dos israelitas às nações circunvizinhas, mas deve ser usado por Deus para livrá-los de suas algemas (ver 14:47-48). Isto não ocorrerá a menos que os israelitas tomem uma atitude para remover aqueles que ocupam sua terra. Saul parece relutante e indisposto a “mexer no vespeiro”.

Jônatas não parece disposto a aceitar as coisas como estão, por isso lidera seus homens num ataque à guarnição dos filisteus em Geba, situada aproximadamente 6 milhas (?) ao norte de Jerusalém, a meio caminho entre Gibeá ao sul e Micmás ao norte. Esta cidade pode muito bem ser a mesma diante da qual Saul profetiza junto com outros profetas (ver 10:5, 10:13).

A reação dos filisteus a este ataque é previsível, fazendo com que nos perguntemos se Jônatas queria e esperava por isso. Deixe-me tentar descrever a reação dos filisteus em termos atuais. Há alguns anos atrás os Estados Unidos (junto com alguns aliados) atacou e derrotou as forças do Iraque que ocupavam o Kwait. Suponhamos que após esta vitória os Estados Unidos colocassem várias companhias de nossas tropas dentro da fronteira do Iraque, para garantir que não houvesse mais ataques ofensivos. Suponhamos então que Saddam Hussein lançasse um ataque com armas químicas a uma destas companhias americanas dentro do Iraque. Chegam à América notícias sobre centenas, talvez milhares, de mortos, e de muitos outros gravemente feridos. Como americanos, nos sentiríamos justificados em empregar uma ação militar maciça contra o Iraque.

Esta reação é muita parecida com a reação dos filisteus ao ataque de Jônatas contra a guarnição em Geba. Os filisteus derrotaram os israelitas tempos atrás e lhes deram considerável liberdade (até mesmo para iniciar uma guerra contra os amonitas). No entanto, eles ainda têm tropas em Israel, para prevenir qualquer tentativa de libertação da opressão de seu cativeiro. Quando Jônatas ataca esta guarnição, tal ação é vista como um ataque contra a Filistia, e como um terrível insulto. Conforme é dito em nosso texto: “e também Israel se fez odioso aos filisteus” (verso 4). Os filisteus estão vindo e estão doidos! Eles vão fazer Israel pagar por isso - eles pretendem fazer um estrago enorme em Israel. Eles vêm com 30.000 carros, 6.000 cavaleiros, e tantos soldados a pé quanto as areias à beira-mar. Eles se levantam contra Israel, acampando em Micmás, onde Saul recentemente acampara com seus soldados.

Parece que a reação de Saul ao ataque de Jônatas e à chegada dos filisteus é induzida pela necessidade. Em resumo, Saul parece não ter outra opção, a não ser tentar se defender do ataque dos filisteus. Tentando dar a melhor aparência possível à situação, ele faz soar a trombeta que reúne toda a nação uma vez mais para a batalha. A “chamada” de Saul poderia ser: “Saul ataca a guarnição dos filisteus”. De uma perspectiva administrativa, é claro, Jônatas está sob a autoridade de Saul; no entanto, parece que Saul não quer admitir sua passividade, enquanto Jônatas assume o controle da situação.

No capítulo 13, a situação parece ser totalmente diferente daquela descrita no capítulo 11. No capítulo 11, Saul está capacitado pelo Espírito Santo quando fica furioso e conclama energicamente todo o Israel para lutar contra os amonitas. Aqui não é dito que ele esteja capacitado pelo Espírito e, com certeza, não é nenhum pouco enérgico quando conclama a nação para a guerra. Os israelitas são convocados, mas parece que são bem menos que os 330.000 reunidos anteriormente. E aqueles que se apresentam estão hesitantes. Quando o tamanho do exército filisteu é conhecido, os israelitas ficam apavorados. O povo começa a desertar, escondendo-se em cavernas e moitas, penhascos, buracos e cisternas. Tal situação já ocorrera antes (ver Juízes 6:1-6), o que não torna esta situação mais tolerável.

Quando Saul procura juntar seu exército, ele convoca o povo para se reunir em Gilgal, segundo as instruções que Samuel lhe dera quando disse que ele seria rei de Israel.

“Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer.” (I Sam. 10:8)

As instruções de Samuel são muito específicas: Saul deve ir a Gilgal e esperar que ele chegue. Até lá serão 7 dias. Samuel oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas. Aí, então, dirá a Saul o que ele deve fazer.

Durante este período de espera, Saul, em agonia, observa seu exército se encolhendo, quando os soldados vão se evaporando de medo. Todos os dias, à medida que a situação fica cada vez mais perigosa, os soldados fogem, procurando se salvar. Alguns procuram se salvar atravessando o rio Jordão (verso 7). Outros, aparentemente, estão dispostos a se juntar aos filisteus (ver 14:21). Aqueles que ficam com Saul estão tremendo de medo.

A Tolice de Saul e a Repreensão de Samuel
(13:8-15)

“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para o saudar. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou. Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens.” (I Sam. 13:8-15)

Saul consegue esperar durante seis dias e a maior parte do sétimo. Mas, quando o sétimo dia começa a chegar ao fim, ele está tão atormentado que não sabe o que fazer. Até posso imaginar o que se passa em sua cabeça. “Onde será que está esse homem, e o que será que está fazendo? Ele não sabe que estamos em perigo? Será que não compreende a urgência da situação e a necessidade de agir rapidamente? Vou dar a ele mais 30 minutos, depois vou ter que continuar sem ele.”

Como o povo continuasse a debandar, Saul começa a tratar do assunto pessoalmente. Pelo que parece é o próprio Saul quem oferece o holocausto. Ele dá ordens para que lhe sejam trazidos o holocausto e as ofertas pacíficas. Não há menção de algum sacerdote fazendo parte da cerimônia. Saul parece dar muita importância a esta oferta, e acho que sei porque. Em I Samuel 7, todo o Israel se reúne em Mispa para se arrepender e renovar sua aliança com Deus. Os filisteus interpretam mal este ajuntamento, presumindo que haja algum propósito militar por trás. Eles cercam os israelitas e estão prestes a atacar. Quando o ataque está para começar, Samuel está ocupado oferecendo o holocausto:

“Tomou, pois, Samuel um cordeiro que ainda mamava e o sacrificou em holocausto ao SENHOR; clamou Samuel ao SENHOR por Israel, e o SENHOR lhe respondeu. Enquanto Samuel oferecia o holocausto, os filisteus chegaram à peleja contra Israel; mas trovejou o SENHOR aquele dia com grande estampido sobre os filisteus e os aterrou de tal modo, que foram derrotados diante dos filhos de Israel.” (I Sam. 7:9-10)

Como seria fácil ver esta oferta como um meio de livrar Israel. Da mesma forma que os israelitas viram a Arca da Aliança como uma espécie de arma secreta, talvez agora Saul veja o holocausto como um meio para garantir a ação de Deus em favor de Israel. Se for assim, não é de se estranhar que Saul esteja tão ansioso para fazer com que o sacrifício seja oferecido, com ou sem Samuel.

No exato momento em que Saul termina o sacrifício do holocausto, Samuel chega. Parece claro que, se Saul tivesse esperado só mais alguns minutos, Samuel teria chegado na hora e ainda a tempo de oferecer tanto o holocausto quanto as ofertas pacíficas. Saul sai para cumprimentá-lo e sua saudação revela sua culpa. Não é Saul quem fica ali com as mãos na cintura, censurando Samuel por estar tão atrasado, mas é Samuel quem lhe pergunta o que foi que ele fez. A explicação de Saul não convence. Ele diz a Samuel que o povo estava desertando e que o profeta não veio dentro do prazo combinado. Ele mostra que os filisteus estão se reunindo para a guerra em Micmás e que sua atitude foi necessária para não ser atacado em Gilgal. Embora ele realmente não quisesse fazer o que fez, simplesmente tinha que fazê-lo e, assim, se viu forçado a oferecer o holocausto.

Samuel não fica impressionado, como demonstram suas palavras duras e diretas. A atitude de Saul foi uma tolice - pois desobedeceu deliberadamente ordens claras e diretas de Samuel. Também foi tolice porque teve efeito exatamente oposto ao que ele pensou. Com toda certeza Saul deve ter pensado que esperar por Samuel (e por suas instruções) era uma tolice. Ele estava errado. Sua desobediência lhe custará sua dinastia. Mesmo que seu reinado não acabe imediatamente, seus filhos jamais se sentarão em seu trono. Se ao menos Saul tivesse obedecido a ordem de Deus, seu reinado teria durado para sempre. Agora, seu reinado morrerá com ele. Deus já buscou e escolheu um homem cujo coração se ajusta ao Seu para substituí-lo. Tudo isto é conseqüência direta de sua desobediência.

A partida de Samuel é completamente diferente daquela descrita em I Samuel 15:24-31. Aqui, parece que Saul não fica abalado com as palavras de Samuel e, com certeza, não está arrependido. Se Saul fosse um adolescente de nossos dias, sua resposta à bronca de Samuel seria “Qual é.” Saul se ocupa com a contagem de seu parco e desgrenhado exército, agora composto de cerca de 600 homens, e Samuel se levanta e parte para Gibeá.

Conclusão

Este incidente não é o “começo do fim” para Saul; é o fim. Seu reinado durará alguns anos, mas não sobreviverá à sua morte. Dois anos de reinado e a dinastia de Saul está selada. Ao lermos estes versos, a maioria de nós talvez admita que a atitude de Saul é quase compreensível e que a resposta de Deus parece muito dura. Por que todo este estardalhaço sobre este incidente, esta asneira? Vamos considerar primeiro a gravidade da atitude de Saul e depois algumas implicações e aplicações que nosso texto oferece.

Primeiro, precisamos entender esta passagem à luz daquilo que Deus declarou sobre os reis no livro de Deuteronômio:

“Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles. Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:14-20)

Observe especialmente os versos 18 a 20. Quando o rei subir ao trono, deve escrever uma cópia da lei para si mesmo - deve fazer isto na presença dos levitas sacerdotes. Parece que isto implica numa “divisão de poderes” muito clara. O rei tem grande autoridade mas, com relação à lei, ele não apenas está sujeito a ela, como também deve ouvir os levitas sacerdotes quanto ao seu significado. Os livros da lei do Velho Testamento são o manual do rei, e os levitas sacerdotes seus professores ou tutores. Esta lei deve ser seu guia constante, a base de seu governo. Ele deve lê-la e relê-la todos os dias da sua vida. Isto não apenas dá ao rei sabedoria para governar e princípios para seu reino (a constituição do reino), mas também resguarda o rei de se ensoberbecer e se elevar acima de seus irmãos (verso 20). Esta leitura constante da lei prolongará os dias do rei, dele e de seus descendentes (verso 20).

Será que isto não explica a gravidade da resposta de Deus à desobediência de Saul? Saul não deu atenção a estas instruções registradas em Deuteronômio e, muito provavelmente, reiteradas e esclarecidas por Samuel:

“Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa.” (I Sam. 10:24-25)

Além destas instruções gerais para Saul como rei de Israel, há ainda as instruções específicas (“a ordem”) de I Samuel 10:8. Saul não tem nenhuma desculpa; seu sacrifício é um ato deliberado de desobediência, pelo qual ele perde seu reinado.

Vamos passar de Saul e sua desobediência às lições que este texto tem para cada um de nós hoje. Resumiremos as lições importantes na forma de princípios:

(1) Como Saul, quando não temos noção da nossa vocação, somos conduzidos pelos problemas. O povo quer um rei para governá-los e, em última instância, isto significa que querem um rei para libertá-los do cativeiro das nações ao seu redor. Samuel faz esforços consideráveis para transmitir a Saul o que Deus lhe designou para fazer, mas não parece ir muito longe antes do sentido de vocação de Saul ficar confuso. Em nosso texto parece faltar a Saul um profundo senso daquilo a que foi chamado a fazer, ou falta o compromisso para fazê-lo - ou talvez ambos. Quando considero os escritos do apóstolo Paulo, vejo um homem com um profundo senso de sua vocação e um grande compromisso para realizá-la (ver Rm. 1:1, I Co. 1:1, Gl. 1:15, II Tm. 4:7-8). Paulo também fala bastante a respeito de nosso chamado, e nos desafia a viver de acordo com ele - tanto com relação ao chamado comum (a que todo cristão é chamado - ver Rm. 1:6-7, 8:28/30, I Co. 1:2/9, Gl. 5:13, Ef. 4:1, I Ts. 4:7, II Ts. 1:11), quanto com relação ao chamado individual (I Co. 7:17). Saul parece não ter muita noção daquilo para o que Deus o chamou. Grande parte de suas escorregadelas vistas nos capítulos de I Samuel parece ser conseqüência de seu fracasso em compreender exatamente aquilo a que foi chamado a fazer.

Todos os cristãos foram “chamados”, e cada um de nós tem um “chamado” específico. Não estou falando de um ”chamado” especial para um “ministério em tempo integral” ou para “o trabalho missionário”. Estou falando de chamado no sentido individual, de acordo com o qual o cristão tem uma noção geral do porque Deus o(a) salvou, e uma noção mais específica de seu trabalho e contribuição no corpo de Cristo. Há cristãos demais que parecem ter perdido a noção de sua vocação e, como Saul, parecem estar se “escondendo na bagagem” da igreja e seu ministério, em vez de fazer sua parte.

2) As ordenanças de Deus servem como testes para nossa fé e obediência. Saul recebeu instruções específicas para ir a Gilgal e esperar por Samuel. Este é o seu teste de fé e obediência. As ordenanças da Bíblia são dadas por boas razões. Uma delas é que são testes específicos para nossa fé. Ouço muitos cristãos reagindo a qualquer tipo de ênfase nas ordens divinas e na nossa necessidade de obediência. “Isso é legalismo”, ouço alguns dizerem. Algumas pessoas podem obedecer a Deus de modo legalista, e esse é o problema. Mas, longe dos crentes julgarem as ordens de Deus tão levianamente. Jesus instruiu Seus discípulos a “ensiná-los a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt. 28:20). Quantas ordens de Cristo você leva à sério hoje?

3) Os privilégios cristãos também são um teste para nossa fé e amor a Deus. No capítulo 10, verso 7, Samuel instrui Saul:

“Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo.” (I Sam. 10:7)

O que, então, impede Saul de enfrentar os filisteus que ocupam Israel e oprimem o povo de Deus? Por que ele não faz o que obviamente precisa ser feito, confiando que, ao fazê-lo, Deus estará com ele? Não só a maioria de nós não consegue obedecer às ordens de Deus, também não conseguimos exercer nossos direitos como deveríamos. Direitos, como a lei, são testes onde muitas vezes somos reprovamos.

4) As emergências não são desculpas para desobedecer às ordens de Deus, mas um teste para nossa fé e obediência. Deus muitas vezes nos testa levando-nos ao limite. É desse jeito que testamos os produtos que fabricamos. A Ford não testa seus carros andando vagarosamente em volta de obstáculos. Eles são colocados na pista de teste, que golpeia a suspensão ininterruptamente e gira e pressiona o motor com superaquecimento, frio intenso, e longas distâncias. Deus também nos testa levando-nos ao limite, levando-nos ao ponto de exaustão.

Quando chegamos ao “limite”, nossa fé em Deus se torna evidente. Quando chegamos ao fim de nossas forças, aí precisamos confiar em Deus. Deus leva Saul “ao limite” retardando a chegada de Samuel até o último minuto, mas Saul não consegue esperar. Ele está convencido de que sua situação é uma “emergência” e, como tal, as regras podem ser descartadas. Nessas horas - quando somos pressionados até o limite - nossa fé e obediência são testadas para ver se guardamos ou não as leis de Deus, se obedecemos ou não a Ele.

O livro de Provérbios fala duas vezes sobre o “leão no caminho” (ver Pv. 22:13, 26:13). Esta é razão que faz o preguiçoso evitar a tarefa que ele realmente não quer fazer. Afinal, quem sairia para cortar a grama se realmente houvesse um leão lá fora? Situações emergenciais, onde o desastre parece iminente e quebrar as regras parece ser a solução, podem ser nada mais do que leões no caminho. Pode ser que estejamos dispostos a fazer exceções às ordens de Deus, mas Deus não. Vamos ter cuidado em não permitir que a crise vire desculpa para nossa desobediência.

Duvido que a desobediência de Saul ao fazer o sacrifício do holocausto seja um acontecimento isolado. Antes, é mais provável que seja o clímax, o ápice, de uma longa história de desobediência. Como demonstramos anteriormente, Saul sabe que seu dever como rei de Israel é lutar contra os filisteus e com as nações circunvizinhas que oprimem o povo de Deus. Dia após dia, mês após mês, Saul parece fechar os olhos ao sofrimento de seu povo e à presença dos filisteus em Israel. A desobediência de Saul com relação aos sacrifícios em Gilgal não é um pecado fortuito - um completo imprevisto. É a conseqüência lógica, quase inevitável de uma vida de desobediência. Esta crise apenas mostra Saul como ele é (ou como não é). Conosco é da mesma forma.

Não posso deixar de notar que não há nenhuma evidência de espiritualidade em Saul antes dele se tornar rei, nem depois. No entanto, Davi é um jovem que aprendeu a confiar em Deus quando ainda jovem pastor, a sós com seu rebanho. Davi aprendeu a confiar em Deus e a adorá-Lo. Ele andava com Deus antes de se tornar rei, e continua andando depois. Saul não tem nenhuma disciplina religiosa em sua vida, e demonstra isto, especialmente em Gilgal, quando se depara com os testes da fé.

5) O julgamento de Deus pode ser pronunciado bem antes de suas conseqüências serem visíveis. Deus pode pronunciar um julgamento muito tempo antes de concretizá-lo. Deus rejeitou Saul como rei. Isto é, o reinado de Saul não continuará (ver 13:14). Depois que isto é dito, Saul ainda reina por muitos anos antes de sua morte. Podemos ter certeza de que o julgamento de Deus é certo, mesmo que seja em alguma época por vir. É assim com Saul e é assim com a ira vindoura de Deus. A condenação de Satanás já havia sido pronunciada e, no entanto, ainda o veremos se opondo ao nosso Senhor e à Sua igreja. Apesar disso, o julgamento de Deus é certo, mesmo que não seja imediato.

6) Deus trabalha por meio de pessoas imperfeitas e que não são ideais. Não me canso de ficar maravilhado diante do tipo de pessoas que Deus usa para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Saul é uma dessas pessoas. A despeito de todas as suas fraquezas e pecados, Deus usa Saul para libertar Israel do cativeiro das nações circunvizinhas (ver 14:47-48). Ao longo da história, Deus escolhe usar as coisas “fracas e tolas” deste mundo, confundindo os sábios e trazendo glória a Si mesmo. Se Deus pode usar um homem como Saul, podemos ter certeza de que Ele pode nos usar também. Como deveríamos ser agradecidos por Deus não se limitar a usar somente pessoas perfeitas. Isto não desculpa nossas imperfeições ou nossos pecados, mas nos dá esperança de que Deus pode e usa pessoas fracas e pecaminosas para realizar Seus propósitos.

10. Saul, Jônatas e os Filisteus (I Samuel 13:15 --14:15)

Introdução

Tenho uma foto tirada no ano passado quando participava de uma pescaria com três amigos que retrata muito bem minhas recordações desse passeio. A foto foi tirada de cima prá baixo, quando meu amigo Bart Johnson estava no topo mais alto de uma montanha. A primeira coisa que você vê é a ponta das botas de Bart - depois, seus olhos podem captar um declive acentuado que, na realidade, é a encosta de um rochedo - até o lago embaixo. Não subi até lá com Bart e seu irmão Randall. Mas também estava no topo de uma espécie de rochedo - seguramente aninhado debaixo de uma árvore - e a descida era de apenas uns 20 a 25 pés (6 a 7 metros) até a água. Lançando meu anzol sem entusiasmo, via as trutas observarem minha isca, beliscando de vez em quando - até levei a isca para perto de alguns peixes bem interessantes - do meu cantinho debaixo da árvore.

Meus amigos Bart e Randall não pescaram com segurança e conforto. Quando perguntaram aos guardas florestais sobre a pesca em determinado lago, um deles respondeu: “Oh, eu não tentaria pescar naquele lago. É um lago afastado, e vocês têm que andar 600 metros montanha acima e depois descer outro tanto para chegar até lá.” Isso era tudo o que Bart e Randall precisavam ouvir; eles empacotaram suas coisas e se puseram a caminho. Disseram que a pescaria ali foi tão boa que, quase todas as vezes em que lançaram o anzol, pegaram alguma coisa. Talvez sim, mas vi suas fotos no topo daquele penhasco íngreme e cortante que eles tiveram que subir e descer para voltar. Não fiquei triste por ter ficado no meu refúgio de pesca favorito, poucos metros acima da água.

Ler a narrativa da campanha pessoal de Jônatas contra os filisteus neste texto me faz lembrar da foto de Bart e Randall encarapitados no topo daquele penhasco. Exatamente como fiz na pescaria, Saul descansa tranqüilamente à sombra de uma árvore, enquanto Jônatas e seu escudeiro escalam um sólido rochedo para lutar com a guarnição dos filisteus. Nem a subida, nem as chances impressionantes a favor dos filisteus impedem Jônatas de lutar com estes inimigos de Israel. Mas, como veremos, há muito mais nesta história do que apenas uma escalada perigosa. Conforme estivermos considerando atentamente esta passagem, aprenderemos muito mais sobre Saul e Jônatas - e sobre confiar em Deus.

Revisão

Israel exige um rei e Deus promete atender seu pedido (I Samuel 8). Mediante uma série de acontecimentos, Deus designa Saul como rei de Israel (capítulos 9 e 10). Quando Naás e os amonitas ameaçam Jabes-Gileade, Saul está possuído pelo Espírito de Deus e abate uma junta de bois, enviando os pedaços por toda a terra, ameaçando fazer o mesmo aos bois de qualquer um que se recuse a defender seus irmãos. Isto resulta numa tropa de 330.000 israelitas para guerrear contra os amonitas e numa grande vitória israelita (capítulo 11). Samuel avisa os israelitas para não ficarem otimistas demais com o novo rei, lembrando-lhes que é Deus, não os homens, quem tem livrado Seu povo ao longo da história de Israel. Se os israelitas se rebelarem contra Deus, não confiando e obedecendo a Ele, eles, junto com seu rei, serão entregues a seus inimigos. Se eles realmente temerem a Deus, então Deus terá misericórdia deles e de seu rei (capítulo 12).

Agora, no capítulo 13, as coisas rapidamente começam a azedar para Israel e para Saul, seu rei. O ataque de Jônatas à sua guarnição deixa os filisteus muito irritados e ocasiona um aumento maciço de suas tropas em Israel. À medida que o capítulo se desenrola, as coisas parecem ir de mal a pior. Saul é obrigado a reunir os israelitas para a guerra depois de ter acabado de mandá-los prá casa. Os voluntários são poucos e esparsos e, quando percebem o tamanho do exército filisteu, começam a desertar, escondendo-se em qualquer lugar. Quando Samuel demora a chegar, Saul assume seu papel, oferecendo o holocausto e pretendendo oferecer as ofertas pacíficas. Samuel chega logo após o holocausto, rejeitando as desculpas esfarrapadas de Saul e censurando-o por sua tolice. Além disso, ele anuncia a Saul que, devido à sua desobediência, seu reino não subsistirá, pois Deus escolheu como rei um homem cujo coração está em sintonia com o Seu (13:1-14).

Missão: Impossível
(13:15-23)

“Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens. Saul, e Jônatas, seu filho, e o povo que se achava com eles ficaram em Geba de Benjamim; porém os filisteus se acamparam em Micmás. Os saqueadores saíram do campo dos filisteus em três tropas; uma delas tomou o caminho de Ofra à terra de Sual; outra tomou o caminho de Bete-Horom; e a terceira, o caminho a cavaleiro do vale de Zeboim, na direção do deserto. Ora, em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada, nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice. Os filisteus cobravam dos israelitas dois terços de um siclo para amolar os fios das relhas e das enxadas e um terço de um siclo para amolar machados e aguilhadas. Sucedeu que, no dia da peleja, não se achou nem espada, nem lança na mão de nenhum do povo que estava com Saul e com Jônatas; porém se acharam com Saul e com Jônatas, seu filho. Saiu a guarnição dos filisteus ao desfiladeiro de Micmás.” (I Sam. 13:15-23)

Voltamos à história com Samuel deixando Saul em Gilgal e subindo para Gibeá e, ao que parece, sem “mostrar-lhe o que deveria fazer” (10:8). Samuel não dá a Saul nenhuma orientação de como ele deve lidar com a invasão em massa dos filisteus, resultante do ataque de Jônatas à sua guarnição em Geba (13:3, ver também 10:5). Preparando-se para a guerra, Saul conta suas tropas, descobrindo que há 600 homens com ele prontos para lutar. Tendo em vista os milhares de soldados das tropas filistéias, as chances se acumulam contra Israel e seu novo rei.

Talvez imaginemos uma espécie de distância entre o exército filisteu, acampado em Micmás, e as forças israelitas sob o comando de Saul e Jônatas, acampadas em Geba (13:16). Mas este não é bem o caso. Enquanto o exército principal dos filisteus parece estar entrincheirado em Micmás, três destacamentos de “saqueadores” são enviados por todo Israel (13:17, 14:15). Um é enviado para o norte em direção a Ofra, outro para oeste em direção a Bete-Horom, e o terceiro para leste em direção ao deserto (os israelitas estão ao sul). Estas tropas de saqueadores, ou destruidores, parecem ser ”forças especiais” cuja função é matar, queimar ou destruir a vida humana, o gado, as construções ou a colheita. Quanto mais longe puderem ir, destruindo tudo pelo caminho, pior será para Israel. Se os filisteus não forem derrotados e expulsos, haverá muitos problemas para a nação.

Brutalmente excedidos em número, os israelitas estão tão apavorados que desertam em bandos. Saul imprudentemente ofereceu o holocausto e foi censurado por Samuel. As tropas de saqueadores estão percorrendo a terra, deixando atrás de si um rastro de destruição. E agora, os poucos remanescentes das tropas israelitas estão mal equipados, se comparados aos filisteus. Para estes, pelo menos, a Idade do Ferro já chegou. Sua tecnologia permite que tenham espadas e lanças de ferro e carruagens com rodas de ferro. Seus agricultores têm ferramentas afiadas e que não se quebram com facilidade. Os israelitas não possuem a tecnologia dos filisteus. Os filisteus vendem implementos agrícolas de ferro aos israelitas, mas não armas de ferro, e nem permitem que eles fabriquem ou possuam tais armas. Isto dá aos filisteus um avanço decisivo (perdão pelo trocadilho) sobre israelitas. O escritor nos fala deste “avanço” e que somente Saul e Jônatas possuem espadas (13:22). As coisas não parecem boas para Israel.

Nas questões agrícolas, os israelitas praticamente dependem dos filisteus. Eles precisam comprar suas ferramentas deles e depois pagar para afiá-las. Todos os dias os israelitas são relembrados de sua sujeição aos filisteus. Militarmente falando, as coisas parecem sem solução. Os filisteus têm um vasto e bem equipado exército e destacamentos de saqueadores que percorrem Israel à vontade, levando morte e destruição. Israel tem um pequeno exército de homens apavorados, muitos dos quais estão desertando, com alguns até mesmo se juntando aos filisteus (ver 14:21). Na melhor das hipóteses, o rei de Israel está desanimado. Com uma tecnologia infinitamente inferior, os israelitas estão num beco sem saída.

Lembro-me da “guerra dos seis dias” entre Israel e seus vizinhos, em junho de 1967. Lembro-me bem desta guerra porque minha esposa e eu estávamos nos preparando para partir para o seminário em Dallas, Texas. Nós nos perguntávamos se o Senhor viria antes de chegarmos lá. Ouvíamos as notícias de que Israel era inferior em homens e em armas e, por isso, vulnerável. Como estavam erradas as estimativas das chances de sucesso de Israel! Como a guerra terminou rapidamente; tudo, creio, devido ao cuidado providencial de Deus para com Seu povo.

A Estupidez de Saul e a Fé de Jônatas
(14:1-15)

“Sucedeu que, um dia, disse Jônatas, filho de Saul, ao seu jovem escudeiro: Vem, passemos à guarnição dos filisteus, que está do outro lado. Porém não o fez saber a seu pai. Saul se encontrava na extremidade de Gibeá, debaixo da romeira em Migrom; e o povo que estava com ele eram cerca de seiscentos homens. Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, filho de Eli, sacerdote do SENHOR em Siló, trazia a estola sacerdotal. O povo não sabia que Jônatas tinha ido. Entre os desfiladeiros pelos quais Jônatas procurava passar à guarnição dos filisteus, deste lado havia uma penha íngreme, e do outro, outra; uma se chamava Bozez; a outra, Sené. Uma delas se erguia ao norte, defronte de Micmás; a outra, ao sul, defronte de Geba. Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos. Então, o seu escudeiro lhe disse: Faze tudo segundo inclinar o teu coração; eis-me aqui contigo, a tua disposição será a minha. Disse, pois, Jônatas: Eis que passaremos àqueles homens e nos daremos a conhecer a eles. Se nos disserem assim: Parai até que cheguemos a vós outros; então, ficaremos onde estamos e não subiremos a eles. Porém se disserem: Subi a nós; então, subiremos, pois o SENHOR no-los entregou nas mãos. Isto nos servirá de sinal. Dando-se, pois, ambos a conhecer à guarnição dos filisteus, disseram estes: Eis que já os hebreus estão saindo dos buracos em que se tinham escondido. Os homens da guarnição responderam a Jônatas e ao seu escudeiro e disseram: Subi a nós, e nós vos daremos uma lição. Disse Jônatas ao escudeiro: Sobe atrás de mim, porque o SENHOR os entregou nas mãos de Israel. Então, trepou Jônatas de gatinhas, e o seu escudeiro, atrás; e os filisteus caíram diante de Jônatas, e o seu escudeiro os matava atrás dele. Sucedeu esta primeira derrota, em que Jônatas e o seu escudeiro mataram perto de vinte homens, em cerca de meia jeira de terra. Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.”

Quando estava no seminário, numa aula do Dr. Bruce Waltke, ele fez uma comparação entre Jacó e Isaque e descreveu Jacó dizendo: “Se Isaque era uma brisa; Jacó era um furacão!” Devo admitir que, quanto mais leio sobre Saul, menos gosto dele. Vamos rever aquilo que dissemos a seu respeito. No capítulo 8, o povo exige um rei. Nos capítulos 9 e 10, Saul é divinamente designado como rei de Israel. Mais, Saul é divinamente capacitado para ser rei de Israel pelo Espírito Santo que desce sobre ele. Estou particularmente interessado na descida do Espírito sobre Saul e nas implicações desse acontecimento conforme dito por Deus por meio de Samuel:

“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles.” (I Sam. 10:5-10)

Os dois primeiros sinais são apenas para Saul, para convencê-lo de que as palavras de Samuel são palavras de Deus. A poderosa descida do Espírito sobre Saul é sinal para ele e para as pessoas que testemunham o fato (10:11-12). As palavras de Samuel para Saul, conforme registrado no verso 7, são muito importantes. Quando estes sinais forem realizados, Samuel diz a Saul que ele deve “fazer o que a ocasião pedir”, confiando que Deus estará com ele em tudo o que fizer. No verso 8, então, Samuel lhe dá instruções específicas a respeito de ir a Gilgal e esperar durante sete dias, quando ele oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas, e “declarará o que ele há de fazer”. Por que dois anos, ou mais, separam a descida do Espírito sobre Saul e sua viagem a Gilgal? Por que não ouvimos falar de nenhuma ação de Saul nesses anos intermediários entre sua capacitação e sua ida a Gilgal?

Temos que admitir que Saul realmente conclama os israelitas a irem à guerra contra os amonitas, para proteger seus irmãos em Jabes-Gileade (capítulo 11). Conforme leio o texto, vejo que esta não é uma decisão tomada conscientemente por Saul, mas uma manifestação imediata do Espírito agindo sobre ele de maneira incomum - Saul não age até que o Espírito aja. Enfim, nem mesmo é Saul quem inicia a guerra contra os amonitas; é o Espírito de Deus.

Anteriormente Deus havia levantado juízes para livrar os israelitas de seus inimigos:

“E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.” (I Sam. 12:10-11)

É evidente que os israelitas querem (exigem) um rei para liderá-los na guerra (ver 8:19-20). Há um acréscimo muito interessante no texto da Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) no capítulo 10, verso 1. Numa nota à margem do verso 1, a Nova Versão King James nos diz o que foi acrescentado:

LXX, Vg. acréscimo - E livrarás Seu povo das mãos de todos os seus inimigos em derredor. E isto te será por sinal de que Deus te ungiu para seres príncipe.

Mais à frente, no capítulo 14, a administração de Saul como rei de Israel é resumida desta maneira:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Se entendo corretamente o texto, Israel exige um rei que os livre dos inimigos ao seu redor como fizeram os juízes anteriormente. Deus lhes dá Saul como rei, o qual deve livrá-los de seus inimigos, sendo que, tanto ele quanto a nação devem confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos. O Espírito de Deus desce sobre Saul, como fez com Sansão e tantos outros, para capacitá-lo a conduzir os israelitas vitoriosamente contra seus inimigos. Assim que o Espírito desce sobre ele, Samuel lhe dá instruções, e ele deve agir de forma apropriada, confiando que Deus estará com ele para livrar Israel de seus inimigos.

Parece que Saul não é um homem espiritual. Apesar de Samuel ser conhecido por seu tio (10:14-16) e por seu servo (10:5-10), aparentemente ele é desconhecido para Saul, e isto numa época em que a profecia é muito rara (3:1). O ponto mais distante do circuito das viagens de Samuel (8:16-17) não fica a mais de 15 milhas da cidade de Saul, Gibeá. E sua casa em Ramá fica aproximadamente a 3 milhas de Gibeá, a cidade de Saul. Como pode um homem espiritualmente sensível nada saber a respeito de Samuel?

A situação só piora. Sabemos que, devido a ameaça a Jabes-Gileade, Saul se vê “forçado” a agir e reúne um exército de 330.000 israelitas. Já que os amonitas estão derrotados, por que Saul não vai em frente, expulsando também os filisteus? Afinal, é para isto que ele foi designado. Em vez disto, Saul manda os soldados de volta prá casa, ficando apenas com um exército esquelético, uma pequena força de 3.000 homens, e que está dividido em duas companhias. É como se ele não quisesse enfrentar os filisteus e só quisesse viver de seu status. Não é a iniciativa de Saul, mas a de seu filho, Jônatas, que provoca o confronto com os filisteus, levando-os à derrota.

Não é de se admirar que Samuel faça tanto esforço para relembrar aos israelitas que sempre foi Deus quem os livrou de seus inimigos. Também não é de se admirar que Samuel chame a nação ao arrependimento por colocar mais fé em seu rei do que em seu Deus. O capítulo 13 se concentra na nação de Israel e na ameaça dos filisteus, que não só ocupam Israel, mas que também ameaçam destruí-lo. O capítulo 14 se concentra em Saul e em seu filho Jônatas, de forma a retomar o contraste feito pelo autor entre os dois iniciado no capítulo 13.

Os filisteus, finalmente, estão em vantagem na região montanhosa de Judá e Benjamim, estabelecendo sua base principal em Micmás (13:16), ao que parece, no pico das montanhas que separam as planícies do vale do Jordão e as planícies litorâneas onde vivem. Cerca de 600 soldados ficam com Saul e Jônatas, enquanto o restante deserta escondendo-se dos filisteus ou juntando-se a eles (13:6-7; 14:20-22). Saul e seu “exército” estão acampados em Geba (13:16), e no capítulo 14 em Gibeá, um pouco mais ao sul e mais distante dos filisteus, que ainda estão em Micmás, ao norte.

Que contraste nosso autor faz entre Saul e seu filho, Jônatas. A nação de Israel está em guerra, desesperadamente excedida em número e miseravelmente equipada. E, mesmo assim, Saul se encontra debaixo “da romeira em Migrom” (14:2). Enquanto Saul fica fora do sol e à salvo, fora do alcance dos filisteus, seu filho Jônatas está prestes a enfrentar muitos deles, acompanhado por seu escudeiro. Esta é uma investida particular. Jônatas não pede a permissão de seu pai, nem o informa, e também não deixa que ninguém mais saiba de sua partida. Acho que ele sabe o que seu pai pensará de qualquer atitude agressiva contra os filisteus. Saul não quer ter problemas com eles, e Jônatas não quer mais que Israel seja atormentado por eles.

Eis Saul sentado à sombra de uma árvore (pelo que parece). Saul tem uma das duas únicas espadas de Israel. Junto com ele está Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, e neto de Eli (14:3). Aías veste (ou carrega com ele) a estola sacerdotal, um dos meios para discernir a vontade de Deus (ver I Sam. 23:9-12, 30:6-8). Saul não consegue obter instruções de Samuel em Gilgal devido à sua desobediência (13:1-14), e agora ele tem a estola sacerdotal e um sacerdote com ele; contudo, não pergunta a Deus o que deve fazer.

Jônatas, no entanto, tem uma noção definida da vontade de Deus que o faz agir. Primeiro, ele conhece muito bem a vontade de Deus pela história de Israel e pela natureza do próprio Deus. Suas palavras a seu escudeiro são cheias de fé e senso de dever. São palavras que explicam sua confiança e ação e que incentivam a lealdade de seu escudeiro:

“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (14:6)

Os filisteus são “incircuncisos”, eles não possuem um relacionamento pactual com Deus como os israelitas. A aliança feita por Deus com Israel lhes dá a garantia de Sua presença e de Sua proteção contra seus inimigos. Deus os tirou da escravidão do Egito e lhes prometeu dar a terra de Canaã e a liberdade das nações ao seu redor. Com certeza, Israel não tem esta liberdade. As guarnições dos filisteus ocupam a terra e os israelitas não podem sequer cultivá-la sem ter que comprar as ferramentas e obter sua manutenção dos filisteus. Jônatas entende que Deus não pretende que Seu povo seja escravizado pelas nações ao seu redor. Ele entende que agora é responsabilidade do rei liderar o povo na guerra contra os inimigos de Israel e seu Deus. Ele também entende, pela natureza de Deus e pela história de Israel, que a vitória de Israel não depende do “braço da carne”, da quantidade de tropas ou do tipo de armas que possuem. Deus deu a vitória sobre os midianitas quando Gideão liderava 300 homens na batalha (ver Juízes 7). Se é da vontade de Deus que Israel prevaleça sobre seus inimigos, não são necessários 600 homens - podem ser apenas dois.

A questão na cabeça de Jônatas não é se Deus pode entregar os filisteus nas mãos dos israelitas, mas se isto é, ou não, da vontade de Deus. Saul tem o sacerdote e a estola sacerdotal, mas não se importa em perguntar a Deus. Ele prefere sentar-se à sombra de uma árvore! Por isso, Jônatas determina outra maneira de discernir a vontade de Deus com relação à sua intencionada investida contra a guarnição dos filisteus.

Jônatas busca um sinal de Deus que indique se ele e seu escudeiro devem atacar os filisteus. Micmás e Gibeá são dois pontos elevados do local. O acesso a Micmás é através do passo de Micmás, uma passagem muito estreita, aparentemente o curso de uma pequena correnteza. Os filisteus parecem ter uma pequena companhia de soldados em cima do passo, onde podem avistar e parar qualquer um que tente atravessá-lo. O plano de Jônatas é descer a face rochosa de um dos penhascos e tornar sua presença visível aos filisteus no topo do penhasco do outro lado da passagem. Se os filisteus demonstrarem que vão descer para atacá-lo e a seu escudeiro, eles não tentarão subir o penhasco onde eles estão. Se, no entanto, os soldados os desafiarem a subir, este será o sinal de que Deus quer que eles façam a perigosa escalada até o posto de observação dos filisteus e de que Ele dará a vitória a Israel.

Com total apoio de seu escudeiro, estes dois valentes israelitas se tornam visíveis, ao que parece quando descem a face do penhasco até o passo embaixo. Os sentinelas filisteus os avistam e supõem que estejam saindo de seu esconderijo nas rochas. Os filisteus, então, convidam os dois para subir, e Jônatas e seu escudeiro recebem isto como sinal de Deus de que Ele lhes dará a vitória.

Jamais poderia imaginar que os filisteus pudessem dizer tal coisa. Por que não jogam pedras e rochas sobre Jônatas e seu ajudante? Por que não despacham as tropas até o passo para matá-los? Por que, quando eles estão mais vulneráveis, enquanto escalam o penhasco rochoso, os filisteus não se aproveitam de sua vulnerabilidade e os matam com rapidez e facilidade? Acho que a resposta está no texto. Os filisteus convidam os dois para subir para “lhes dizer alguma coisa”. A princípio, pensei que isto fosse um desafio, e acho que poderia ser. Talvez as coisas estejam maçantes e enfadonhas, e os filisteus queiram uma pequena contenda; por isso, pretendem deixá-los vir ao topo, onde podem se engajar com eles.

Agora, estou inclinado a uma explicação diferente. Creio que os filisteus deixam Jônatas e seu escudeiro subirem para que se entreguem e se juntem a eles contra Israel. Os filisteus sabem que têm a vantagem. Sabem que possuem armas superiores e superam em muito os 600 soldados que seguem Saul. Sabem que podem enviar saqueadores por todo o país com pouquíssima resistência por parte dos israelitas. E eles já acrescentaram um certo número de israelitas às suas próprias tropas (14:21). Por que não permitir que estes dois israelitas assustados, que estão rastejando prá fora de seus buracos, se dêem por vencidos e se juntem ao exército vencedor? Com certeza, não é seguro para os filisteus assumirem esta posição, mas este é um sinal convincente, pelo menos na cabeça de Jônatas. E assim eles escalam esse penhasco íngreme e rochoso até os filisteus.

Os filisteus não barganharam pelo que veio a ocorrer. Jônatas começa a usar sua espada com destreza, e aqueles que ele deixa vivos atrás de si são despachados por seu escudeiro. Em pouco tempo e num pequeno espaço, o grupo de sentinelas é morto, tornando possível aos israelitas atravessarem o passo até Micmás e perseguirem os filisteus.

Mas, espere - como diz um comercial de TV de R$ 40,00 - tem mais! Se Deus está com Jônatas em seu ataque ao posto dos filisteus, agora Ele está prestes a mostrar Seu braço poderoso, dando a Israel a vitória sobre a guarnição dos filisteus em Micmás. Amo o jogo de palavras que se encontra nos capítulos 13 e 14:

“E os hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e, estando Saul ainda em Gilgal, todo o povo veio atrás dele, tremendo...” (I Sam. 13:7)

“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.” (I Sam. 14:15)

Não era Elvis Presley que cantava: “Estou todo sacudido, uh, uh, uh...”? Bem, Deus “sacudiu” os filisteus. Tudo começa com as tropas israelitas que seguem Saul. Eles percebem como é fraca sua posição contra os filisteus. Eles também devem sentir a fraqueza da liderança de Saul. Eles estão com sérios problemas - como nosso autor nos informa, eles estão “sacudidos” (13:7). Isto impede Deus de dar a vitória a Israel? Claro que não! Deus passa a “sacudir” os filisteus.

Imagine, se puder, a presunçosa sensação de segurança que os filisteus devem sentir enquanto estão ocultos em Micmás. Para chegar até eles, o minúsculo exército israelita precisa atravessar o passo de Micmás, e uns vinte homens podem facilmente rechaçá-los. A segurança dos filisteus está numa estreita passagem, num ponto elevado das montanhas, protegido por rocha maciça, o que funciona muito bem, até ocorrer um terremoto. Agora, este lugar anteriormente seguro se transforma no lugar mais perigoso do mundo. Saul e suas sentinelas observam enquanto o exército filisteu se agita de um lado para o outro, provavelmente em sincronia com o solo, que se encrespa como os vagalhões do mar durante uma tormenta. Todas as coisas que antes pareciam garantir sua vantagem sobre os israelitas se tornam desvantagens. Em pânico e em movimento, eles matam uns aos outros com suas espadas, não os israelitas. Seus carros e cavalos são inúteis, uma vez que os animais aterrorizados se recusam a obedecê-los; fendas escancaram-se no solo e pedras rolam de todos os lados acima do passo. Em todos os lugares prevalece o pânico absoluto, impedindo qualquer ataque e atrapalhando qualquer retirada. Os filisteus se tornam seus próprios e piores inimigos, matando uns aos outros na insanidade daqueles momentos.

Conclusão

Que texto incrível, de onde se extraem muitos princípios e implicações para nós, cristãos da atualidade.

A primeira área de instrução e aplicação que salta desta passagem é a questão da liderança. Nos círculos cristãos atuais, a questão da liderança é a área principal das meditações, escritos e discussões. Infelizmente, muitas coisas ensinadas sobre liderança nos chamados círculos cristãos é simplesmente teoria secular, requentada e sacralizada. Uma vez que há uma infinidade desse material, não precisamos repetir o conceito secular de liderança. Saul e Jônatas proporcionam exemplos de liderança espiritual positiva e negativa. As palavras confiar e obedecer talvez não resumam tudo o que há para ser dito sobre a vida cristã mas, com certeza, descrevem as duas dimensões de maior importância. Saul é um homem quase sem fé. A palavra “medo” parece caracterizá-lo melhor. Ele teme dizer a seu tio que Samuel o ungiu como rei de Israel. Ele se esconde na bagagem quando sabe que será publicamente eleito como rei. Ele tem medo de perder suas tropas e por isso se vê forçado a oferecer o holocausto. E, parece que ele teme tanto enfrentar os filisteus, que faz o mínimo possível para atacá-los ou provocá-los.

O “Saul” que vemos no capítulo 11 é o “novo Saul”, que Deus faz surgir quando o Espírito desce poderosamente sobre ele. Mas este Saul não parece ir além do capítulo 11. É o “velho Saul” que encontramos em outros lugares. É o “velho Saul” que vemos descrito nos capítulos 13 e 14. Quando o “novo Saul” reúne os israelitas para a guerra, 330.000 se apresentam. Quando o “velho Saul” reúne Israel para ir a Gilgal, apenas uma pequena fração deste número se apresenta, e muitos deles desertam de medo. O medo de Saul é contagioso. Uma vez que ele não confia em Deus, nem O obedece, seus seguidores não confiam nele, nem o obedecem.

Como Jônatas é diferente - eis um homem de fé. Ele confia que Deus lhe dará a vitória sobre a guarnição dos filisteus no capítulo 13. Ele está disposto a enfrentar os filisteus no passo de Micmás, mesmo que isto envolva ter que escalar um penhasco íngreme com sua armadura, seguido unicamente por seu servo. Este é um homem que confia em Deus apesar da aparência das circunstâncias. E eis um homem que seu escudeiro está disposto a seguir na batalha, mesmo que isto pareça suicídio. Por que? Creio que é porque Jônatas não é apenas um homem de fé, mas um homem cuja fé é contagiosa. Os que estão com Saul tremem porque ele treme. Os que estão perto de Jônatas confiam em Deus porque ele confia.

Isto leva a uma definição muito simples de liderança espiritual:

Liderança espiritual começa com fé em Deus, a qual compele um homem a agir obedientemente, a despeito dos obstáculos e das circunstâncias adversas, e faz com que outros o sigam em sua obediência.

Enfim, liderança espiritual não é uma questão de aparência, charme ou técnicas de administração e motivação. Liderança espiritual é uma questão de homens e mulheres que confiam em Deus e obedecem à Sua palavra e, desta forma, levam outros a confiarem e a obedecerem com eles. Saul não é um líder espiritual, Jônatas é.

Uma segunda aplicação diz respeito à nossa avaliação do êxito dos líderes. Deixe-me tentar afirmar isto como princípio:

Quando os líderes são bem sucedidos, em última análise, é devido à graça de Deus e, muitas vezes, pode ser conseqüência da fidelidade de outras pessoas cujos ministérios de apoio não sejam tão evidentes.

Considere estes versos que falam sobre o êxito da liderança de Saul:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Não desejo tirar todo o crédito de Saul, mas realmente creio que nosso texto deixa bem claro que ele só é bem sucedido devido à graça de Deus, não devido à sua própria habilidade, coragem ou poder. E a vitória de Israel sobre os filisteus não é devido à sua iniciativa, mas devido à iniciativa de seu filho. Quantas vezes são aclamados como grandes líderes os que recebem as glórias pertencentes àqueles que, por detrás dos panos, os tornam grandes? São muitos os que procuram os refletores. Bem-aventurados aqueles que fazem seus superiores parecerem bem, enquanto se afastam dos refletores.

Uma terceira área de aplicação é a relação entre fé e ação. Pelo contraste entre ambos, Jônatas e Saul ilustram a maneira como a fé se comporta. Às vezes, a fé é demonstrada pela nossa espera, não pelo nosso trabalho. A fé espera quando nosso trabalho seria fruto de nossa desobediência. Abraão deveria ter esperado pelo filho prometido ao invés de tê-lo com Agar. Saul deveria ter esperado ao invés de oferecer o holocausto. Quando não existe maneira de agirmos com fé e obediência, devemos esperar que Deus aja de maneira que supra as nossas necessidades.

Em outras ocasiões, somos inclinados a esperar quando a fé deveria ser demonstrada pelas nossas obras. Saul, que não poderia esperar por Samuel (mesmo tendo sido ordenado a isso), está mais do que disposto a esperar para livrar Israel do cativeiro dos filisteus, que não só ocupam sua terra (suas guarnições), mas também oprimem economicamente os israelitas com o monopólio da exploração do ferro. Um agricultor não poderia sequer sustentar-se sem pagar caro por suas ferramentas, e depois pagar muitas outras vezes para mantê-las (afiadas). Saul parece ter intenção de manter seu status junto aos filisteus. Ele pode (e aparentemente o faz) esperar indefinidamente para expulsá-los de Israel. Eis uma ação necessária que requer fé; no entanto, Saul quer esperar. Seus ataques às suas guarnições provocam um confronto militar que resulta na derrota dos filisteus - e na glória de Deus. Quantas vezes esperamos quando deveríamos agir e agimos quando deveríamos esperar. Como saber quando agir? Quando a palavra de Deus nos instrui a isso. Quando esperar? Quando a palavra de Deus nos instrui a tal, e quando agir demonstra nossa falta de fé e nossa desobediência.

Quarto, como muitos outros, o nosso texto nos dá uma perspectiva inteiramente nova das situações que parecem impossíveis. Aqui, como em outros lugares, Deus conduz Seu povo a circunstâncias aparentemente impossíveis. Vemos novamente um princípio muito importante ilustrado em nosso texto:

Deus intencionalmente leva os homens a situações “impossíveis” para deixar perfeitamente claro que não podemos salvar a nós mesmos, e que Ele nos liberta de forma que toda a glória seja dada a Ele.

Em outro lugar na Bíblia lemos:

“Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura.” (Isaías 42:8)

Diversas vezes na Bíblia Deus coloca os homens em situações impossíveis a fim de poder salvá-los de maneira a receber toda a glória por isso. Ele prometeu um filho a Abrão e Sarai, os quais, humanamente falando, estavam “mortos” com relação a poder ter filhos (ver Romanos 4:19), e eles tiveram um filho. Jesus sabia que Lázaro estava doente mas, deliberadamente esperou que ele estivesse morto para ir ao seu túmulo (ver João 11), a fim de poder demonstrar Seu poder sobre a morte ao ressuscitá-lo de entre os mortos.

Deus ama mostrar Sua força através das nossas fraquezas. O capítulo 13 de I Samuel mostra Israel e Saul em toda a sua fraqueza. Os soldados israelitas estão completamente inferiorizados em número e totalmente ultrapassados em suas armas. A despeito do que parece ser uma situação sem esperança, Deus lhes proporciona uma importante vitória sobre os filisteus. E isto acontece porque dois homens (um sem espada) confiam em Deus o suficiente para enfrentar os filisteus. Deus transforma o tremor dos israelitas no tremor de um terremoto, tão poderoso que traz confusão e caos às fileiras filistéias e, a maior parte dos que morrem ao fio da espada, morrem pelas mãos de seus irmãos filisteus.

Muitos cristãos parecem ter fé somente quando a vitória parece ser possível devido a esforços humanos, mas desmoronam quando as circunstâncias parecem impossíveis. Precisamos aprender com Jônatas que a vitória de Deus não depende das nossas forças, e com o apóstolo Paulo que a Sua força é manifestada através das nossas fraquezas (ver I Samuel 14:6; II Coríntios 12:9-10).

A ênfase nos círculos seculares (e, infelizmente, também nos círculos evangélicos) está no “poder do pensamento positivo”. Talvez haja ali um elemento de fé, mas há também um erro muito grave. Deus não é limitado por nossas habilidades, como demonstra a libertação de Saul, Jônatas e Israel dos filisteus. E Deus não é limitado pela nossa imaginação, nem pelos nossos pensamentos.

“mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam.” (I Co. 2:9)

“Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém!” (Ef. 3:20-21)

Deus leva os pecadores ao ponto do desespero e da desesperança (em suas condições, em seu “fanatismo” e em seus pecados) para que deixem de confiar em si mesmos e se voltem para Ele. O que nenhum homem jamais foi capaz de fazer para salvar a si mesmo, Jesus Cristo o fez na cruz do Calvário. Ele viveu uma vida de perfeita obediência a Deus. Ele morreu, não por seus próprios pecados, mas pelos pecados dos homens. Jesus pagou a pena pelos nossos pecados e oferece aos homens pecaminosos e indignos o dom da Sua justiça e da vida eterna. Jesus pagou por tudo. Tudo o que precisamos fazer é admitir nosso pecado, nossa corruptibilidade e nossa total incapacidade de salvar a nós mesmos. O que é impossível aos homens é possível para Deus:

“Mas ele respondeu: Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus.” (Lc. 18:27)

Você já chegou ao seu limite? Já percebeu que receber o favor de Deus e alcançar o céu são coisas humanamente impossíveis? Se já, isto é uma bênção, se confia em Jesus Cristo para sua salvação.

Vamos concluir nosso estudo louvando a Deus junto com o apóstolo Paulo por Sua sabedoria em realizar coisas que achamos impossíveis, por meios que jamais poderíamos imaginar:

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)

11. Saul Luta Contra os Filisteus (I Samuel 14:15-52)

Mark Twain estava na cidade de São Francisco quando o terremoto de 1865 abalou a cidade; ele descreveu seu primeiro terremoto com as seguintes palavras:

“Foi logo depois do almoço, num dia ensolarado de outubro. Eu descia a Rua Três. As únicas coisas em movimento naquele denso e povoado quarteirão eram um homem numa carruagem atrás de mim e um bonde terminando lentamente a travessia da rua. Fora isso, era um sábado calmo e tranqüilo.

Conforme virei a esquina, próximo a uma casa apainelada, havia um grande tumulto e gritaria, e ocorreu-me que ali havia assunto para uma matéria! Sem dúvida havia uma briga naquela casa. Antes que eu pudesse me virar e procurar pela porta, ocorreu um tremendo choque; debaixo de mim o chão parecia ondular suspenso por um violento sacolejo, e havia um barulho ensurdecedor como o de casas em atrito. Caí de encontro à casa e machuquei meu cotovelo. Agora eu sabia o que era... aconteceu um terceiro choque ainda mais forte e, enquanto eu cambaleava na calçada tentando manter o equilíbrio, vi uma coisa espantosa. Toda a frente de um alto edifício de tijolos da Rua Três abriu-se como uma porta e caiu, desmoronando no meio da rua e levantando uma grande nuvem de poeira!

E aí veio a carruagem - o homem foi lançado prá fora e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, o veículo desmanchou-se em mil pedaços ao longo de 300 jardas de rua... O bonde tinha parado, os cavalos estavam empinando e refugando, e os passageiros jorrando de todos os lados... Cada porta de cada casa, tão longe quanto a vista pudesse alcançar, vomitavam uma torrente de seres humanos; e antes mesmo que alguém pudesse piscar, havia uma enorme multidão enfileirando-se numa procissão infindável que descia pelas ruas até onde eu estava. Nunca um lugar tão deserto ficou tão fervilhante de vida com tanta rapidez.

Terremotos são experiências assombrosas. Lembro-me muito bem do terremoto que ocorreu quando eu lecionava para os alunos da 6ª série no Estado de Washington. Duvido que os sobreviventes filisteus da época de Saul tenham se esquecido do terremoto ocasionado por Deus, que os levou à derrota às mãos de Deus e de Seu povo, Israel. A vitória de Israel foi grande, mas não foi o que poderia ter sido. Nosso texto faz o contraste entre a fé e a coragem de Jônatas e a loucura de seu pai, Saul. Vamos prestar bastante atenção à nossa passagem para ver o que é que distingue este filho de seu pai.

O Contexto

Apesar de sua designação como rei de Israel e de sua vitória decisiva sobre os amonitas, Saul parece determinado a não “criar caso” com os filisteus que ocupam Israel. O domínio dos filisteus sobre o povo de Deus é claro em vários aspectos. Suas guarnições estão acampadas em território israelita (ver I Sam. 10:5; 13:3) e os israelitas são rigorosamente limitados na posse e na utilização do ferro. Eles podem ser ferreiros, mas não podem ter armas de ferro (espadas, por exemplo), e pagam caro pelo uso das ferramentas agrícolas (I Sam. 13:19-23). Apesar da opressão dos filisteus, de sua designação como rei e de sua capacitação divina (ver cap. 9 e 10), Saul prefere mandar prá casa os 330.000 soldados que convoca para livrar os cidadãos de Jabes-Gileade. Ele fica apenas com um exército básico de 3.000 homens. Parece que isto é para manter seu status junto aos filisteus.

Jônatas não está disposto a deixar a situação como está. Com seus 1.000 homens ele ataca a guarnição dos filisteus em Geba (13:3), provocando um poderoso contra-ataque filisteu (13:5 e ss). Saul não tem outra escolha, a não ser convocar os israelitas para a guerra, embora apenas um pequeno número se apresente, e muitos desertem quando percebem a situação desesperadora de Israel (humanamente falando). Alguns abandonam Saul para encontrar um lugar onde se esconder dos filisteus, enquanto outros desertam e se juntam a eles (13:6; 14:21-22). Saul reúne as tropas em Gilgal, aparentemente segundo as instruções de Samuel (10:8). Mas, quando parece que Samuel não chegará no prazo determinado, Saul vai em frente e oferece o holocausto. Samuel chega assim que a oferta é feita e repreende Saul por sua desobediência, mostrando que isto lhe custará um reino duradouro (13:11-14).

A guerra entre israelitas e filisteus não vai nada bem. Além dos filisteus sobrepujarem os israelitas em homens e em armas, os poucos soldados israelitas que restam estão apavorados, e Saul parece paralisado. Ao mesmo tempo, os filisteus acampados em Micmás despacham grupos de saqueadores que causam destruição e devastação por onde passam (o que parece ser em qualquer lugar que queiram - ver 13:15-18).

Se Saul não está disposto a tomar a iniciativa de lutar contra os filisteus, Jônatas está. Ele e seu escudeiro se preparam secretamente para lutar com os filisteus. Eles descem um íngreme penhasco e escalam o outro lado, quando a reação dos filisteus à sua presença mostra que Deus dará a vitória a Israel. Quando os dois bravos israelitas alcançam o topo, eles travam batalha com seus inimigos, matando 20 deles num espaço de meio acre (14:1-4). Nesse ponto da batalha, Deus intervém divinamente com um assombroso terremoto, o qual enfraquece e dispersa os filisteus. Voltamos à nossa lição no começo desse terremoto.

Sacudindo o Inimigo
(14:15-23)

“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus. Olharam as sentinelas de Saul, em Gibeá de Benjamim, e eis que a multidão se dissolvia, correndo uns para cá, outros para lá. Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. Contaram, e eis que nem Jônatas nem o seu escudeiro estavam ali. Saul disse a Aías: Traze aqui a arca de Deus (porque, naquele dia, ela estava com os filhos de Israel). Enquanto Saul falava ao sacerdote, o alvoroço que havia no arraial dos filisteus crescia mais e mais, pelo que disse Saul ao sacerdote: Desiste de trazer a arca. Então, Saul e todo o povo que estava com ele se ajuntaram e vieram à peleja; e a espada de um era contra o outro, e houve mui grande tumulto. Também com os filisteus dantes havia hebreus, que subiram com eles ao arraial; e também estes se ajuntaram com os israelitas que estavam com Saul e Jônatas. Ouvindo, pois, todos os homens de Israel que se esconderam pela região montanhosa de Efraim que os filisteus fugiram, eles também os perseguiram de perto na peleja. Assim, livrou o SENHOR a Israel naquele dia; e a batalha passou além de Bete-Áven.”

Lembro-me muito bem do dia em que fiz algo errado na aula de ginástica e meu professor da 6ª série, Sr. Johnstone, me pegou e me sacudiu contra a parede. Entendi a mensagem alta e clara. Os filisteus também entendem a mensagem, bem mais alto e bem mais claro. Mesmo um terremoto “normal” (se é que existe tal coisa) teria abalado os filisteus, mas este parece extraordinário. O momento é perfeito, vindo logo após a rápida vitória de Jônatas e seu servo. O terremoto parece restrito aos lugares onde estão os filisteus. Nosso texto não dá nenhuma indicação de que os israelitas sintam ou sejam aterrorizados pelo abalo. Na verdade, por essa narrativa, é possível que os israelitas nem mesmo saibam qual a razão para tal pânico entre os filisteus. É um terremoto de Deus, e seu impacto é assustador.

Desde que nunca sentimos um terremoto como este em Dallas, Texas, talvez seja útil lermos alguns relatos de pessoas que foram aterrorizadas pelos efeitos de um terremoto.

“Na última sexta-feira, 9 de janeiro, a cidade de Santa Bárbara foi acometida por uma sucessão de abalos sísmicos, um dos quais foi o mais forte que sentimos deste lado da costa em muitos anos...

Nesta cidade, a manhã de um dia movimentado foi precedida por um sol ameno; o ar estava tranqüilo e nenhum fenômeno atmosférico incomum indicava a aproximação de qualquer perigo... Por volta das 8h30min, ou às 8h22min, de acordo com aqueles que afirmam ter a “hora exata”, começou o abalo mais forte, que durou de 40 a 60 segundos. Ele foi sentido em toda a cidade e suas vibrações foram tão violentas que todos os habitantes fugiram de suas casas, a maioria dos quais, de joelhos e com os corações palpitantes de terror, fazia preces fervorosas para que o perigo iminente e ameaçador fosse providencialmente afastado.”

Um patrulheiro da Califórnia assim descreve sua experiência:

“Era como se eu estivesse dentro de um misturador de tinta. Sem nenhum aviso, a casa começou a chacoalhar violentamente de um lado para outro. Eu descansava na sala de estar lendo o jornal de domingo quando o terremoto nos atingiu. Meu primeiro pensamento foi que um carro tivesse colidido com a casa ou que um avião tivesse caído. Mas aí continuou e eu soube o que era.

Meu aparelho de som caiu da estante, enquanto eu tentava ficar em pé para sair da casa. Eu só queria sair dali. Mas, quando tentei descer para outro andar, não consegui. Após alguns segundos, os abalos acalmaram um pouco e fui capaz de me levantar e levar minha esposa para fora, para o terreno em frente...”

Um jogador, a caminho do campo de golfe na manhã do terremoto de Santa Bárbara de 1925, o descreve desta forma:

“Fiquei hipnotizado por um rugido, algo que jamais ouvi antes, que possa explicar racionalmente, ou que espere ouvir novamente, aí fui levantado e sacudido violentamente como se algum monstro me tivesse pegado pelos ombros com a única intenção de arrancar minha cabeça. Tudo o que consegui fazer foi ficar em pé. As colinas pareciam subir e descer - não, eu estava perfeitamente bem, sem visões - a ondulação da paisagem sendo claramente visível por todos os lados. Não eram só aquelas sacudidelas sentidas de vez em quando em algumas partes do Estado, mas um balanço longo e prolongado que, creio, poria muitas das nossas montanhas-russas de praia num chinelo.

Dois ou três segundos antes do verdadeiro abalo, o rugido que o precedeu parecia vir de muito longe, mas veio com a rapidez de uma bala.”

O medo paralisante produzido por um terremoto é demonstrado nesta narrativa feita pelo encarregado de uma casa de máquinas no terremoto de Santa Bárbara de 1925:

“Não é preciso dizer que muitos escaparam por um triz de sofrer lesões pessoais e darei aqui apenas dois exemplos dos estranhos efeitos surtidos em dois homens geralmente normais. Um deles é um operador de caldeira que estava na extremidade leste da casa de máquinas. Os tijolos estavam caindo da parede leste, enormes pedaços de pedra eram lançados a uma distância de 12 pés; a parte do teto acima dele desabou e foi parar na locomotiva. Este homem tem uma natureza ousada e destemida, no entanto, ficou tão assustado que suas pernas ficaram bambas; depois de um forte ataque de náuseas ele conseguiu rastejar para fora ileso e sem auxílio...”

Imagine como deve ter sido para um soldado filisteu. O tremor pode ter sido precedido por um estrondo, que alguns descrevem como sendo mais forte que o estrondo de 1.000 canhões. A terra começa a sacudir para cima e para baixo. Num único tremor calcula-se que o solo se mova verticalmente até 2 polegadas, e até 240 vezes por minuto. O solo se encrespa como as ondas do mar, fazendo com que os soldados rodopiem e caiam. E, então, o pior de todos os talvezes, o solo se move horizontalmente, sendo este movimento mais abrangente e devastador.

Pense no que pode ter acontecido nesse dia. Chega aos ouvidos do acampamento principal a notícia de que alguém (Jônatas e seu escudeiro) atacou o posto da guarda e causou muitas baixas. Os “saqueadores”, ou destruidores, enviados para matar e destruir, estão aterrorizados. Eles são as “forças especiais” do dia. O acampamento principal está em alerta total e as tropas são convocadas para formação de batalha. Com suas temíveis espadas desembainhadas e apontadas para frente (algo como baionetas), o exército se dirige para frente de batalha. Naquele instante, o rugido do terremoto assusta as tropas. À medida que avançam, o chão treme e se encrespa debaixo deles. Os homens começam a cair. E então, quando o chão se move horizontalmente, as espadas daqueles que estão atrás traspassam as costas desprotegidas dos homens que estão à sua frente. Os homens à frente, em pânico e talvez pensando que o inimigo esteja atrás, se voltam e atacam as pessoas atrás deles - de modo que muitos jazem mortos, todos pelos “golpes de suas próprias tropas”.

Posso não ter todos os detalhes precisos, mas as conseqüências são parecidas. Os filisteus ficam incapacitados e aterrorizados pelo terremoto. Em pânico absoluto, eles se voltam uns contra os outros e se matam uns aos outros com suas espadas. Todas as baixas são conseqüência de uma luta entre os próprios filisteus, antes que os israelitas entrem em combate com eles. Sem dúvida, isto é um “terror de Deus” (I Sam. 14:15). Deveríamos temer diante desta poderosa intervenção de Deus a favor de Israel. Seus sentinelas observam como Deus traz o caos e a derrota ao poderoso exército filisteu. Eles podem não saber que isto é causado por um terremoto, mas podem ver os soldados se movendo prá lá e prá cá, em ondas. É por causa do movimento do solo? É porque o solo está se abrindo? Nós não sabemos, e duvido que os sentinelas israelitas soubessem. Mas, pelo que vêem e ouvem, sabem que algo extraordinário está acontecendo.

O leitor deve estranhar a reação de Saul. A primeira coisa que ele faz é contar suas tropas, não para se preparar para a batalha, mas para saber quem está faltando. Discordo da maneira que os tradutores da Nova Versão King James interpretam o versículo 17:

“Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. E quando eles contaram, surpreendentemente, Jônatas e o seu escudeiro não estavam ali.” (I Sam. 14:17 NVKJ)

A palavra “observar” da Nova Versão Padrão Americana é, de longe, a maneira mais comum para traduzir esta expressão hebraica. O termo pode ser uma expressão de surpresa, que é a maneira como a NVKJ traduz. Vejo-a de modo totalmente contrário. Apesar de ser muito reticente em oferecer minha própria tradução, penso que o contexto geral e o termo hebraico em si confirmem esta tradução:

17 E então Saul disse àqueles que estavam com ele: “Por favor, contem as tropas para que possamos ver quem saiu de entre nós.” E eles contaram e como previsto Jônatas e seu escudeiro saíram. (minha tradução/paráfrase de I Sam. 14:17)

Saul não está surpreso. Quando as tropas são contadas, o resultado é exatamente aquilo que ele teme. Pense nisso. Tudo vai relativamente bem com os filisteus (pelos padrões de Saul), até que Jônatas bagunça tudo atacando sua guarnição em Geba (I Sam. 13:3). Este completo desastre (como Saul o vê), com o levantamento em massa dos filisteus em Micmás, é culpa de Jônatas. Ele não pode deixar isso prá lá. Agora, quando os dois exércitos estão acampados e em guerra um contra o outro, Saul maneja as coisas para evitar mais ação (aí ele se senta sob a romãzeira - 14:2) e, de repente, há a maior confusão entre os filisteus. Alguma coisa tem que causar este tumulto. Saul não pensa primeiro em Deus, mas em seu filho desordeiro, Jônatas. Ao contar as tropas, ele é capaz de descobrir quem não está entre eles, e então deduzir quem causou todo este problema - de novo.

Finalmente, Saul decide consultar a Deus - agora que está “num beco sem saída”, como se diz. Naquela época havia várias maneiras de se discernir a vontade de Deus. Um profeta, obviamente, poderia falar diretamente da parte de Deus, mas Samuel deixou Saul em Gilgal devido à sua desobediência (ver 13:8-14). Há a estola sacerdotal, vestida e usada pelo sacerdote, que está ali com Aías, o sacerdote (14:3), mas Saul não requer seu uso. Em vez disto, ele manda buscar a arca da aliança. De certa maneira, isso envolve a intervenção do sacerdote Aías para que a vontade de Deus seja conhecida. Parece que este processo leva algum tempo. Se este fosse um aparelho elétrico (de válvula, é claro), ele estaria “aquecendo”. Todos sabemos que Saul não é muito paciente (ver cap. 13). O tumulto no acampamento filisteu fica tão grande que até Saul conclui que um ataque contra eles signifique vitória certa para Israel. Assim, ele instrui o sacerdote a reter a mão, para “desligar o aparelho da vontade de Deus”. Saul e seus homens vão então atrás dos apavorados e feridos filisteus, que estão se matando uns aos outros. Conforme os soldados israelitas se aproximam, podem ver com mais clareza a vitória operada por Deus.

Hesitantes, os guerreiros vão para a batalha contra os filisteus. Jônatas e seu escudeiro lideram a investida; Saul segue um tanto relutante, bem depois de a vitória estar assegurada. Junto com Saul e seus 600 homens estão aqueles que desertaram das fileiras de seu exército e venderam seus serviços aos filisteus (14:21). Quando aqueles que fugiram de Saul e se esconderam nas colinas vêem a derrota e retirada dos filisteus, eles também se juntam a Saul, a fim de multiplicar suas forças.

O Conjuramento Insano de Saul
(14:24-30)

“Estavam os homens de Israel angustiados naquele dia, porquanto Saul conjurara o povo, dizendo: Maldito o homem que comer pão antes de anoitecer, para que me vingue de meus inimigos. Pelo que todo o povo se absteve de provar pão. Todo o povo chegou a um bosque onde havia mel no chão. Chegando o povo ao bosque, eis que corria mel; porém ninguém chegou a mão à boca, porque o povo temia a conjuração. Jônatas, porém, não tinha ouvido quando seu pai conjurara o povo, e estendeu a ponta da vara que tinha na mão, e a molhou no favo de mel; e, levando a mão à boca, tornaram a brilhar os seus olhos. Então, respondeu um do povo: Teu pai conjurou solenemente o povo e disse: Maldito o homem que, hoje, comer pão; estava exausto o povo. Então, disse Jônatas: Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por ter eu provado um pouco deste mel. Quanto mais se o povo, hoje, tivesse comido livremente do que encontrou do despojo de seus inimigos; porém desta vez não foi tão grande a derrota dos filisteus.” (I Sam. 14:24-30)

É uma derrota dos filisteus e uma vitória de Deus, mas não é a vitória que poderia ter sido; poderia ser muito mais categórica. Nos versos 24 a 30 o autor explica por que a vitória não é aquilo que poderia e deveria ter sido. Em resumo, os soldados israelitas estão “angustiados” nesse dia, de modo que não conseguem perseguir e destruir mais filisteus. O único responsável pela aflição de Israel é nenhum outro senão seu rei, Saul. É seu conjuramento insano que atrapalha os soldados israelitas.

Parece que a imagem de Saul entrou em decadência desde a sua impressionante vitória sobre os amonitas em Jabes-Gileade no capítulo 11. Saul é humilhado pelos filisteus, não só pela ocupação de Israel, mas também pela maneira como tiram proveito da tecnologia do ferro (13:19-23). A maior parte das dificuldades de Saul é conseqüência direta do ataque de Jônatas aos filisteus. Agora, quando vê que os filisteus estão sendo derrotados pelos israelitas, ele resolve fazê-los pagar por sua humilhação. Sua luta contra eles vira uma questão pessoal. Não é uma batalha de Deus, ou mesmo de Israel; é sua batalha e sua vitória. Por isso, Saul coloca seus homens sob juramento: ninguém deve comer até o anoitecer. Os homens devem lutar com o estômago vazio. Saul parece raciocinar que isto evitará uma valiosa perda de tempo (e luz do dia?), parando para preparar e comer a refeição. (Uma vez que Saul não planejou esta batalha, nem ele nem seus homens estão realmente preparados para os acontecimentos do dia). Na pressa, não há rações prontas para os homens comerem, ou assim parece a Saul. Por isso, ele proíbe seus homens de comerem durante o dia, e eles lutam o dia inteiro sem comida.

Saul está errado em duas coisas. Primeiro, está errado em pensar que sua ordem produzirá uma vitória maior dos israelitas sobre os filisteus. Saul parece achar que suas ordens resultarão em mais tempo de perseguição à preciosa luz do dia e, assim, mais filisteus serão mortos. Não funciona desse jeito. À medida que os filisteus procuram fugir para seu país, a batalha se alastra para leste, primeiro para Bete-Áven (14:23) e depois para Aijalom (14:31). Os israelitas os perseguem por mais de 20 milhas de território montanhoso, e isto sem comer. Eles ficam exaustos e debilitados pela fome, e não conseguem perseguir seus inimigos com tanta eficácia quanto se estivessem bem alimentados.

Saul está errado ainda numa segunda coisa. Está errado em supor que a única maneira de alimentar seus guerreiros é com “comida caseira”, o que levará muito tempo. Afinal, não é dia de “comida pronta” e Saul acha que não existe nenhuma chance de conseguir uma rápida fonte de energia. Ele está errado. Deus tem uma comida “mais do que pronta” disponível. Ele colocou estrategicamente um favo de mel na floresta, e comê-lo não demora absolutamente nada. Os soldados, da mesma maneira que Jônatas, só precisam enfiar a ponta da vara no mel, tirá-la e levá-la à boca. Não existe comida mais rápida, ou melhor, nos arredores. Este é o alimento mais perfeito e mais natural que alguém poderia esperar. Faz “Gatorade” parecer patético.

Jônatas não ouve a ordem de Saul até que seja muito tarde. Ele está ocupado demais atacando e lutando com os filisteus para se sentar no acampamento esperando que Saul passe um decreto. E assim, enquanto persegue os filisteus, as forças de Saul se juntam a ele. Quando Jônatas se alimenta com o mel, um dos homens o informa sobre a ordem ridícula de Saul. Jônatas diz aquilo que a maioria de nós deve estar pensando neste momento: “Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por eu ter provado um pouco deste mel.” (14:29) Seu pai deve ser louco e egoísta para não deixar seus homens se alimentarem. Se os israelitas pudessem fazer o mesmo que ele, a vitória seria muito maior. Saul não é a fonte dos sucessos militares de Israel, mas um empecilho a eles. As vitórias de Israel são mais a despeito de seu rei do que conseqüências de sua liderança. Todos os soldados israelitas devem pensar isto, e Jônatas simplesmente tem coragem de dizê-lo.

Saul, uma Pedra de Tropeço para Israel
(14:31-35)

“Feriram, porém, aquele dia aos filisteus, desde Micmás até Aijalom. O povo se achava exausto em extremo; e, lançando-se ao despojo, tomaram ovelhas, bois e bezerros, e os mataram no chão, e os comeram com sangue. Disto informaram a Saul, dizendo: Eis que o povo peca contra o SENHOR, comendo com sangue. Disse ele: Procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra. Disse mais Saul: Espalhai-vos entre o povo e dizei-lhe: Cada um me traga o seu boi, a sua ovelha, e matai-os aqui, e comei, e não pequeis contra o SENHOR, comendo com sangue. Então, todo o povo trouxe de noite, cada um o seu boi de que já lançara mão, e os mataram ali. Edificou Saul um altar ao SENHOR; este foi o primeiro altar que lhe edificou.

Já é ruim o suficiente quando as bobagens de Saul impedem uma grande vitória de Israel, mas é indesculpável quando sua ordem resulta em pecado. Obedientemente, os israelitas acatam a ordem insana de Saul para não comer até o anoitecer. E, devido à sua fadiga, menos filisteus são mortos. Mas, quando o dia chega ao fim, o povo faminto encontra o gado deixado por seus inimigos. É triste dizer que os soldados israelitas temem mais desobedecer as ordens de Saul do que temem desobedecer as leis de Deus. Os soldados famintos devoram o rebanho sem prepará-lo adequadamente, e por isso, acabam pecando (Lv. 17:10; 19:26).

Alguém diz a Saul que Israel está pecando desse jeito (14:33). Se alguém não lhe tivesse dito, seria de admirar que Saul tivesse percebido. Em vez de assumir a responsabilidade por ser uma “pedra de tropeço” a seus compatriotas, a justiça própria de Saul aponta seu dedo acusador para os homens famintos: “procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra.” (14:33b) Esta é uma tentativa de minimizar os prejuízos causados pelo próprio Saul com sua ordem insana. Pelo menos ele está preocupado em impedir que seus homens cometam mais pecado.

Duas coisas parecem estranhamente irônicas quanto ao fato de Saul edificar um altar de pedra na noite em que os israelitas fazem suas “ofertas”. Primeiro, esta adoração mal pode ser chamada de sincera, tanto da parte dos israelitas, quanto da parte de Saul. Ela é simplesmente uma forma de santificar a satisfação do apetite dos soldados para que não pequem mais. E, quando é dito que este é o primeiro altar edificado por Saul, também não ficamos impressionados. Será que Saul precisa passar por esse tipo de crise para adorar a Deus? Será que ele só constrói altares em tempos de crise? Eu não chamaria este de um “momento santo” na história de Israel. Eles estão simplesmente cobrindo suas apostas, minimizando o dano causado pelo pecado, pecado este induzido por Saul e praticado por seus soldados.

Segundo, esta “refeição” é muito irônica. Saul proíbe seus soldados de comerem antes do anoitecer, embora a “comida pronta” providenciada por Deus não demore mais do que alguns minutos (como vemos pelo fato de Jônatas se satisfazer durante o combate). Saul acredita que comer será perda de tempo e um empecilho à capacidade de Israel de obter uma grande vitória. Mesmo assim os israelitas perseguem seus inimigos noite adentro; só que estão tão famintos e tentados pelos despojos de guerra, que pecam na maneira de comê-los. Para corrigir a situação, Saul tem que construir um altar e depois garantir que o sacrifício de cada homem seja feito e preparado de forma correta. Quanto tempo você acha que levou esta “refeição”? Isto é ineficiência!

Saul é Rápido para Matar - Seu Filho
(14:36-45)

“Disse mais Saul: Desçamos esta noite no encalço dos filisteus, e despojemo-los, até o raiar do dia, e não deixemos de resto um homem sequer deles. E disseram: Faze tudo o que bem te parecer. Disse, porém, o sacerdote: Cheguemo-nos aqui a Deus. Então, consultou Saul a Deus, dizendo: Descerei no encalço dos filisteus? Entregá-los-ás nas mãos de Israel? Porém aquele dia Deus não lhe respondeu. Então, disse Saul: Chegai-vos para aqui, todos os chefes do povo, e informai-vos, e vede qual o pecado que, hoje, se cometeu. Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto. Porém nenhum de todo o povo lhe respondeu. Disse mais a todo o Israel: Vós estareis de um lado, e eu e meu filho Jônatas, do outro. Então, disse o povo a Saul: Faze o que bem te parecer. Falou, pois, Saul ao SENHOR, Deus de Israel: Mostra a verdade. Então, Jônatas e Saul foram indicados por sorte, e o povo saiu livre. Disse Saul: Lançai a sorte entre mim e Jônatas, meu filho. E foi indicado Jônatas. Disse, então, Saul a Jônatas: Declara-me o que fizeste. E Jônatas lhe disse: Tão-somente provei um pouco de mel com a ponta da vara que tinha na mão. Eis-me aqui; estou pronto para morrer. Então, disse Saul: Deus me faça o que bem lhe aprouver; é certo que morrerás, Jônatas. Porém o povo disse a Saul: Morrerá Jônatas, que efetuou tamanha salvação em Israel? Tal não suceda. Tão certo como vive o SENHOR, não lhe há de cair no chão um só cabelo da cabeça! Pois foi com Deus que fez isso, hoje. Assim, o povo salvou a Jônatas, para que não morresse.”

Finalmente, depois de uma espera recorde pelo jantar, a refeição está terminada. Agora Saul está pronto para lutar - mas, e Deus? Saul ordena que seus homens voltem à batalha para causar mais danos ao exército filisteu e obter mais despojos. O povo consente com ele. Eles estão prontos para voltar à batalha. Mas o sacerdote não está tão certo disto. Ele insiste em primeiro buscar a vontade de Deus. Quando Saul consulta a Deus, ele espera um “sim” ou ”não” como resposta. “Descerei no encalço dos filisteus? Entrega-los-á nas mãos de Israel?”

Saul tira uma porção de conclusões precipitadas. Primeiro ele conclui que, uma vez que não obteve resposta, deve ser porque alguém pecou. Parece não lhe ocorrer que o pecado seja dele mesmo ou de seus soldados por comerem carne sem drenar adequadamente o sangue. Ele presume que haja pecado, e que este pecado seja uma violação à sua ordem insana (não da lei de Deus). Além disso, ele presume que é bem possível que tenha sido Jônatas o culpado por este pecado. E finalmente ele conclui que este “pecado” seja digno de morte. Não creio que seja por coincidência que ele diga: “Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto.” (v. 39) Por que, dentre os milhares de homens que estão com ele, Saul se concentra em Jônatas, seu filho? Receio saber o porquê, e não gosto disto em absoluto. Creio que o filho de Saul, Jônatas, é um homem muito parecido com Davi. Na guerra, Saul conclui que Jônatas seja, na melhor das hipóteses, uma amolação, e, com certeza, um obstáculo. Creio que ele esteja procurando uma desculpa para dar cabo de Jônatas, e esta situação parece perfeita para a ocasião. Antes que a sorte seja lançada, Saul deixa claro que, se Jônatas for indicado, ele morrerá. Creio que ele saiba que Jônatas será indicado.

Até onde vai o registro bíblico, Saul decide a questão com muita rapidez e arbitrariedade. Ele e seu filho ficam frente a frente com o restante dos soldados. Sem nenhuma surpresa, ele e Jônatas são indicados. Então Saul lança a sorte entre ele e Jônatas, e Jônatas é indicado. O povo consente com este processo, pelo menos por enquanto (v. verso 40). Quem irá se opor a Saul nesse estado de espírito? Quando Jônatas é isolado pelo lançamento de sortes, seu pai lhe pergunta o que ele fez (não é interessante que Saul já tenha estabelecido a punição antes mesmo que o crime seja revelado?). Jônatas “confessa” que realmente provou um pouco de mel com a ponta da vara. Uma pequena lambida no mel, dada sem nenhum conhecimento da ordem de seu pai e nenhuma perda de tempo, é o crime abominável que Saul supõe seja a razão de Israel não ter conseguido concluir a batalha iniciada por Jônatas. Saul parece sentir que é melhor matar seu filho do que admitir seu próprio pecado e idiotice.

Mesmo aqui Jônatas é um filho exemplar. Ele não dá nenhuma desculpa, nem faz qualquer acusação contra seu pai, ainda que ele seja louco. Jônatas coloca sua vida nas mãos de seu pai, o rei. Ele está disposto a morrer se essa for a vontade de seu pai, se essa for a vontade de Deus. Com grande pompa, Saul uma vez mais assevera a morte de Jônatas. É como se Saul não pudesse fazer nada mais justo.

Finalmente, o povo que calmamente suportara todas as cenas do rei, teve o suficiente. Eles estão dispostos a deixar que Saul submeta a si mesmo e a Jônatas à prova (v. 40), mas não a permitir que Saul mate seu filho. Eles percebem o quanto as atitudes de Saul são insanas. Jônatas, não Saul, lhes deu grande libertação (verso 45). Será que ele deve ser morto por causa disto? Ele agiu com Deus, não contra Ele, e por isso não será morto como pecador. Muito pelo contrário! Nenhum fio de cabelo de sua cabeça cairá no chão. E assim é que Jônatas, trabalhando com Deus, salva Israel, e Israel, enfrentando Saul, salva Jônatas. Saul, que não salva ninguém, não tem permissão para destruir seu próprio filho. Com este incidente, tem fim a batalha com os filisteus, mais depressa e menos decisiva do que deveria, tudo devido à insensatez de Saul, o “libertador” de Israel.

Encerrando com o “Sucesso” de Saul e Seus Sucessores
(14:46-52)

“E Saul deixou de perseguir os filisteus; e estes se foram para a sua terra. Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam. Os filhos de Saul eram Jônatas, Isvi e Malquisua; os nomes de suas duas filhas eram: o da mais velha, Merabe; o da mais nova, Mical. A mulher de Saul chamava-se Ainoã, filha de Aimaás. O nome do general do seu exército, Abner, filho de Ner, tio de Saul. Quis era pai de Saul; e Ner, pai de Abner, era filho de Abiel. Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”

Há um sentido no qual este capítulo é uma espécie de bênção com relação à vida e reinado de Saul como rei de Israel. Há um sumário de seus aparentes sucessos, uma clara alusão a seus fracassos e uma lista de seus descendentes. O capítulo 15 descreve o pecado que significa o fim do reinado de Saul (o pecado anterior significava o fim da dinastia de Saul - o reinado de seus descendentes). Os capítulos posteriores apresentam Davi como seu substituto e mostram o ciúme de Saul e sua oposição a Davi. O último capítulo de I Samuel descreve a morte de Saul e seu filho. No entanto, este capítulo parece ser a bênção sobre Saul e seu reinado.

A batalha acabou, mas não a guerra. Os filisteus sofrem uma grande perda, mas não uma derrota total. Cada exército - israelita e filisteu - segue seu próprio caminho. As duas nações continuam em guerra uma contra a outra pelo resto da vida de Saul. Isto é particularmente acentuado no verso 52:

“Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”

Pelo resto da vida de Saul haverá conflito, e sua consideração pelos filisteus pode ser vista no fato de ele procurar agregar a seu exército qualquer “homem forte e valente”. As conseqüências de sua loucura vão segui-lo todos os dias de seu reinado. Como veremos no capítulo 31, Saul e seu filho Jônatas morrem às mãos dos filisteus. Que lamentável que a vitória sobre os filisteus não tenha sido completa nesta batalha iniciada por Jônatas.

Tenho me referido a Saul como louco e fracassado. Como podemos, então, explicar a avaliação de seu reinado nos versos 47 e 48, que parecem colocá-lo sob um ângulo favorável? A resposta tem pelo menos dois aspectos. Primeiro, parece correto dizer que um homem pode ser um fracasso moral e espiritual e, no entanto, ser um grande líder militar. Veja o homem usado por Deus no livro de Juízes para libertar Seu povo. Sansão não é nenhum gigante moral, mas é usado por Deus para libertar Israel das mãos de seus inimigos. O mesmo pode ser dito de muitos outros juízes levantados por Deus. Deus não se limita a usar somente pessoas piedosas para cumprir Suas promessas e Seus propósitos. Portanto, a vitória militar pode ser alcançada por meio de um homem como Saul, a despeito do tipo de homem que ele é. Quantos de nós atribuem nossos méritos e nossa bondade à graça e misericórdia de Deus para conosco?

Segundo, as coisas ditas nestes dois versos são realmente verdadeiras e representam a avaliação da liderança de Saul do ponto de vista de um historiador secular. Saul, como rei de Israel, realmente luta contra todas as nações em derredor e lhes impõe castigo. Com relação à batalha com os amalequitas, Saul age mesmo com valentia e livra Israel daqueles que os despojam.

Parece que a batalha entre Israel e os filisteus, descrita nos capítulos 13 e 14, é uma coisa típica da vida e do reinado de Saul em Israel. Ele luta com os filisteus e os israelitas vencem. A batalha é travada sob sua liderança. Mas a vitória não foi o que poderia ter sido devido à sua loucura. E a batalha não é resultante de sua fé e iniciativa, mas da fé e iniciativa de Jônatas. Apesar disto, como lemos em 13:4, é divulgada uma notícia de que Saul “derrotara a guarnição dos filisteus”. Do ponto de vista de um historiador secular, as vitórias de Israel sob os cuidados de Saul são suas vitórias. Sabemos que estas vitórias foram obtidas pela graça de Deus, muitas vezes devido à atitude de pessoas como Jônatas e, com freqüência, a despeito da inércia e loucura de Saul.

Apesar das “vitórias” de Saul e Israel, os filisteus jamais são destruídos, jamais são completamente derrotados, a fim de que Saul e Israel contendam com eles durante todo o seu reinado. Confiando no “braço da carne”, parece que Saul procura heróis que lutem por ele e por Israel. Com toda a certeza o terreno está sendo preparado para Davi e o papel que desempenhará na batalha com os filisteus e com Golias, seu campeão.

Conclusão

Primeiro, não é nada difícil perceber porque Jônatas e Davi se tornarão amigos dedicados. Na verdade, eles são almas gêmeas. Jônatas é um homem de fé e compreensão espiritual. Ele é um homem que age com ousadia devido à sua fé em Deus, enquanto seu pai espera que o mau tempo passe. Jônatas teria sido um grande rei, mas ele é benjamita e não descendente de Judá; e, assim, nenhum de seus descendentes poderia ser o Messias. Mas, quando Jônatas vê que a mão de Deus está sobre Davi, ele é um dos primeiros israelitas a recebê-lo como o próximo rei de Israel, sem ciúmes ou hesitação.

Segundo, este texto prepara o terreno para a introdução de Davi nos capítulos 16 e 17. O caráter de Saul é evidente. Sua loucura e seu ciúme contra Davi não chegam a nos surpreender, pois já haviam sido demonstrados no seu trato com seu próprio filho, Jônatas. Saul já havia tentado matá-lo; não será nenhuma surpresa vê-lo também tentando matar Davi, bem como outras pessoas. Assim como ele relutou em enfrentar os filisteus no princípio, ele também hesitará em enfrentá-los quando Golias for seu campeão. Nos próximos capítulos haverá poucas surpresas para nós sobre Saul, devido àquilo que já lemos nos primeiros capítulos de I Samuel.

Terceiro, vemos que a visão histórica de um homem pode ser muito diferente da visão de Deus. A avaliação feita por um semelhante com certeza não é perfeita. No que diz respeito a Deus, com certeza esta não é a verdadeira ”medida de um homem”, pois quando Deus julga o homem, Ele vê o coração. A história secular pode considerar Saul um sucesso, mas, em termos bíblicos e espirituais, ele é um miserável fracasso. Os índices seculares de sucesso não são indicadores da aprovação ou da bênção de Deus. O autor de I Samuel quer que vejamos Saul como um homem que é rejeitado por Deus. Como é triste ser valorizado pelo mundo e desprezado por Deus. Como é melhor, se necessário for, ser desprezado pelo mundo e valorizado por Deus (ver I Pe. 4).

Quarto, vemos neste texto que os cristãos podem e agem de maneira que aparentemente atrapalhe a realização plena da obra de Deus. Em última análise, os homens não podem impedir aquilo que Deus propôs e prometeu fazer. Deus usa a fé e a obediência dos homens para cumprir Seus propósitos, mas Ele não se limita a estes meios. A soberania de Deus também permite que Ele empregue a incredulidade e a desobediência para alcançar Seus propósitos (ver Gn. 50:20, Sl. 76:10). Ele usa até mesmo Satanás para atingi-los (v. II Co. 12:5-10). Contudo, reconhecendo a soberania de Deus sobre todas as coisas, também deve ser dito que Deus, às vezes, permite que a ação (ou a inércia) dos homens atrapalhem aquilo que poderia ter sido feito (v. II Re. 13:14-19). Deus é soberano na história mas, em Seu controle absoluto sobre todas as coisas, Ele estabeleceu que as ações têm conseqüências, e que a desobediência e a falta de fé podem resultar em algo menor do que poderia e deveria ter sido se tivéssemos agido de maneira santa. Com toda a certeza isto é ilustrado pela maneira como a loucura de Saul no capítulo 14 impede uma vitória cabal sobre os filisteus.

Quinto, o governo de Saul é fonte de grandes problemas para Israel, mas também é meio para a sua própria destituição. Sabemos pelo capítulo 14 que a ordem insana de Saul impede Israel de obter uma vitória esmagadora sobre os filisteus. Conseqüentemente, pelo resto de seus dias, ele e a nação são atormentados pelos filisteus (v. 52). O ataque do capítulo 17 lança a ascensão e projeção de Davi em Israel e o início do fim para Saul. A batalha de Israel com os filisteus no capítulo 31 resulta na morte de Saul e de Jônatas. Como lemos em Cantares de Salomão, são as “raposinhas que devastam os vinhedos” (2:15). Este momento aparentemente insignificante de insensatez tem graves conseqüências para Israel e seu rei.

Finalmente, vemos em nosso texto uma excelente ilustração de legalismo. Zelar pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus não é legalismo, é discipulado. Com muita freqüência ouço algumas pessoas se referirem aos sermões baseados nos mandamentos de Deus (do Novo ou do Velho Testamento) como sendo “legalistas”. Embora algumas pessoas sejam legalistas na maneira como buscam obedecer aos mandamentos de Deus, o zelo pelo conhecimento e obediência a eles não é legalismo. O Salmo 119 é um excelente exemplo de um crente que zela pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus. O amor à lei do Senhor não é legalismo.

Legalismo é um descontentamento com os mandamentos de Deus da forma como eles são. O legalismo supõe que os mandamentos e as proibições de Deus não sejam suficientes. O legalismo procura consertar este “problema” adicionando mais regras e regulamentos. Estes acréscimos são mantidos de forma tão intensa quanto os mandamentos das Escrituras (às vezes, até mais). Aqueles que deixam de obedecê-los são severamente julgados por aqueles que os adotam.

Deixe-me ilustrar o legalismo do Novo Testamento. A lei de Moisés requeria que os homens guardassem o sábado, e isto significava que o sábado deveria ser um dia de descanso. Não significava que fosse pecado os discípulos de Jesus colherem alguns grãos e comê-los. Não significava que fosse pecado nosso Senhor curar um doente no sábado. Os escribas e fariseus não podiam acusar nosso Senhor de violar qualquer lei de Deus; eles apenas podiam acusá-lo de violar as leis do Antigo Testamento como eles as interpretavam e aplicavam, e como eles as aperfeiçoavam com suas tradições. Procurar “incrementar” as leis de Deus, acrescentando alguma coisa a elas, era colocar-se acima da Lei como juiz:

“Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo?” (Tg. 4:11-12)

Pelo que entendo deste texto de Tiago, aqueles que “julgam” injustamente seus irmãos, geralmente o fazem com base em suas próprias regras legalistas, e não de acordo com a Palavra de Deus. Tiago diz que, aqueles que julgam os outros por suas próprias regras, julgam também a Lei de Deus como inadequada.

O rei Saul é um legalista. Como rei de Israel, ele deveria conhecer bem a lei de Deus, e ter cuidado em obedecê-la e cuidar que fosse obedecida em seu reino (Dt. 17:18-20). Parece até que ele não teria percebido a violação da lei de Deus, caso alguém mais não lhe tivesse mostrado (v. I Sam. 14:33). Saul facilmente justifica sua negligência em cumprir os mandamentos de Deus e, no entanto, está pronto - quase ansioso, para condenar seu próprio filho à morte por violar uma de suas regras idiotas. Como todos os legalistas, Saul acha fácil coar o mosquito e engolir o camelo (Mt. 23:23-24). Ele distila sua indignação quando os outros transgridem suas regras, mas é mais do que tolerante com suas flagrantes transgressões aos mandamentos de Deus.

Ao contrário do que os legalistas pensam, o legalismo não impede o pecado; ele o favorece. As proibições que os legalistas amontoam sobre si e sobre os outros não são a cura para as concupiscências da carne (Cl. 2:20-23). Havia nos tempos do Novo Testamento aqueles que proibiam o casamento e comer certos alimentos (I Tm. 4:3), mas estes eram enganadores e mentirosos que procuravam desviar o povo de Deus da verdade. Embora Paulo fosse solteiro, ele instruiu os maridos e as esposas a não se absterem de sexo, a menos que fosse por uma razão importante, e apenas por algum tempo. O legalismo faz os homens caírem, como a ordem legalista de Saul fez os israelitas pecarem ao comer carne sem o devido preparo. Vamos tomar cuidado com o legalismo, em todas as suas formas mais piedosas.

Uma palavra final. O contraste entre Saul e Jônatas em nosso texto é difícil de ser ignorado. Jônatas é aquilo que Saul não é. Não vamos nos esquecer de que Jônatas é filho de Saul. Não são os bons “cuidados paternais” de Saul que fazem de Jônatas o que ele é. Sua devoção é a despeito de Saul, não por causa dele. Que todos aqueles que gostariam de levar o crédito pelo modo como seus filhos se saem observem isto. E observemos também que muitos pais crentes dão à luz filhos descrentes. Lembro-me, por exemplo, de Sansão e seus pais (v. Jz. 13:1-23, especialmente o verso 8).

Até agora eu estava disposto a ver Saul como uma anomalia, uma espécie de caso excepcional. Seus pecados são mais notórios, mais visíveis, e talvez mais dramáticos do que os nossos, mas, em última análise, suas tentações e fracassos, na verdade, são “comuns aos homens” (v. I Co. 10:13; Tg. 5:17). Suas falhas não estão registradas a fim de que gostemos de odiar este homem. Creio que estão registradas como advertência, para que não precisemos repetir os pecados que ele tão obviamente comete. Gostaria de pensar que minha vida se espelha mais em Jônatas do que em seu pai, mas este nem sempre é o caso. Vamos prestar atenção e aprender destes dois homens tão diferentes, Saul e Jônatas. E vamos nos esforçar para servir a Deus fielmente, obedecendo Seus mandamentos, para que não nos tornemos exemplos negativos de desatino para as futuras gerações.

12. Saul e os Amalequitas (I Samuel 15:1-35)

Introdução

Sempre tive problemas em jogar coisas fora. Quando Jeanette e eu éramos recém-casados, vivíamos no interior do Estado de Washington. Uma vez que não havia coleta de lixo, tínhamos que levar nossos detritos para o depósito da região. Eu tinha um trailer que usava para isto e, literalmente, toda vez que me preparava para ir ao depósito, as últimas palavras de Jeanette eram “Não traga nada de volta!”. Isto porque muitas vezes eu voltava do depósito com mais tralhas do que havia levado.

Quando vim para Dallas para fazer o seminário, trabalhei num departamento de garantia de qualidade. Os itens danificados que não tinham conserto iam para a pilha de “descarte”. Imagine o quanto aquilo era difícil para mim; eu odiava jogar fora qualquer coisa que parecesse ter alguma utilidade. Ainda hoje, em nossa vizinhança, sou um dos poucos a quem as pessoas se dirigem para dizer onde tem algum bom cacareco - no beco perto de casa. Um dia, um vizinho descia do beco e gritou pela janela “Bob, tem um cortador de grama fantástico lá no beco, atrás da casa do Tinsley.” Encontrei o cortador e estava aparando minha grama com ele, quando o vizinho que o tinha jogado fora voltava do trabalho. Quando lhe expliquei como achei seu cortador, ele respondeu: “Fico contente que você o tenha consertado e esteja usando; quer um bagageiro também? Esqueci de jogá-lo fora com o cortador.”

Saul e eu não somos nada parecidos nessa questão de guardar coisas consideradas sem valor pelos outros. Saul joga fora as tranqueiras com prazer. O que o incomoda é ver coisas em perfeito estado serem destruídas. Ele não tem problema algum para matar homens e mulheres amalequitas, mesmo seus filhinhos. No entanto, o que é difícil para ele é matar seu rei, Agague. Ele não tem nenhum problema em massacrar o gado comum, mas não agüenta desperdiçar carne de primeira e um bom cordeiro.

A recusa de Saul em aniquilar totalmente os amalequitas lhe custa o reinado. Este é um pecado gravíssimo. Nosso texto não mostra apenas o pecado de Saul, mostra também o nosso. Saul está disposto a fazer coisas que jamais pensaríamos - como matar criancinhas. Será que teríamos matado crianças amalequitas como Saul? Se não, por que não? Nosso texto chama a atenção para a natureza da desobediência de Saul, que é muito parecida com a desobediência comum entre os cristãos atuais. Nosso texto tem lições importantes para aprendermos sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências e, também, sobre a nossa própria desobediência às determinações de Deus.

A Ordem Para Matar os Amalequitas

Os amalequitas, um nome que poderia soar vagamente familiar ao leitor da Bíblia, pode ser estranho para nós, mas não é estranho para os israelitas. Os amalequitas são um dos povos que habitam a parte sul de Canaã. Quando os israelitas deixaram o Egito e se dirigiam para Canaã (ver Ex. 17:8 e ss), eles foram uma das primeiras nações que os israelitas encontraram. Esta é uma das nações vizinhas com quem Israel está em constante conflito. Os amalequitas atacam Israel, que, desobedientemente, procura possuir a terra prometida depois de sua incredulidade em Cades-Barnéia (ver Nm. 14:25, 43, 45). Eles se juntam aos midianitas para atacar e saquear Israel e são uma das nações que ameaçam tanto Israel, que Gideão precisa ter certeza da presença de Deus com ele na batalha (ver Jz. 6:3, 33, 7:12). Esta é a nação atacada por Davi, que invade Ziclague e captura sua família e seus bens e a família e os bens de seus homens (ver I Sam. 27:8, 30:1, 18, II Sam. 1:1).

A ordem para matar a nação inteira e seu gado não é algo novo. Deus exigiu isto dos israelitas quando encontrassem as nações cananéias:

“No entanto, nada do que alguém dedicar irremissivelmente ao SENHOR, de tudo o que tem, seja homem, ou animal, ou campo da sua herança, se poderá vender, nem resgatar; toda coisa assim consagrada será santíssima ao SENHOR. Ninguém que dentre os homens for dedicado irremissivelmente ao SENHOR se poderá resgatar; será morto.” (Lv. 27:28-29)

“Porém, das cidades destas nações que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o SENHOR, teu Deus, destruí-las-ás totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o SENHOR, vosso Deus.” (Dt. 20:16-18)

“No sétimo dia, madrugaram ao subir da alva e, da mesma sorte, rodearam a cidade sete vezes; somente naquele dia rodearam a cidade sete vezes. E sucedeu que, na sétima vez, quando os sacerdotes tocavam as trombetas, disse Josué ao povo: Gritai, porque o SENHOR vos entregou a cidade! Porém a cidade será condenada, ela e tudo quanto nela houver; somente viverá Raabe, a prostituta, e todos os que estiverem com ela em casa, porquanto escondeu os mensageiros que enviamos. Tão-somente guardai-vos das coisas condenadas, para que, tendo-as vós condenado, não as tomeis; e assim torneis maldito o arraial de Israel e o confundais. Porém toda prata, e ouro, e utensílios de bronze e de ferro são consagrados ao SENHOR; irão para o seu tesouro. Gritou, pois, o povo, e os sacerdotes tocaram as trombetas. Tendo ouvido o povo o sonido da trombeta e levantado grande grito, ruíram as muralhas, e o povo subiu à cidade, cada qual em frente de si, e a tomaram. Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos.” (Js. 6:15-21)

O texto de I Samuel 15 e as passagens acima podem provocar muitas perguntas nos leitores cristãos atuais. (1) Em primeiro lugar, por que Deus ordena o extermínio de nações inteiras? (2) Por que o gado e até mesmo crianças inocentes devem ser destruídos? (3) Por que os amalequitas são particularmente indicados para serem exterminados? (4) Por que uma geração posterior de amalequitas é punida pelos pecados de uma geração anterior? (5) Por que o fato de Saul poupar um homem e umas poucas cabeças de gado é uma ofensa tão grave para Deus? Vamos tentar responder estas questões.

Primeiro, existem razões gerais para o extermínio de povos como os cananeus. Estes são os povos que possuem a terra prometida que Deus deu a Israel. A principal razão afirmada acima é que estes povos são extremamente maus. Se não forem totalmente destruídos, ensinarão aos israelitas suas práticas pecaminosas, colocando-os, dessa forma, debaixo da condenação divina. É fácil ver a razão pela qual todos os guerreiros do inimigo devam ser mortos; mas por que mulheres, crianças e o gado? O pecado que envolvia os Cananeus tinha contaminado e corrompido seus animais, e Deus não permitiria que qualquer um sobrevivesse.

Segundo, aqueles que Deus ordena que sejam aniquilados são aqueles que são culpados, para os quais a punição é uma justa retribuição. Mesmo que seus antepassados tenham pecado gravemente, as pessoas que Deus ordena que Saul destrua também são pecadores culpados, cujo destino é uma justa recompensa:

“Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los.” (I Sam. 15:18)

“Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal.” (I Sam. 15:33)

Os amalequitas são pecadores, merecedores da ira de Deus mediante Israel. Estes pecadores, os amalequitas, são aqueles que desfilharam mulheres e, dessa forma, é justo que experimentem o sofrimento e a crueldade que eles mesmos infligiram a seus inimigos.

Terceiro, somos lembrados de que Deus não tem prazer em punir o inocente:

“Então, perguntou Deus a Jonas: É razoável essa tua ira por causa da planta? Ele respondeu: É razoável a minha ira até à morte. Tornou o SENHOR: Tens compaixão da planta que te não custou trabalho, a qual não fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” (Jn. 4:9-11)

Quarto, o extermínio dos amalequitas da época de Saul é a execução de uma ordem dada muitos anos antes e reiterada diversas vezes.

Êxodo 17:8-15

“Então, veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Com isso, ordenou Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, e peleja contra Amaleque; amanhã, estarei eu no cimo do outeiro, e o bordão de Deus estará na minha mão. Fez Josué como Moisés lhe dissera e pelejou contra Amaleque; Moisés, porém, Arão e Hur subiram ao cimo do outeiro. Quando Moisés levantava a mão, Israel prevalecia; quando, porém, ele abaixava a mão, prevalecia Amaleque. Ora, as mãos de Moisés eram pesadas; por isso, tomaram uma pedra e a puseram por baixo dele, e ele nela se assentou; Arão e Hur sustentavam-lhe as mãos, um, de um lado, e o outro, do outro; assim lhe ficaram as mãos firmes até ao pôr-do-sol. E Josué desbaratou a Amaleque e a seu povo a fio de espada. Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué; porque eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu. E Moisés edificou um altar e lhe chamou: O SENHOR É Minha Bandeira. E disse: Porquanto o SENHOR jurou, haverá guerra do SENHOR contra Amaleque de geração em geração.” (Ex. 17:8-16)

Números 24:20-25

“Viu Balaão a Amaleque, proferiu a sua palavra e disse: Amaleque é o primeiro das nações; porém o seu fim será destruição. Viu os queneus, proferiu a sua palavra e disse: Segura está a tua habitação, e puseste o teu ninho na penha. Todavia, o queneu será consumido. Até quando? Assur te levará cativo. Proferiu ainda a sua palavra e disse: Ai! Quem viverá, quando Deus fizer isto? Homens virão das costas de Quitim em suas naus; afligirão a Assur e a Héber; e também eles mesmos perecerão. Então, Balaão se levantou, e se foi, e voltou para a sua terra; e também Balaque se foi pelo seu caminho.” (Nm. 24:20-25)

Deuteronômio 25:17-19

“Lembra-te do que te fez Amaleque no caminho, quando saías do Egito; como te veio ao encontro no caminho e te atacou na retaguarda todos os desfalecidos que iam após ti, quando estavas abatido e afadigado; e não temeu a Deus. Quando, pois, o SENHOR, teu Deus, te houver dado sossego de todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança, para a possuíres, apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu; não te esqueças.” (Dt. 25:17-19)

Quando os israelitas partem do Egito e rumam para a terra prometida, eles são atacados pelos amalequitas, como descrito em Êxodo 17. Sabemos por Deuteronômio 25:18 que este ataque é covarde, pois eles atacam pelas costas, tomando de assalto os retardatários que estão cansados e abatidos. Deus dá a Israel a vitória sobre o exército amalequita, mas isto não extermina toda a nação. Deus dá ordens específicas às futuras gerações para que apaguem a memória deste povo, e sua ordem é registrada para a posteridade de Israel.

Em Números 24, há uma referência muito interessante a esta “maldição” que Deus impõe sobre os amalequitas. Balaque, o rei de Moabe, teme os israelitas e procura causar seu fim, contratando Balaão para amaldiçoá-los. Balaque deve ignorar a Aliança Abraâmica:

“Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:1-3, ênfase minha)

Os amalequitas não abençoaram os israelitas, eles os amaldiçoaram, atacando-os no caminho. Por isso, Deus os amaldiçoa, como Se comprometera com Abraão e seus descendentes. Agora, Balaque procurar atrair Balaão para “amaldiçoar” Israel, o povo a quem Deus abençoou. Balaão, não só abençoa Israel, mas também reitera a maldição sobre os amalequitas, pronunciada anteriormente em Êxodo 17. Além de amaldiçoar os amalequitas, ele também abençoa os queneus, que mostraram misericórdia para com os israelitas (Nm. 24:21, v. I Sam. 15:6). A despeito de si mesmo, Balaão abençoa aqueles a quem Deus abençoa (incluindo aqueles que abençoam Israel), e ele deve amaldiçoar aqueles a quem Deus amaldiçoa (aqueles que amaldiçoam Israel).

Em Deuteronômio 24, a segunda geração de israelitas que está prestes a entrar na terra prometida é relembrada do dever de seus descendentes de destruir os amalequitas, tão logo a nação tenha se estabelecido e vencido as nações circunvizinhas. É interessante que este lembrete do dever de exterminar os amalequitas seja encontrado no contexto de ensino sobre justiça (ver 25:1-16). Por inferência, a aniquilação dos amalequitas é o cumprimento da justiça.

A pergunta que talvez permaneça é: “Mas, por que esta geração deve ser destruída, quando foi uma geração anterior que tratou com crueldade a Israel?” Já dissemos que a geração de amalequitas da época de Saul é má e merece a morte. Parece certo dizer que esta geração é ainda pior do que aquela que oprimiu Israel no deserto, como descrito em Êxodo 17. Julgo a destruição dos amalequitas à luz das palavras ditas por Deus a Abraão séculos antes:

“Ao pôr-do-sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande pavor e cerradas trevas o acometeram; então, lhe foi dito: Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice. Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus.” (Gn. 15:12-16)

Deus diz a Abraão (aqui Abrão) que vai lhe dar a terra de Canaã, mas primeiro seus descendentes serão escravizados numa terra desconhecida durante 400 anos. Sabemos que esta terra é o Egito. Quando os 400 anos de cativeiro estiverem completos, Deus então lhes dará a terra de Canaã. A razão dada para esta demora é que “não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus” (Gn. 15:16). Deus preferiu que o pecado deste povo amadurecesse, alcançasse sua maturidade completa, para então levá-los a julgamento. Quando Deus ordena a Saul que extermine os amalequitas, podemos presumir, com certeza, que seus pecados tenham amadurecido e tenha chegado o tempo de seu julgamento.

Além disso, podemos dizer que a demora no julgamento de Deus é também devido à Sua graça, pois, ao retardar seu julgamento, Deus dá tempo aos seus escolhidos para serem salvos de Sua ira:

“Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão.” (Rm. 9:22-23)

“Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento.” (II Pe. 3:9)

A Desobediência de Saul

Este capítulo fala sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências; portanto, vamos refletir sobre a natureza de sua desobediência a fim de entendermos a gravidade de suas conseqüências.

A desobediência de Saul não provém de sua compaixão. Podemos ser tentados a pensar que Saul desobedece a ordem de Deus por sincera, embora equivocada, motivação. Talvez considerássemos sua desobediência de modo diferente se o víssemos poupando as criancinhas amalequitas. Mas Saul não poupa nenhuma criança amalequita; ele poupa Agague, o rei dos Amalequitas. Saul não desobedece a Deus porque seja misericordioso, humano, bondoso. Ele friamente assassina cada homem, mulher e criança amalequita, exceto um - o rei.

Creio que podemos presumir com segurança que Saul poupe Agague, junto com o melhor das manadas e rebanhos amalequitas, porque seja de seu próprio interesse. Com certeza, ele ganha certa popularidade ao permitir que os israelitas tenham uma boa refeição sacrificial com os animais amalequitas. Afinal, isto significa não só que podem se banquetear com carne, mas também que não têm que sacrificar seus próprios animais. Poupar a vida de Agague provavelmente dá a Saul um troféu por sua proeza e poder. Quando Agague se assenta à sua mesa é como se fosse uma cabeça de alce empalhada, pendurada e exibida no gabinete de um caçador. Lembro-me das palavras de outro rei registradas no livro de Juízes:

“Adoni-Bezeque, porém, fugiu; mas o perseguiram e, prendendo-o, lhe cortaram os polegares das mãos e dos pés. Então, disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, a quem haviam sido cortados os polegares das mãos e dos pés, apanhavam migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E o levaram a Jerusalém, e morreu ali.” (Jz. 1:6-7)

Para Saul, ter um rei assentado à sua mesa, cativo e dependente dele, é como ter um troféu desse rei. Creio que seja por isso que Saul poupe a vida de Agague e não a vida de qualquer outro amalequita.

A desobediência de Saul é perpetrada por sua obediência parcial. A desobediência, às vezes, ocorre de forma grosseira, ousada, tal como a de Adão e Eva com relação ao fruto proibido no Jardim do Éden. Mas, aqui, Saul peca por não obedecer à risca as ordens de Deus. Saul faz a maior parte daquilo que Deus lhe diz para fazer por meio de Samuel, mas não obedece totalmente. Samuel vê essa obediência incompleta como pecado.

A desobediência de Saul é de natureza religiosa. A desobediência de Saul é vista e retratada como obediência. Não sei como ele justifica o fato de ter poupado a vida de Agague. Para mim não me parece muito religioso. Mas Saul é mestre em camuflar seu pecado a respeito dos rebanhos amalequitas. Ele diz que ele e o povo pouparam o melhor dos rebanhos para sacrificar ao Senhor. Ora, talvez eles tenham realmente pretendido fazer isto, mas sua motivação, com toda a probabilidade, é interesseira. A matança de todo o gado, como Deus ordenou, também seria um sacrifício, mas o povo não poderia comer nada. Poupar os animais, e depois sacrificá-los a Deus, proporciona pelo menos duas coisas. Primeiro, o povo tem uma refeição grátis às custas de Deus. Eles podem partilhar a refeição sacrificial (2:12-17; 9:11-25). E segundo, eles podem sacrificar este gado para Deus em lugar de seu próprio gado, evitando assim um verdadeiro sacrifício de sua parte. A questão é que a desobediência de Saul tem uma fachada piedosa, mas, no fundo, é um pecado interesseiro. Assim, as ações de Saul são hipócritas, parecendo religiosas quando são pagãs.

A desobediência de Saul é conjunta. Saul não age sozinho. A princípio, quando fala com Samuel, ele está disposto a conversar sobre sua autodenominada obediência na primeira pessoa “Executei as palavras do SENHOR” (verso 13). Mas, uma vez que fica evidente que sua “obediência” é inaceitável para Deus, subitamente ele procura jogar a culpa sobre o povo de Israel:

“Respondeu Saul: De Amaleque os trouxeram; porque o povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao SENHOR, teu Deus; o resto, porém, destruímos totalmente.” (verso 15)

“Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente;” (verso 20)

Só depois que suas desculpas são rejeitadas e seu pecado é exposto por Samuel, é que Saul “confessa” seu papel neste pecado, junto com o povo:

“Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz.” (verso 24)

Quantas vezes o pecado se transforma num acontecimento social, cogitado e formado por muitas pessoas.

A desobediência de Saul não é levada muito a sério por ele. Saul é tardio em assumir a responsabilidade por seu pecado, como mostrado por Samuel. Mesmo quando confessa o pecado, ele joga parte da culpa sobre o povo e, então, tenta - rápido demais para o meu gosto - “ir adiante” com as bênçãos de Deus, esperando escapar da disciplina divina. Isto fica claro nos versos 24 a 33. De certa forma, Saul diz algo assim: “O.K., O.K., então eu baguncei tudo. Admito. Agora a gente pode continuar. Quero que fique comigo para a adoração, para que minha imagem não fique manchada diante do povo.” Na verdade, como no pecado da obediência parcial, Saul está mais preocupado com a opinião do povo do que com a opinião de Deus. Saul quer deixar seu pecado para trás sem ter aversão por ele, sem renunciar a ele.

O pecado de Saul é hipócrita. Caso você se lembre, Saul é um homem que não tolera que qualquer um descumpra suas ordens, mesmo quando elas são insensatas e prejudiciais. No capítulo 14, o filho de Saul, Jônatas, inadvertidamente viola a ordem de Saul para não comer até o anoitecer. Jônatas não ouviu a ordem por estar muito ocupado lutando contra os filisteus, mas Saul está determinado a condená-lo à morte por sua desobediência, e o teria feito se o povo não tivesse se recusado a permitir que tal acontecesse (14:36-46). Ora, quando chega sua vez de obedecer a ordem de Deus, ele é espantosamente indulgente consigo mesmo. Desobedecer a Deus? Pode ser. Desobedecer a Saul? Jamais!

A desobediência de Saul é repetição do mesmo tipo de desobediência vista anteriormente em I Samuel. Este é o segundo dos dois maiores exemplos da desobediência de Saul. O primeiro se encontra no capítulo 13, quando ele oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel. Em resposta a esse pecado, Samuel diz:

“Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13b-14)

Agora, no capítulo 15, encontramos o segundo exemplo da desobediência de Saul:

“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (I Sam. 15:22-23)

Por que esta acusação do capítulo 13 aparentemente é repetida no capítulo 15? Por que Samuel diz a Saul que Deus o rejeitou como rei, quando já havia dito quase a mesma coisa no capítulo 13? A resposta é que a primeira sentença é uma profecia condicional, que não seria cumprida caso Saul se arrependesse genuinamente de seu pecado. É isto que vemos afirmado como um princípio pelo profeta Jeremias:

“Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o SENHOR; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe.” (Jr. 18:6-8)

Naturalmente, era por isto que o rei de Nínive esperava e recebeu:

“Começou Jonas a percorrer a cidade caminho de um dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Os ninivitas creram em Deus, e proclamaram um jejum, e vestiram-se de panos de saco, desde o maior até o menor. Chegou esta notícia ao rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais, cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre cinza. E fez-se proclamar e divulgar em Nínive: Por mandado do rei e seus grandes, nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem os levem ao pasto, nem bebam água; mas sejam cobertos de pano de saco, tanto os homens como os animais, e clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos? Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez.” (Jn. 3:4-10)

Existem, então, algumas profecias que são absolutamente certas, profecias que não podem ser revertidas ou mudadas. E existem também profecias que são advertências sobre o julgamento que virá a menos que os homens se arrependam e sejam perdoados. Quando José interpreta os sonhos de Faraó, ele lhe diz que os dois sonhos dizem respeito à mesma coisa, e isto indica que aquilo que o sonho profetiza certamente ocorrerá (Gn. 41:32). As palavras de Samuel, o profeta, no capítulo 13, são um aviso do julgamento e uma oportunidade para Saul se arrepender. No capítulo 15, vemos que Saul sem dúvida não se arrepende, mas persiste em sua desobediência. Assim, as palavras de Samuel neste capítulo dizem respeito à remoção de Saul de seu cargo, mesmo que isto ocorra alguns anos mais tarde. É exatamente isto que Samuel deixa claro para Saul no versículo 29:

“Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.”

Como, então, podemos enquadrar as palavras do verso 29 àquilo que acabamos de ler no verso 11?

“Arrependo-me de haver constituído Saul rei, porquanto deixou de me seguir e não executou as minhas palavras. Então, Samuel se contristou e toda a noite clamou ao SENHOR.”

O mesmo termo hebraico é empregado nos dois versículos 11 e 29, portanto, não ousamos tentar solucionar nosso problema dizendo que o termo original não seja o mesmo. O que podemos dizer é que o termo empregado aqui é encontrado mais de 100 vezes no Velho Testamento. A forma empregada (Niphal) é traduzida como “arrepender-se” 38 vezes na Versão King James, e muitas delas se referindo ao “arrependimento” de Deus. No primeiro exemplo deste verbo (verso 11 do nosso texto), o autor fala da tristeza de Deus a respeito da maneira como anda a monarquia de Saul. Não é que Deus seja pego de surpresa ou que isto não faça parte de Seu plano soberano. Deus não é imune ao pecado humano; Ele sofre com ele. Mesmo quando Deus propõe que o mal faça parte de Seu plano eterno, Ele não se alegra com ele. Pelo contrário, isto Lhe causa pesar, que é o que diz o verso 11.

No verso 29, a mesma forma hebraica (Niphal outra vez) é usada, mas o contexto dita como este termo um tanto amplo deve ser compreendido. Quando Deus repreende Saul por sua desobediência no capítulo 13, Ele o adverte de que ele perderá sua dinastia, seu reino. Esta é uma profecia condicional, que pode ser evitada caso Saul verdadeiramente se arrependa. Ele não o faz. Portanto, agora no verso 29, quando Saul suplica a Samuel que não o abandone, que não traga a promessa de julgamento sobre ele, Samuel o relembra de que Deus não é homem para cometer erros e depois se “arrepender” e mudar o curso das coisas. A sentença de Samuel indica que Saul será removido do poder. Saul implora que não seja assim. Samuel lhe diz que Deus não erra em tais julgamentos, por isso, Deus não se “arrependerá” do curso que determinou para Saul. É tarde demais, e a opinião Deus não mudará agora, pois o tempo para arrependimento já se foi.

O Princípio Dominante
(15:22-23)

Saul procura desculpar sua desobediência afirmando que pretende usar os animais poupados para oferecer sacrifícios a Deus. Samuel não aceita suas desculpas. Nos versos 22 e 23, ele estabelece um princípio que será adotado diversas vezes pelos profetas posteriores, por nosso Senhor e por Seus apóstolos. O princípio é afirmado tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo. No verso 22 Samuel faz uma afirmação positiva. Ele nos informa que, ainda que em Seus planos Deus tenha prescrito rituais religiosos como uma coisa boa (principalmente se forem feitos com mãos limpas e coração puro), a obediência aos Seus mandamentos é muito melhor.

Saul supõe exatamente o contrário. Suas palavras e ações nos dizem que prestar rituais religiosos por prestar é a coisa mais importante do mundo. Para Saul, desobedecer a ordem de Deus não é tão importante, desde que sua desobediência permita que Ele ofereça a Deus um sacrifício ritual. Para ele, oferecer o sacrifício é mais importante do que obedecer a Deus. Para Samuel, a obediência a Deus é a mais sublime de todas as formas de sacrifício (compare com Rm. 12:1-2). Obedecer a Deus é melhor do que todos os sacrifícios. Desobedecer a Deus, e depois oferecer sacrifícios, é inútil.

No verso 23 Samuel compara o pecado de um israelita com os pecados dos gentios, os quais um bom judeu jamais pensaria cometer. Saul não leva a sério seu pecado de desobediência. Este povo pagão, os amalequitas, merece morrer. Saul não questiona isto. Os pecados que os pagãos cometem são aqueles que os israelitas odeiam. Samuel dá uma pequena aula a Saul ao lhe dizer quer sua desobediência não é menos desprezível do que os pecados pagãos de adivinhação, iniqüidade ou idolatria. Na verdade, os pagãos cometem seus pecados em total ignorância. Eles não possuem as Escrituras como o povo de Deus. O pecado de Saul é igual aos pecados pagãos que ele tanto odeia. Obedecer é melhor do que a adoração ritual; desobedecer é pior do que a idolatria pagã ou a feitiçaria (ARA).

O Arrependimento de Saul
(15:23-31)

É realmente triste ler o registro bíblico da desobediência de Saul. Mas, ainda mais triste é ler o relato de sua resposta à repreensão de Samuel. Saul começa afirmando ter obedecido a ordem de Deus. Depois, quando seu pecado é exposto, ele admite sua falha em executar totalmente a ordem, mas tenta santificar sua desobediência afirmando que é melhor irem adorar a Deus. Quando Samuel rejeita suas desculpas esfarrapadas, Saul finalmente confessa que pecou, jogando, no entanto, uma parte da culpa sobre o povo. Ele afirma que temeu o povo, e por isso, cedeu à pressão que exerciam sobre ele (verso 24). Sua preocupação não é que tenha pecado contra um Deus justo, mas que sua imagem pública ficará manchada se Samuel abertamente cortar relações com ele. Ele não tem uma profunda convicção a respeito da vileza de seu pecado. Simplesmente ele teme que seja muito ruim se a situação não for manejada de forma apropriada. Por isso, ele implora que Samuel volte e adore com ele, aparentando que tudo vai bem.

Samuel cumpre totalmente a ordem de Deus
(I Sam. 15:32-35)

“Disse Samuel: Traze-me aqui Agague, rei dos amalequitas. Agague veio a ele, confiante; e disse: Certamente, já se foi a amargura da morte. Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal. Então, Samuel se foi a Ramá; e Saul subiu à sua casa, a Gibeá de Saul. Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.”

Saul peca no capítulo 13 quando oferece o holocausto que é tarefa de Samuel. Mas agora, no capítulo 15, é necessário que Samuel cumpra a tarefa de Saul. E, neste caso, isto não é pecado. Saul parece relutante em se “arrepender” e voltar atrás em sua decisão de deixar o rei Agague vivo. Assim sendo, Samuel mesmo cumpre a ordem de Deus, pois é necessário que todos os amalequitas sejam mortos, especialmente o rei, que os liderou em sua maldade. Agague é trazido à frente. O rei está certo de que, uma vez que não foi executado na hora, o perigo já tenha passado. Certamente ele se sente à salvo enquanto estiver sob a custódia de Saul. Mas sua confiança não tem fundamento. Samuel é agora o único diante de quem ele deve ficar, e Samuel age no interesse de Deus. Da mesma forma que ele, comandante-em-chefe do exército amalequita, desfilhou mulheres, agora, sua mãe ficará desfilhada com sua morte (verso 33). Samuel não o mata simplesmente, ele o despedaça, sem dúvida porque esta é a maneira como ele tratava os inimigos que derrotava. Ainda que o texto não nos diga, é provável que Samuel cuide para que todo o gado dos amalequitas que os israelitas pouparam também seja morto.

Não é dito que Saul verdadeiramente lamente seu pecado ou mesmo seu rompimento com Samuel. No entanto, é um dia triste para Samuel. Ele chorou e intercedeu junto ao Senhor durante toda a noite anterior à repreensão de Saul (15:11). Ele lamenta por Saul depois que se eles separam (15:35). E o Senhor também lamenta por Saul, e pelo fato de tê-lo constituído rei de Israel. Isto não é nenhuma surpresa para Deus, pois é parte de Seu plano eterno. Saul não pode ser o rei do qual virá o Messias, pois ele não é da tribo de Judá, mas da tribo de Benjamim. Mesmo assim, Deus lamenta tê-lo posto de lado. Foi necessário, mas não é fonte de alegria. Será que pensamos que Deus, que é todo-poderoso, faz somente coisas que O deixem feliz? Deus realmente faz coisas que Lhe causam tristeza, como constituir Saul como rei, e como enviar Seu Filho para morrer na cruz do Calvário às mãos de vis pecadores. Deus faz tudo isto para Sua glória e para o nosso bem.

Conclusão

Primeiramente, devemos ver em nosso texto que Deus sempre cumpre Seus intentos. Não só na época do êxodo (Ex. 17:8-16), mas muitas vezes depois (Nm. 24:20-21; Dt. 25:17-19), Deus ordenou aos israelitas o extermínio dos amalequitas devido à gravidade de seu pecado, como demonstrado por seu ataque aos israelitas após o êxodo. Deus não Se esquece de Sua Palavra e, em I Samuel 15, a despeito da desobediência de Saul, a Palavra de Deus é cumprida. Deus mantém Suas promessas, sejam elas de bênção (como no caso dos israelitas e dos queneus) ou de julgamento.

Vemos na preservação dos queneus e na destruição dos amalequitas não apenas o cumprimento de uma promessa específica de Deus, mas também o cumprimento da aliança de Deus com Abraão (Gn. 12:1-3). Nesta aliança, Deus promete abençoar todos os que abençoarem Abraão e seus descendentes (por exemplo, os queneus), e amaldiçoar todos os que amaldiçoarem Abraão e sua descendência (os amalequitas). A aliança Abraâmica é um fator preponderante na história de Israel, explicando o julgamento e a bênção de Deus com relação às nações que se relacionam com Israel.

Receio que a atitude arrogante de Saul com relação ao seu pecado é semelhante à maneira que muitas pessoas vêem seu próprio pecado nos dias atuais. Por exemplo, dentro do Catolicismo Romano, algumas pessoas sentem-se livres para pecar e depois ir ao confessionário e dizer “Pai, perdoa-me porque pequei...” Muitos cristãos evangélicos também não levam a sério seus pecados. Dizemos muitas vezes que Cristo morreu por nossos pecados, que morreu por todos eles: passados, presentes e futuros. De fato, isto é verdade. No entanto, não nos dá licença para pecar. A graça de Deus jamais deve ser usada como desculpa para o nosso pecado (v. Rm. 5:18-6:11; Jd. 1:4). Abusar da graça de Deus e pecar deliberadamente, esperando ser perdoado, talvez seja o pecado mais terrível de todos (v. Hb. 10:26-31).

Nossa passagem também nos alerta sobre o perigo de classificar os pecados. Pecados odiosos são aqueles que os outros praticam, enquanto somos inclinados a considerar nossos próprios pecados, tal como mentir, como “mentirinhas brancas”. Nas igrejas evangélicas não bebemos, fumamos ou dançamos, falando contra aqueles que o fazem. É relativamente fácil para os cristãos condenarem os homossexuais e os imorais, se este não for o “nosso” tipo de pecado. Vamos ficar alertas, pois a desobediência à Palavra de Deus é considerada o pior de todos os pecados. Saber o que Deus nos ordena a fazer (ou a não fazer), e então desobedecer, é rebelar-se deliberadamente contra Deus. Nenhuma adoração ritualística, nenhuma atividade religiosa, cancela o mal de tal pecado.

Ver o pecado de Saul em nosso texto nos ensina uma lição valiosa sobre liderança espiritual. Na verdade, liderança espiritual não é dar às pessoas aquilo que elas querem, mas é fazer aquilo que Deus quer. Os líderes espirituais primeiramente devem ser seguidores de Deus. Saul é designado como rei de Israel. Sua tarefa é conhecer e obedecer aos mandamentos de Deus para liderar a nação em obediência. Mesmo que as palavras de Saul sobre a pressão exercida pelo povo sejam verdadeiras, Saul deixa de liderar de maneira piedosa. Sua tarefa não é agradar os homens, mas agradar a Deus. Na nossa época atual, quando líderes são eleitos muitas vezes, quase sempre sua eleição é baseada no quanto agradam aos outros. Este não é um teste de um líder espiritual. O teste é o quanto esta pessoa agrada a Deus obedecendo à Sua Palavra e desafiando os outros a segui-lo enquanto assim o faz. Isto não justifica uma liderança despótica, que simplesmente afirma falar por Deus. Significa que é uma liderança bíblica, baseada na Palavra de Deus e provada por ela.

Nosso texto é ainda mais difícil para nós do que poderíamos imaginar. Não só a desobediência à Palavra de Deus é um pecado muito grave, mas também a obediência parcial. Saul nos ensina que obediência parcial aos mandamentos de Deus é, de fato, verdadeira desobediência. Como Saul, muitos de nós somos inclinados a dar a nós mesmos o benefício da dúvida, se obedecermos as ordens de Deus em sua quase totalidade. Deus não vê a obediência parcial como vemos. Servir a Deus não é como um jogo de ferradura, onde alguém ganha pontos por se aproximar da marca. Pecado é não alcançar a marca, não importa quão perto você chegue dela.

Na Bíblia, repetidamente, o padrão é a obediência total, não a obediência parcial. As palavras de despedida de nosso Senhor, que conhecemos como a “Grande Comissão”, incluem esta afirmação:

Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” (Mt. 28:20, ênfase minha).

É incrível como temos nos convencido de que muitos dos mandamentos de nosso Senhor não sejam mais aplicáveis hoje em dia. Será que esta é apenas outra forma de obediência parcial? Deveríamos refletir seriamente sobre esta questão.

Alguns cristãos chamam a luta para obedecer plenamente os mandamentos de Deus de legalismo. Legalismo não é deixar de manter o alto padrão estabelecido pelas Escrituras. Legalismo é achar que o padrão colocado pelas Escrituras é muito baixo e acrescentar seus próprios requisitos àqueles dados por Deus. Legalismo é ir além dos mandamentos de Deus. O cristianismo bíblico não deve procurar manter um baixo padrão dos mandamentos de Deus.

Jamais obedecemos perfeitamente os mandamentos da Bíblia. Os escribas e fariseus tolamente achavam que obedeciam, mas estavam errados. Lembre-se do que nosso Senhor falou a respeito de sua obediência:

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.” (Mt. 5:20)

Ninguém obedece perfeitamente aos mandamentos de Deus. Mesmo quando parece que o fazemos, nossa atitude e nossa motivação nunca são aquilo que deveriam ser. Minha “justiça”, muitas vezes, é “justiça própria” e meu serviço, “interesseiro”.

Na verdade, há apenas uma pessoa cuja obediência foi perfeita, e podemos agradecer a Deus por Ele, nosso Senhor Jesus Cristo.

“Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:18-20)

“Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei.” (Sl. 40:8)

Ainda que o rei de Deus devesse obedecer à Sua Palavra, nenhum dos reis do Velho Testamento, incluindo Davi, nem sequer se aproximou do padrão da obediência perfeita. Somente Jesus Cristo, o Messias de Deus, pôde reivindicar perfeita obediência à vontade de Deus, e esta obediência tornou possível a salvação de pecadores indignos como eu e você:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)

“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados. Por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste; não te deleitaste com holocaustos e ofertas pelo pecado. Então, eu disse: Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade. Depois de dizer, como acima: Sacrifícios e ofertas não quiseste, nem holocaustos e oblações pelo pecado, nem com isto te deleitaste (coisas que se oferecem segundo a lei), então, acrescentou: Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade. Remove o primeiro para estabelecer o segundo.” (Hb. 10:4-9)

Paulo resumiu a questão toda nestas palavras:

“Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos.” (Rm. 5:19)

Foi o pecado de Adão, sua desobediência, que mergulhou toda a raça humana em pecado. Foi a obediência de nosso Senhor Jesus Cristo que tornou possível a nossa salvação. Devemos abandonar todos os pensamentos de mérito pela nossa salvação e perceber que nossas obras de justiça são como trapos de imundície (Is. 64:6). Precisamos nos agarrar à justiça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu na cruz do Calvário, suportando a punição pelos nossos pecados, e que ressurgiu do túmulo, declarando-nos justos e dando-nos a vitória sobre o pecado e a morte. Eis aqui a nossa esperança, e eis aqui a nossa salvação.

13. A Designação de Davi Como Rei (I Samuel 16:1-23)

Introdução

Lembro-me muito bem do meu primeiro dia de emprego para uma firma de entrega de carnes. Na verdade, o emprego era do meu cunhado, mas concordei em substituí-lo por um semestre enquanto ele fazia um treinamento para lecionar. No meu primeiro dia eu o acompanhei enquanto fazíamos a entrega de carne em diversos lugares. Alguns eram restaurantes muito bons que tinham filé no cardápio, outros eram botequins que serviam “rabo de porco com feijão” por 25 centavos. Ainda me lembro do cheiro horrível que nos recebia nesses lugares.

Achei que deveria me vestir adequadamente, uma vez que era meu primeiro dia no emprego, por isso usei um terno. Jamais cometi aquele erro de novo. Quando a gente entrava num desses botecos, não passava pela porta da frente; íamos direto para a cozinha, pela porta dos fundos. Ao entrar no primeiro estabelecimento, fomos recebidos com olhares assustados, apavorados. O pessoal começou a se dispersar como um bando de baratas tontas.

Não entendi nada, mas meu cunhado sim. “É o terno que está usando”, disse ele. “As pessoas pensam que você é da vigilância sanitária”. Vesti-me bem demais. Parecia um inspetor de saúde. Não é de admirar que tivessem aquelas expressões assustadas e apavoradas. Foi a última vez que usei terno para trabalhar naquele emprego, e fiquei tão feliz quanto meus fregueses.

O mesmo tipo de olhar parece pairar no rosto dos líderes da vila de Belém com a chegada de Samuel (verso 4). “É de paz a tua vinda?”, perguntam. O que será que eles temem? Por que os rostos pálidos, o suor nas palmas das mãos e o tremor nos joelhos? O que eles temem de Samuel? Por que um profeta sairia de seu caminho para vir a esta tribo insignificante e a este lugar tão sem importância? Este homem viera por alguma razão, e a presença de um profeta podia ser vista como a presença do próprio Deus. Talvez seu receio venha de sua devoção e sincero temor a Deus. Talvez não. Talvez seja medo de Saul, uma vez que os pronunciamentos de Samuel a respeito do desprazer divino para com ele parecem ter se tornado públicos:

“Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13-14)

“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz. Agora, pois, te rogo, perdoa-me o meu pecado e volta comigo, para que adore o SENHOR. Porém Samuel disse a Saul: Não tornarei contigo; visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, já ele te rejeitou a ti, para que não sejas rei sobre Israel. Virando-se Samuel para se ir, Saul o segurou pela orla do manto, e este se rasgou. Então, Samuel lhe disse: O SENHOR rasgou, hoje, de ti o reino de Israel e o deu ao teu próximo, que é melhor do que tu. Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.” (I Sam. 15:22-29)

Se Deus rejeitou Saul como rei e está prestes a apontar outro para assumir seu lugar, certamente Samuel irá designar o novo rei. Samuel está com medo de Saul, medo de que ele o mate (16:2). Se Samuel teme que Saul o mate, não é razoável que o povo presuma que aqueles que estão ao seu lado possam também ser mortos por Saul? Afinal, Saul matará Aimeleque e os sacerdotes em Nobe simplesmente por alimentarem Davi (ver I Samuel 22). Os belemitas têm boas razões para temer Saul - e qualquer um que se oponha a ele e venha até eles.

Com um enorme suspiro de alívio, os anciãos de Belém ficam sabendo por Samuel que ele veio oferecer um sacrifício e que serão convidados para a refeição sacrificial. É claro que eles não sabem o resto da história, que é sobre o que realmente trata nossa lição. Temos muito a aprender deste capítulo que descreve a designação de Davi como rei de Israel, aquele que, no devido tempo, substituirá Saul.

As Ordens de Samuel
(16:1-3)

“Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei. Disse Samuel: Como irei eu? Pois Saul o saberá e me matará. Então, disse o SENHOR: Toma contigo um novilho e dize: Vim para sacrificar ao SENHOR. Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar.”

Samuel deve ser elogiado por sua lealdade a Saul. Quando Saul desobedece a Deus no capítulo 15, Samuel fica angustiado e clama a Deus durante toda a noite (15:11). Sua angústia é em resposta ao lamento de Deus por ter constituído Saul como rei. Samuel vem interceder por Saul diante de Deus. A reação de Saul à reprimenda de Samuel mal é de arrependimento, o que causa em Samuel ainda mais pesar:

“Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.” (I Sam. 15:35)

É como se Samuel não estivesse disposto a desistir de Saul. Ele deve estar relutante em apontar o sucessor de Saul porque vai parecer como se colocasse o último prego no caixão político de Saul. A pergunta de Deus a Samuel soa como uma suave repreensão. Quanto tempo ainda Samuel lamentará sobre aquele que Deus rejeitou? Quanto tempo Samuel terá uma opinião diferente da de Deus? Deus rejeitou Saul e é tempo de Samuel agir de acordo com isto. Samuel deve encher um chifre com azeite e ir até Jessé, o belemita, onde deve ungir um de seus filhos como substituto de Saul.

A relutância de Samuel toma outra forma no verso 2, quando ele hesita devido aos perigos envolvidos. Samuel se queixa de que, se chegar aos ouvidos de Saul que ele está ungindo um novo rei, ele o matará. Parece que este é um perigo real. Afinal, Saul não hesita ao aniquilar quase todos os amalequitas (capítulo 15). Nem mesmo hesita ao condenar seu próprio filho à morte (capítulo 14). Como Herodes séculos mais tarde, ele não vacila ante o pensamento de dizimar qualquer ameaça potencial ao seu trono. Nem irá relutar em matar qualquer um que apóie um rei rival (ver capítulos 21 e 22). Samuel sente que sua preocupação é uma boa razão para hesitação.

Deus tem a solução para o problema de Samuel. Ele deve tomar um novilho e dizer ao povo de Belém que veio oferecer um sacrifício ao Senhor. Ele deve convidar Jessé para esta refeição sacrificial, a qual propiciará ocasião para que unja um de seus filhos como rei. O filho específico não é identificado, mas deve ser um dos filhos de Jessé. Esta será uma refeição muito semelhante àquela a que Saul foi convidado junto com seu servo (ver capítulos 9 e 10).

Algumas pessoas podem ficar perturbadas diante das instruções que Deus dá a Samuel. Deus não instrui pessoalmente Samuel a enganar Saul e o povo de Belém? É verdade que Deus não informa aos anciãos de Belém todas as coisas que está para fazer por meio de Samuel, mas aquilo que Ele mostra é absolutamente verdadeiro. Samuel vem realmente oferecer um sacrifício. Deus, muitas vezes, tem muito mais em mente do que nos revela de antemão. Este é só meio diferente. A maravilha mesmo é que Deus nos diga algumas das coisas que está por fazer (ver João 15:15).

A Chegada de Samuel, o Sacrifício e a Escolha de Davi
(16:4-13)

“Fez, pois, Samuel o que dissera o SENHOR e veio a Belém. Saíram-lhe ao encontro os anciãos da cidade, tremendo, e perguntaram: É de paz a tua vinda? Respondeu ele: É de paz; vim sacrificar ao SENHOR. Santificai-vos e vinde comigo ao sacrifício. Santificou ele a Jessé e os seus filhos e os convidou para o sacrifício. Sucedeu que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: Certamente, está perante o SENHOR o seu ungido. Porém o SENHOR disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração. Então, chamou Jessé a Abinadabe e o fez passar diante de Samuel, o qual disse: Nem a este escolheu o SENHOR. Então, Jessé fez passar a Samá, porém Samuel disse: Tampouco a este escolheu o SENHOR. Assim, fez passar Jessé os seus sete filhos diante de Samuel; porém Samuel disse a Jessé: O SENHOR não escolheu estes. Perguntou Samuel a Jessé: Acabaram-se os teus filhos? Ele respondeu: Ainda falta o mais moço, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, pois não nos assentaremos à mesa sem que ele venha. Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. Tomou Samuel o chifre do azeite e o ungiu no meio de seus irmãos; e, daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de Davi. Então, Samuel se levantou e foi para Ramá.”

Os anciãos de Belém ficam pálidos com a chegada de Samuel. Eles temem que sua vinda não seja de paz. Mas as palavras de Samuel os acalmam. Ele veio para oferecer sacrifício e eles são convidados a participar. Eles se santificam e se juntam a Samuel no sacrifício. Além disso, Samuel também consagra Jessé e seus filhos como convidados especiais.

Anos antes, a escolha de Saul não fora tão difícil para Samuel. Deus lhe dissera com antecedência que o futuro rei chegaria no dia seguinte. Desde o princípio Deus tinha deixado claro que Saul era aquele a quem Ele escolhera (9:15-17). No caso do substituto de Saul, Samuel sabe onde estará o novo rei e filho de quem será, mas não sabe qual dos filhos de Jessé será. Samuel tem seus próprios critérios para selecionar o novo rei, alguns dos quais deviam ter origem na designação de Saul, reforçados pelos critérios para designação dos reis daquela época e também da nossa.

Quais seriam exatamente estes critérios? Primeiro, esperava-se que o primogênito fosse o escolhido. O primogênito recebia porção dupla dos bens de seu pai. A liderança da família era transmitida a ele. Esperava-se que ele fosse o mais maduro, o mais experiente e o mais sábio da família. Assim, por que o filho mais novo seria o escolhido de Deus? Além de priorizar a ordem de nascimento, Samuel espera que o futuro rei seja revelado por sua aparência. Estudos mostram que executivos de alto escalão tendem a ser “altos, morenos e bonitos”. Samuel espera a mesma coisa. Foi exatamente assim com Saul (ver 9:2).

Jessé e seus sete filhos sabem o que Samuel veio fazer. É mais ou menos como encontrar a Cinderela. Eles devem estar assustados diante da possibilidade de alguém de sua família ser o próximo rei. E assim Jessé faz seus filhos passarem um a um diante de Samuel, começando pelo mais velho. Deus sabe o que Samuel está pensando quando ele olha para Eliabe, o filho mais velho de Jessé, um rapaz alto, de boa aparência (ver verso 7). Mas Ele diz a Samuel que esta não é a Sua escolha para o futuro rei de Israel, indicando que Seu critério tem mais a ver com o caráter de um homem do que com sua aparência exterior. E assim, o próximo filho de Jessé, Abinadabe, passa por Samuel e também é rejeitado. Então vem Samá, e depois os outros quatro filhos de Jessé, mas Deus não aponta nenhum deles como Seu escolhido.

Certamente Samuel fica perplexo e se pergunta qual deve ser o problema. Até parece que ninguém da família de Jessé considere Davi como rei, mesmo como uma possibilidade remota. Literalmente ele foge de seus pensamentos até que Samuel pergunte a Jessé se não há outros filhos. Bem, há Davi, é claro, mas ele é só um rapazinho - ainda é considerado uma criança - não um homem. Como poderia ser o novo rei? Ele tem um trabalho de criança - guardar as ovelhas. Quando viajo para o exterior, vejo muitas mulheres ou crianças cuidando de pequenos rebanhos de ovelhas. Este é o serviço de Davi, que parece dizer tudo. Como ele pode ser considerado como candidato a rei de Israel?

O que interessa para Deus é o coração de Davi. Saul é um homem cujo coração Deus teve que mudar:

“Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.” (I Sam. 10:9)

Mas o coração de Saul não continuou leal a Deus e ele tem que ser rejeitado e substituído por um homem como Davi, que tem um coração voltado para Deus. Por isso, Deus diz a Saul:

“Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:14)

O que ninguém percebe é que Deus dará a Davi tudo o que ele precisa para ser rei de Israel. O Espírito de Deus imediatamente se apossa dele para guiá-lo e capacitá-lo. Pela providência de Deus, ele é estrategicamente colocado na presença de Saul como seu escudeiro (16:21), onde pode aprender como governa um rei. Davi não é escolhido para substituir Saul imediatamente, mas primeiro ele é colocado numa espécie de internato, para depois ser preparado mentalmente, moral e espiritualmente para reinar, o que ainda levará muitos anos.

Jessé manda alguém até Davi e ele é trazido diante de Samuel. Davi também é um jovem de boa aparência, com todas as qualidades encontradas em seus irmãos mais velhos, salvo sua idade e posição como primogênito. Vemos que Deus não desqualifica Davi por sua boa aparência, mas também não o escolhe por causa disso. Boa aparência num rei é como boa aparência numa esposa - não deve ser a base para a escolha da companheira para o resto da vida. Mas, tendo escolhido uma mulher temente a Deus, se ela for bonita também, de modo algum isto diminui sua atração (ver Pv. 31:30). O caráter de Davi é agradável a Deus e é a base de sua escolha para o serviço. A aparência física de Davi é um bônus extra; as deficiências de Davi serão supridas pelo Espírito Santo e pelo preparo de Deus.

Deus mostra a Samuel que Davi é, de fato, Seu escolhido como rei de Israel e, por isso, Samuel se põe de pé e o unge. O Espírito de Deus vem sobre Davi, apossando-se dele e capacitando-o daí em diante. Samuel, então, ergue-se e retorna para sua casa em Ramá.

A Escolha de Davi para Servir a Saul
(16:14-23)

“Tendo-se retirado de Saul o Espírito do SENHOR, da parte deste um espírito maligno o atormentava. Então, os servos de Saul lhe disseram: Eis que, agora, um espírito maligno, enviado de Deus, te atormenta. Manda, pois, senhor nosso, que teus servos, que estão em tua presença, busquem um homem que saiba tocar harpa; e será que, quando o espírito maligno, da parte do SENHOR, vier sobre ti, então, ele a dedilhará, e te acharás melhor. Disse Saul aos seus servos: Buscai-me, pois, um homem que saiba tocar bem e trazei-mo. Então, respondeu um dos moços e disse: Conheço um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é forte e valente, homem de guerra, sisudo em palavras e de boa aparência; e o SENHOR é com ele. Saul enviou mensageiros a Jessé, dizendo: Envia-me Davi, teu filho, o que está com as ovelhas. Tomou, pois, Jessé um jumento, e o carregou de pão, um odre de vinho e um cabrito, e enviou-os a Saul por intermédio de Davi, seu filho. Assim, Davi foi a Saul e esteve perante ele; este o amou muito e o fez seu escudeiro. Saul mandou dizer a Jessé: Deixa estar Davi perante mim, pois me caiu em graça. E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele.”

Em questão de tempo, é um longo caminho desde a designação profética de Davi como rei de Israel até sua ascensão ao trono; e ainda mais longo em termos de logística. Como um jovem rapaz, a quem nem mesmo a família considera como candidato a rei, ascende a essa posição, quando um rei paranóico já está nesse lugar, um rei que não hesita em matar seus concorrentes? A resposta a esta pergunta toma tempo e espaço nas Escrituras, mas os versos 14 a 23 nos dão uma amostra de como Deus providencialmente faz aquilo que indica mediante Seu profeta.

Obviamente, Saul não faz idéia do que aconteceu, conforme registrado nos versos 1 a 13 deste capítulo. Se ele acreditar nas palavras de Samuel (pode ser também que não acredite, especialmente à medida que o tempo passe e ele continue como rei de Israel), será realmente afastado e substituído por um homem da escolha de Deus. Ele não sabe que Samuel já designou e ungiu Davi como seu substituto, ou que o Espírito que Deus lhe deu agora é dado a Davi. O que ele realmente sabe é que as coisas estão bem diferentes do que eram. Ele não vê mais Samuel (ver 15:35). Ele não sente a presença e o poder do Senhor, através do Espírito. O que ele experimenta mesmo é um fenômeno espiritual bem diferente. Um “espírito maligno da parte de Deus” se apossa de Saul, aterrorizando-o. Ele parece ter ataques quando o terror deste espírito está presente e épocas que são mais normais.

Como seria de se esperar, existem várias teorias sobre este “espírito maligno da parte de Deus”. A aparição deste “espírito”, bem como o desaparecimento do Espírito Santo, vêm da parte de Deus. Ou seja, é o Senhor quem ordena que o Espírito Santo deixe Saul. Será possível que o pedido de Davi para que Deus não retire dele Seu Espírito (Sl. 51:11) seja, de certa forma, conseqüência daquilo que ele observa com seus próprios olhos enquanto está a serviço de Saul? O espírito maligno também é da parte de Deus. Isto não deveria ser nenhuma surpresa, uma vez que Deus é soberano. Satanás não pode fazer nada a ninguém sem que Deus permita (ver, por exemplo, Jó 1 e 2). Para os servos de Saul, este “espírito maligno” não é novo ou incomum. Eles já o viram e o reconhecem, e sabem qual é o melhor tratamento para Saul. Todas estas coisas me levam a concluir que o espírito que oprime Saul seja demoníaco. Pelo que conheço da história, parece que homens como Adolf Hitler tiveram uma experiência extremamente semelhante.

Os servos de Saul crêem que a música tenha efeito benéfico sobre Saul e recomendam que ele encontre um homem hábil no tocar da harpa para que, quando o espírito o atacar, o músico toque uma canção suave e acalme seu espírito atribulado. Saul aprova a idéia. Ele, acima de tudo, está aterrorizado pela opressão do espírito.

Subitamente um dos servos de Saul se lembra de alguém que se encaixa perfeitamente às suas necessidades. Em algum lugar ele viu e ouviu falar de Davi de Belém. Davi não é apenas um músico dotado que toca harpa com destreza, ele é também um valente guerreiro (talvez por suas “lutas” com o urso e o leão), um homem de boa aparência e de bom senso. Mais importante, é um homem com que o Senhor está presente. As mesmas coisas que qualificam Davi como rei são aquelas que o qualificam para servir ao rei. As qualidades reais de Davi estão se tornando evidentes, até mesmo para aqueles que estão no palácio.

Saul convoca Davi com educação, no entanto, este é um convite que ninguém ousa recusar. O pedido é feito a Jessé, uma vez que Davi ainda vive sob seu teto. Pelas palavras de Saul a Jessé, fica claro que ele sabe que Davi é guardador de ovelhas (ver o verso 19). Jessé envia Davi ao rei junto com uma oferta de alimentos, onde ele começa a servir como seu criado. Conforme o caráter e as habilidades de Davi vão ficando mais evidentes para Saul, ele é promovido à posição de seu escudeiro, provavelmente o serviço mais íntimo e pessoal de qualquer um dos servos de Saul. Saul não só começa a respeitar as habilidades de Davi, ele também começa a amá-lo. Talvez Davi seja quase como um filho para ele.

Termina o período de experiência de Davi e ele toma posse do cargo, por assim dizer, junto ao rei. De forma adequada, Saul solicita a Jessé que permite que Davi permaneça a seu serviço. Assim é que, toda vez que Saul é atormentado pelo espírito maligno, Davi toca sua harpa e tranqüiliza o espírito atribulado do rei. O Espírito de Deus em Davi faz com que o espírito maligno, durante algum tempo, se retire de Saul. Como Saul soletra alívio? D A V I.

Conclusão

O pecado do capítulo 15 é o fim para Saul; não é o fim do seu reinado, mas o fim da oportunidade para ele mudar e se arrepender. Mas, por que ungir Davi tanto tempo antes dele ser nomeado e coroado como rei? Primeiro, o Espírito que está sobre Saul para que desempenhe seus ofícios reais, pode agora ser removido e colocado sobre Davi. É no Espírito que Davi crescerá, amadurecerá e servirá a Saul, enquanto Deus o prepara para o seu ofício. Como é irônico e inesperado que Davi sirva ao rei em preparação para servir como rei. Os caminhos de Deus estão além da nossa capacidade de predizê-los.

Segundo, a unção de Davi acaba sendo um teste para os israelitas. Sua unção, diferentemente de Saul, é semipública. Seu pai e seus irmãos, assim como os homens proeminentes da cidade que comparecem ao banquete sacrificial, precisam saber que o novo rei que substituirá Saul está sendo designado. Na medida em que os homens compreendam que Davi é o próximo rei, sua reação é indicativa da alusão ao Rei de Israel e Seu Reino. Isto também determina seu lugar no reino de Davi.

Deixe-me ilustrar com a história de um homem e sua esposa, Nabal e Abigail, descrita em I Samuel 25. Davi está fugindo de Saul, e ele e seus homens se escondem onde os rebanhos de Nabal são guardados. Eles não molestam nenhum dos pastores de Nabal, nem tomam qualquer animal de seu rebanho. Eles são úteis a Nabal e, como estão na época da tosquia, educadamente lhe solicitam uma oferta. Nabal recusa, com estas palavras:

“Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos são, hoje em dia, os servos que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (I Sam. 25:10b-11)

Não é que Nabal não saiba quem é Davi. Ele sabe que ele é o filho de Jessé, e também sabe que está fugindo de seu senhor, Saul. Em outras palavras, ele sabe que Davi é o rei designado para substituir Saul. Se há alguma dúvida disto, ouça as palavras de sua esposa, Abigail, ditas a Davi:

“Perdoa a transgressão da tua serva; pois, de fato, o SENHOR te fará casa firme, porque pelejas as batalhas do SENHOR, e não se ache mal em ti por todos os teus dias. Se algum homem se levantar para te perseguir e buscar a tua vida, então, a tua vida será atada no feixe dos que vivem com o SENHOR, teu Deus; porém a vida de teus inimigos, este a arrojará como se a atirasse da cavidade de uma funda. E há de ser que, usando o SENHOR contigo segundo todo o bem que tem dito a teu respeito e te houver estabelecido príncipe sobre Israel, então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar ao coração o sangue que, sem causa, vieres a derramar e o te haveres vingado com as tuas próprias mãos; quando o SENHOR te houver feito o bem, lembrar-te-ás da tua serva.” (I Sam. 25:28-31)

Nabal sabe exatamente quem é Davi e se recusa a fazer qualquer coisa por ele. Será por que ele pode ter repercussão negativa junto a Saul (ver os capítulos 21 e 22)? Abigail é uma mulher sábia e temente a Deus. Ela sabe quem é Davi, e sua resposta e seu apelo a ele se fundamentam em sua submissão a ele como futuro rei. A designação precoce de Davi como futuro rei de Israel, portanto, se torna um teste.

É quase o mesmo hoje em dia. Quando o autor de I Samuel volta sua atenção de Saul para Davi, ele nos leva a refletir sobre um homem que é um protótipo de nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, Saul se parece demais com Satanás. Saul recebe autoridade para governar segundo Deus, no entanto, suas regras e seu governo se tornam mais importantes para ele do que o governo e as leis de Deus. Por isso, ele é posto de lado. Davi é designado para ocupar seu lugar, para governar sobre o povo de Deus com retidão. Satanás, como o Saul dos tempos antigos, foi rejeitado por Deus. Na cruz do Calvário, nosso Senhor derrotou Satanás. Contudo, ele ainda está livre para se opor a Deus, embora seu julgamento e sua punição sejam certos. Neste ínterim, Jesus Cristo foi designado como o Rei de Deus. Ele não apenas proclamou o reino de Deus, Ele também o conquistou com Sua morte, sepultamento e ressurreição. Todos aqueles que se submetem a Ele como Rei entrarão em Seu reino e governarão com Ele por toda a eternidade. A questão para você e para mim, hoje, é: “A quem serviremos?” Quem reinará sobre nós? A que reino iremos nos submeter? Por natureza, todos os homens são nascidos no reino de Satanás. Somente pelo novo nascimento, por confiar na obra de Jesus Cristo na cruz do Calvário, é que os homens são transportados do reino das trevas para o reino da luz, do reino de Satanás para o reino de Deus. Você já mudou os reis, meu amigo?

Samuel erra sobre quem será o rei de Deus. Ele espera que o rei seja “alto, moreno e bonito”, por assim dizer. Deus deixa claro a Samuel que a aparência externa não é Seu critério para a escolha do rei (I Sam. 16:7). Davi também tem boa aparência, mas esta não é a base para sua escolha por Deus. Por desígnio divino, nosso Senhor Jesus Cristo, o rei eterno de Deus, também não devia ser reconhecido por Sua aparência:

“Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.” (Is. 53:1-3)

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)

Pelo que entendo destes textos e de outros, o Senhor Jesus não era uma pessoa que chamava a atenção, fisicamente falando. Os homens não eram atraídos a Ele por Seus belos traços ou por Sua voz profunda, tipo locutor de rádio. Os homens eram atraídos a Ele quando reconheciam Seu coração igual a Deus, Seu ser igual a Deus. Foram Sua submissão e obediência ao Pai que O distinguiram, junto ao fato dEle ter cumprido perfeitamente todas as profecias relativas ao Messias. Ele é aquele apontado por Deus para governar e, quando Ele voltar, todos os homens se ajoelharão diante Dele e O reconhecerão como o Rei de Deus (Fp. 2:9-11). A exortação das Escrituras é para que O recebamos como Rei e que nos tornemos parte de Seu reino, ou aguardemos Sua ira sobre nós como Seus inimigos (Sl. 2:10-12).

Talvez esta seja uma boa ocasião para falarmos sobre música e sua relação com o reino espiritual. Você deve se recordar que em I Sam. 10 (versos 5-6, 10-13) os profetas com quem Saul se encontrou, e a quem se juntou como “um dos profetas” (pelo menos por alguns instantes) quando o Espírito desceu poderosamente sobre ele, estavam acompanhados de instrumentos musicais - tamborim, flauta e harpa (verso 5). De alguma forma, a descida do Espírito sobre Saul (e talvez sobre os outros profetas) está associada à música, ou até mesmo seja principiada por ela. No capítulo 16, as possessões demoníacas de Saul são acalmadas pelo toque da harpa de Davi. Em II Re. 3:14-15 uma vez mais, Eliseu chama um menestrel a fim de profetizar no Espírito. Entendo que a música deva ter algum tipo de papel na ligação (ou desligamento) com o reino espiritual. Acho que devemos ter muito cuidado com o tipo de música que ouvimos. Sei que tem havido muita discussão sobre o “rock”, e não desejo ser muito loquaz neste assunto, mas sugiro que haja um tipo de música potencialmente benéfico e, provavelmente um tipo que possa invocar o espírito errado. Este texto deve nos dar uma pausa para pensar no tipo de música que ouvimos e sua influência sobre nós.

Nossa passagem fala sobre a escolha de Davi para desempenhar uma função dada por Deus - não para sua salvação. Alguns poderiam ficar tentados a se desviar desta passagem achando que Deus escolheu salvar Davi porque ele tinha um coração voltado para Ele. Deus escolheu Davi para servir por causa de seu coração. Há uma diferença enorme entre Deus escolher para um serviço e Sua eleição para salvação. Se Deus escolhesse salvar os que tivessem coração puro, Ele não salvaria ninguém:

“Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” (Pv. 20:9, ver Rm. 3:9-18).

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr. 17:9, ver também Rm. 3:9-18)

Deus não salva os homens devido àquilo que vê em seus corações e gosta do que vê. Deus salva homens que são vis pecadores em seus corações e tem misericórdia deles, colocando seus pecados sobre Seu Filho, Jesus Cristo. Somente Cristo é sem pecado e, por isso, capaz de morrer pelos pecados dos outros. Há apenas uma pessoa em toda a história da raça humana cujo coração foi livre de pecado, e essa pessoa é Jesus Cristo. Deus salva aqueles que confiam Nele para serem perdoados de seus pecados e para terem o presente da vida eterna.

Hoje em dia há muita discussão sobre liderança, e devo dizer que as qualidades e qualificações procuradas nos líderes contemporâneos não são aquelas que Deus buscou em Davi. Os evangélicos escolhem seus líderes quase nas mesmas bases que a sociedade secular. Procuramos homens que tenham “recursos” (dinheiro e influência) e “uma boa cabeça prá negócios”. Deus buscou um homem que tinha um coração voltado para Ele. Creio que esta característica seja o primeiro e principal pré-requisito para o tipo de liderança que Deus quer. Vamos procurar ser o tipo de homens e mulheres que Deus busca para o Seu serviço.

14. Davi e Golias (I Samuel 17:1-58)

Introdução

Quando chego à história de “Davi e Golias” sinto-me como um comediante convidado para falar numa convenção de comediantes. Enquanto subo ao palco, alguém me entrega uma lista das dez piadas mais famosas e mais batidas que se conhece - com instruções para contá-las de forma a fazer o público rir.

O problema com histórias do Antigo Testamento como a nossa, e de outras como “Daniel na cova dos leões” e “Jonas e a ‘Baleia’”, é que estamos familiarizados demais com elas. Não quero dizer que as conheçamos tão bem assim, pois muitas vezes não conhecemos. Mas pensamos que sim e, conseqüentemente, temos uma longa lista de idéias preconcebidas. Ao abordarmos nosso estudo vamos procurar obter o máximo que pudermos e, pela capacitação do Espírito, colocar essas idéias preconcebidas na prateleira e considerar todos os aspectos de nosso texto uma vez mais.

Observações Preliminares

Talvez seja útil fazermos algumas considerações antes de nosso estudo em I Samuel 17 sobre Davi e Golias.

Primeiro, a Septuaginta (a tradução grega do Velho Testamento feita por volta de 200 a.C.) omite uma porção de versos deste capítulo. A Septuaginta omite, especificamente, os versos 12 a 31, 41, 50 e 55 a 58. O texto hebraico tradicional, conhecido como Texto Massorético, não omite. Uma vez que o Texto Massorético é o texto original e a Septuaginta apenas uma tradução (e, às vezes, bastante livre), presumiremos que a Septuaginta omitiu propositadamente os versos que estavam no texto original.

Segundo, parece haver uma discrepância entre os capítulos 16, onde Saul conhece e ama Davi, e o capitulo 17, onde Saul parece não saber quem seja ele. Várias soluções são propostas. Certamente nenhum autor (ou “editor”) colocaria estes dois capítulos lado a lado, sabendo que há alguma coisa errada no capítulo 16, ou no capítulo 17, ou em ambos. Talvez Davi tenha crescido consideravelmente desde o capítulo 16, ou a memória de Saul esteja falhando (havia uma porção de rostos e nomes a serem lembrados, ou quem sabe seu estado mental simplesmente turve seus pensamentos). Existem algumas explicações plausíveis para este aparente problema. Também devemos observar que o verso 15 do capítulo 17 parece ligar claramente este capítulo ao capítulo 16. É preciso lembrar que Saul não pergunta sobre Davi, mas sobre o pai de Davi. Afinal de contas, ele promete que sua casa ficará livre de impostos (ver 17:25). Se Jessé realmente é muito velho nos dias de Saul (17:12), então é provável que este jamais o tenha encontrado, uma vez que Jessé não podia viajar para visitar o rei. Não seria por isso que Jessé envia Davi para checar o bem-estar de seus filhos (ver 17:17-19)? Por que, então, devemos presumir que Saul se lembre dele?

Terceiro, o capítulo 17 complementa muito bem o capítulo 16, fornecendo detalhes que não estão presentes no capítulo anterior. No capítulo 16 temos o relato da designação (unção) de Davi como futuro rei de Israel mas, nesse capítulo, ele não pronuncia uma só palavra e nenhum de seus feitos é registrado. É no capítulo 17 que vemos um retrato claro de Davi e de seu caráter, pelas palavras e atos aqui registrados. No capítulo 16, Deus designa Davi como Seu rei porque ele é um “homem segundo o coração de Deus” (ver 13:14, 16:7). No capítulo 17, vemos, em termos bem específicos, exatamente o que é ser um “homem segundo o coração de Deus”. Qualquer um que tente colocar uma brecha entre estes dois capítulos, apontando aparentes incoerências entre eles, deixa de considerar sua evidente continuidade.

Quarto, esta guerra não precisaria ser travada, não fosse a tolice de Saul no capítulo 14. É Jônatas, filho de Saul, quem precipita a guerra com os filisteus que ocupam o território de Israel (capítulo 13). Saul vê o exército se dissolvendo diante de seus olhos e desobedece a Deus, deixando de esperar por Samuel para oferecer o holocausto (13:8-14). No capítulo 14, Jônatas inicia um ataque ao posto de guarda dos filisteus que resulta na intervenção divina por meio de um terremoto. A batalha contra os filisteus poderia ter sido definitivamente vencida pelo exército israelita, não fosse um edito insano expedido por Saul. Ao proibir seus soldados de comer antes do anoitecer, Saul coloca em risco a vida de Jônatas e predispõe os outros soldados a pecar por consumir a carne dos animais abatidos junto com seu sangue. À medida que o dia se arrasta, a fraqueza dos soldados devido à fome os impede de lutar bem. Além do mais, o tempo gasto no preparo da comida para este exército faminto custa a Saul e seus homens a chance de vencer definitivamente os filisteus. A guerra do capítulo 17 é conseqüência da loucura de Saul no capítulo 14, uma guerra que jamais teria sido travada não fosse seu edito.

Quinto, apenas uma pequena parcela dos 58 versos do capítulo 17 descreve a luta entre Davi e Golias. Se admitirmos que os versos 40 a 51 tratem da batalha entre Davi e o gigante filisteu, devemos, então, observar que aproximadamente 80% do capítulo seja preparação para este confronto ou venha após a vitória sobre Golias, enquanto somente 20% descrevem realmente o confronto entre ambos. Quando nos concentramos somente em “Davi e Golias”, negligenciamos a maior parte desta passagem e sua ênfase.

Uma Perspectiva Mais Ampla

Consideremos, então, o capítulo 17 à luz de um retrato mais amplo do Velho Testamento até este ponto da história de Israel. A história de Davi e Golias parece bem diferente quando vista numa perspectiva mais ampla das Escrituras que a precedem (de Gênesis até I Samuel 16).

Começaremos em Gênesis 12:3, com a chamada “Aliança Abraâmica”. Ali, Deus diz a Abrão:

“Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:3, ARA, ênfase minha)

Se Golias está amaldiçoando Israel e seu Deus e, se Deus é um Deus que guarda Sua aliança, é de se esperar que Golias seja divinamente amaldiçoado. Biblicamente falando, uma nuvem negra paira sobre a cabeça de Golias, o blasfemo filisteu.

Passando rapidamente pela Lei de Moisés, chegamos ao livro de Números, particularmente aos capítulos 13 e 14, que descrevem o temor de Israel com relação aos cananeus e sua conseqüente rebelião contra Deus em Cades-Barnéia. Deus tinha libertado Israel das mãos de Faraó e tinha lançado os egípcios no Mar Vermelho. Agora, quando os israelitas chegam a Cades-Barnéia, espias são enviados a Canaã para avaliar a terra prometida. A terra e seus frutos são magníficos. O único problema para dez dos espias é o tamanho dos habitantes do lugar:

“Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. Os amalequitas habitam na terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão. Então, Calebe fez calar o povo perante Moisés e disse: Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela. Porém os homens que com ele tinham subido disseram: Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós. E, diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra que devora os seus moradores; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura. Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos.” (Nm. 13:27-33, ARA, ênfase minha).

O temor dos israelitas é causado pela estatura (ou seja, o poderio militar) dos “gigantes” que vivem em Canaã. “Não podemos subir contra os cananeus”, protestam, “lá tem gigantes!” Devido a esse medo e sua recusa em confiar em Deus, esta geração de israelitas perece no deserto. Quando seus filhos - a segunda geração - estão prestes a possuir a terra, Deus lhes dá instruções muito claras sobre como reagir diante dos inimigos que irão enfrentar:

“Eis que o SENHOR, teu Deus, te colocou esta terra diante de ti. Sobe, possui-a, como te falou o SENHOR, Deus de teus pais: Não temas e não te assustes.” (Dt. 1:21)

“O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença.” (Dt. 28:7)

“Passou Moisés a falar estas palavras a todo o Israel e disse-lhes: Sou, hoje, da idade de cento e vinte anos. Já não posso sair e entrar, e o SENHOR me disse: Não passarás o Jordão. O SENHOR, teu Deus, passará adiante de ti; ele destruirá estas nações de diante de ti, e tu as possuirás; Josué passará adiante de ti, como o SENHOR tem dito. O SENHOR lhes fará como fez a Seom e a Ogue, reis dos amorreus, os quais destruiu, bem como a sua terra. Quando, pois, o SENHOR vos entregar estes povos diante de vós, então, com eles fareis segundo todo o mandamento que vos tenho ordenado. Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco; não vos deixará, nem vos desamparará. Chamou Moisés a Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: Sê forte e corajoso; porque, com este povo, entrarás na terra que o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus pais; e tu os farás herdá-la. O SENHOR é quem vai adiante de ti; ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te atemorizes.” (Dt. 1:1-8, ver também Js. 1:9, 8:1 e 10:25)

O livro de Josué registra a derrota dos inimigos de Israel, não devido à sua estatura ou poderio militar, mas porque Deus está com eles nas batalhas. No livro de Juízes lemos a respeito dos homens levantados por Deus para libertar Seu povo das mãos de seus inimigos. Em alguns casos, um único indivíduo (como Sansão, ver cap. 13-16) mata muitos deles, ao passo que, em outros, um pequeno grupo (como Gideão e seus 300 homens, ver cap. 6-8) derrota uma força inimiga amplamente superior.

Quando chegamos em I Samuel, encontramos nos primeiros 16 capítulos a preparação para o confronto entre Davi e Golias. Ouça as palavras de Ana, registradas no capítulo 2:

“Não multipliqueis palavras de orgulho, nem saiam coisas arrogantes da vossa boca; porque o SENHOR é o Deus da sabedoria e pesa todos os feitos na balança. O arco dos fortes é quebrado, porém os débeis, cingidos de força... Ele guarda os pés dos seus santos, porém os perversos emudecem nas trevas da morte; porque o homem não prevalece pela força. Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido.” (I Sam. 2:3-4, 9-10)

No capítulo 4 chegamos à primeira batalha com os filisteus no livro de I Samuel. Quando os israelitas sofrem uma derrota às suas mãos, eles levam a Arca de Deus consigo para a guerra, certos de que isto lhes dará, milagrosamente, a vitória. Os israelitas são novamente derrotados, os filhos de Eli, Hofni e Finéias, são mortos e o próprio Eli também morre quando toma conhecimento deste desastre. Os filisteus orgulhosamente carregam a Arca como troféu de guerra, um símbolo de sua “vitória sobre Israel e seu Deus”. Sem nenhuma assistência humana, Deus humilha Dagom, o deus filisteu, e o povo das principais cidades filistéias (capítulos 5 e 6).

No capítulo 7 os israelitas se arrependem de seus pecados e vão à Mispa para serem julgados por Samuel e cultuar a Deus. Quando os filisteus tomam conhecimento deste ajuntamento, presumem que seja algum tipo de manobra militar hostil, e por isso reúnem suas forças e cercam o lugar onde os israelitas estão reunidos. Os israelitas estão indefesos, mas Samuel intercede por eles e, enquanto ele oferece o sacrifício, Deus intervém com uma tempestade elétrica que faz com que as armas de ferro dos filisteus virem condutores elétricos e devastem seu exército.

No capítulo 8 os israelitas exigem um rei para julgá-los e governá-los. Boa parte de sua motivação é querer alguém que vá adiante deles e lute suas batalhas (ver 8:5, 20). Saul é escolhido, um homem que, dos ombros para cima, sobressai a seus irmãos israelitas (9:2). Este é o homem que libertará o povo de Deus dos filisteus:

“Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim.” (I Sam. 9:1516, ARA, ênfase minha).

A primeira batalha de Saul com os filisteus vem imediatamente após sua vitória decisiva sobre os amonitas que sitiavam Jabes-Gileade (capítulo 11). O confronto não é iniciado por Saul, mas por seu filho Jônatas, que ataca a guarnição dos filisteus situada em Israel (13:1-4). Saul entra em pânico em virtude do tamanho do exército filisteu e de seu exército estar se desmantelando. Em desobediência à ordem de Deus, ele mesmo oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel (13:814). Este é o começo do fim para Saul.

A situação entre os soldados israelitas e o exército filisteu chega a uma espécie de impasse. Saul parece preferir isto a se arriscar em qualquer atitude ofensiva. Jônatas toma uma atitude tipo Davi. Sem dizer nada a ninguém (especialmente ao seu pai), ele toma seu escudeiro e ataca um posto avançado dos filisteus, dizendo estas palavras, que refletem seu caráter e a qualidade de sua fé:

“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (I Sam. 14:6, ARA, ênfase minha)

Quando vemos o confronto entre israelitas e filisteus e entre Davi e Golias à luz da revelação bíblica precedente, ganhamos uma perspectiva bem diferente. Será que os israelitas, incluindo Saul, são aterrorizados por Golias? (ver 17:11, 24, 32) Não deveriam. Na verdade, esse medo não é apenas falta de fé, é desobediência aos mandamentos de Deus ao Seu povo (ver Dt. 1:21, 31:8, etc). Será que eles têm pavor deste gigante? Deveriam dizer: “Só um...?” Será que eles querem bater em retirada e não atacar? Deveriam considerar a teologia e a prática de Jônatas, que crê que Deus não é limitado pelo número de guerreiros que lutam em Seu nome. Não é o tamanho de Golias ou a arrogância de suas palavras que devem nos causar estranheza, mas a incredulidade e o medo do povo de Deus. A situação não é nova, nem desconhecida. As chances não são piores aqui do que em qualquer outro lugar. Simplesmente Israel carece de fé. Israel carece de uma liderança temente a Deus.

O Cenário
(17:1-3)

“Ajuntaram os filisteus as suas tropas para a guerra, e congregaram-se em Socó, que está em Judá, e acamparam-se entre Socó e Azeca, em Efes-Damim. Porém Saul e os homens de Israel se ajuntaram, e acamparam no vale de Elá, e ali ordenaram a batalha contra os filisteus. Estavam estes num monte do lado dalém, e os israelitas, no outro monte do lado daquém; e, entre eles, o vale.”

Saul jamais parece tomar a iniciativa de iniciar um confronto militar com os filisteus, e esta vez não é exceção. Depois da derrota parcial e humilhação às mãos dos israelitas no capítulo 14, os filisteus parecem ansiosos não só por recuperar seu domínio militar sobre Israel (ver 4:9), mas também seu orgulho. Os dois exércitos se preparam para o confronto, aproximadamente 14 milhas a sudoeste de Jerusalém, entrincheirando-se em lados opostos do Vale de Elá e assentando acampamento nas encostas de duas montanhas, cada uma das quais desce para o vale onde corre um ribeiro (ver 17:40).

Podemos muito bem nos perguntar por que este impasse continua por tanto tempo, com os dois lados fingindo um luta com muita gritaria e brados de guerra, mas sem nenhum contato verdadeiro e sem nenhuma baixa. Saul e seu exército realmente não querem lutar, nem os filisteus. É mais fácil compreender a relutância dos filisteus. Eles empregam tanto o aço quanto o bronze em seus instrumentos de guerra. Eles têm carros, por exemplo (ver 13:5), mas estes são projetados para um solo relativamente nivelado, não para a encosta de montanhas - estes veículos não são “para todo tipo de terreno”. Também não é fácil para um soldado com uma proteção tão pesada quanto a de Golias lutar com agilidade e facilidade enquanto se esforça para manter o equilíbrio na encosta de uma montanha. O perigo de lutar nesses terrenos acidentados é claramente expresso mais tarde em II Samuel. Quando as forças leais a Davi saem para lutar contra Absalão e seu exército, mais guerreiros das forças rebeldes são mortos por causa do terreno do que pelos soldados de Davi:

“Porque aí se estendeu a batalha por toda aquela região; e o bosque, naquele dia, consumiu mais gente do que a espada.” (II Sam. 18:8)

Ainda que os filisteus superem os israelitas em número e em armas, o terreno é tal que dificulta em muito a sua investida, da mesma maneira que o inverno dificultou as investidas militares na Europa no passado. Nenhum dos dois lados parece querer uma batalha de verdade, e assim, o desafio de Golias é uma espécie de chamariz, se ele puder encontrar alguém disposto a lutar com ele.

O Vilão e o Vitorioso
(17:4-16)

“Então, saiu do arraial dos filisteus um homem guerreiro, cujo nome era Golias, de Gate, da altura de seis côvados e um palmo. Trazia na cabeça um capacete de bronze e vestia uma couraça de escamas cujo peso era de cinco mil siclos de bronze. Trazia caneleiras de bronze nas pernas e um dardo de bronze entre os ombros. A haste da sua lança era como o eixo do tecelão, e a ponta da sua lança, de seiscentos siclos de ferro; e diante dele ia o escudeiro. Parou, clamou às tropas de Israel e disse-lhes: Para que saís, formando-vos em linha de batalha? Não sou eu filisteu, e vós, servos de Saul? Escolhei dentre vós um homem que desça contra mim. Se ele puder pelejar comigo e me ferir, seremos vossos servos; porém, se eu o vencer e o ferir, então, sereis nossos servos e nos servireis. Disse mais o filisteu: Hoje, afronto as tropas de Israel. Dai-me um homem, para que ambos pelejemos. Ouvindo Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito. Davi era filho daquele efrateu de Belém de Judá cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; nos dias de Saul, era já velho e adiantado em anos entre os homens. Apresentaram-se os três filhos mais velhos de Jessé a Saul e o seguiram à guerra; chamavam-se: Eliabe, o primogênito, o segundo, Abinadabe, e o terceiro, Samá. Davi era o mais moço; só os três maiores seguiram Saul. Davi, porém, ia a Saul e voltava, para apascentar as ovelhas de seu pai, em Belém. Chegava-se, pois, o filisteu pela manhã e à tarde; e apresentou-se por quarenta dias.”

É possível que Golias seja o comandante das forças filistéias, mas não vejo razão convincente para pensar assim. Ele não é mencionado nos três primeiros versos do capítulo 17 e parece ter surgido somente depois de um prolongado impasse entre os dois exércitos. Quando ele é apresentado, não é como rei dos filisteus, nem como seu comandante em chefe, mas como um “campeão”. Por isso, estou inclinado a pensar que, enquanto o impasse continua, Golias aproveite a oportunidade para se aproximar dos israelitas, passando por suas próprias tropas e apresentando-se abertamente como um alvo convidativo a qualquer um suficientemente ousado para “vir e pegá-lo”.

Golias parece falar por todo o exército filisteu quando propõe uma solução para o impasse entre os dois exércitos. Se ele vencer, isto lhe dará grande prazer (ele parece amar uma boa briga e o fato de ainda estar vivo testemunha que não perdeu nenhuma disputa), e uma vantagem real para os filisteus. No entanto, enquanto a oferta for mantida, se pelo menos um único israelita se opuser a Golias e vencê-lo, Israel obterá a vitória sobre todo o exército filisteu. Desta forma, a perda de apenas uma vida seria necessária para determinar o exército vitorioso.

Durante esses 40 dias parece que os israelitas ficam cada vez mais receosos e relutantes em aceitar o desafio de Golias. Enquanto isso, ele parece ficar cada vez mais ousado. Duas vezes ao dia (de manhã e à tarde) ele se aproxima da linha de frente israelita e desafia qualquer guerreiro corajoso a sair e lutar com ele. Até posso imaginar que, à medida que os dias passem, Golias se torne cada vez mais arrogante, talvez chegando mais e mais perto (e os israelitas fugindo toda vez que ele o faz - ver 17:24). A princípio, sua oferta é um desafio, depois parece se tornar um insulto. Ele está tentando incitar os israelitas a tomarem uma atitude.

Este desafio é fácil para Golias. Afinal, esse camarada é um gigante. Ele mede “seis côvados e um palmo” (verso 4), o que o faz ter quase 3 metros de altura. Se hoje ele fosse um jogador de basquete, poderia “enterrar” a bola sem tirar os pés do chão! Se sua altura não for suficiente para aterrorizar os israelitas, sua armadura deve dar arrepios na espinha. Já ouvi falar de mulheres “bem vestidas”, mas Golias manda sua mensagem justamente pelo modo como está equipado. Ele usa um capacete de bronze e uma couraça que pesa cerca de 60 kg, e suas pernas também estão protegidas por caneleiras. Ele carrega um dardo de bronze entre os ombros e tem uma lança tão pesada que alguns precisariam de um amigo para pegar uma das extremidades e ajudar a carregá-la. A ponta da lança pesa cerca de 7 kg, segundo algumas estimativas, e outros sugerem ainda mais. Além de todo esse equipamento de proteção usado ou carregado por Golias, ele tem um escudeiro que vai à sua frente levando seu escudo.

Os israelitas levam a sério o desafio de Golias. Eles e seu rei estão apavorados por causa do gigante filisteu. Eles estão tão assustados que ninguém se dispõe a aceitar o desafio de Golias. Ninguém quer enfrentar o gigante. De manhã e à tarde, durante 40 dias, Golias tenta provocar alguém para que lute com ele, e aterroriza os que não aceitam.

Golias, o campeão filisteu, é descrito nos versos 4 a 11 por sua elevada estatura física e sua impressionante e ofensiva armadura. Davi, o futuro oponente de Golias, é apresentado nos versos 12 a 15 com uma descrição bem diferente. Nada é dito sobre sua estatura, sua força ou suas armas. Simplesmente é dito que ele é o mais novo dos oito filhos de Jessé, o efrateu de Belém de Judá. Muito mais é dito a respeito de Jessé, que é um homem já muito velho nos dias de Saul (verso 12). Também é dito que os três irmãos mais velhos de Davi (os mesmos mencionados em 16:6-9) foram à guerra com Saul, e que Davi é deixado em casa para apascentar as ovelhas, salvo quando precisa viajar para servir como ministro de música para Saul (ver 16:14-23).

Por que esta ênfase “familiar” na descrição de Davi, quando Golias é descrito em termos de sua assombrosa aparência, armas e agressividade? Há muitas razões. Primeira, não é a aparência de Davi que faz com que Deus o escolha, mas seu coração, seu caráter. Segundo, para que Davi seja reconhecido como alguém de cuja descendência algum dia virá o Messias, ele precisa ser da tribo de Judá (ver Gn. 49:8-12), e deve ser de Belém (ver Mq. 5:2). Ser o mais novo da família explica a razão pela qual ele é designado para apascentar as ovelhas, e também a razão pela qual seu pai idoso o envia para entregar comida a seus irmãos e trazer notícias de seu bem-estar. É também outro exemplo de como Deus muitas vezes reverte a maneira dos homens, a qual, aqui, seria escolher o filho mais velho de Jessé, não o mais novo.

Davi Visita Seus Irmãos na Batalha
(17:17-25)

“Disse Jessé a Davi, seu filho: Leva, peço-te, para teus irmãos um efa deste trigo tostado e estes dez pães e corre a levá-los ao acampamento, a teus irmãos. Porém estes dez queijos, leva-os ao comandante de mil; e visitarás teus irmãos, a ver se vão bem; e trarás uma prova de como passam. Saul, e eles, e todos os homens de Israel estão no vale de Elá, pelejando com os filisteus. Davi, pois, no dia seguinte, se levantou de madrugada, deixou as ovelhas com um guarda, carregou-se e partiu, como Jessé lhe ordenara; e chegou ao acampamento quando já as tropas saíam para formar-se em ordem de batalha e, a gritos, chamavam à peleja. Os israelitas e filisteus se puseram em ordem, fileira contra fileira. Davi, deixando o que trouxera aos cuidados do guarda da bagagem, correu à batalha; e, chegando, perguntou a seus irmãos se estavam bem. Estando Davi ainda a falar com eles, eis que vinha subindo do exército dos filisteus o duelista, cujo nome era Golias, o filisteu de Gate; e falou as mesmas coisas que antes falara, e Davi o ouviu. Todos os israelitas, vendo aquele homem, fugiam de diante dele, e temiam grandemente, e diziam uns aos outros: Vistes aquele homem que subiu? Pois subiu para afrontar a Israel. A quem o matar, o rei o cumulará de grandes riquezas, e lhe dará por mulher a filha, e à casa de seu pai isentará de impostos em Israel.”

Nos versos 4 a 30 há um claro contraste entre o jeito como Golias vem para o combate e a maneira como Davi se apresenta para enfrentá-lo. A figura marcante de Golias é previsível, até mesmo esperada. Ele é um soldado experiente, um lutador arrogante (se não corajoso), um campeão cuja função é lutar no território entre os exércitos oponentes. Davi está envolvido nesta batalha de uma forma diferente. Jamais esperaríamos isto dele e, provavelmente, nem ele. Ele nem mesmo está no exército. Seus três irmãos mais velhos estão, mas há ainda outros quatro que são mais velhos do que ele e que também não estão lutando. Davi é o mais novo de oito filhos. Seu trabalho é tocar harpa para Saul e apascentar as ovelhas de seu pai. Quem poderia imaginar que ele acabaria aceitando o desafio de Golias?

A chegada de Davi à cena do conflito não é conseqüência de sua própria iniciativa. Ele está mais do que ocupado cuidando de Saul e das ovelhas de seu pai (verso 15). Seus três irmãos mais velhos estão lutando contra os filisteus poucas milhas a oeste e, aparentemente, já faz algum tempo que Jessé recebeu alguma notícia deles. Devido à sua idade avançada, Jessé não pode viajar para muito longe; portanto, ele chama Davi e o instrui a ir ao acampamento do exército israelita. Aparentemente, o propósito de sua visita é levar alguns suprimentos para seus irmãos e seu comandante (versos 17-18). No entanto, sente-se que o que Jessé mais deseja é ter notícias em primeira mão sobre o rumo das coisas e sobre seus filhos.

Estou certo de que Jessé não deseja colocar seu filho mais novo em perigo. Creio que ele espera que Davi chegue enquanto os soldados estão no acampamento, não na frente de batalha. Ele quer que Davi entregue os suprimentos, fale diretamente com seus irmãos, e depois se apresse em voltar prá casa com as notícias, sem se envolver na luta. Simplesmente não acontece desse jeito. Deus providencialmente orquestra os fatos para que ocorra uma série de acontecimentos bem diferentes.

Depois de cuidar para que alguém tomasse conta de seu rebanho de ovelhas, Davi parte logo cedo, viajando aproximadamente 12 milhas para oeste, rumo ao acampamento israelita. Se ele tivesse chegado alguns minutos antes, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ele teria encontrado seus irmãos ainda no acampamento, onde simplesmente lhes teria dado os suprimentos enviados por Jessé, perguntado sobre seu bem-estar e depois iniciado a volta para casa antes que eles fossem para a frente de batalha.

Mas Davi chega justamente quando os soldados israelitas estão deixando o acampamento e indo apressadamente para a linha de frente, dando um impressionante grito de guerra enquanto atacam - aproximando-se, mas nem tanto, dos filisteus. Davi tem pouca opção, a não ser deixar a comida que trouxe de casa com o soldado que está na retaguarda com os suprimentos, e ir atrás de seus irmãos na frente de batalha. Ali ele encontra os irmãos e, enquanto conversa com eles, Golias se adianta para repetir seu desafio pela 41ª vez. Golias diz o de sempre, mas esta é a primeira vez que Davi o ouve. Ele ouve o desafio do gigante e sua blasfêmia contra Israel e seu Deus. Ele vê os apavorados israelitas (incluindo seus irmãos) baterem em retirada, sua coragem estraçalhada pelas palavras e pela aparência deste homem.

Providencialmente, alguns soldados israelitas conversam com Davi ou, pelo menos, conversam na sua frente. As palavras que ele ouve o pegam totalmente desprevenido, tanto que ele pede que sejam repetidas e confirmadas diversas vezes por diversas pessoas. Todos dizem a mesma coisa, que o rei Saul expediu um edito convocando voluntários para lutar com Golias, e que também ofereceu uma recompensa substancial ao homem que se apresentasse e aceitasse o desafio. Saul promete dar a essa pessoa grandes riquezas, assim como uma de suas filhas por esposa. Ele também promete isentar de impostos a família do pai do voluntário.

Admito que é mera especulação, mas não creio que esta tríplice oferta seja feita de uma só vez. Creio que tenha sido feita de modo progressivo. Você já esteve no portão de embarque de um aeroporto prestes a embarcar, quando o atendente anuncia que o vôo está com excesso de reservas? A princípio, a companhia aérea pode oferecer US$ 100 de crédito a quem se dispor a ceder seu assento. Depois, se ainda forem necessários outros assentos, a companhia aumenta a oferta. E então, a pessoa que devolve sua passagem recebe um crédito de US$ 200. Finalmente, se ainda for necessário, a companhia oferece passagens grátis de ida e volta para qualquer lugar do país.

Acho que é isto que Saul faz. Ele não está disposto a enfrentar Golias pessoalmente, por isso convoca um voluntário. Ninguém se apresenta. Então ele oferece uma quantia substancial em dinheiro (ou terras, ou o que quer que seja em forma de riqueza) a qualquer voluntário. Ninguém ainda. Poucos dias depois, Saul lança a oferta de uma de suas filhas como esposa - sem voluntários. Finalmente, ele acrescenta mais um benefício ao pacote - ele isentará de impostos a família do homem. Eis um negócio que Saul acha irrecusável.

Davi também acha irrecusável. Quando fica sabendo o que está sendo oferecido por Saul, ele acha tão incrível que pede a confirmação de diversas pessoas antes de acreditar. Em minha opinião, Davi não é totalmente motivado pelo que é oferecido. Pelo contrário, ele fica espantado que tal oferta tenha sido feita, pois espera que um verdadeiro soldado aproveite a oportunidade - o privilégio - de enfrentar Golias. Afinal, este homem está afrontando o povo de Deus e, portanto, o próprio Deus. Davi está certo de que Deus dará a vitória àquele que lutar com Golias. É batata! E além da grande honra e do privilégio de lutar com Golias, o rei está oferecendo todos estes prêmios! Não dá para entender. Davi pergunta mais e mais vezes para ter certeza de que ouviu corretamente. É alguma pegadinha? Por que será que ninguém quer aceitar a oferta de Saul?

A Discussão de Davi com Eliabe
(17:28-30)

“Ouvindo-o Eliabe, seu irmão mais velho, falar àqueles homens, acendeu-se-lhe a ira contra Davi, e disse: Por que desceste aqui? E a quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção e a tua maldade; desceste apenas para ver a peleja. Respondeu Davi: Que fiz eu agora? Fiz somente uma pergunta. Desviou-se dele para outro e falou a mesma coisa; e o povo lhe tornou a responder como dantes.”

A maioria das pessoas pensa que o milagre deste capítulo seja a derrota de Golias por Davi. Embora seja um grande milagre, não vamos nos esquecer que muitos obstáculos precisam ser superados antes que Davi possa confrontar Golias. O primeiro é a sua situação. Ele é jovem e nem mesmo está no exército de Saul. Ele é um jovem pastor que cuida do rebanho de seu pai a algumas milhas do lugar onde os dois exércitos estão frente a frente. Além de Golias, Davi também precisa passar por seu irmão mais velho, Eliabe, e por Saul. Ele precisa primeiro obter permissão oficial para entrar em combate com Golias no campo de batalha. O primeiro obstáculo está em vias de ser removido. Agora Davi está tratando do segundo obstáculo – seu irmão mais velho, Eliabe – nos versos 28 a 30.

Vamos relembrar as palavras de Eliabe a Davi à luz daquilo que já aprendemos sobre ele no capítulo 16. Eliabe é o mais velho dos oito filhos de Jessé; Davi é o mais novo. Eliabe deve ser “alto, moreno e bonito”, pois Samuel espera que ele seja ungido rei de Israel. Eliabe é rejeitado (junto com os outros seis irmãos mais velhos de Davi), porque Deus não escolherá o rei com base na aparência, mas com base num coração segundo o Seu próprio coração (13:14; 16:7). Eliabe não possui o “coração” que Davi possui. Além disso, Samuel ungiu Davi na presença de seus irmãos (16:13) para que Eliabe soubesse de sua eleição como rei.

Perto do final do capítulo 17, Eliabe não está com boa cara. Quando ouve Davi perguntando a alguns de seus companheiros de batalha sobre as recompensas oferecidas por Saul ao homem que derrotar Golias, Eliabe fica extremamente irado e descarrega sua raiva em Davi. Primeiro ele o acusa de vir ao campo de batalha pelos motivos errados. Especificamente, ele acusa Davi de querer ser um espectador da peleja por pura diversão, não muito diferente de ir a um circo. Ou ele não sabe que Davi veio em obediência às instruções de seu pai ou mentalmente põe isso de lado. Depois, ele ataca Davi acusando-o de deixar suas responsabilidades com relação ao seu trabalho de cuidar das ovelhas de seu pai. Ele acusa Davi de abandonar o rebanho e junta um insulto à injúria, acrescentando a palavra “poucas” (“poucas ovelhas”, verso 28), sugerindo que a tarefa de Davi não é apenas doméstica (cuidar de ovelhas), mas também banal (só umas “poucas ovelhas”). Na verdade, Davi não negligenciou seu rebanho, mas assegurou-se de que alguém cuidasse dele na sua ausência (verso 20). No entanto, o pior de tudo é que Eliabe ousa julgar o coração de seu irmão mais novo, acusando-o de agir com maldade.

Ironicamente, em todas as áreas em que Eliabe acusa Davi, seu irmão mais novo não é somente inocente, mas é digno de elogio. Davi vem ao campo de batalha para trazer comida a seus irmãos e levar notícias deles a seu pai - ele vem em obediência às instruções de seu pai. Davi não abandonou seu rebanho; ele se assegurou de que alguém cuidasse dele enquanto estivesse ausente. Davi não é culpado de ter um coração maléfico; ele é escolhido por Deus porque é “um homem segundo o coração de Deus”. E Davi não deve ser tratado com desrespeito, uma vez que em breve será o rei de Israel (e isto inclui Eliabe).

Examinando todas as acusações de Eliabe, o ponto principal é: a juventude de Davi. Davi é acusado de vir à cena da batalha por curiosidade infantil. Isto é injusto. É acusado de abandonar suas responsabilidades como faria uma criança, e também é acusado da insolência e maldade que as crianças são capazes. Que ousadia Davi vir e levantar questões pertinentes ao pedido de Saul e ao desafio de Golias!

Se Davi tivesse voltado direto para casa e desse ao seu pai um relato honesto e completo sobre a guerra e a conduta de seus irmãos mais velhos, o que ele teria dito a Jessé? Teria relatado que absolutamente nenhum progresso tinha sido feito para derrotar os filisteus, e que Eliabe, Abinadabe e Samá correram como covardes quando Golias se aproximou. Teria que dizer a seu pai que, ao trazer à baila a questão do voluntário para lutar com Golias, foi severamente “cortado” por seu irmão mais velho. Não é interessante que a arrogância e as blasfêmias de Golias são minimizadas por Eliabe, enquanto Davi é falsamente acusado de maldade por fazer e falar o que é certo?

Davi talvez fique aflito e desapontado pelas cruéis palavras acusatórias de seu irmão, mas não é barrado por elas. Ele responde a seu irmão e o desafia a ser específico quanto aos erros que cometeu, dizendo o que ele fez. Ele parece insistir que o assunto sobre o qual está falando não é inadequado. Sobre o que mais alguém deveria conversar, a não ser sobre enfrentar Golias e ir buscar a recompensa oferecida por Saul? Assim, Davi continua o que estava fazendo - perguntando àqueles ao seu redor se o seu entendimento sobre a oferta de Saul é correto.

Davi e o Golias de Golias (Saul)
(17:31-39)

“Ouvidas as palavras que Davi falara, anunciaram-nas a Saul, que mandou chamá-lo. Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu. Porém Saul disse a Davi: Contra o filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois tu és ainda moço, e ele, guerreiro desde a sua mocidade. Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. Disse mais Davi: O SENHOR me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu. Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o SENHOR seja contigo. Saul vestiu a Davi da sua armadura, e lhe pôs sobre a cabeça um capacete de bronze, e o vestiu de uma couraça. Davi cingiu a espada sobre a armadura e experimentou andar, pois jamais a havia usado; então, disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois nunca o usei. E Davi tirou aquilo de sobre si.”

Se for do jeito de Eliabe, Davi voltará para casa humilhado. Felizmente para Israel, Davi não fica arrasado e nem é dissuadido pela sarcástica repreensão de seu irmão, que tenta “podá-lo”. Eliabe poderia ter ordenado que ele fosse para casa, se Saul não tivesse ouvido sobre o interesse de Davi em seu programa de incentivos para enfrentar Golias. Sem levar Eliabe em consideração, Saul convoca Davi, cujas primeiras palavras ao rei são piedosas e animadoras:

“Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu.” (v. 32)

Embora o sentido das palavras de Davi vá muito além de Saul, o foco principal está sobre ele, pois está apavorado com a presença agourenta de Golias e dos filisteus. Davi bondosamente e, um tanto indiretamente, encoraja Saul a não temer. Ele fala isto porque está disposto a ir e lutar com Golias. Ele está disposto a fazer aquilo que nem Saul, nem qualquer outro soldado em Israel, está disposto a fazer - lutar com Golias.

Antes de considerar a fé de Davi, vamos ponderar por alguns instantes sobre os temores de Saul. Sou forçado a concluir que ele, por natureza, não é nenhum pouco corajoso. Seu pai foi “um homem de bens” (9:1), mas o mesmo não é dito a seu respeito. Saul é aquele que se esconde entre a bagagem quando é indicado para ser rei de Israel (10:22). Quando o Espírito desce sobre ele, ele se torna um novo homem, com um novo coração (10:9). Davi parece ser um homem segundo o coração de Deus antes mesmo do Espírito Santo descer sobre ele. Quando enfrenta a oposição dos filisteus, Saul é passivo, não ofensivo, embora a luta contra os filisteus seja uma parte significativa de seu chamado como rei (9:16). Somente quando o Espírito de Deus desce poderosamente sobre ele, Saul parece agir decisivamente contra seus inimigos (11:6). Por natureza, de maneira alguma Saul é corajoso; somente no Espírito ele é um verdadeiro líder.

Assim dizendo, devo admitir que sinto certa compaixão (ou pelo menos pena) de Saul. De diversas formas, sua recusa em lutar com Golias (individual ou coletivamente) é totalmente lógica. Afinal, disseram-lhe que seu reinado estava praticamente no fim (13:13-14; 15:23). Samuel o deixou, não vendo sua face novamente (15:35). E o Espírito de Deus se apartou dele, sendo substituído por um “espírito maligno da parte do Senhor” (16:14). Acho que eu também não estaria fazendo qualquer coisa perigosa ou corajosa.

Davi é um homem intrépido e, até aqui, o único israelita com coragem no campo de batalha. Onde ele a consegue? Deixe-me sugerir algumas fontes. Primeiro, sua coragem tem origem em sua teologia - seu entendimento de Deus. Ele é “um homem segundo o coração de Deus” (13:14, 16:7). Uma pessoa não pode ser um “homem segundo o coração de Deus” a menos que conheça o Seu coração, e isto só ocorre quando se entende Deus por meio de Sua Palavra (veja, por exemplo, o Salmo 119). Davi conhece a Deus não só de forma histórica (como Deus libertou Israel no passado) e teológica, mas também de forma prática, como em breve irá demonstrar a Saul.

Davi age como um rei de Israel deveria agir. Ele precisa confiar em Deus, incentivar seus colegas israelitas a fazer o mesmo, e derrotar os inimigos de Deus, especialmente os filisteus. Quando ele foi ungido como o futuro rei de Israel (capítulo 16), deve ter gasto um bom tempo meditando no significado destas coisas, bem parecido com o que Maria faria séculos depois (ver Lucas 2:19, 51). O que significa ser rei de Israel? O que ele deve fazer como rei? Suas ações no dia em que ele enfrenta Golias, sem dúvida, são conseqüências de suas meditações. Este jovem não é um soldado, e alguns diriam até que ele é jovem demais para lutar, mas Davi é providencialmente colocado numa situação em que precisa confiar em Deus e obedecer à Sua Palavra, ou então acovardar-se em incredulidade e desobediência, como Saul e os demais.

Saul dá a Davi todas as oportunidades para arranjar uma desculpa e voltar para a casa de seu pai e suas ovelhas, sem culpa ou vergonha. Há certa bondade em suas palavras quando tenta convencê-lo a não lutar com Golias. Ele não diz que Davi é muito pequeno para lutar, mas que é muito jovem e, por isso, inexperiente. Golias é um campeão maduro, com muitos anos de experiência em combates. Davi é apenas um garoto, sem nenhuma experiência. Ou pelo menos é isto que Saul supõe; no entanto, Davi diz o contrário, com tanta convicção que Saul permite que ele represente Israel na luta contra Golias.

Davi é jovem, mas seu dever, aparentemente banal, de cuidar de um pequeno rebanho de ovelhas o preparou muito bem para lutar com Golias. Eliabe jamais esteve tão errado a seu respeito, como demonstram as palavras de Davi a Saul. Esta manhã, junto com seus irmãos, Davi vê e ouve o que qualquer outro soldado israelita vê e ouve na frente de batalha. A diferença é que o que ele vê é muito parecido com as coisas que já enfrentou como pastor. Golias é forte e poderoso, capaz de destruir um homem? Leões e ursos também, e Davi os derrubou e matou. Poucas criaturas são mais assustadoras quando rugem do que um urso ou um leão (ver I Pe. 5:8). Ao desempenhar seus deveres como pastor Davi matou tanto ursos quanto leões (versos 34-36).

Quando Davi arrisca sua vida para salvar uma ovelha que está sob seus cuidados, Deus o salva. Será que ele está preocupado por ter que enfrentar Golias? Não, pois o Deus que o salvou das garras do leão e das garras do urso também o salvará das mãos de Golias. Repare que Davi fala em ser salvo das “mãos” ou das “garras” de um leão ou urso, não das “presas”. Isto porque a fera tinha um cordeiro em sua boca e não queria soltá-lo, tendo que lutar com Davi com suas patas e garras. Golias não representa nenhuma ameaça e, uma vez que Davi, com a ajuda de Deus, destruiu com suas próprias mãos o leão e urso que rugiam, ele também pode destruir os filisteus que urram. Golias fala (urra) de um jeito que assusta as forças israelitas? Ele não assusta Davi. Davi já viu isso antes.

Creio que a fé de Davi em Deus seja contagiosa e que Saul, de alguma forma, crê que haja uma boa chance de ele prevalecer contra Golias. Saul lhe dá permissão para lutar e lhe oferece sua armadura. A armadura não é uma boa idéia, e Davi a recusa, mas ela é uma forte implicação de que Davi luta com Golias em lugar de Saul, como representante oficial do exército israelita. Se for esse o caso, a vitória de Davi deve ser a vitória de Israel (o que acabará sendo). Caso contrário, sua derrota irá parecer a derrota de Israel, pelo menos nos termos especificados por Golias (ver versos 8 e 9). Davi não está travando esta luta sozinho. Ele está lutando por Deus, por Saul e por todo o povo de Israel.

Não quero ser muito prolixo a respeito da armadura de Saul, a qual ele oferece a Davi. Pode parecer, pelo menos à distância (e para aqueles mal informados), que é Saul quem esteja saindo contra Golias. Afinal, quem mais tem uma armadura como a dele? Isto também sugere que Davi não pode ser tão pequeno em estatura, ou a armadura nem mesmo serviria nele. Ele a coloca e depois a tira, porque não sabe lutar com ela - em suas palavras, ele nunca a “usou”. Davi irá contra Golias com as mesmas armas que costuma usar, aquelas que Deus lhe deu habilidade para usar.

Davi e Golias
(17:40-54)

“Tomou o seu cajado na mão, e escolheu para si cinco pedras lisas do ribeiro, e as pôs no alforje de pastor, que trazia, a saber, no surrão; e, lançando mão da sua funda, foi-se chegando ao filisteu. O filisteu também se vinha chegando a Davi; e o seu escudeiro ia adiante dele. Olhando o filisteu e vendo a Davi, o desprezou, porquanto era moço ruivo e de boa aparência. Disse o filisteu a Davi: Sou eu algum cão, para vires a mim com paus? E, pelos seus deuses, amaldiçoou o filisteu a Davi. Disse mais o filisteu a Davi: Vem a mim, e darei a tua carne às aves do céu e às bestas-feras do campo. Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do SENHOR dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel. Saberá toda esta multidão que o SENHOR salva, não com espada, nem com lança; porque do SENHOR é a guerra, e ele vos entregará nas nossas mãos. Sucedeu que, dispondo-se o filisteu a encontrar-se com Davi, este se apressou e, deixando as suas fileiras, correu de encontro ao filisteu. Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; a pedra encravou-se-lhe na testa, e ele caiu com o rosto em terra. Assim, prevaleceu Davi contra o filisteu, com uma funda e com uma pedra, e o feriu, e o matou; porém não havia espada na mão de Davi. Pelo que correu Davi, e, lançando-se sobre o filisteu, tomou-lhe a espada, e desembainhou-a, e o matou, cortando-lhe com ela a cabeça. Vendo os filisteus que era morto o seu herói, fugiram. Então, os homens de Israel e Judá se levantaram, e jubilaram, e perseguiram os filisteus, até Gate e até às portas de Ecrom. E caíram filisteus feridos pelo caminho, de Saaraim até Gate e até Ecrom. Então, voltaram os filhos de Israel de perseguirem os filisteus e lhes despojaram os acampamentos. Tomou Davi a cabeça do filisteu e a trouxe a Jerusalém; porém as armas dele pô-las Davi na sua tenda.”

A ironia deste incidente é que a armadura de Davi (ou a falta dela) parece “desarmar” Golias. Eis um homem cujo ego parece tão grande ou maior do que sua estrutura. Ele é arrogante, orgulhoso e blasfemo. Ele desafia os israelitas a lhe enviar seu melhor guerreiro, e o vencedor leva tudo. Você pode imaginar que choque para Golias e seu ego quando Davi aparece? Eis aqui um jovem sem nenhuma proteção e, aparentemente, sem nenhuma arma ofensiva. Davi leva uma funda, mas ainda não colocou nela uma pedra, por isso, com certeza, não parece ameaçador. O que Golias vê é o cajado que Davi leva nas mãos. Ele parece concluir que esta seja sua única arma. Ainda hoje as pessoas carregam pedaços de pau - para afastar cachorros inoportunos. Será que é por isso que Davi carrega seu cajado, para tratar Golias como a um cachorro? Golias profere maldições pelos seus deuses (verso 43). Ele é de Gate; será que ele sabe como Deus tratou seu “deus” Dagon?

Que insulto para Golias mandarem um rapazinho sem nenhuma armadura e com um pedaço de pau! É assim que o levam a sério? Será que fazem tão pouco de suas habilidades que mandam alguém como este? Golias é louco e, com certeza, pretende matar Davi e dar sua carcaça como alimento às aves do céu e às bestas do campo (verso 44). Será que a ameaça também pretende intimidar Davi? Não. De qualquer forma, isto confirma a fé de Davi. A imagem do cadáver de um inimigo alimentando as aves e as feras não começou com Golias:

“O SENHOR te fará cair diante dos teus inimigos; por um caminho, sairás contra eles, e, por sete caminhos, fugirás diante deles, e serás motivo de horror para todos os reinos da terra. O teu cadáver servirá de pasto a todas as aves dos céus e aos animais da terra; e ninguém haverá que os espante.” (Dt. 28:25-26)

Deus usou esta expressão para descrever o destino dos israelitas que rejeitarem Sua Palavra, mas a imagem também pode ser empregada com relação aos inimigos de Deus, quem quer que sejam (ver Jr. 7:33; 15:3; 16:4; 19:7; 34:20; Ez. 29:5). Golias espera assustar Davi, ameaçando matá-lo e dar seu corpo como alimento às aves e às feras? Simplesmente ele relembra a Davi a promessa de Deus com relação a Seus inimigos. É por isso que Davi pode reverter sua maldição:

“Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel.” (I Sam. 17:46)

Não é o corpo de Davi que virará comida de passarinho neste dia, mas o de Golias. Davi deixa bem claro que sua disputa com Golias não é apenas uma questão pessoal - Davi luta com ele para a glória de Deus, e a favor da nação de Israel. Sua vitória será uma lição para todos de que “a batalha é do Senhor”, da mesma forma que a vitória (verso 47).

Isto faz Golias se mover. Davi não espera que Golias venha até ele. Em vez disto, ele corre em sua direção, pegando uma das cinco pedras na corrida, colocando-a na funda e depois girando enquanto se dirige para o gigante. Você pode imaginar Davi, a esta altura, tentando correr com a armadura de Saul, esperando desferir um golpe fatal contra Golias quando nem mesmo pode estender o braço acima dos ombros com uma espada? A funda é a arma perfeita. Golias está atrás do escudo carregado por seu escudeiro. Ele está protegido dos pés à cabeça, com uma abertura apenas ao redor dos olhos para que possa ver. Esta é a parte exposta de seu corpo. Este é o alvo de Davi, que ele acerta em cheio, ouso dizer, enquanto corre. A pedra se encrava na cabeça de Golias, derrubando-o como a uma árvore. Davi corre para ele, arranca a espada do corpo inerte e corta sua cabeça com ela. Agora o inimigo é comida de passarinho.

Este momento deve ter sido angustiante, quando o mundo todo parecia imóvel e em silêncio. Por alguns instantes os filisteus ficam paralisados, as mentes em disparada tentando captar o que acaba de acontecer diante de seus olhos, enquanto começam a perceber suas implicações. O mesmo deve ser verdade para os soldados israelitas. E então, depois de um instante de paralisia, os filisteus batem em retirada. Com a perda de seu campeão, toda coragem e vontade de lutar vão embora. Os soldados israelitas aproveitam a ocasião e vão atrás dos inimigos que batem em retirada. Não há lugar melhor para lutar com o inimigo como pela retaguarda, onde não existe proteção e o peso da armadura atrapalha sua fuga. Armadura, espada, qualquer coisa que retarde a fuga do inimigo, é deixada prá trás. Os corpos dos filisteus ficam espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas cidades. E no caminho de volta os soldados israelitas voltam carregados dos despojos saqueados dos campos filisteus. Davi parece carregar somente a cabeça do filisteu, junto com suas armas, as quais ele temporariamente coloca em sua tenda.

Uma Passagem Problemática
(17:55-58)

“Quando Saul viu sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o comandante do exército: De quem é filho este jovem, Abner? Respondeu Abner: Tão certo como tu vives, ó rei, não o sei. Disse o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este jovem. Voltando Davi de haver ferido o filisteu, Abner o tomou e o levou à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu. Então, Saul lhe perguntou: De quem és filho, jovem? Respondeu Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita.”

Esta passagem apresenta alguns problemas para os estudiosos. Pode parecer que Saul não conhece Davi e, portanto, não saiba quem seja ele. Devemos começar mostrando o que a pergunta de Saul não é: “Quem é este jovem?”, e sim “De quem é filho este jovem?” Porque deveríamos supor que uma vez que Saul conhece Davi ele também conhece seu pai? No capítulo 16, mensageiros são enviados a Jessé para pedir que ele permita que Davi vá à casa de Saul e toque harpa para ele (16:19). Isto não requer que Saul saiba o nome do pai de Davi. Seus servos podem cuidar de todos os detalhes. Devemos também nos lembrar que Jessé é idoso e não pode viajar, razão pela qual Davi é enviado ao campo de batalha para perguntar sobre o bem-estar de seus irmãos (17:12, 17 e seguintes). Assim, Jessé e Saul, provavelmente, nunca se encontraram. Por que, então, é tão extraordinário que Saul pergunte o nome do pai de Davi, talvez para a papelada fiscal, se ele realmente for isentá-lo?

No capítulo 16, sabemos que Davi vai trabalhar para Saul (16:14-23), e no capítulo 17, somos relembrados deste fato (17:15). No capítulo 18, encontramos Davi tocando sua harpa para o atribulado Saul, como ele faz no capítulo 16 (18:10-12) - e também no capítulo 19 (19:9-10). É difícil evitar o fato de que Saul conhece Davi, apesar de não saber (ou pelo menos não se lembrar) do nome de seu pai, Jessé. Não é nenhuma surpresa que um rei não se lembre do nome do pai de um de seus empregados de meio período. Mesmo que esperássemos que Saul se lembrasse, nosso texto não levanta questões sobre a precisão da passagem, apenas sobre a precisão da memória de Saul. Confuso como Saul está, por que achamos isto estranho?

Entretanto, existe uma coisa nos versos 55 a 58 que deveria nos incomodar - não é a falta de memória de Saul, mas seu desinteresse pela batalha. Mostrei que no capítulo 14 ele está “debaixo de uma romãzeira” (verso 2), enquanto Jônatas, junto com seu escudeiro, está prestes a lutar com alguns filisteus. É como se Saul estivesse no lugar mais confortável em vez de estar no lugar mais estratégico (que é para onde Jônatas vai). Agora, no capítulo 17, Davi acabou de falar com Saul e está saindo para a batalha com Golias. Saul e seu comandante em chefe assistem de um cômodo lugar à distância. Se alguém deveria estar pronto para a batalha, deveria ser estes dois. Saul é aquele cujo dever é ir para a batalha adiante dos israelitas; Abner, “o comandante do exército”, também deve liderar a batalha. No entanto, os dois parecem observar de uma distância segura, enquanto Davi sai para arriscar sua vida.

Podemos comparar esta cena a um jogo de futebol (americano) entre o Dallas Cowboys e o San Francisco Forty-Niners. Olhamos para o campo e vemos grandes jogadores como Jerry Rice e Steve Young pelo San Francisco. Depois, vemos um zagueiro novato em linha pelos Cowboys, junto com outros zagueiros bem leves. Ao correr os olhos pelo estádio, vemos Troy Aikman e o treinador Barry Switzer sentados no banco, observando o jogo com binóculos e perguntando um ao outro o nome do pai do novato. Simplesmente não parece certo, parece?

Eis aqui Saul e Abner, de braços cruzados e a uma distância segura, conversando sobre o pai de Davi. Abner diz a Saul que não sabe. Saul diz a Abner para verificar. Enquanto isso Davi avança contra Golias. Quase posso ouvir Saul, virando-se para Abner, dizer: “passa a pipoca”. Quando Davi volta, depois de matar Golias, Abner o leva a Saul com a cabeça de Golias nas mãos. Saul então pergunta a Davi de quem ele é filho, e ele lhe diz que o nome de seu pai é Jessé, o belemita. Isto é ainda mais bizarro, não é? E quanto à batalha? Por que Saul e Abner não estão envolvidos nela? Como encontram tempo para conversar sobre coisas como o nome do pai de Davi numa hora como esta? Saul não é retratado sob uma luz muito favorável. Se alguém quiser se preocupar, é só pensar no que Saul e Abner estão fazendo, e no que não estão fazendo, em vez de se torturar sobre razão pela qual eles não se lembram do nome do pai de Davi, um homem que, provavelmente, nunca encontraram e cujo nome talvez jamais tenham ouvido.

Conclusão

Sabemos o que Davi considerava em seu coração quando Samuel o ungiu como futuro rei de Israel em lugar de Saul. Imagino que ele tenha se sentido tal como a virgem Maria quando o anjo Gabriel lhe disse que ela estava prestes a se tornar mãe do Messias prometido. Sua resposta foi: — Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? (Lc. 1:34). Davi, da mesma forma, deve ter pensado: — Como posso me tornar rei de Israel, quando sou apenas um jovem que nem mesmo tem idade para estar no exército, e cuja única autoridade está sobre um pequeno rebanho de ovelhas? Os últimos versos do capítulo 16 começam a nos dizer como Deus realizará Sua vontade para Davi. O capítulo 17 é outra parte muito importante no plano para fazer dele um rei. É maravilhoso ver como Deus cuida em cumprir a Sua Palavra. E aquilo que Deus promete, Ele cumpre. Sua Palavra é certa.

Somos propensos a considerar a disputa entre Davi e Golias como algo extraordinário, extremamente incomum. E não é. Deus havia dado instruções bem específicas a respeito desses confrontos:

“Quando saíres à peleja contra os teus inimigos e vires cavalos, e carros, e povo maior em número do que tu, não os temerás; pois o SENHOR, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, está contigo. Quando vos achegardes à peleja, o sacerdote se adiantará, e falará ao povo, e dir-lhe-á: Ouvi, ó Israel, hoje, vos achegais à peleja contra os vossos inimigos; que não desfaleça o vosso coração; não tenhais medo, não tremais, nem vos aterrorizeis diante deles, pois o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco a pelejar por vós contra os vossos inimigos, para vos salvar.” (Dt. 20:1-4)

Alguns versos depois Deus instrui os israelitas a identificarem os covardes para que não minem a fé e a confiança de seus irmãos (verso 8). O problema de Saul e de Israel com os filisteus não é algo fora de série. O problema é o medo de Saul e sua falta de fé, que são contagiosos.

Não é interessante que as tropas fujam quando são lideradas por Saul? (ver I Sam. 13:5-7) Os soldados ficam apavorados porque Saul está aterrorizado (17:11, 24). Davi, um humilde pastorzinho, jovem demais para ser soldado do exército de Saul, se apresenta e, devido à sua fé e coragem, anima os outros a confiarem em Deus quando é usado para matar Golias e dar à Israel a vitória. Repare na longa lista de heróis que há entre os soldados de Israel em II Samuel 23, após Davi ter se tornado rei. Há muitos valentes sob sua liderança, muitos devido à fé e coragem demonstrados pessoalmente por Davi. Fico fascinado em saber que há uma porção de Golias depois deste, e sobre o quê os homens de Davi (assim como Davi) fazem com eles:

“Depois disto, houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; então, Sibecai, o husatita, feriu a Safe, que era descendente dos gigantes. Houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; e Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu a Golias, o geteu, cuja lança tinha a haste como eixo de tecelão. Houve ainda outra peleja; esta foi em Gate, onde estava um homem de grande estatura, que tinha em cada mão e em cada pé seis dedos, vinte e quatro ao todo; também este descendia dos gigantes. Quando ele injuriava a Israel, Jônatas, filho de Siméia, irmão de Davi, o feriu. Estes quatro nasceram dos gigantes em Gate; e caíram pela mão de Davi e pela mão de seus homens.” (II Sam. 21:18-22, compare com I Cr. 20:4-8).

Esse negócio de matar gigantes parece que virou rotina. Uma vez que Davi se levanta contra Golias, outros valentes enfrentam os membros da família de Golias. A coragem de Davi é contagiosa, da mesma forma que foi a covardia de Saul. Deus não pretendia que um gigante fosse morto por ele a fim de que nenhum israelita tivesse que encarar esse problema de novo. Deus pretendia que Davi enfrentasse e matasse o gigante para dar exemplo aos outros e fé para agir da mesma forma.

Digo que Golias sempre terá seus “Davis” e que estes homens sempre terão seus “Golias”. Algumas vezes os “Golias” serão indivíduos; outras, nações, ou até mesmo poderes celestiais. Em cada caso devemos nos lembrar de que “a batalha é do Senhor”. É Ele quem vai adiante de nós dando-nos a vitória.

“O SENHOR, vosso Deus, que vai adiante de vós, ele pelejará por vós, segundo tudo o que fez conosco, diante de vossos olhos, no Egito, como também no deserto, onde vistes que o SENHOR, vosso Deus, nele vos levou, como um homem leva a seu filho, por todo o caminho pelo qual andastes, até chegardes a este lugar. Mas nem por isso crestes no SENHOR, vosso Deus, que foi adiante de vós por todo o caminho, para vos procurar o lugar onde deveríeis acampar; de noite, no fogo, para vos mostrar o caminho por onde havíeis de andar, e, de dia, na nuvem.” (Dt. 1:30-33)

“Porquanto não saireis apressadamente, nem vos ireis fugindo; porque o SENHOR irá adiante de vós, e o Deus de Israel será a vossa retaguarda.” (Is. 52:12)

“Então, romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda;” (Is. 58:8)

“Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos assusteis por causa do rei da Assíria, nem por causa de toda a multidão que está com ele; porque um há conosco maior do que o que está com ele. Com ele está o braço de carne, mas conosco, o SENHOR, nosso Deus, para nos ajudar e para guerrear nossas guerras. O povo cobrou ânimo com as palavras de Ezequias, rei de Judá.” (II Cr. 32:78)

Nosso texto tem muitas coisas a nos ensinar sobre liderança, como ela se desenvolve e como é reconhecida. Devido às circunstâncias familiares e à ordem de nascimento, Davi não parece destinado à liderança. Mas ele é um homem segundo o coração de Deus. Deus providencialmente o prepara enquanto ele cumpre fielmente suas obrigações como pastor. Quando um leão ou um urso ataca uma das ovelhas do rebanho, ele a salva, enfrentando o urso ou o leão. Neste processo, Davi aprende a confiar em Deus e a usar as armas que lhe foram dadas, uma lição para nós também. Davi não busca a liderança; de certa maneira, ela é imposta a ele. Davi se torna um líder por ser um bom crente. Ele vai à cena da batalha em obediência às instruções de seu pai. E quando vê o medo dos israelitas, procura fazer alguma coisa a esse respeito. Ao ouvir Golias blasfemar contra Deus e intimidar os exércitos do Senhor, Davi se propõe a lutar com ele em nome do Senhor. Davi não busca a liderança, mas ela é imposta a ele e ele não procura se esquivar de suas responsabilidades. Quão humildes talvez tenham parecido suas funções de pastor, mas quão bem Deus as usou preparando-o para enfrentar Golias na batalha.

Nosso texto nos ensina sobre meios e métodos. Vivemos numa época em que os homens imitam os métodos de outros homens. Um homem parece ter um negócio ou ministério de sucesso, e escreve um livro contando aos outros “como” ele fez. Outros lêem seu livro, também querendo ser bem sucedidos, e então imitam seus métodos. Davi não luta contra Golias com as armas ou com os métodos de Saul. Davi luta contra Golias com os métodos que desenvolveu e praticou enquanto cuidava de suas ovelhas.

Muitas vezes esperamos que Deus cause a derrota de seus inimigos usando meios incomuns ou espetaculares. De fato, Deus lançou as pragas sobre os egípcios e atraiu seu exército para o Mar Vermelho. Deus usou terremotos, tempestades e enchentes. Deus é capaz de libertar Seu povo do jeito que quiser. Mas, no caso de Golias, Deus usou um rapazinho e uma funda. Em si mesmas estas armas podem não ser muito impressionantes, mas Davi e sua funda causaram grande impressão em Golias! Quando os meios mais comuns são usados por Deus, devemos nos lembrar que até nossa habilidade em atirar uma flecha, ou arremessar uma pedra, ou permanecer num terreno escorregadio vêm Dele:

“O caminho de Deus é perfeito; a palavra do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam. Pois quem é Deus, senão o SENHOR? E quem é rochedo, senão o nosso Deus? O Deus que me revestiu de força e aperfeiçoou o meu caminho, ele deu a meus pés a ligeireza das corças e me firmou nas minhas alturas. Ele adestrou as minhas mãos para o combate, de sorte que os meus braços vergaram um arco de bronze. Também me deste o escudo da tua salvação, a tua direita me susteve, e a tua clemência me engrandeceu. Alargaste sob meus passos o caminho, e os meus pés não vacilaram.” (Sl. 18:30-36)

“Bendito seja o SENHOR, rocha minha, que me adestra as mãos para a batalha e os dedos, para a guerra;” (Sl. 144:1)

Enfim, não é que Davi seja incrível, mas que o Deus a quem ele serve, e que foi adiante dele, é que é incrível. Saul parece ter se concentrado no inimigo em vez de ter se concentrado em Deus. Parece que Deus sempre nos dá inimigos que são bem maiores do que nós, para que lutemos em nossas fraquezas, confiando Nele e não em nós mesmos, dando-Lhe a glória, em vez de tomarmos o crédito para nós mesmos.

Quando chegamos a Davi, chegamos ao rei escolhido de Deus. Este é aquele de cuja descendência virá o Messias prometido, cujo reino não terá fim. E assim Davi, muitas vezes, nos provê uma prefiguração de Cristo. Nosso texto não é exceção. Davi é um tipo de Cristo, como Golias é um tipo de Satanás. Satanás tem o mundo inteiro tremendo de medo dele e da morte (ver Hb. 2:14-15). Nós, como os israelitas do passado, somos impotentes para derrotá-lo. Aquilo que não podemos fazer por nós mesmos, Cristo fez por nós, da mesma forma que Davi lutou com Golias por Saul e pelos israelitas. Jesus veio e enfrentou Satanás face a face e obteve a vitória. Davi fez isto ao matar Golias. Jesus o fez sendo crucificado na cruz do Calvário. Mas depois que Ele morreu para pagar a pena pelos nossos pecados, Ele ressurgiu do túmulo, triunfou sobre Satanás, o pecado e a morte. Em tudo Ele foi vencedor, e Jesus venceu morrendo e ressurgindo da morte. Todos aqueles que reconhecem seus pecados, e desistem de confiar em si mesmos colocando sua confiança em Jesus Cristo, têm o perdão de seus pecados e a segurança da vida eterna em Seu reino. Obrigado, Senhor, por seu campeão, o Senhor Jesus Cristo.

15. Davi se Une à Família de Saul (I Samuel 18:1-30)

Introdução

Há uns 25 anos, quando dava aulas, conheci um jovem que, segundo os boatos, fora membro de uma gangue de motoqueiros. Em conseqüência de um acidente, ele sofrera danos cerebrais e viera para a escola onde eu lecionava para obter ajuda. Certa vez, enquanto falava de Jesus a outro estudante, o motoqueiro com danos cerebrais me interrompeu, prensou-me contra a parede e depois me suspendeu pelo pescoço até alguém vir em meu socorro. O jovem escapou impune, pois se presumia que seus atos fossem conseqüência de suas condições, não de seu pecado e rejeição ao evangelho. Jamais houve qualquer dúvida para mim de que seus atos foram friamente calculados e executados.

Enquanto leio nosso texto em I Samuel 18, penso em meu encontro com este jovem agressivo. Sob todos os aspectos, o comportamento de Saul se parece com os delírios de um homem mentalmente perturbado, não responsável por seus atos. Se Saul fosse acusado de tentativa de assassinato pelas duas vezes em que atirou sua lança em Davi, há pouca dúvida de que alegaria “insanidade temporária”. Creio que nosso texto retrata Saul sob uma luz diferente, algo que está longe de ser lisonjeiro. Neste incidente, e naquele que se segue, creio que talvez tenhamos mal interpretado a narrativa da união de Davi com a família de Saul. Vamos prestar bastante atenção às palavras de nosso texto e à voz do Espírito Santo, enquanto Ele nos fala através deste intrigante capítulo.

Observações Preliminares

Quanto mais alguém lê e medita sobre este texto, mais algumas características vão se tornando evidentes. Permitam-me compartilhar algumas delas para prepará-los para esta exposição e estimulá-los ao seu próprio estudo da passagem.

Primeiro, algumas repetições importantes devem ser registradas:

  • O sucesso de Davi (versos 5, 14, 15, 30)
  • O fato de Deus estar com Davi (versos 12, 14, 28)
  • O amor (versos 1, 13, 16, 20, 22, 28)
  • O medo de Saul (versos 12, 15, 29)
  • As emoções, os pensamentos íntimos e os motivos de Saul são revelados (versos 8-9, 11-12, 15, 17, 20-21, 29)

Segundo, o autor parece comparar a atitude de Saul com a atitude de Jônatas, com relação a Davi e seu reino.

Terceiro, existe um forte senso de progressão ou de desenvolvimento neste capítulo. Por um lado, o entusiasmo de Saul por Davi e seu ministério degenera para a suspeita e depois para o medo. Por outro, a popularidade e a ascensão de Davi em Israel são cada vez mais crescentes. Cada degrau acima para Davi parece ser um degrau abaixo para Saul. E cada tentativa de Saul para reprimir a popularidade de Davi só faz aumentá-la.

Quarto, existe uma sutil ligação entre os esforços de Saul para se livrar de Davi e os esforços posteriores de Davi para se livrar de Urias, o marido de Bate-Seba. Saul tenta colocar Davi em situações militares perigosas para que ele seja morto em batalha. Isto tirará Davi do caminho de maneira a não colocar Saul sob um ângulo desfavorável (compare I Samuel 18:17 com II Samuel 11:14-17). Será que Davi aprendeu esta artimanha com Saul?

Quinto, o medo de Saul e seus intentos para matar Davi são mascarados por ele (Saul) no capítulo 18, mas revelados no capítulo 19. No capítulo 18 Saul tenta acabar com Davi de forma astuciosa. Ele parece promover Davi ao colocá-lo em posição de autoridade sobre seu exército, e depois o recompensando ao lhe oferecer sua(s) filha(s) em casamento. No entanto, por trás disto, há um motivo muito sinistro revelado em nosso texto, mas que não é publicamente revelado aos que viviam naquela época. Saul fala com um vocabulário dos mais santos (“...sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR...” - verso 17), mas sua intenção é totalmente vil (“porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” - verso 17). Quando todas estas artimanhas falham, no capítulo 19, a oposição de Saul a Davi se torna pública, onde ele ordena que Jônatas e seus servos o matem (19:1). Há hipocrisia em toda parte no capítulo 18, mas ela dá lugar à franca hostilidade no capítulo 19. Assim, no capítulo 18 precisamos ver as coisas não do jeito como aparentam ser - o jeito como Saul quer que os outros vejam - mas como elas são, à luz do que é revelado sobre o coração e a mente de Saul, fornecido pelo autor inspirado de I Samuel.

Sexto, o capítulo 18 (como o capítulo 16) não enfoca Davi tanto quanto enfoca Saul, Jônatas e Mical. Podemos dizer que este capítulo “enfoca a família” de Saul. Começa com o amor de Jônatas por Davi e termina com o amor de Mical por ele. Durante todo o tempo, aprendemos sobre o medo e a animosidade crescente de Saul para com Davi, que se torna seu genro, assim como seu oficial.

Sétimo, a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento por volta do segundo século a.C) omite uma porção dos versos encontrados no texto original hebraico (versos 1 a 5, 10-11, 17 a 19).

Davi “Tem um Dia Legal”
(18:1-5)

“Sucedeu que, acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma. Saul, naquele dia, o tomou e não lhe permitiu que tornasse para casa de seu pai. Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto. Saía Davi aonde quer que Saul o enviava e se conduzia com prudência; de modo que Saul o pôs sobre tropas do seu exército, e era ele benquisto de todo o povo e até dos próprios servos de Saul.”

Este deve ter sido um dia glorioso para Davi e, também, um bom dia para Saul. O prolongado impasse entre Israel e os filisteus finalmente chega ao fim. Golias, que aterroriza a cada soldado israelita e prova ser um grande embaraço para Saul, é morto pelas mãos de Davi. Isto leva a uma debandada geral, com corpos e despojos filisteus espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas principais cidades. Quando Davi regressa, após a morte de Golias, ele é levado diante de Saul por Abner. Saul averigua uma vez mais quem é o pai de Davi. Não estou tão certo quanto já estive de que isto fosse para isentar seu pai dos impostos. Pelo fato de Saul ter pedido a permissão de Jessé para empregar Davi por meio período (16:19), parece razoável que ele peça novamente sua permissão para manter Davi consigo em tempo integral.

A conversa de Davi com Saul define a questão para Jônatas (18:1). Sem dúvida, ele fica impressionado com a vitória de Davi sobre Golias, mas, o que mais o impressiona, parece ser as palavras de Davi ao seu pai. Será a fé de Davi em Deus? Será o fato de ele ter cuidado em dar glória a Deus? Será seu espírito humilde e reverente? Será seu cuidado pelo povo de Israel? Não é dito exatamente o que tanto impressiona Jônatas nesta conversa, mas fica claro que daí em diante estes dois homens passam a ser como irmãos.

Somente uma geração má e perversa poderia encontrar nas palavras de nosso texto ocasião para dizer que o relacionamento entre Davi e Jônatas é pervertido. Davi e Jônatas são almas gêmeas. Jônatas ama Davi como a si mesmo. Esta não é a maneira como todo crente deveria se sentir com relação a seus irmãos? Nesse dia, Jônatas e Davi fazem uma aliança. Apesar de não serem fornecidos os detalhes, não é difícil inferir quais sejam. De sua parte, Jônatas parece reconhecer que Davi é aquele que Deus escolheu para ser o próximo rei de Israel. Jônatas fica mais do que feliz em abrir mão da esperança do trono de seu pai em consideração ao escolhido de Deus - Davi.

Creio que isto seja simbolizado pelo fato de Jônatas presentear Davi com sua capa e sua armadura. Sabemos, pelo Velho Testamento, que a túnica de José era símbolo de sua autoridade (Gn. 37:3, 23). Antes de Arão morrer, suas vestes sacerdotais foram removidas para serem usadas por seu filho, Eleazar (Nm. 20:22-28). Elias colocou seu manto sobre Eliseu, que estava para assumir o seu lugar (I Re. 19:19-21).

Em seu livro Considerando o Coração, numa nota de rodapé, Dale Ralph Davis se reporta a um documento acadiano, encontrado em Ugarit, sobre a história de um rei do século XIII que se divorciou da esposa. Seu filho poderia escolher com qual dos pais viveria; mas, se o herdeiro escolhesse viver com sua mãe, ele tinha que abdicar do seu direito ao trono. Se ele escolhesse viver com sua mãe, desistindo, assim, de seus direitos, ele deveria indicá-lo, simbolicamente, deixando suas vestes no trono. Assim se parece o presente de Jônatas a Davi de seu manto e sua armadura. Eis um homem magnífico, com um espírito como o de João Batista (Jo. 3:30) e de Barnabé.

Jônatas está disposto a abrir mão de seu direito ao trono e servir Davi, o escolhido de Deus como o próximo rei. Esse mesmo espírito não é encontrado em Saul. Na melhor das hipóteses, Saul está empolgado por causa daquilo que Davi pode fazer por ele. Como sempre, Saul está ansioso para acrescentar homens militarmente habilidosos às suas tropas. Assim, ele promove Davi a funcionário de tempo integral. Até onde vai o registro bíblico, nada é feito com relação às recompensas que Saul ofereceu ao homem que acabasse com Golias. Davi é um servo fiel de Saul, indo aonde quer que seja enviado, e sendo bem sucedido aonde vai. Todo mundo fica impressionado com ele, mesmo os servos de Saul (que devem fazê-lo com certa precaução, sabendo o quão ciumento Saul pode se tornar - ver 16:2). Davi tem o “toque de Midas”. É como se tudo o que ele tocasse prosperasse, e é assim porque a mão de Deus está sobre ele (verso 12).

Os Músicos Compõem uma Canção Mordaz e as Dançarinas Pisam nos Calos de Saul
(18:6-9)

“Sucedeu, porém, que, vindo Saul e seu exército, e voltando também Davi de ferir os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente, diziam: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares. Então, Saul se indignou muito, pois estas palavras lhe desagradaram em extremo; e disse: Dez milhares deram elas a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão o reino? Daquele dia em diante, Saul não via a Davi com bons olhos.

Você já deve ter ouvido as palavras daquela canção não tão nova que diz: “Que diferença faz um dia...” Nada pode ser mais verdadeiro em nosso texto. É difícil acreditar como a popularidade de Davi tem vida curta com Saul. Um dia ele se apresenta pela fé e derrota Golias, o que resulta na vitória de Israel sobre os filisteus (capítulo 17). Bem no meio da comemoração, as mulheres israelitas entoam uma canção de vitória e azedam a consideração e o respeito de Saul, levando-o a numerosas tentativas para tirar a vida de Davi. Os versos 6 a 9 descrevem este acontecimento decisivo, que muda para sempre o curso da história.

Davi, aparentemente, se juntou aos israelitas enquanto eles perseguiam os filisteus fugitivos e, agora, ele está de regresso. Talvez Saul nem mesmo tenha saído com suas tropas, como parecem indicar os versos finais do capítulo 17. Se for assim, as mulheres de todas as cidades israelitas “foram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando”, onde ele esteve desde o princípio, e foram saudar Davi e os guerreiros israelitas quando voltavam da perseguição aos filisteus fugitivos.

Ninguém poderia prever o resultado desta comemoração. O canto e a comemoração das mulheres não parecem incomuns em Israel. Vimos isto na época em que Deus tirou os israelitas do Egito e lançou os egípcios no Mar Vermelho (ver Ex. 15:1-21). A letra da canção composta às pressas inclui este refrão:

“Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.”

A primeira pergunta que devemos fazer é “Será verdade? Saul mata apenas milhares, enquanto Davi mata dez milhares?” Embora, provavelmente, haja alguma licença poética envolvida, sou propenso a achar que, em essência, os versos sejam verdadeiros. Sabemos, pelo capítulo 14, que a vitória de Israel sobre os filisteus é minimizada devido ao decreto insano de Saul para que seus soldados não comam até o anoitecer. A vitória de Davi (a vitória que Israel obteve porque Davi derrotou Golias) parece mais decisiva. Parece que qualquer coisa que Saul faça, ou tenha feito, Davi faz melhor.

Será que as mulheres querem dizer alguma coisa com o que estão cantando? Acho muito difícil. Elas estão exultantes, regozijando-se com a vitória que Deus lhes deu. Saul contribuiu muito em tempos passados; só que Davi contribuiu muito mais. Saul, que não estava sequer ansioso para se tornar o primeiro do reino, agora está extremamente irritado porque o povo o colocou em segundo plano e a Davi, em primeiro. Eis um homem a quem foi dito que sei reinado chegaria ao fim, e agora ele tem uma forte premonição (se é que a unção de Davi já não se tornou conhecida) de que Davi é aquele que o substituirá. As mulheres estão cantando e dançando, mas Saul não está mexendo os pés. Ele ficou ofendido e a canção não é aquela que o faz querer “cantar junto”. Todos os demais estão celebrando, felizes pela vitória que Deus proporcionou através de Davi - exceto Saul. Eis agora uma aparência horrível em seu rosto e, deste momento em diante, ele olha para Davi com desconfiança.

Maníaco Assassino ou Por Que Davi Não Pode Ficar Quieto!
(18:10-12)

“No dia seguinte, um espírito maligno, da parte de Deus, se apossou de Saul, que teve uma crise de raiva em casa; e Davi, como nos outros dias, dedilhava a harpa; Saul, porém, trazia na mão uma lança, que arrojou, dizendo: Encravarei a Davi na parede. Porém Davi se desviou dele por duas vezes. Saul temia a Davi, porque o SENHOR era com este e se tinha retirado de Saul.” (10-12)

Todos nós sabemos que Saul realmente tem alguns dias bem ruins causados pelo “espírito maligno da parte do Senhor”, que se apossa dele de tempos em tempos. Davi é contratado, em regime de meio período, para tocar sua harpa e acalmar a alma atribulada de Saul (16:14-23). Agora Davi é empregado em tempo integral e parte de seus deveres é continuar a tocar a harpa quando Saul está atribulado. O problema com os problemas de Saul é que Davi se tornou o seu maior problema (pelo menos em sua mente). O ciúme de Saul vira assassinato nos versos 10 a 12.

Antes de nos atermos a estes versos, talvez seja útil um comentário sobre a relação entre os versos 6 a 9 e 10 a 12. Nos versos 6 a 9, Saul está com ciúmes e, nos versos 10 a 12, é dito que o espírito maligno se apossa dele. Alguns dizem, e até mesmo insistem, que os demônios são a fonte da maioria dos males. Já ouvi falar sobre o “demônio do ciúme”, o “demônio do alcoolismo”, o “demônio do orgulho”, e assim por diante. Não estou tentando dizer que a atividade demoníaca não possa produzir tais manifestações, mas preciso dizer que a Bíblia nos fala que estas coisas não vêm de Satanás, mas de nossa própria natureza pecaminosa (ver Gl. 6:16-21). Em nosso texto, o ciúme de Saul (versos 6 a 9) precede a poderosa possessão do espírito maligno sobre ele (verso 10). Entendo que a possessão do espírito maligno sobre Saul é, de alguma forma, conseqüência de seu ciúme. Creio que Satanás seja um oportunista, que se aproveita das fraquezas e do pecado humano (ver, por exemplo, II Co. 2:10-11). O uso de drogas ilegais (e talvez de algumas legais), a entrega ao sexo ilícito ou a acessos de fúria, ou outros tipos de males, podem muito bem abrir as portas para os ataques satânicos e demoníacos. Vamos ter cuidado para não dar a Satanás tanto crédito, fazendo-o a causa do mal em vez de um oportunista que simplesmente promove e aumenta o mal que há em nossa natureza caída.

Estou em dívida com Dale Ralph Davis por sugerir que as atitudes assassinas de Saul para com Davi nos versos 10 a 12 (como em todo o capítulo) ainda não são reconhecidas como tal por Davi ou pelos outros. Deixe-me sugerir por que concordo com ele. Primeiro, a intenção de Saul matar Davi não é conhecida nem mesmo por seu filho Jônatas até o primeiro verso do capítulo 19. Repetidamente, o autor nos diz quais são os verdadeiros motivos de Saul, da mesma forma que faz aqui no verso 11. Mas isto se faz necessário somente se as ações de Saul não forem evidentes. Saul realmente tem acessos ocasionados pelo “espírito maligno”, mas até aqui parece que apenas ele é afetado. Ele está aterrorizado (16:14). Agora, sem mais nem menos, os “acessos” de Saul viram atos homicidas - a lança atirada duas vezes em Davi. Posso até ouvir os servos de Saul desculpando-o e dizendo: “Você terá que desculpar Saul, hoje ele não está em si.” Afirmo que ele está em si.

Em minha opinião, parte do problema deriva da tradução “delirou”, no verso 10. O termo hebraico ocorre mais de 100 vezes no Velho Testamento. Na versão NASB é traduzido por “delirou” apenas duas vezes (aqui e em I Re. 18:29). Jamais é traduzido como “delirar” na versão King James. Praticamente é sempre traduzido como algum tipo de “profecia”. O termo pode se referir à profecia de um verdadeiro profeta (como em Nm. 11:25-26; I Cr. 25:2), ou a profecias enganosas de um falso profeta (como em I Re. 22:10). Parece que, mesmo quando verdadeiros profetas profetizaram, eles se comportaram de maneira diferente (ver I Sam. 19:18-24), o que poderia ser considerado como “delírio” por um observador.

O problema com a tradução “delirou”, em nosso texto, é que também pode ser facilmente mal interpretada como alguma forma de insanidade temporária. De fato, talvez seja como o comportamento de Saul se parece. Também poderia ser o que Saul quer que as pessoas pensem sobre seu comportamento. Afinal, se Saul “age como louco”, atirando a lança em Davi e o matando durante o que parece ser um ataque de insanidade ou um ato incontrolável propiciado por um espírito maligno, ele acaba se safando. O problema em ver Saul como temporariamente insano é que aqui está escrito o que ele pensa no momento em que atira a lança em Davi “Encravarei a Davi na parede.” (verso 11). Saul sabe exatamente o que está fazendo, e faz exatamente o que pretende. Por isso, não estranho que Saul realmente profetize, talvez da maneira como o fazem os demônios do Novo Testamento:

“Achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio imundo, e bradou em alta voz: Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus!” (Lc. 4:33-34)

Portanto, se Saul profetiza, ele percebe que Davi é próximo rei, o que poderia estimulá-lo a se fingir de louco e procurar matar Davi de maneira que pareça um ataque incontrolável ocasionado por um espírito demoníaco. Apesar das duas tentativas de Saul para matar Davi, elas não funcionam. Uma vez mais Davi é bem sucedido enquanto Saul fracassa:

  • Davi: uma pedra acerta Golias bem no meio dos olhos
  • Saul: duas tentativas sem acertar Davi com a sua lança

Porque o Senhor está com Davi, ele não pode ser morto antes do tempo; porque o Senhor deixou Saul, ele não consegue fazer nada direito.

Mate-o com Gentileza ou Assassinato nas Forças Armadas
(I Sam. 18:13-30)

“Pelo que Saul o afastou de si e o pôs por chefe de mil; ele fazia saídas e entradas militares diante do povo. Davi lograva bom êxito em todos os seus empreendimentos, pois o SENHOR era com ele. Então, vendo Saul que Davi lograva bom êxito, tinha medo dele. Porém todo o Israel e Judá amavam Davi, porquanto fazia saídas e entradas militares diante deles. Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus. Respondeu Davi a Saul: Quem sou eu, e qual é a minha vida e a família de meu pai em Israel, para vir a ser eu genro do rei? Sucedeu, porém, que, ao tempo em que Merabe, filha de Saul, devia ser dada a Davi, foi dada por mulher a Adriel, meolatita. Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical. Viu Saul e reconheceu que o SENHOR era com Davi; e Mical, filha de Saul, o amava. Então, Saul temeu ainda mais a Davi e continuamente foi seu inimigo. Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado.” (13-30)

A simples visão de Davi em sua casa enfurece Saul, mas parece que ele não pode matá-lo ali também; assim, Saul tenta afastá-lo, constituindo-o comandante de uma tropa de 1.000 homens. É difícil ver isto como rebaixamento de posto no esboço geral deste capítulo, embora possa ser. Antes, sou propenso a ver como uma clara promoção. Com isto Saul parece mostrar bondade para com Davi, embora, na realidade, esteja procurando ocasião para se livrar dele. Se os filisteus ou algum outro inimigo não matar Davi, pelo menos ele ficará fora de vista e, quem sabe, fora da mente dos israelitas. Simplesmente não funciona desse jeito, de novo. Aonde quer que Davi seja enviado, Deus o faz prosperar, para que sua posição junto ao povo continue a se elevar. Tudo isto é observado por Saul, cujo medo de Davi continua aumentando.

Saul deve pensar que está no caminho certo ao tentar que Davi seja morto pelas mãos de algum dos inimigos de Israel, mas ele precisa atrai-lo a uma empreitada mais perigosa, que certamente será fatal para ele. Assim, Saul lhe oferece sua filha Merabe como esposa (verso 17). Este não é um presente em resposta à morte de Golias. Deveria ser (17:25), mas não é. É como se Saul tivesse se esquecido de sua promessa. Saul faz com que se pareça uma nova oferta e tudo o que Davi precisa fazer é “ganhar” Merabe, sendo “somente filho valente e guerreando as guerras do SENHOR” (verso 17).

Como estas palavras soam piedosas. Felizmente o texto não é do tipo “esfregue e cheire”, porque o cheiro não seria agradável. Lembro-me de uma canção caipira: “‘Trabalhando’ como o diabo, Servindo ao Senhor”. Se fôssemos escrever uma canção sobre Saul, seria “‘Falando’ como o Senhor, Servindo ao diabo”. Suas palavras são realmente religiosas, mas sua intenção é totalmente vil. Saul oferece sua filha a Davi com a esperança de que ela seja a sua morte enquanto ele procura obter sua mão realizando grandes proezas militares.

Certamente Saul não está preparado para a resposta de Davi. Davi rejeita sua oferta. Não é que Davi esteja relutante em se arriscar na batalha. Isto ele faz com toda disposição, sem esperar qualquer recompensa, como desposar uma das filhas de Saul. Davi é realmente um homem humilde, que considera sua posição indigna de tal presente, por isso, ele recusa. Devido à sua recusa, Merabe é dada a outro homem como esposa. Isto não é conseqüência da mudança de opinião de Saul ou da quebra de sua promessa (não que Saul seja incapaz de tais coisas), mas simplesmente porque o texto não sustenta esta conclusão. É estabelecido um tempo, um prazo, dentro do qual Davi deve preencher certos critérios (ver versos 19 e 26). Uma vez que Davi recusa a oferta de Saul, ele não preenche os requisitos dentro do tempo estabelecido, e então Merabe é dada a Adriel (verso 19). O reflexo disto não é tão negativo para Saul quanto é positivo para Davi.

Grandemente desapontado, Saul tem certeza de que se puder fazer Davi se interessar por uma de suas filhas, ele fará alguma loucura suficientemente grande para se matar em batalha. Como Saul fica feliz ao ouvir que sua filha mais nova, Mical, está loucamente apaixonada por Davi. Esta é sua segunda chance. Uma vez que Mical está mais do que disposta a se casar com Davi, com um ligeiro empurrãozinho, desta vez Davi até pode aceitar a oferta. Ainda resta uma esperança de se livrar dele.

Desta vez Saul é bem mais meticuloso. Ele oferece Mical a Davi e então instrui seus servos a falarem bem de sua idéia para que, desta vez, Davi aceite a oferta. Seus servos falam com Davi e dizem que o rei realmente gosta dele e que todos querem que ele se torne seu genro. Como seria de esperar, Davi responde mostrando sua condição humilde e sua incapacidade em dar um dote apropriado a uma mulher tão nobre. O que ele poderia dar em pagamento seria um insulto a Mical e a Saul. Eis como Saul atrai Davi: ele não quer seu dinheiro - o dote pode ser pago com uma moeda diferente - prepúcios de filisteus! Isto, sim, prende o interesse de Davi. Ele quer Mical e está ansioso para batalhar pelo Senhor; assim, aceita a oferta. No entanto, em vez de ser morto, Davi luta contra os filisteus e apresenta ao rei o dobro do número de prepúcios exigido.

Para seu desgosto, Saul agora deve dar a Davi a mão de sua filha em casamento. Isto representa muito mais do que o fracasso de seus planos, de novo - e até pior, Davi é bem sucedido, de novo. Agora, Saul, que teme demais a Davi e quer vê-lo eliminado, tem dois membros de sua própria família ligados a ele por amor e compromisso. O capítulo começa com a narrativa do amor de Jônatas por Davi e sua aliança com ele; e termina com o amor de Mical por Davi e seu compromisso de casamento com ele. De certa forma, Davi saiu-se vitorioso sobre dois membros diretos da família de Saul. Agora, exatamente aqueles que Saul pensava poder confiar para ajudá-lo a se livrar de Davi, estão ao lado deste. Saul, seus planos e seu reino estão se desintegrando.

O casamento que Saul propõe a Davi é planejado como incentivo para engajá-lo numa ousada campanha militar, e assim ele o faz. O único problema é que estes deveres perigosos não livram Saul de Davi; apenas servem para elevar Davi acima de todos os outros comandantes militares. Ele age mais sabiamente do que todos eles e, por isso, é muito querido.

Conclusão

Voltemos um pouco para dar uma olhada mais abrangente no que o capítulo 18 descreve. Primeiro, da forma mais incomum e inesperada, Deus faz acontecer aquilo que Ele planejou e prometeu. Nos capítulos 13 e 15, Deus mostra a Saul que seu reinado chegará ao fim. Em nosso texto, observamos a desintegração de seu reino. Saul continua a perder o controle de sua própria vida e de seu reino. No capítulo 16, Davi é ungido como o novo rei de Israel e vemos como Deus prepara o caminho para o seu reinado. Davi tem ligações estreitas com Saul e seu palácio. Agora ele está intimamente associado aos membros da família real de Saul - seu filho (agora um amigo chegado) e sua filha (agora esposa de Davi). Ele tem autoridade no exército de Saul e, através de suas experiências, revela-se um homem valente e um grande líder. Davi está em ascensão e Saul em queda. Não é do jeito que esperávamos, mas os planos de Deus raramente acontecem do jeito que esperamos (ver Is. 55:8-11; Rm. 11:33-36: I Co. 2:6-16).

Uma segunda observação de nosso texto é que a Palavra de Deus é absolutamente certa e segura. Deus alerta Saul sobre a disciplina que virá se ele não se arrepender e é quase certo que ele não se arrepende. A despeito dos intensos esforços de Saul, Deus cuida para que seu reino seja removido. Por outro lado, Deus prometeu o reino a Davi, e nosso texto nos assegura que nada menos que o total cumprimento de Sua promessa deve ser esperado. Deus mantém Suas promessas, quer sejam de bênção e prosperidade, quer de julgamento.

Terceiro, vemos em Jônatas a mais excelente ilustração do amor que Deus requer de nós. Somos continuamente instruídos a “amar ao próximo como a nós mesmos” (Lv. 19:18; Mt. 19:19; 22:39, Mc. 12:31; Rm. 13:9; Gl. 5:14; Tg. 2:8). Isto é precisamente o que Jônatas faz com relação a Davi (ver verso 1). Assim, Jônatas é um exemplo para nós de como devemos amar o próximo como a nós mesmos. Não vejo qualquer referência a Jônatas amar primeiro a si mesmo, como um tipo de pré-requisito para amar aos outros. O que vejo é auto-sacrifício, quando Jônatas, de bom grado, desiste de seu reino em favor de Davi (sem mencionar seu manto e sua armadura). Jônatas é um amigo leal e fiel, que arriscará sua própria vida para salvar a vida de Davi. Que homem nobre e abnegado Jônatas é! A tanto quanto a Bíblia se refere suas ações não estão “acima e além do chamado do dever”; elas são o cumprimento de seu dever, e do nosso.

Quarto, observamos em Saul aquilo que vemos nos discípulos de nosso Senhor durante Seu ministério terreno, e aquilo que, muitas vezes, vemos na igreja hoje em dia - competição, ciúmes e auto-afirmação. Davi é o servo mais leal que Saul já teve e, no entanto, Saul se sente ameaçado pela sua competência, pelo seu sucesso. Os discípulos estavam sempre procurando se afirmar, perguntando quem seria o maior, e se zangavam quando outro discípulo parecia superá-los. Na igreja de hoje, Deus intencionalmente deu a cada cristão um dom ou dons espirituais, para capacitá-lo a se sobressair em determinado ministério. Podemos nos regozijar na força que Deus dá aos outros, procurando nos beneficiar de seus ministérios, ou podemos resistir a eles com um espírito competitivo. Alguns se perguntam o quanto a crítica, o ministério e a doutrina a outros cristãos estão enraizados em ciúmes e inveja, em vez de estarem enraizados na fidelidade a Deus e à Sua Palavra. Vamos tomar cuidado com o ciúme, não importa quão religioso seja o rótulo que demos a ele ou às suas manifestações.

Jônatas e Saul ilustram, cada um ao seu modo, uma das duas reações lógicas ao fato de Jesus ser o rei de Deus. Davi é o escolhido de Deus como o próximo rei de Israel. Saul parece ter conhecimento disto, e se opõe intensamente, a ponto de fazer todos os esforços para dar cabo de Davi. Jônatas também parece ter conhecimento disto e, mesmo que isto signifique que Davi reinará em seu lugar, Jônatas faz aliança com ele e renuncia a seu direito ao trono.

Deus designou Seu Filho, Jesus Cristo, para estabelecer o Seu Reino e governar sobre todas as criaturas da terra, e do céu. Como Saul, podemos procurar prolongar nosso reinado e resistir ao reino inevitável do rei de Deus. Se assim o fizermos, o faremos para nossa própria destruição. Ou, então, podemos renunciar a todo pensamento de reinar e nos submetermos ao rei de Deus, o Senhor Jesus Cristo, como Jônatas se submeteu a Davi. A escolha certa é renunciar a todo e qualquer pensamento de tentar manter o controle e autoridade sobre a nossa própria vida, e nos submetermos somente Àquele que é qualificado para reinar. Estas são as duas únicas escolhas que Deus nos dá. Não levar Cristo a sério é rejeitar o Seu governo. Resistir ao reino de Cristo é trazer julgamento sobre nós mesmos. Submeter-se a Ele é ter a vida eterna. Qual delas você escolherá? Com quem será parecido: Jônatas ou Saul? Jamais você tomará uma decisão tão importante em toda a sua vida.

16. A Libertação Divina de Davi (I Samuel 18:30 - 19:24)

Introdução

Queria começar esta mensagem comparando Davi a um gato, o qual, dizem, tem “sete vidas”. Mas isso não seria apropriado para Davi, pois parece que ele tem muitas “vidas” mais. Em apenas dois capítulos (I Samuel 18 e 19), Saul tenta matá-lo, pelo menos, doze vezes:

18:11 Saul atira sua lança em Davi duas vezes

18:13 Saul constitui Davi como comandante de 1000 homens, esperando que ele seja morto

18:17 Merabe é oferecida a Davi, se ele “lutar as batalhas do Senhor como um valente”

18:20f. Mical é oferecida a Davi por 100 prepúcios de filisteus e ele traz 200

19:1 Saul ordena que Jônatas e seus servos matem Davi

19:10 Saul arremessa a lança em Davi novamente

19:11f Saul envia mensageiros à casa de Davi para matá-lo

19:18f Saul envia três grupos de homens a Ramá para pegar Davi, indo, depois, ele mesmo

No capítulo 20, Saul não só continua tentando matar Davi, mas também arremessa sua lança em Jônatas por defendê-lo (20:33). No capítulo 22, Saul mata Aimeleque e toda a casa de seu pai (exceto um) e depois aniquila aqueles que vivem em Nobe, a cidade dos sacerdotes.

Não posso evitar, mas acho que se Saul tivesse se empenhado para matar os inimigos de Israel (como os filisteus) como se empenhou para matar seus servos leais (tais como Davi, Jônatas e Aimeleque), ele teria sido um grande rei e líder militar. Em seu estado mental desordenado, seus maiores aliados são considerados inimigos e seus inimigos se tornam seus aliados (para matar Davi). Saul se torna um homem extremamente paranóico. Ele teme seu servo mais leal, Davi, o qual não matará seu rei nem mesmo quando tem o que parece ser a oportunidade perfeita para isso. Inicialmente Saul procura esconder sua animosidade, seu ciúme e seu ódio de Davi, mas isto acaba no primeiro versículo do capítulo 19. Daí em diante Saul atenta abertamente contra a vida de Davi e qualquer um que ele ache que o apóie ou defenda.

Nosso texto descreve quatro libertações divinas de Davi das mãos do rei Saul. A primeira é descrita nos versos 1 a 7, quando Jônatas censura seu pai e argumenta com ele sobre sua reação ao sucesso de Davi. A segunda está registrada nos versos 8 a 10, quando Saul, providencialmente, não acerta sua lança em Davi. A terceira vem de Mical, a esposa de Davi e filha de Saul. Ela desce Davi pela janela e depois engana seu pai e seus servos para dar tempo a Davi de escapar. Finalmente, há a libertação religiosa de Davi por meio de Samuel e as profecias dos homens enviados por Saul em sua captura, nos versos 18 a 24.

Esta mensagem será pregada na manhã do domingo que antecede o Natal. Alguns podem estranhar a razão pela qual farei isto, uma vez que a passagem parece não ter nada a ver com a festividade que estamos prestes a comemorar. Permitam-me assegurar-lhes que a estreita relação entre este texto e a história do Natal não é forçada. Atentando às palavras de nosso texto, aprenderemos o que existe em Saul que é tão contraditório ao espírito do Natal e, na realidade, ao espírito cristão. Nosso texto é importante para aqueles que conhecem a Cristo como Salvador e para aqueles que precisam conhecê-Lo desta forma.

Salvo pela Razão
(18:30 - 19:7)

“Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado. Falou Saul a Jônatas, seu filho, e a todos os servos sobre matar Davi. Jônatas, filho de Saul, mui afeiçoado a Davi, o fez saber a este, dizendo: Meu pai, Saul, procura matar-te; acautela-te, pois, pela manhã, fica num lugar oculto e esconde-te. Eu sairei e estarei ao lado de meu pai no campo onde estás; falarei a teu respeito a meu pai, e verei o que houver, e te farei saber. Então, Jônatas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e lhe disse: Não peque o rei contra seu servo Davi, porque ele não pecou contra ti, e os seus feitos para contigo têm sido mui importantes. Arriscando ele a vida, feriu os filisteus e efetuou o SENHOR grande livramento a todo o Israel; tu mesmo o viste e te alegraste; por que, pois, pecarias contra sangue inocente, matando Davi sem causa? Saul atendeu à voz de Jônatas e jurou: Tão certo como vive o SENHOR, ele não morrerá. Jônatas chamou a Davi, contou-lhe todas estas palavras e o levou a Saul; e esteve Davi perante este como dantes.”

Uma coisa que Saul não suporta em seus servos é o sucesso. Como Satanás, Saul não admite ficar em segundo plano (ver Isaías 14; Ezequiel 28). Assim, quando os comandantes israelitas saem à batalha, Davi está entre eles (ver 18:13) e se sai melhor do que todos eles (18:30). Sem nenhuma pretensão, a fama de Davi continua a crescer. Sua sabedoria (sem dúvida produto do Espírito Santo, ver 16:13) o distingue dos demais comandantes. Ele é muito querido.

É justamente isso o que Saul mais teme. Abandonando suas táticas de capa e espada, ele dá ordens a seus servos - incluindo Jônatas - para matar Davi. Jônatas fez uma aliança com Davi, a qual, com toda a certeza, não pretende quebrar. Mas a verdadeira razão para ele não fazer nenhum mal a Davi é por ser “mui afeiçoado a ele”. Proteger Davi é mais do que um dever para Jônatas; ele se deleita em Davi. Jônatas realmente ama Davi como a si mesmo (18:1). Portanto, ele começa a reverter a ordem de seu pai para matá-lo. Se for necessário, Jônatas transgredirá esta ordem, mas ele prefere argumentar com seu pai para revogá-la. Nos versos 1 a 7 ele consegue seu intento.

Primeiro Jônatas previne Davi sobre as ordens de seu pai. Ele insiste para Davi ficar alerta e se esconder até que ele fale com seu pai. Estranhamente, ele diz a Davi que irá se encontrar com seu pai exatamente no mesmo lugar onde Davi deve se esconder (versos 2 e 3). Será que isto é para que Davi observe a coisa toda? Será que Jônatas quer garantir a Davi que nada acontecerá pelas suas costas? Além disso, ele promete informar Davi sobre o resultado da discussão.

A maneira como Jônatas lida com seu pai a favor de Davi é um modelo para nós em diversos aspectos. Primeiro, encontramos aqui o exemplo de um amigo que ama o próximo como a si mesmo. Confrontar (ou deveríamos dizer “contradizer”) Saul é um negócio perigoso (ver 16:2, 4; 20:33; 22:11-19); mesmo assim, ele o faz. Segundo, Jônatas se submete, e a seus interesses pessoais (o trono, por exemplo), aos interesses de Davi (ver 23:17). Terceiro, Jônatas é um filho fiel e submisso a seu pai. Ele o aborda diretamente e lhe fala com respeito. Ele fala bem de Davi. Por um lado, Jônatas suplica pela vida de Davi; por outro, suplica que seu pai faça aquilo que é melhor para ele mesmo. Ele relembra a Saul que Davi é seu servo mais fiel e dedicado, cujas ações sempre o beneficiaram. Ele também o relembra que, quando Davi matou Golias, o próprio Saul se regozijou com a vitória, pois também era a sua vitória (19:5). Agir de maneira hostil contra Davi não seria justo ou sábio, e ainda pior, seria pecado, pois seria derramar sangue inocente (19:4-5).

Por ora, Saul é persuadido pelos argumentos de Jônatas. Ele jura que “tão certo como vive o SENHOR” Davi não será morto (verso 6). Não é uma promessa que durará muito tempo, mas é uma admissão de culpa, temporária e parcial, da parte de Saul, e uma confissão da inocência de Davi. Jônatas chama Davi, fala sobre o encontro com seu pai e o resultado, e depois o leva à presença dele. Por algum tempo, pelo menos, as coisas são como costumavam ser (verso 7).

Um Resgate Providencial
(19:8-10)

“Tornou a haver guerra, e, quando Davi pelejou contra os filisteus e os feriu com grande derrota, e fugiram diante dele, o espírito maligno, da parte do SENHOR, tornou sobre Saul; estava este assentado em sua casa e tinha na mão a sua lança, enquanto Davi dedilhava o seu instrumento músico. Procurou Saul encravar a Davi na parede, porém ele se desviou do seu golpe, indo a lança ferir a parede; então, fugiu Davi e escapou.”

Parece que Saul quer as duas coisas: não parece ansioso para sair com seus homens e lutar com os filisteus; mas, quando Davi sai contra eles e volta como herói, ele se enche de fúria e ciúmes. Não há indicação de que Saul vá à guerra contra os filisteus, mas sabemos que Davi vai e obtém uma vitória importante (verso 8). Isso acarreta uma reprise literal do capítulo 18, versos 6 a 9. O “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul, que está sentado em sua casa com a lança na mão. (Davi também está na casa, com a harpa nas mãos - verso 9). Cheio de ciúmes, Saul tenta encravar Davi na parede com sua lança, mas Davi, de alguma forma, se desvia e foge de sua presença na escuridão da noite, escapando da morte uma vez mais (verso 10).

A estreita relação entre o ciúme de Saul e a possessão do “espírito maligno da parte do Senhor” no verso 9 é digna de nota. Sabemos que este “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul com a saída do Espírito Santo (16:14-15). Também sabemos que este espírito não possui Saul da mesma forma todas as vezes. Anteriormente, quando o espírito vinha sobre ele, Davi era convocado para tocar sua harpa e o espírito se afastava (16:23). Embora saibamos que a harpa tocada por Davi fazia o espírito deixar Saul, não é dita a razão pela qual o espírito se apossava dele. O ciúme e a fúria de Saul poderiam ser a causa da possessão do espírito, talvez até mais do que uma conseqüência. Quando Saul estivesse “cheio” de ciúmes ou de fúria, o espírito viria sobre ele naquele momento, quando estava mais vulnerável. Quando perdemos o autocontrole, seja pela raiva, por ambição, pelas drogas ou por imoralidade sexual (para dar alguns exemplos), nos expomos às influências satânicas ou demoníacas. Creio que seja por isto que Saul é possuído pelo espírito maligno quando reage incontrolavelmente ao sucesso de Davi na guerra.

Davi na Corda Bamba ou A Grande Descida
(19:11-17)

“Porém Saul, naquela mesma noite, mandou mensageiros à casa de Davi, que o vigiassem, para ele o matar pela manhã; disto soube Davi por Mical, sua mulher, que lhe disse: Se não salvares a tua vida esta noite, amanhã serás morto. Então, Mical desceu Davi por uma janela; e ele se foi, fugiu e escapou. Mical tomou um ídolo do lar, e o deitou na cama, e pôs-lhe à cabeça um tecido de pêlos de cabra, e o cobriu com um manto. Tendo Saul enviado mensageiros que trouxessem Davi, ela disse: Está doente. Então, Saul mandou mensageiros que vissem Davi, ordenando-lhes: Trazei-mo mesmo na cama, para que o mate. Vindo, pois, os mensageiros, eis que estava na cama o ídolo do lar, e o tecido de pêlos de cabra, ao redor de sua cabeça. Então, disse Saul a Mical: Por que assim me enganaste e deixaste ir e escapar o meu inimigo? Respondeu-lhe Mical: Porque ele me disse: Deixa-me ir; se não, eu te mato.”

Davi pode ter escapado noite adentro, mas Saul não está disposto a abandonar seu plano de capturá-lo e matá-lo. Ele coloca alguns de seus homens de emboscada do lado de fora da casa de Davi. Suas ordens são para que esperem até de manhã e então o matem. Davi parece se sentir seguro quando chega à sua casa. Mical conhece seu pai bem melhor. Enfaticamente ela diz a Davi que, a menos que ele fuja enquanto ainda está escuro, não viverá mais um dia. A hora de Davi escapar é esta. Até posso ver Mical enfrentando Davi, com as mãos na cintura, dizendo ao seu ingênuo marido como são as coisas com papai.

A relutância de Davi talvez esteja relacionada à única forma de ele poder escapar. Não será uma saída muito honrosa. Se ele quiser viver, terá que deixar sua dignidade para trás. A casa deles deve estar localizada junto aos muros da cidade. Mical tem que descer seu marido pela janela para ele alcançar o chão, fora dos muros da cidade, e desaparecer na escuridão da noite.

O outro lado da fuga também não é muito glorioso. Uma coisa é Davi sair de casa, à noite e sem ser notado. No entanto, Mical também sabe que precisa ganhar tempo para ele, a fim de que sua fuga seja bem sucedida. Quando os servos de Saul batem à porta, Mical está pronta para recebê-los. Ela tem tudo preparado. Na cama, ela colocou um ídolo com as roupas de Davi, para dar a impressão de sua forma, com um tecido de pelos de cabra na cabeça. À distância, sem poder olhar de perto, alguém poderia pensar que Davi estivesse de cama, talvez muito doente.

Os mensageiros de Saul retornam e relatam o que Mical lhes disse. Saul fica desconfiado e manda os mensageiros de volta à casa de Mical para trazerem Davi, a fim de matá-lo pessoalmente. Deve ter sido uma piada quando estes caras arrancam as cobertas e descobrem um ídolo do lar, habilmente colocado ali para enganá-los. Talvez vermelhos de vergonha, os mensageiros retornam e dizem a Saul que foram enganados. Saul fica furioso com sua filha por tê-lo enganado e por ter deixado Davi escapar. Uma vez mais Mical tenta enganar seu pai, dizendo-lhe que Davi ameaçou matá-la se ela não cooperasse. Isto se encaixa muito bem à avaliação distorcida que Saul tem de Davi, embora esteja longe da verdade.

Certamente há um toque de humor neste episódio. Ele mostra como os planos de Saul para matar Davi são inúteis. Devemos fazer uma pausa por um momento para relembrar como Davi conseguiu sua esposa. Anteriormente, quando Golias ridicularizava Saul e o exército de Israel, o rei ofereceu sua filha ao homem que o enfrentasse e matasse (17:25). Por direito, Davi deveria ter recebido uma das filhas de Saul como esposa. Depois de Davi ficar famoso e Saul sentir ciúmes dele, Saul lhe faz outra oferta de uma esposa:

“Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” (I Sam. 18:17)

Davi recusa a oferta crendo, sinceramente, ser indigno de receber uma das filhas de Saul como esposa, e também consciente de não poder pagar o dote exigido (18:18, ver também o verso 23).

Quando Saul lhe oferece novamente uma de suas filhas, ele é bem mais perspicaz na maneira como trata do assunto:

“Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. Tendo os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical.” (I Sam. 18:20-27)

Quando fica claro que Davi quer se casar com Mical e que, alegremente, providenciará o número de prepúcios filisteus exigido (na verdade, o dobro = 200), Saul fica pasmo. Saul tem certeza que o amor de Mical por Davi (e o dele por ela) acarretará a morte deste quando ele tentar matar esse tanto de filisteus. Uma vez mais, os planos de Saul vão para o espaço. Davi consegue os prepúcios (duas vezes mais) e recebe uma das filhas de Saul como esposa. Ela ama Davi e não está disposta a fazer parte de qualquer complô para matá-lo. Mais do que isto, é ela quem salva Davi de seu pai. Uma vez mais, Saul atirou em seu próprio pé (ou devo dizer furou) tentando matar o ungido do Senhor. Não ouço Saul rindo, mas deve ter havido bem mais do que um risinho abafado nos palácios celestiais.

Ao deixarmos este salvamento, não devemos negligenciar o Salmo 59, que é a reflexão de Davi sobre esta libertação. Embora não ousemos tentar tratar deste salmo em detalhes, duas observações podem ser feitas. Primeira, você perceberá que Mical não é mencionada no salmo. Não que é ela seja de alguma forma menosprezada por Davi, como se não tivesse participado de seu salvamento. Neste salmo Davi não está olhando para a causa imediata de sua libertação, mas para a causa principal - Deus. Assim, Davi louva a Deus por salvar sua vida. Segunda, a descrição de Davi de seus perseguidores soa como se eles fossem gentios, não judeus (ver Sl. 59:5-8). Não ficaria surpreso se os homens que Saul enviou para capturar Davi fossem gentios. Sabemos que ele contratava mercenários (ver I Sam. 14:52). Tais homens não teriam escrúpulos para ajudar a matar Davi, quando os israelitas poderiam ter. Que conveniente é para Saul (um judeu) utilizar esses mercenários (gentios) para se opor ao rei de Deus, da mesma forma que os líderes religiosos judaicos se opuseram a Cristo anos mais tarde. Finalmente, Davi fala dos homens que procuram capturá-lo como mentirosos (Sl. 59:12). Seriam estes homens alguns daqueles que falsamente acusaram Davi diante de Saul? (ver I Sam. 24:9; 26:19)

Um Resgate Religioso: Salvo pelo Espírito ou Pelos Esforços de um Verdadeiro Profeta
(19:18-24)

Assim, Davi fugiu, e escapou, e veio a Samuel, a Ramá, e lhe contou tudo quanto Saul lhe fizera; e se retiraram, ele e Samuel, e ficaram na casa dos profetas. Foi dito a Saul: Eis que Davi está na casa dos profetas, em Ramá. Então, enviou Saul mensageiros para trazerem Davi, os quais viram um grupo de profetas profetizando, onde estava Samuel, que lhes presidia; e o Espírito de Deus veio sobre os mensageiros de Saul, e também eles profetizaram. Avisado disto, Saul enviou outros mensageiros, e também estes profetizaram; então, enviou Saul ainda uns terceiros, os quais também profetizaram. Então, foi também ele mesmo a Ramá e, chegando ao poço grande que estava em Seco, perguntou: Onde estão Samuel e Davi? Responderam-lhe: Eis que estão na casa dos profetas, em Ramá. Então, foi para a casa dos profetas, em Ramá; e o mesmo Espírito de Deus veio sobre ele, que, caminhando, profetizava até chegar à casa dos profetas, em Ramá. Também ele despiu a sua túnica, e profetizou diante de Samuel, e, sem ela, esteve deitado em terra todo aquele dia e toda aquela noite; pelo que se diz: Está também Saul entre os profetas?

Os esforços de Mical para retardar os perseguidores de Davi dão resultado. Davi escapa noite adentro e foge para Ramá, onde se encontra com Samuel e lhe conta tudo o que Saul fez. Então, ele e Samuel deixam Ramá e vão para Naiote. A notícia de que Davi e Samuel estão em Naiote chega aos ouvidos do rei que, então, envia alguns de seus homens para prender Davi. Quando estes homens chegam a Naiote, encontram um grupo de profetas que está profetizando. Samuel está entre eles, presidindo o grupo. O Espírito de Deus desce sobre os homens enviados por Saul para capturar Davi e eles também começam a profetizar.

Não é dito o que estes homens fazem quando estão possuídos pelo Espírito, exceto que profetizam, mas podemos nos aventurar a supor que talvez não estejam muito longe do alvo. Sabemos, com certeza, que eles não prendem Davi ou fazem mal a Saul. Se eles profetizam, é razoável supor que suas palavras incluam o louvor a Deus. Também é possível que profetizem a respeito do próximo rei de Israel. Se estes homens, sob o controle do Espírito de Deus, proclamam Davi como o próximo rei, como podem tomar parte no plano de Saul para matá-lo? Do ponto de vista de Saul, este primeiro grupo de homens está fora.

Saul não aprende muito bem a lição. Não sabemos exatamente que tipo de relatório chega a ele sobre a primeira “companhia” enviada para prender Davi. O texto só indica que “foi dito a Saul”. Se ele é informado de que o Espírito de Deus desceu sobre seus homens e eles profetizaram, ele não capta o sentido da mensagem. Assim, ele envia um segundo grupo para prender Davi. (Temos certeza que, desta vez, ele escolhe homens que não sejam tão inclinados à “espiritualidade”). No entanto, quando este segundo grupo chega, acontece exatamente a mesma coisa com eles. Saul, então, envia um terceiro destacamento, só para que a mesma coisa se repita novamente.

Saul simplesmente ainda não entendeu que seus esforços são inúteis. Se na última tentativa ele disse a si mesmo “agora vai!”, desta vez deve ter pensado: “se quiser algo bem feito, faça você mesmo”. E assim ele chega à Ramá e vai até o grande poço que está em Seco. Lá, ele pergunta onde Samuel e Davi podem ser encontrados. Dizem a ele que ambos estão em Naiote, em Ramá, por isso ele prossegue até Naiote. No caminho, o Espírito de Deus desce sobre o próprio Saul e ele profetiza até chegar ao seu destino.

Deve ter sido um grande espetáculo. Saul, com certeza, estava muito irritado por ter enviado três destacamentos para prender Davi sem nenhum sucesso. Agora, ele está determinado a fazer o serviço ele mesmo. Você pode imaginar o seu humor quando se aproxima do lugar onde estão Davi e Samuel? De repente, o Espírito de Deus o domina, fazendo-o tirar sua túnica e estender-se nu diante de Samuel pelo resto do dia e durante toda a noite.

Saul pretende matar Davi e eliminar a ameaça ao trono? Ele não consegue nem mesmo prendê-lo e, agora, talvez esteja até profetizando que Davi certamente será rei. Saul chega como rei, com toda a autoridade e poder, determinado a realizar seu plano? Agora ele jaz nu diante de Samuel.

A notícia da chegada de Saul e sua conduta inesperada circulam rapidamente. Imagino que as pessoas que ouvem a notícia vêm averiguar e ver por si mesmas. Nu em pelo, Saul não parece tão valentão (perdão pela expressão). Estou mais interessado na questão dos lábios daqueles que vêem Saul neste estado espiritual: “Está Saul entre os profetas?” (verso 24).

Como a chegada e a conduta de Saul podem ser explicadas? Será que todo mundo sabe que ele está procurando matar Davi? Se não sabem, sua chegada e sua conduta são ainda mais misteriosas. Que outra razão haveria para Saul agir como profeta, entre profetas? Nós sabemos. Nenhum homem pode ser controlado pelo Espírito de Deus e executar seu plano demoníaco para matar o ungido de Deus. Eis um jeito de Deus garantir a segurança de Davi. Mesmo quando tenta fazer o serviço ele mesmo, Saul não consegue ter sucesso para impedir o intento de Deus. Como disse o Cristo glorificado anos mais tarde a “Saul(o)” (Paulo, o apóstolo): “Dura cousa é recalcitrares contra os aguilhões” (At. 26:14).

Precisamos observar mais uma coisa neste parágrafo final do capítulo 19: sua semelhança com o incidente ocorrido anteriormente na vida de Saul:

“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas?” (I Sam. 10:5-12)

Não parece coincidência demais que esta expressão encontrada no capítulo 10 seja, literalmente, repetida no capítulo 19? A primeira vez é no início do reinado de Saul. O Espírito desceu sobre Saul como prova de que ele era o rei escolhido de Deus, e também para capacitá-lo a agir como rei. Assim, o coração de Saul é mudado e ele “se torna outro homem” (10:6, 9-10). O Espírito de Deus desce sobre ele quando ele encontra um “grupo de profetas” (10:5, 10). Quando Saul profetiza com os outros profetas, as pessoas que testemunham o fato ficam surpresas e dizem “Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está Saul entre os profetas?” (10:11) Estes dizeres, então, se tornam um provérbio entre o povo (10:12).

As semelhanças entre os dois incidentes são marcantes, embora separadas por muitos anos. Nos dois casos, o Espírito de Deus desce sobre Saul e ele profetiza com os outros profetas. Aqueles que testemunham este acontecimento ficam surpresos e perguntam “Está também Saul entre os profetas?”. Em nenhum dos casos o fenômeno profético dura mais do que um dia, e depois cessa (muito parecido com aquilo que vemos em Nm. 11:16-30).

No entanto, há também algumas diferenças. O primeiro fenômeno profético acontece bem no início do reinado de Saul. Na realidade, a vinda do Espírito sobre ele é uma evidência de que Deus o preparou para desempenhar seus deveres como rei (compare com Nm. 11:16-30). Parece ser um tipo de credenciamento de Saul como rei de Israel. O segundo e último fenômeno chega no final de sua carreira, depois que lhe é dito que seu reinado chegaria ao fim. Quando Saul profetiza nesta última vez, é mais como um credenciamento de Davi (talvez meio indireto) do que de Saul. É quase como se Deus usasse o primeiro fenômeno como prova de que Saul é o rei e o segundo como prova de que seu reino está próximo do fim. Eis aqui algo para meditarmos um pouco mais.

Conclusão

Alguns podem estranhar porque, no domingo antes do Natal, não deixei de lado esta série em I Samuel e preguei uma “mensagem de Natal”, como já fiz outras vezes. Quando estudei o texto, percebi o quanto é parecido com a história do “primeiro Natal”. Temos Davi, a quem Deus escolheu e ungiu como rei de Israel. O rei Saul sabe que Davi é o rei de Deus e, por isso, sente-se ameaçado, embora Davi não procure tirá-lo do trono para reinar em seu lugar. Cheio de ciúmes, Saul tenta matá-lo e, não importa o quanto tente capturá-lo e matá-lo, seus planos sempre fracassam. Não existe jeito de Davi - o rei de Deus - ser morto por um homem como Saul, ou por qualquer outro. Em certo sentido, podemos dizer que Davi leva uma vida encantada, pois é o propósito de Deus para ele que se torne o próximo rei.

A história do Natal é sobre um outro rei, o “Filho de Davi”, a quem Deus constituiu para governar sobre o povo de Israel. Quando este rei nasceu, os magos do Oriente O buscaram para adorá-Lo. O rei Herodes, junto com o povo de Jerusalém, fica muito atribulado (não deleitado!) porque estes nobres estão à procura do “Rei dos judeus” (Mt. 2:1-3). Ele chama os líderes religiosos judaicos, procurando saber o lugar onde este “Rei” pode ser encontrado. Ele também diz aos magos para avisá-lo quando encontrarem este “Rei”. Ele não faz isto para adorar o Senhor Jesus (como os magos), mas para matá-lo. Herodes tem tamanha intenção de se livrar deste “Rei”, o qual ele acha ser uma ameaça ao seu reino, que mata todos os meninos na área de Belém, na esperança de que o “Rei” esteja entre eles. A despeito de todos os seus esforços, Herodes fracassa.

Como o rei Saul, Herodes não aprende a lição que todos os reis terrenos deveriam saber: que o monarca ungido de Deus, Jesus Cristo, o Messias prometido, não pode ser derrotado ou destruído. Esta é a lição ensinada no Salmo segundo:

“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.”

Os sábios do Oriente estão certos e Herodes (como Saul) totalmente errado. Ninguém pode derrotar o ungido de Deus. E esse rei é Jesus Cristo. Ele virá outra vez e subjugará os Seus inimigos. E então reinará sobre todas as coisas. Aqueles que se submetem a Ele como o rei ungido e designado por Deus, com Ele reinarão; os que resistirem serão destruídos.

O bebê na manjedoura, Jesus Cristo, é o Messias prometido, o rei que governará sobre todas as coisas. Ele é também o descendente de Davi. Deus não somente designa Davi como o rei de Israel, Ele o designa como aquele do qual nascerá o Rei. Que tolice é Saul tentar destruir Davi. Da mesma forma que Saul cai prostrado e humilhado diante do profeta Samuel, todo aquele que resistir a Jesus Cristo, o rei de Deus, um dia cairá diante Dele e O professará como o Rei dos reis:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Fp. 2:5-11).

Esta é a mensagem do Natal. Esta é a mensagem do evangelho. Deus enviou Seu filho para ser o Salvador do mundo. Ele O enviará segunda vez para ser o Rei dos Reis. Todos aqueles que rejeitaram a Jesus como Salvador serão Seus inimigos quando Ele voltar. E todos aqueles que O resistirem agora, um dia cairão diante Dele como o Aquele que os derrotou. Todos aqueles que O receberem agora, como o único meio de Deus para salvação de seus pecados, reinarão com Ele quando Ele voltar. Se Saul nos ensina alguma coisa, é que é uma tolice resistir ao rei designado por Deus. Não vamos cometer o mesmo erro.

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