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3. Samuel e os Filhos de Belial (I Samuel 2:11-36)

Introdução

Quando eu era seminarista, um casal de outra igreja morava nas proximidades do Seminário. Certa vez, sua igreja organizou uma semana de encontros com um pregador muito conhecido em todo o país, e eles prontamente se ofereceram para pegá-lo no aeroporto. Seus três filhos foram com eles. Ao chegarem a casa, perguntaram ao orador sobre o tema da semana e ele respondeu que ainda não se decidira. Na primeira reunião, quando anunciou que “O Senhor o levara a falar sobre educação de filhos”, imediatamente souberam que ele tomara sua decisão com base na conduta de seus filhos na volta do aeroporto. O mau comportamento de seus filhos, e sua falta de controle sobre eles, levaram-no a se decidir pelo assunto. Eles também sabiam que se o homem falava para alguém, era para eles.

O leitor rapidamente perceberá que o tema principal de nossa passagem é o relacionamento entre pais e filhos. Espero que fique claro que este assunto emerge diretamente do texto. Se vou expor I e II Samuel sistematicamente, não posso deixar de lado este texto ou o assunto da educação de filhos. Não pense, por favor, que eu me sinta totalmente à vontade para ensinar sobre este assunto só porque que minha filha mais nova terminou a Faculdade e está saindo de casa para lecionar em outro Estado. Talvez pareça que nosso trabalho paterno já esteja feito e até mesmo que nossos filhos tenham se saído muito bem. Duas coisas devem ser ditas a esse respeito. Primeiro, como a maioria dos pais descobre a esta altura, nosso trabalho realmente não termina, nunca. Nosso papel como pais muda e diminui, mas ainda temos certas responsabilidades, da mesma forma que nossos filhos ainda têm certas responsabilidades para conosco (tal como em nossa velhice, que ainda está bem longe!). Não podemos levar o crédito por todas as coisas boas que acontecem na vida de nossos filhos, tal como alguns de vocês não deveriam levar toda a culpa pelas coisas que saíram erradas na vida de seus filhos. No que se refere a nossos filhos andarem com Deus, é pela graça e para a glória de Deus. Não ousamos tomar o crédito por Sua obra. Finalmente, estamos muito perto de entrar no excitante mundo dos avós que, com certeza, trará novos desafios.

Por isso, você pode ver que estou tão “ameaçado” e “intimidado” pelo texto quanto você. Não tenho nenhum prazer em pregá-lo, embora ele me permita lhe dar minha opinião sobre o que fazer como pais. Entendo que o padrão de paternidade estabelecido em nosso texto é aquele todos nós temos que aceitar, mas que nem sempre conseguiremos manter. A morte de Eli e seus dois filhos (brevemente descrita em I Samuel 4) é um claro aviso sobre o alto preço que os pais pagam por não guardar as instruções de Deus com relação à educação de seus filhos. Devemos considerar este texto com a maior seriedade e nos esforçar para entender o que Deus nos diz sobre a impressionante tarefa de educar nossos filhos.

Visão Geral de I Samuel 2:11-4:22

Precisamos ler, interpretar e aplicar nosso texto à luz de seu contexto. O texto do capítulo 2 estabelece o cenário para os acontecimentos do capítulo quatro, fazendo o contraste entre a vida de Samuel e a vida dos dois filhos de Eli, Hofni e Finéias. Alternando entre Samuel eos dois “filhos de Belial”, nosso texto faz o contraste entre eles. Gosto do jeito como Dale Ralph Davis ilustra a mistura de Samuel e os filhos de Belial:

    Samuel servindo, 2:11

      pecados litúrgicos, 2:12-17

    Samuel servindo, 2:11

      pecados morais, 2:22-25

    Samuel crescendo, 2:26

profecia do julgamento, 2:27-36

    Samuel servindo, 3:1a

O escritor descreve no capítulo 3 a ascensão de Samuel aos ofícios de sacerdote e profeta. No final do capítulo, toda a nação o aceita e o respeita como verdadeiro profeta de Deus. O capítulo 4 descreve o cumprimento das advertências proféticas de Deus a respeito de Eli e seus filhos (feitas por um profeta desconhecido no capítulo 2 e por Samuel no capítulo 3). Israel é derrotado pelos filisteus e a Arca da Aliança é tomada e levada, e Eli e seus dois filhos morrem, junto com sua nora. Os avisos e profecias dos capítulos 2 e 3 devem ser interpretados à luz de seu cumprimento no capítulo 4.

Entendendo o Sacerdócio

Precisamos conhecer mais sobre os sacerdotes levitas para uma compreensão total do que vai acontecer com os filhos de Eli. Arão e seus filhos foram os primeiros a serem designados por Deus para servir como sacerdotes. Nadabe e Abiú, os dois filhos mais velhos de Arão, são mortos por não exercerem seu sacerdócio corretamente. Eles oferecem “fogo estranho” e são mortos por isso. Assim, são substituídos pelos outros filhos de Arão, Eleazar e Itamar (Lv. 10:1-3; Nm. 3:4; 26:60-61).

Os sacerdotes têm diversos deveres. Eles cuidam do tabernáculo e de seu funcionamento (Ex. 27:21; Lv. 24:1-7; Nm. 18:1-7). Entre seus deveres está a manutenção do altar. Eles devem retirar as cinzas e manter o fogo aceso (Lv. 6:8-13). Deus promete se encontrar com eles à porta da tenda da congregação (Ex. 29:42-46). Devido à sua posição privilegiada e à sua proximidade com o Deus Santo, eles devem ser muito meticulosos para não se contaminar de forma que impeça seu serviço. Isto inclui evitar bebidas fortes (Lv. 10:8-11), o que pode ter sido o fator contribuinte para o “fogo estranho” de Nadabe e Abiú (10:1-3). Eles não devem se contaminar pelo contato com os mortos, por tomar prostitutas como esposas, ou por ter uma filha prostituta (Lv. 21:1-9). Um sacerdote não deve ter nenhum defeito físico ou conduzir seus deveres sacerdotais quando estiver cerimonialmente impuro (Lv. 21:1-10-22:9). Os sacerdotes são responsáveis por inspecionar diversas doenças para determinar se é lepra, infecção ou contaminação (ver Lv. 13-16). Eles devem tocar as trombetas que convocam os israelitas (Nm. 10:8). Os deveres sacerdotais vão ainda mais além, pois eles devem ensinar ao povo de Israel a Lei de Moisés e também julgá-los (Dt. 17:8-13; 33:8-11). As falhas dos sacerdotes em fazer estas coisas trazem severo juízo sobre eles (Malaquias 2:1-10). Suas vestes, que incluem uma túnica e uma sobrepeliz, também são símbolos da santidade de seu ofício e de seus deveres (Ex. 28:40-43).

Deus não dá uma herança aos sacerdotes, como faz com as outras tribos (NM. 18:24). Em vez disto, Ele cuida deles de forma especial. Uma parte da carne oferecida pelos israelitas é dada a eles, bem como o restante dos dízimos e sacrifícios que são trazidos pelo povo como oferta a Deus (Nm. 18:8-32). A eles também é dado o pão colocado no santuário (Lv. 24:8-9). Deus especifica a parte do animal sacrificado que é dada aos sacerdotes: o peito e a coxa direita, mas somente depois que a gordura for queimada no altar (Lv. 7:31-34; ver também 3:3-5, 14-17; 7:22-25).

Cadê o bife?
(2:12-17)

“Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial e não se importavam com o SENHOR; pois o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém sacrifício, vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a carne, com um garfo de três dentes na mão; e metia-o na caldeira, ou na panela, ou no tacho, ou na marmita, e tudo quanto o garfo tirava o sacerdote tomava para si; assim se fazia a todo o Israel que ia ali, a Siló. Também, antes de se queimar a gordura, vinha o moço do sacerdote e dizia ao homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote; porque não aceitará de ti carne cozida, senão crua. Se o ofertante lhe respondia: Queime-se primeiro a gordura, e, depois, tomarás quanto quiseres, então, ele lhe dizia: Não, porém hás de ma dar agora; se não, tomá-la-ei à força. Era, pois, mui grande o pecado destes moços perante o SENHOR, porquanto eles desprezavam a oferta do SENHOR.”

Já vimos como Deus cuida das necessidades dos sacerdotes. Quando eles oferecem um sacrifício, devem primeiro queimar a gordura como oferta a Deus. Aquele que estiver fazendo o sacrifício recebe uma parte da carne sacrificada para ser comida com sua família (ver 1:5). O sacerdote recebe o peito e a coxa direita (ver acima). É assim que está prescrito na Lei de Moisés, mas que não é feito pelos sacerdotes. Estes homens “não se importavam com o SENHOR”, nem com o ”costume dos sacerdotes” (versos 12-13). Estes filhos, que “não se importavam com o SENHOR”, são chamados de “filhos de Belial” (literalmente), ou “homens sem valor” (verso 12). É interessante notar que, embora os filhos de Eli sejam chamados de “filhos de Belial”, o juízo apressado que ele faz de Ana, e sua repreensão, sugerem que ela seja “filha de Belial” (ver 1:16), acusação negada por ela.

O que será que estes “filhos de Belial” fazem que seja tão errado? O escritor nos diz. Primeiro, eles se recusam a aceitar as partes que são designadas a eles e insistem em examinar o “tacho” para selecionar seu pedaço de carne. Quando a carne está cozinhando na caçarola e alguém vem oferecer o sacrifício, o sacerdote envia seu servo com um garfo de três pontas para pegar qualquer coisa que consiga espetar (2:13-14). Este pedaço de carne, então, é levado ao sacerdote como a parte designada a ele do animal sacrificado.

Devo confessar que sou cínico. Não creio que a carne pega pelo servo fosse realmente ao acaso. Quando eu era pequeno, costumávamos comer frango frito - geralmente um frango inteiro. Eu gostava de carne branca e não ligava para a coxa ou sobrecoxa. Meu pai era sempre servido primeiro, e ele costumava dizer que comia “qualquer pedaço que Evalyn (minha mãe) lhe desse”. “Dá prá ele o curanchim ou o pescoço, mãe”, eu pedia, mas ela nunca dava. De alguma forma, meu pai sempre ficava com o maior pedaço de carne branca. O pedaço de frango que meu pai conseguia de maneira alguma era pego ao acaso, e todos nós sabíamos disso.

Também não creio que o pedaço de carne dado aos sacerdotes fosse uma questão do acaso. Para eles, o peito ou um pedaço da coxa não significavam uma chuleta, pois esta era retirada da parte traseira - alcatra, sim, carne assada, sim, mas filé-mignon, não - a menos, é claro, que o servo do sacerdote “acabasse” tirando-o da panela. Duvido que estes camaradas cometessem algum engano quanto ao pedaço de carne pego para o sacerdote. Não haveria nenhum bife de acém para eles, nem osso do pescoço. Da forma como escolhiam a carne, os sacerdotes desprezavam a lei, satisfazendo seus desejos ao pegar os melhores pedaços.

Os sacerdotes parecem achar que carne cozida é muito sem graça, querendo churrasco (ou carne grelhada) em vez disto. Seus servos se aproximam dos ofertantes antes que a carne seja cozida, antes mesmo que a gordura seja oferecida a Deus, e exigem o melhor pedaço para os sacerdotes. Israelitas piedosos, como Elcana e Ana, sabem que, antes de tudo, a gordura deve ser queimada no altar. Quando pessoas como eles dizem ao servo do sacerdote que espere até a gordura ser queimada, o servo fica violento. Ele exige a carne imediatamente, ameaçando tomá-la à força, se necessário.

Podemos imaginar o impacto negativo que isto causa na adoração a Deus em Siló. Os israelitas piedosos fazem a jornada anual a Siló para adorar a Deus no tabernáculo e não encontram sacerdotes dedicados que os auxiliem, mas sacerdotes vorazes que deturpam a adoração. Deliberadamente ou por ignorância (isto ficará evidente numa das traduções dos versos 12 e 13), os sacerdotes agem com total desrespeito ao ofício sagrado do sacerdócio do Antigo Testamento, o que talvez faça com que alguns israelitas abandonem completamente a adoração no tabernáculo. Nestes dias, não há rei em Israel, e cada um faz o que é certo aos seus próprios olhos, incluindo os sacerdotes que deveriam ensinar e julgar Israel de acordo com a lei de Deus.

O verso 17 nos dá uma avaliação de Deus da conduta dos sacerdotes: ”Era, pois, mui grande o pecado destes moços perante o SENHOR, porquanto eles desprezavam a oferta do SENHOR.” Os intérpretes traduzem este verso de diferentes formas. Alguns o interpretam para mostrar que, em conseqüência da corrupção do ministério dos sacerdotes, o povo também começa a seguir seus líderes, menosprezando os sacrifícios:

17 “Era, pois, muito grande o pecado destes mancebos perante o Senhor, porquanto os homens vieram a desprezar a oferta do Senhor.” (Almeida Atualizada)

Outros o traduzem para mostrar que o pecado dos sacerdotes era muito grande, pois eles (os sacerdotes) desprezavam as ofertas do Senhor:

17 “Assim, o pecado destes jovens era muito grande aos olhos do Senhor, pois tratavam com desprezo as ofertas que o povo trazia perante Deus.” (O Livro)

Desconfio que as duas versões estejam certas. Os sacerdotes não respeitam os sacrifícios e ofertas que fazem em favor dos homens em Siló e, como conseqüência, muitas pessoas também começam a desprezá-los. Este pecado realmente é muito grave, tanto para os sacerdotes que levam outros a pecar, como para aqueles que os seguem. Estes são dias realmente tristes na história de Israel. Como as palavras ditas por Malaquias muitos anos mais tarde se aplicam bem aos dias dos juízes:

“Agora, ó sacerdotes, para vós outros é este mandamento. Se o não ouvirdes e se não propuserdes no vosso coração dar honra ao meu nome, diz o SENHOR dos Exércitos, enviarei sobre vós a maldição e amaldiçoarei as vossas bênçãos; já as tenho amaldiçoado, porque vós não propondes isso no coração. Eis que vos reprovarei a descendência, atirarei excremento ao vosso rosto, excremento dos vossos sacrifícios, e para junto deste sereis levados. Então, sabereis que eu vos enviei este mandamento, para que a minha aliança continue com Levi, diz o SENHOR dos Exércitos. Minha aliança com ele foi de vida e de paz; ambas lhe dei eu para que me temesse; com efeito, ele me temeu e tremeu por causa do meu nome. A verdadeira instrução esteve na sua boca, e a injustiça não se achou nos seus lábios; andou comigo em paz e em retidão e da iniqüidade apartou a muitos. Porque os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento, e da sua boca devem os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do SENHOR dos Exércitos. Mas vós vos tendes desviado do caminho e, por vossa instrução, tendes feito tropeçar a muitos; violastes a aliança de Levi, diz o SENHOR dos Exércitos. Por isso, também eu vos fiz desprezíveis e indignos diante de todo o povo, visto que não guardastes os meus caminhos e vos mostrastes parciais no aplicardes a lei.” (Malaquias 2:1-9)

Pequeno Lorde Fontleroy?
(2:18-21)

“Samuel ministrava perante o SENHOR, sendo ainda menino, vestido de uma estola sacerdotal de linho. Sua mãe lhe fazia uma túnica pequena e, de ano em ano, lha trazia quando, com seu marido, subia a oferecer o sacrifício anual. Eli abençoava a Elcana e a sua mulher e dizia: O SENHOR te dê filhos desta mulher, em lugar do filho que devolveu ao SENHOR. E voltavam para a sua casa. Abençoou, pois, o SENHOR a Ana, e ela concebeu e teve três filhos e duas filhas; e o jovem Samuel crescia diante do SENHOR.”

Há um filme muito engraçadinho chamado “Pequeno Lorde Fontleroy”, no qual um nobre senhor europeu descobre que tem um herdeiro vivendo nos Estados Unidos. Ele leva o garoto para morar com ele, a fim de que um dia assuma seu lugar de posição e prestígio. Relutantemente, este senhor também leva a mãe do garoto, mas faz com que ela viva longe de sua mansão. Este rapazinho, que costumava correr pelas ruas com suas roupas maltrapilhas, agora está vestido como um nobre - pequeno Lorde Fontleroy. Ele conquista não só o coração das pessoas, pelas quais tem compaixão e demonstra generosidade (como sua mãe), mas também conquista o coração de seu avô mesquinho e carrancudo. No final, o garotinho transforma o avô num homem bondoso e gentil.

Quando leio os versos de nosso texto, não consigo deixar de pensar no “Pequeno Lorde Fontleroy”. Este texto parece muito singelo e sentimental. O retrato que nosso autor faz deste garotinho é tocante. Até posso ouvir alguém dizendo: “Não é um doce...?” É. Ana teve que deixar seu único e precioso filho em Siló, para manter seu voto. Todos os anos ela vem para a adoração, mas também vem para ver seu querido filho. E, todos os anos, ela traz uma pequena túnica carinhosamente confeccionada nos meses anteriores. É provável que ela tenha que fazer algumas alterações em suas roupas tentando calcular seu tamanho no próximo ano, para poder confeccioná-las antes de vir. Você não vê o pequeno Samuel todo bem vestido em sua roupa nova? Não é um doce?

Sim, é; o fato é que a cada ano, pelos próximos anos, Ana será acompanhada por outro filho, terminando com 3 meninos e 2 meninas - seis no total, contando com Samuel. Eli vê a triste partida de Elcana e Ana e pronuncia uma bênção sobre eles, pedindo a Deus que substitua o filho que Ana dedicou ao Senhor. Deus responde, concedendo-lhes graciosamente cinco filhos a mais. Eli também percebe que, em lugar de seus filhos inúteis, Deus lhe deu um filho para educar, um filho que deve ter sido uma alegria para o coração deste velho sacerdote.

No entanto, eis aqui mais do que um mero sentimento afetivo. Poderíamos pensar que, uma vez que Samuel vive tão longe da casa de seus pais, Ana e Elcana tenham pouca influência sobre sua vida. Creio que eles têm muita influência sobre Samuel. Se lermos I Samuel 2:19 à luz dos ensinamentos da Lei a respeito das vestes sacerdotais, Ana não está só costurando roupas para o seu garotinho, ela está costurando vestes sacerdotais para ele. Você pode ouvir Ana falando a Samuel sobre a dignidade e os deveres dos levitas sacerdotes? Não pode vê-la instruindo-o sobre a grandeza do seu chamado e o que as vestes sacerdotais pretendem transmitir? Creio que Ana tem um impacto tremendo na vida de seu filho pelas coisas que faz e, sem dúvida, por aquilo que diz. Como é que uma simples costura pode ter impacto espiritual? É melhor perguntar a Ana, ou melhor ainda, a Samuel.

Fraca Demais e Tardia Demais:
A Débil Repreensão de Eli
(2:22-25)

“Era, porém, Eli já muito velho e ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel e de como se deitavam com as mulheres que serviam à porta da tenda da congregação. E disse-lhes: Por que fazeis tais coisas? Pois de todo este povo ouço constantemente falar do vosso mau procedimento. Não, filhos meus, porque não é boa fama esta que ouço; estais fazendo transgredir o povo do SENHOR. Pecando o homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro; pecando, porém, contra o SENHOR, quem intercederá por ele? Entretanto, não ouviram a voz de seu pai, porque o SENHOR os queria matar.”

Os versos 12 a 17 falam sobre o pecado dos sacerdotes em relação à carne oferecida como sacrifício a Deus. Agora, os versos 22 a 25 falam de sua imoralidade com as mulheres que servem à porta da tenda. Estas ”mulheres" parecem ser as mesmas mencionadas em Êxodo:

“Fez também a bacia de bronze, com o seu suporte de bronze, dos espelhos das mulheres que se reuniam para ministrar à porta da tenda da congregação (Êx. 38:8).”

Hofni e Finéias são culpados de imoralidade sexual, e sabemos que pelo menos Finéias é casado (ver I Sam. 4:19). Isto é adultério e é um pecado punível com a morte. É um pecado ainda mais grave se considerarmos quem o comete e onde é cometido. Considere a perversidade dos filhos de Eli à luz da promessa de Deus aos levitas sacerdotes:

“Este será o holocausto contínuo por vossas gerações, à porta da tenda da congregação, perante o SENHOR, onde vos encontrarei, para falar contigo ali. Ali, virei aos filhos de Israel, para que, por minha glória, sejam santificados, e consagrarei a tenda da congregação e o altar; também santificarei Arão e seus filhos, para que me oficiem como sacerdotes. E habitarei no meio dos filhos de Israel e serei o seu Deus. E saberão que eu sou o SENHOR, seu Deus, que os tirou da terra do Egito, para habitar no meio deles; eu sou o SENHOR, seu Deus (Êx. 29:42-46, ênfase minha).

A porta da tenda da congregação é o lugar onde Deus se encontra com os sacerdotes, o lugar onde Deus revela Sua glória. Ali, Arão e seus filhos foram consagrados, separados para seu ofício sacerdotal. Agora, não muitos anos depois, este lugar se transforma num lugar de encontro de um tipo muito diferente, um lugar onde os filhos de Eli têm encontros com mulheres com quem cometem imoralidade sexual.

Refiro-me a esta passagem como a “repreensão de Eli” mas, na verdade, não é dito que ele repreenda seus filhos. Eli certamente nada faz para conter ou impedir a conduta pecaminosa de seus filhos. Suas palavras não têm nenhum impacto sobre sua rebeldia. Pior ainda, suas palavras são autocondenatórias. Parece que ele quer fazer seus filhos se sentirem culpados, o que obviamente não funciona. Suas palavras, no entanto, ressaltam sua própria culpa. O autor nos diz que Eli “ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel”. Não é por ignorância que Eli deixa de agir com rigor. Ele conhece tudo o que eles fazem, e também sabe que agem de modo arrogante, com todo o Israel. Seus pecados não são lapsos momentâneos de caráter ou conduta; são um padrão habitual, um estilo de vida.

Não é interessante que, embora Eli demonstre grande desaprovação quanto à imoralidade sexual de seus filhos, não haja menção (pelo menos em nosso texto) quanto aos pecados relativos à carne dos sacrifícios? A razão, como iremos propor adiante, talvez esteja nos versos 27-29. Enfim, as palavras de Eli a seus filhos revelam que ele entende muito bem a gravidade de seus pecados. Estes pecados não são contra o homem, mas contra Deus. São pecados deliberados, para os quais não há compensação. Estes filhos de Belial agitam os punhos na face de Deus; eles conhecem seu pecado (se não for por outra razão, é porque Eli acaba de lhes dizer ), e Eli também. No entanto, a despeito de tudo o que Eli sabe, ele não chega ao ponto de verdadeiramente fazer alguma coisa sobre isso. Amo o comentário de Dale Ralph Davis desta parte do texto:

“Eli tinha repreendido seus filhos por suas ofensas morais (v. 22-25); talvez - embora não possamos dizer pelos versos 23-25 - ele também os tenha reprovado por suas ofensas litúrgicas (v. 13-17). De qualquer forma, ele não tomou nenhuma atitude para expulsar Hofni e Finéias do ofício sacerdotal. Eli podia protestar, mas seus filhos não iam ficar desempregados. Não havia disciplina na igreja.”

“Por isso, o homem de Deus (o profeta dos versos 27-36) condena o pecado da racionalização, da disposição em tolerar o pecado, permitindo que a honra de Deus seja colocada em segundo plano, preferindo “meus filhos” a “meu Deus”. Para Eli, o sangue falou mais alto que a fidelidade.”

“Como é fácil exercer uma compaixão medrosa que nunca quer ofender ninguém, que confunde escrúpulos com amor e, por isso, ignora a lei de Deus e, principalmente, despreza sua santidade. Nem sempre buscamos a glória de Deus quando poupamos os sentimentos humanos.”

Outro Contraste com Samuel
(2:26)

“Mas o jovem Samuel crescia em estatura e no favor do SENHOR e dos homens.”

Como o sacerdócio se tornou pecaminoso! Crentes piedosos como Elcana e Ana devem ranger os dentes quando vão adorar a Deus em Siló. As coisas parecem ir de mal a pior. Eli está velho e próximo da morte. Seus dois filhos são os próximos na linha de sucessão. Com certeza os justos tremem ante este pensamento. E, mesmo assim, neste dia obscuro para Israel, um garotinho está crescendo. Os filhos de Eli estão condenados à vista de Deus; Ele tem intenção de matá-los (verso 25). Eles não são benquistos pelos crentes. Assim, há Samuel. Este jovenzinho encontra o favor de Deus e dos homens - se pelo menos os homens soubessem o que o futuro deste jovem reserva para eles e para a nação. Num dos dias mais negros da história de Israel, quando tudo parece estar se desmoronando, Deus levanta alguém que pretende usar para servi-Lo fielmente, e aos homens também. Este é Samuel. Os filhos de Eli estão em queda; Samuel está em ascensão.

Este verso soa estranhamente familiar, não é? Sabemos que Lucas usa palavras muito parecidas ao se referir a Jesus de Nazaré, quando Ele está crescendo:

“E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.” (Lucas 2:52)

Por que as palavras são tão parecidas? Por que Lucas emprega a mesma descrição que o autor de I Samuel emprega ao falar do desenvolvimento de Samuel quando criança? Os dias em que nosso Senhor nasceu também foram dias negros na história de Israel. O sistema religioso se desviara da Palavra de Deus, da mesma forma que nos dias de Samuel. Mesmo assim, embora as coisas parecessem muito sombrias para Israel, um Jovem estava crescendo, praticamente desconhecido e despercebido pela nação. Esta criança era o Messias. Ele salvaria Seu povo de seus pecados. Algum dia Ele se sentaria no trono de Seu pai, Davi. E Ele, como seu tipo, Samuel, exerceria o sacerdócio de forma as libertar o povo de Deus de seus pecados.

A "Visita" de um Homem de Deus Não Identificado
(2:27-36)

“Veio um homem de Deus a Eli e lhe disse: Assim diz o SENHOR: Não me manifestei, na verdade, à casa de teu pai, estando os israelitas ainda no Egito, na casa de Faraó? Eu o escolhi dentre todas as tribos de Israel para ser o meu sacerdote, para subir ao meu altar, para queimar o incenso e para trazer a estola sacerdotal perante mim; e dei à casa de teu pai todas as ofertas queimadas dos filhos de Israel. Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel? Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos. Eis que vêm dias em que cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais velho nenhum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, a um tempo com o bem que fará a Israel; e jamais haverá velho em tua casa. O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade. Ser-te-á por sinal o que sobrevirá a teus dois filhos, a Hofni e Finéias: ambos morrerão no mesmo dia. Então, suscitarei para mim um sacerdote fiel, que procederá segundo o que tenho no coração e na mente; edificar-lhe-ei uma casa estável, e andará ele diante do meu ungido para sempre. Será que todo aquele que restar da tua casa virá a inclinar-se diante dele, para obter uma moeda de prata e um bocado de pão, e dirá: Rogo-te que me admitas a algum dos cargos sacerdotais, para ter um pedaço de pão, que coma.”

Com poucas exceções, a expressão “homem de Deus” é quase sempre empregada se referindo a um profeta. Os dias em que “a palavra do SENHOR era mui rara” (I Sam. 3:1) foram uma verdadeira ocasião para um profeta falar aos homens diretamente da parte de Deus. Em nosso texto, um profeta sem nome aparece para censurar as falhas de Eli - ou melhor, sua recusa - em lidar decididamente com seus filhos. Nos versos 27-29, o profeta coloca o sacerdócio dentro da perspectiva histórica e teológica correta. Ele relembra o passado, no tempo em que o sacerdócio araônico e levítico foi estabelecido no êxodo. Daí, nos versos 30-34, ele reflete sobre o futuro, profetizando a respeito do castigo que Deus suscitará sobre Eli e sua casa. Então, nos versos 35 e 36, ele se refere a um futuro um pouco mais distante, quando Deus edificará uma nova casa de sacerdotes. Vamos considerar os três pontos da mensagem deste profeta sem nome.

Certa vez ameacei escrever um trabalho intitulado “Pensamento Bíblico”. As Escrituras empregam diversas linhas de pensamento; uma delas é o que chamo de “idéia original”. A idéia original consiste no raciocínio que volta à origem da questão e segue daí em diante. Por exemplo, quando Jesus foi questionado pelos fariseus a respeito do divórcio, eles Lhe perguntaram: “É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” (Mt. 19:3). Alguns pensavam que o marido poderia se divorciar de sua esposa por uma razão qualquer. Outros eram mais rigorosos. Mas, todos os que ali estavam ficaram chocados com a firmeza da posição assumida pelo Senhor. Quero chamar a atenção para o raciocínio de Jesus:

“Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, OS FEZ HOMEM E MULHER e que disse: POR ESTA CAUSA DEIXARÁ O HOMEM PAI E MÃE E SE UNIRÁ A SUA MULHER, TORNANDO-SE OS DOIS UMA SÓ CARNE? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.” (Mateus 19:4-6)

O raciocínio dos fariseus está fora do contexto de sua própria cultura, de seus dias e de sua época, e de seus próprios valores. Jesus os desafia a pensar na questão do divórcio com base na “idéia original”. No princípio, quando Deus criou o mundo e a raça humana, Ele também criou a instituição do casamento. “Como”, Jesus pergunta a seus oponentes, “se pretendia que o casamento funcionasse originalmente? O que Deus pretendia que o casamento fosse quando o criou?” Deus queria que um homem e uma mulher se unissem e jamais se separassem, exceto pela morte. “Pode um homem se divorciar de sua esposa por qualquer motivo?” A resposta de Jesus nos força a concluir que, de acordo com a idéia original, “Deus nunca pretendeu que o homem se divorciasse de sua esposa, por qualquer motivo que fosse”.

Mediante um profeta sem nome, Deus desafia Eli (e o leitor) a pensar na idéia original. Os problemas de Eli, e de seus filhos, são problemas relativos ao sacerdócio. A solução para estes problemas é um novo sacerdote (Samuel) e uma nova casa (ou dinastia) de sacerdotes. “Portanto”, desafia o profeta, “como era originalmente o sacerdócio?” O sacerdócio levítico foi introduzido quando os israelitas ainda estavam no cativeiro do Egito. É lá que Deus designa Arão como sacerdote.

É lá que a “casa” sacerdotal de Arão é estabelecida. A palavra “casa” é repetida diversas vezes por boas razões. Deus não designa só Arão como sacerdote, ele também designa seus filhos e os filhos de seus filhos, a “casa” de Arão. Como é que Eli pode ter pleno conhecimento dos pecados cometidos por seus filhos como sacerdotes e não ficar preocupado o suficiente para tratar adequadamente de sua “casa”? O sacerdócio não é apenas um assunto individual, é um assunto da “casa”, que envolve todos os membros da família (ver Levítico 21:1-9). Deus constituiu uma “casa” para Arão e seus descendentes, e Eli faz parte desta casa. Ele precisa urgentemente administrar sua “casa”.

Os pronomes pessoais abundam nos versos 27-29, e a maior parte deles se refere a Deus. Três vezes nos versos 27 e 28 Deus diz por meio do profeta: “Eu não...”. Deus Se revela a Arão. Deus escolhe Arão e designa sua casa para que O sirvam como sacerdotes. Deus dá aos sacerdotes uma “porção” dos sacrifícios para sustentá-los em seu ministério. A idéia original requer a conclusão de que o sacerdócio é “de Deus”, que o criou, estabeleceu e atribuiu regras e regulamentos que o governam. Conseqüentemente, Deus fala em “Meu sacrifício”, “Minha oferta”, “Minha morada”, “Meu povo” e, por inferência, “Minha glória”, a glória que é devida a Ele pelos sacerdotes por tudo o que Ele fez em relação ao seu sacerdócio.

É aí que Eli erra. Eli honra mais a seus filhos do que a Deus (verso 29). Ele parece temer enfrentar seus filhos e tratá-los com rigor, pois eles poderiam odiá-lo e até mesmo desprezá-lo. Sendo o tipo de filhos que são, poderiam até matá-lo. Eli teme mais a seus filhos do que a Deus. Ele quer sua aprovação e afeição mais do que a aprovação e afeição de Deus... Como pode? O verso 29 sugere o porquê de Eli ser tão omisso e passivo quanto aos pecados de seus filhos. Deus diz: “Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel?” (verso 29).

Sei que serei visto como politicamente incorreto, mas creio que interpreto acuradamente o que Deus diz a Eli pelo profeta. Não falo por maldade, mas Eli é um homem muito gordo (ver 4:18). Não estou fazendo nenhuma alusão negativa sobre pessoas acima do peso (entre as quais devo estar incluído). Mas parece que Deus diz a Eli: “Olhe-se no espelho, Eli. Você engordou como sacerdote! Pense no que teria acontecido. Você e seus filhos se tornaram obesos por causa da carne que têm comido, a carne que conseguiram injustamente como sacerdotes.”

Nosso texto nos diz que Eli ouvia “tudo” o que seus filhos faziam a todo Israel. Portanto, ele sabe como seus filhos conseguem a carne. Ele conhece sua imoralidade. Em nosso texto, ele repreende seus filhos pela imoralidade sexual, mas não diz nada a respeito dos métodos usados para conseguir carne. Talvez Eli esteja velho e seus sentidos estejam embotados, mas creio que ele sabe a diferença entre carne grelhada e carne cozida. Tenho certeza que ele conhece a diferença entre uma carne assada e um filé. Talvez ele não diga nada sobre o pecado de seus filhos com relação aos métodos de conseguir da carne porque ele também a come. Ele se beneficia pessoalmente dos pecados de seus filhos e, em vez de tomar uma atitude enérgica quanto a eles, ele é passivo. Deus o relembra de que todos os benefícios e bênçãos de seu sacerdócio vêm Dele - não de seus filhos. Por isso, Eli fará bem se honrar a Deus mais do que a seus filhos, em vez de continuar a honrá-los (os filhos de Belial) mais do que a Deus, deixando de discipliná-los por seus pecados. Eli injustamente censura Ana por achar que ela esteja embriagada, mas não consegue repreender seus próprios filhos pela maneira como adquirem a carne. Ele está relutante em dar um fim ao sistema que o sustenta, ao sistema que o faz engordar.

O pecado de Eli é exposto e explicado. As bênçãos do sacerdócio vêm de Deus. Deus é o único a quem ele deve honrar. Os filhos de Eli precisam ser repreendidos. Mas, devido às “vantagens” que ele goza com o pecado de seus filhos - e que ele tem medo de perder - ele se recusa a tratar o pecado de seus filhos como deveria. Assim, O julgamento de Deus vem não só sobre ele, mas sobre sua “casa”, um julgamento descrito nos versos 30-34:

“Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos.” (I Sam. 2:30)

Deus quebrará Sua promessa? De forma alguma. Em primeiro lugar, precisamos lembrar que a promessa de Deus é uma aliança que Eli e seus filhos quebram em virtude de seus pecados. Deus diz que alguns de sua “casa” irão morrer. Especificamente, Hofni e Finéias irão morrer, no mesmo dia (verso 34). Mas Deus não cortará todos os descendentes de Eli:

“O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade.” (verso 33)

Eli e seus filhos “engordaram” com os sacrifícios? Eles só comem as melhores partes? Isso vai mudar:

“Será que todo aquele que restar da tua casa virá a inclinar-se diante dele, para obter uma moeda de prata e um bocado de pão, e dirá: Rogo-te que me admitas a algum dos cargos sacerdotais, para ter um pedaço de pão, que coma.” (verso 36)

Deus vai empobrecer a “casa” de Eli, mas eles ainda vão servir como sacerdotes. Deus tirará sua “força” e os tornará “fracos” (verso 31). Não será uma bela visão, mas todos verão que Deus não permitirá que Seu sacerdócio seja manchado indefinidamente.

Os versos 30-34 descrevem o juízo que Deus está prestes a trazer sobre Eli e seus filhos, a “casa” de Eli. Os versos 35 e 36 falam da bênção que Deus trará sobre Israel pela ascensão de um “sacerdote fiel” e de uma “casa estável” de sacerdotes (verso 35). Se a “casa” de Eli receber alguma bênção, será somente pela submissão a este “sacerdote fiel” (verso 36).

Isto levanta duas questões: quem é este “sacerdote fiel”, e qual é esta ”casa estável” de sacerdotes? As palavras do verso 35 soam familiares àquelas de II Samuel 7, conhecidas como a “Aliança Davídica”:

“Prepararei lugar para o meu povo, para Israel, e o plantarei, para que habite no seu lugar e não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o aflijam, como dantes, desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu povo de Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa. Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. Segundo todas estas palavras e conforme toda esta visão, assim falou Natã a Davi.” (II Sam. 7:10-17)

A “casa” de Eli é como a “casa” de Saul, exceto que, enquanto a casa de Eli continua em declínio, a casa de Saul chega ao fim com relação ao seu reino. No entanto, ainda que os descendentes de Eli continuem a servir como sacerdotes, eles estarão sujeitos a um sacerdote superior. Quem é este sacerdote superior? E por que Deus faz uma aliança que terá uma “casa estável”?

A resposta tem duas partes. Creio que haja um cumprimento imediato e outro mais distante, eterno, para a aliança sacerdotal feita por Deus em nosso texto. Primeiro, Deus proverá Seu povo com uma “casa” de sacerdotes superior à casa de Eli e seus filhos, e isto acontecerá num futuro de Israel não muito distante (da perspectiva de Eli). O sacerdócio levítico vem da linhagem de Arão, um descendente de Levi (ver Êxodo 2:1 e ss). Quando Arão é feito sumo sacerdote, seus dois filhos, Nadabe e Abiú servem sob ele. Quando eles são mortos devido ao “fogo estranho” que oferecem, os dois outros filhos de Arão, Eleazar e Itamar, são designados em lugar de seus irmãos (Levítico 10). A linhagem sacerdotal de Arão, portanto, continua por meio destes dois filhos sobreviventes, Eleazar e Itamar. Originalmente, o sumo sacerdócio vem pela descendência de Eleazar, mas Eli, que serve como sumo sacerdote, é descendente de Itamar. A profecia deste profeta sem nome parece inicialmente ser cumprida quando Samuel se torna sacerdote em lugar de Eli; tempos depois, no reinado de Davi, Zadoque, descendente de Eleazar, será feito sumo sacerdote (I Reis 1:7-8; I Crônicas 16:4-40). No Reino do Milênio, os “filhos de Zadoque” servirão como sacerdotes (Ezequiel 44:15; 48:11).

Segundo, creio que o cumprimento final desta profecia é nosso Senhor Jesus Cristo, tal como Ele é o cumprimento final da aliança do Senhor com Davi. A história de Israel mostra que nenhum rei humano é digno de um reino eterno, de um reino sem fim. Ninguém é digno - nem Davi, nem Salomão, nem qualquer outro, exceto o "Rei dos Judeus", nosso Senhor Jesus Cristo, que veio para "se sentar no trono de Seu pai, Davi". Ele é o cumprimento total e final da Aliança Davídica. Da mesma forma, nosso Senhor é o cumprimento total e final da aliança sacerdotal de nosso texto. Jamais houve na história de Israel um sacerdote digno de servir eternamente como sacerdote - nem Eli, e nem Samuel. Mesmo que Deus esteja prestes a dar a Israel sacerdotes superiores a Eli e seus filhos, Ele dará a Seu povo, num dia ainda por vir, um sacerdote perfeito, o Senhor Jesus Cristo, o último e perfeito profeta, sacerdote e rei.

Conclusão

Como mencionei no início desta lição, nosso texto tem muito a nos ensinar sobre educação de filhos. Mais precisamente, nosso texto chama a atenção para a maneira como os pais lidam com filhos adultos que são rebeldes e desobedientes a Deus. Podemos dizer que muitos dos problemas tratados de maneira errada por Eli com relação a seus filhos são conseqüências de suas falhas em tratá-los adequadamente quando crianças. Mas também é possível que filhos educados num lar bastante piedoso possam se desviar do caminho, como os filhos de Eli. A questão em nosso texto é que Eli não consegue lidar com seus filhos de forma apropriada como sumo sacerdote e juiz da nação de Israel. Eli deveria ter tratado seus filhos da mesma maneira que teria tratado qualquer outro homem que fosse sacerdote e fosse sexualmente imoral, que desonrasse a Deus, profanasse o sacerdócio e não atendesse à sua admoestação. Eli não consegue lidar direito com seus filhos porque são seus filhos, e ele permite que este fato seja um fardo para todos os outros. Vamos rever primeiramente o fracasso de Eli em lidar com seus filhos.

(1) Eli não consegue instruir seus filhos na Lei do Senhor, especialmente nos costumes dos sacerdotes.

(2) Eli parece “cego” aos pecados que estão bem debaixo do seu nariz - pecados sobre os quais ele deve ouvir de muitos israelitas. Esses pecados ocorrem nos mesmos lugares em que Eli esteve, ou deveria estar, em seu ministério sacerdotal. É quase inconcebível que ele não tenha percebido. Contudo, devo dizer que vejo muitos pais cujos filhos agem de forma errada diante deles, mas eles não conseguem ver seus erros. Receio que todos nós sejamos tentados a fazer vista grossa para as coisas que simplesmente não queremos ver. Eli está literalmente cego mas, com certeza, não está surdo. Ele não tem como deixar de saber o que acontece, a menos, é claro, que ele realmente não queira saber.

(3) Eli espera demais para corrigir os pecados de seus filhos. Mesmo depois de todo o Israel lhe contar sobre os pecados de seus filhos, Eli não age com muita rapidez. Sua tímida palavra de desaprovação e advertência é fraca demais e tardia demais. Tem-se a nítida impressão de que os pecados que se tornaram uma prática normal na vida de seus filhos são os mesmos evidenciados muito tempo antes, quando poderiam ter sido “cortados pela raiz”. Paternidade e procrastinação não se misturam.

(4) Eli não faz nada a seu alcance para corrigir seus filhos - ou, pelo menos, para opor-se à sua conduta pecaminosa. Uma coisa é Eli não saber o que seus filhos estão fazendo. Pelo menos seria compreensível se ele ignorasse a seriedade de seu pecado. Mas, pelas suas próprias palavras, sabemos que ele tem pleno conhecimento da sua gravidade. Ele sabe que a atitude dos filhos é pecaminosa, e que são pecados contra Deus. No entanto, quando seus filhos desprezam sua admoestação, ele simplesmente deixa de empregar outros meios à sua disposição. Ele deveria, e poderia, ter apedrejado seus filhos. Ele poderia tê-los removido do sacerdócio. Mas ele nada faz para pará-los depois que eles rejeitam sua admoestação.

Hoje, vejo pais torcendo as mãos da mesma forma que Eli, quando seus filhos se recusam a obedecê-los. Seus filhos não são todo músculos, com 2 metros de altura e 115 kg. Muitas vezes são crianças de 5 anos de idade, e os pais têm muitas opções. No entanto, depois de uma repreensão, quando a criança obstinadamente se recusa a obedecer, eles erguem os ombros como se dissessem: “O que mais posso fazer?” Preciso mesmo lhe dizer? Leia Provérbios; você pensará em alguma coisa.

(5) Eli não quer fazer com seus filhos aquilo que tem autoridade para fazer - porque não quer pagar o preço. Vamos admitir. Quando você e eu deixamos de disciplinar nossos filhos não é porque não tomamos a atitude que podemos tomar; não é porque não sabemos o que deveríamos fazer. É porque não estamos dispostos a pagar o preço de fazer a coisa certa - de fazer o que é melhor para nossos filhos e para nós. Talvez Eli receie perder o pequeno relacionamento que tem com seus filhos. Talvez tema perder o respeito por tomar uma atitude pública. Ele pode muito bem estar receoso de ter que voltar a comer o tipo de carne que não gosta. Ele tem medo de disciplinar seus filhos porque precisa demais daquilo que eles lhe dão, e que ele não quer perder.

(6) Eli não lida apropriadamente com seus filhos, mesmo quando é claramente advertido e instruído por Deus por meio de profecias, nem mesmo quando tem pleno conhecimento das conseqüências da falta de arrependimento e obediência com relação a seus filhos. Eli não pode alegar ignorância. Ele sabe que seus filhos são culpados. Ele será repreendido duas vezes por um profeta de Deus (o profeta sem nome do capítulo 2 e Samuel no capítulo 3). Ele não faz a coisa certa nem quando o próprio Deus chama sua atenção por sua desobediência.

(7) Eli honra muito mais a seus filhos do que a Deus. Este é o ponto principal, à vista de Deus. Eli está mais preocupado com seu relacionamento com seus filhos do que com seu relacionamento com Deus. Nosso Senhor Jesus deixou bem clara a questão dos relacionamentos:

"Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem acha a sua vida perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á.” (Mateus 10:34-39)

Nosso texto bate “em nossa porta” em diversos aspectos. Talvez pensemos que a conduta de Eli e seus filhos como sacerdotes não tenha nada a ver conosco, cristãos contemporâneos. Precisamos relembrar que também somos sacerdotes:

“Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” (I Pedro 2:5)

Também devemos relembrar que, embora Eli e seus filhos (e Samuel) ministrem no “templo de Deus” (I Samuel 3:3), o “lugar da morada de Deus”, nós somos “templo de Deus”, Sua “morada” e, quando causamos algum dano à Sua “morada”, esta é uma das coisas mais graves para Deus:

“Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.” (Efésios 2:19-22)

“Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.” (I Co. 3:16-17)

Não é de se estranhar que a conduta dos cristãos de Corinto (ver I Co. 5 e 6) e, especialmente sua conduta na igreja (ver I Co. 11:17 e ss), seja tão grave para Deus.

Nós, como Eli, precisamos educar nossos filhos na “disciplina e instrução do Senhor” (Ef. 6:4). Não devemos apenas instruir e admoestar nossos filhos, precisamos corrigi-los. Isto inclui o uso da “vara” de Provérbios. Esta não é uma licença para excessos e abusos, e os abusos não são desculpas para deixar de castigar um filho desobediente, quando a vara é um dos meios mais eficazes de correção. Muitos pais são controlados por seus filhos ao invés de mantê-los sob controle. E, mesmo quando nossos filhos estiverem crescidos, ainda seremos responsáveis por tratar biblicamente de seus pecados.

Para nós, pais, o ponto de partida é abrir mão de nossos filhos. Nosso Senhor diz que devemos tomar nossa cruz, que devemos morrer para nós mesmos, que devemos perder nossa vida para ganhá-la. Precisamos fazer o mesmo com nossos filhos. Estou começando a entender porque o grande teste de fé de Abraão foi se dispor a sacrificar seu filho (Gênesis 22). Vejo porque Jacó, que não queria perder seu filho José, e que se recusou a perder seu filho Benjamim, teve que abrir mão deles para poder ser “salvo” da fome (ver Gn. 37-45). Devemos fazer o mesmo. Não devemos achar que nossos filhos são a nossa vida, mas nosso Deus e, especialmente, nosso Salvador, Jesus Cristo. Em comparação com nosso amor por Deus, devemos “detestar” nossos filhos. Só assim ficaremos livres para tratá-los de forma que seja para o seu bem e para o nosso, e para a glória de Deus.

Pode acontecer dos filhos terem que disciplinar seu pai ou sua mãe. Como igreja, temos a dolorosa experiência de exercer a disciplina sobre o pecador renitente (ver Mateus 18:15-20). Quando aquele que está sob disciplina é um pai (ou mãe), há implicações e obrigações para os filhos, especialmente para os filhos mais velhos. Um filho ter que corrigir o pai não é nem um pouco mais fácil do que um pai ter que corrigir o filho. Mas, quando temos conhecimento do pecado - e das Escrituras que prescrevem nossa atitude diante dele - somos forçados a agir. Se nos recusarmos, como Eli, então nossa falha também será pecado.

A disciplina de que falamos se aplica à “família” maior, a igreja. Quando um “irmão” peca (ver Mateus 18:15), é nossa obrigação repreendê-lo, com vistas a seu arrependimento. Muitos cristãos preferem, como Eli, fechar os olhos e esperar que o problema se vá. Ele não irá; só ficará maior. Nossa culpa só aumenta com o tempo que deixamos passar sem agir em obediência à Palavra de Deus.

Que Deus possa nos conceder a graça de aprendermos de Eli e seus filhos, em vez de aprendermos com eles. Graças a Deus que Aquele que nos ordena a instruir e corrigir nossos filhos tem nos dado o exemplo pela maneira que nos trata como Seus filhos. Agradeçamos a Deus que Aquele que requer de nós que eduquemos nossos filhos de maneira piedosa é Aquele que nos dá a graça para fazê-lo. A Deus seja a glória!

4. A Ascensão de Samuel e a Queda dos Filhos de Eli (I Samuel 3:1 - 4:22)

Introdução

Talvez você já tenha ouvido a história de um homem que passou seu primeiro dia na prisão. Ao anoitecer, os internos se reuniram no pátio. Enquanto um homem gritava um número, o restante caía na risada. Outro número era chamado, e mais risadas ainda. E assim foi a noite. Quando o homem retornou à sua cela, virou-se para seu companheiro e perguntou: “O que foi que aconteceu lá fora?” “Oh”, respondeu o outro “é assim que contamos piadas por aqui. Veja, nós já conhecemos todas as piadas, e já as ouvimos centenas de vezes. Assim, em vez de perder tempo contando-as de novo, nós colocamos números nelas. Quando alguém grita um número, todo mundo sabe qual é a piada, e todo mundo ri”.

Na noite seguinte, aconteceu a mesma coisa. Depois que alguns números foram chamados e todo mundo riu, o neófito pensou que poderia experimentar a brincadeira. Num momento de silêncio, ele gritou um número. Ninguém riu. O novo interno ficou confuso, mas ficou em silêncio até retornar à sua cela. “O que aconteceu?”, perguntou a seu companheiro de cela. “Por que ninguém riu?” “Bem!”, disse o outro, “Sabe como é... algumas pessoas podem dizer, outras não.”

Quando chegamos à história do chamado de Samuel em I Samuel 3, sinto-me quase como se pudesse gritar um número:

Um - Noé e a arca

Dois - Moisés no cestinho no Rio Nilo

Três - Davi e Golias

Quatro - Jonas e o grande peixe

Cinco - a travessia do Mar Vermelho

Seis - Daniel na cova dos leões

Sete - o chamado de Samuel

Todos nós pensamos que conhecemos muito bem a história do chamado de Samuel. Já a ouvimos, ou contamos, muitas vezes. Tudo o que preciso fazer é gritar um número, e esta lição estará pronta. Talvez não devamos ser tão apressados, pois podemos apenas pensar que a conhecemos muito bem. Nossa lição focaliza algumas dimensões um tanto incomuns deste acontecimento, as quais podem ser a chave para o entendimento do significado e da mensagem do texto.

Vemos em I Samuel 3 o relato da ascensão de Samuel à posição de profeta, um fato reconhecido e aceito por todos os israelitas. No capítulo 4, chegamos à narrativa da derrota de Israel e da morte de Eli, seus dois filhos e sua nora. Nos capítulos 2 e 3, Deus anuncia por meio de profecia o juízo sobre Eli e sua casa. Este juízo ocorre no capítulo 4. No capítulo 3, vemos as mãos de Deus em ação, preparando Samuel para um importante papel na liderança de Israel, e no capítulo 4, vemos o afastamento de Eli e seus filhos, a fim de que Samuel assuma a liderança para a qual Deus o preparou.

O Chamado de Samuel
(3:1-14)

“O jovem Samuel servia ao SENHOR, perante Eli. Naqueles dias, a palavra do SENHOR era mui rara; as visões não eram freqüentes. Certo dia, estando deitado no lugar costumado o sacerdote Eli, cujos olhos já começavam a escurecer-se, a ponto de não poder ver, e tendo-se deitado também Samuel, no templo do SENHOR, em que estava a arca, antes que a lâmpada de Deus se apagasse, o SENHOR chamou o menino: Samuel, Samuel! Este respondeu: Eis-me aqui! Correu a Eli e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Mas ele disse: Não te chamei; torna a deitar-te. Ele se foi e se deitou. Tornou o SENHOR a chamar: Samuel! Este se levantou, foi a Eli e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Mas ele disse: Não te chamei, meu filho, torna a deitar-te. Porém Samuel ainda não conhecia o SENHOR, e ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do SENHOR. O SENHOR, pois, tornou a chamar a Samuel, terceira vez, e ele se levantou, e foi a Eli, e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Então, entendeu Eli que era o SENHOR quem chamava o jovem. Por isso, Eli disse a Samuel: Vai deitar-te; se alguém te chamar, dirás: Fala, SENHOR, porque o teu servo ouve. E foi Samuel para o seu lugar e se deitou. Então, veio o SENHOR, e ali esteve, e chamou como das outras vezes: Samuel, Samuel! Este respondeu: Fala, porque o teu servo ouve. Disse o SENHOR a Samuel: Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos. Naquele dia, suscitarei contra Eli tudo quanto tenho falado com respeito à sua casa; começarei e o cumprirei. Porque já lhe disse que julgarei a sua casa para sempre, pela iniqüidade que ele bem conhecia, porque seus filhos se fizeram execráveis, e ele os não repreendeu. Portanto, jurei à casa de Eli que nunca lhe será expiada a iniqüidade, nem com sacrifício, nem com oferta de manjares.”

O verso um se refere a Samuel como “jovem”, um termo de uso bastante flexível, podendo se referir a um recém nascido ou a um garoto. Aqui em nosso texto, entendo que se refira a Samuel como um garoto de uns 12 anos de idade. Parece que muitos anos se passaram desde o final do capítulo 2 e que o capítulo 3 encontra Samuel em sua adolescência.

O escritor nos informa que “Naqueles dias, a palavra do SENHOR era mui rara; as visões não eram freqüentes” (verso 1). Naquela época, os homens não escutavam a Deus e Deus não falava com muita freqüência. Este “silêncio” quase sempre era uma forma de juízo divino e, se não fosse quebrado, significava a ruína de Israel (ver I Sam. 28; Sl. 74:9; Is. 29:9-14; Mq. 3:6-7; também Pv. 29:18). Está escrito que a profecia era rara para que vejamos o chamado de Samuel como o fim do silêncio de Deus (ver I Sam. 3:19-21).

Os detalhes fornecidos nos versos 2, 3 e 7 nos ajudam a entender o contexto dos acontecimentos do capítulo 3. Samuel está deitado no lugar de costume no tabernáculo, não muito longe da Arca da Aliança, que fica dentro do Santo dos Santos. Eli dorme em outro lugar, não muito distante, para que Samuel possa ouvi-lo quando ele chamar. Como o autor nos informa, os olhos de Eli estão bem ruins, de modo que sua visão já está bastante afetada (ver também 4:15). Devido à sua idade, peso e dificuldades visuais, Eli precisa do auxílio de um jovem como Samuel. Samuel pode levar-lhe água ou prestar-lhe outros serviços. Nada mais natural para Samuel do que presumir que um chamado tarde da noite venha de seu mestre, Eli.

Pela afirmação do autor no verso 3, sabemos que o chamado de Samuel acontece de madrugada, pois ele nos diz que “antes que a lâmpada de Deus se apagasse.” A lâmpada é o candelabro de ouro, com suas sete lâmpadas que devem “ficar continuamente acesas” (Ex. 27:20-21). Não quer dizer que elas fiquem acesas 24 horas por dia, mas que de noite estão sempre acesas. As palavras de II Crônicas 13:11 deixam isto bem claro:

“Cada dia, de manhã e à tarde, oferecem holocaustos e queimam incenso aromático, dispondo os pães da proposição sobre a mesa puríssima e o candeeiro de ouro e as suas lâmpadas para se acenderem cada tarde, porque nós guardamos o preceito do SENHOR, nosso Deus; porém vós o deixastes.”

De dia não é necessário que a lâmpada fique acesa; no entanto, o óleo é preparado durante o dia para que as lâmpadas sejam acesas antes de escurecer. Elas ficarão acesas à noite toda e serão apagadas ao amanhecer. Uma vez que a lâmpada de Deus não foi apagada, sabemos que Deus chama Samuel quando ainda está escuro, de madrugada.

Como os filhos de Eli, Samuel não conhece o Senhor (compare I Sam. 2:12 com 3:7). A diferença entre eles é que Samuel ainda não conhece o Senhor. É óbvio que os filhos de Eli não conheciam a Deus, e nunca O conheceriam. É importante notar, no entanto, que Samuel ainda não é salvo na época de seu chamado. Ele, como Saulo (Paulo) no Novo Testamento (ver Atos 9), é salvo e chamado durante seu encontro com Deus.

Nas duas primeiras vezes em que é chamado por Deus, o jovem Samuel presume que esteja ouvindo a voz de Eli, seu mestre. Faz sentido, principalmente se Eli de vez em quando pedir a ajuda de Samuel durante a noite. Somente no terceiro chamado Eli, finalmente, compreende a situação e percebe que Deus está chamando Samuel para lhe revelar Sua Palavra. Quando Deus o chama novamente, Samuel responde de acordo com as instruções de Eli. Uma parte dessa primeira revelação (se não toda ela) está registrada nos versos 11-14.

Deus anuncia a Samuel que o que Ele está prestes a fazer fará tinir os ouvidos daqueles que ouvirem as novas, ambos os ouvidos! Isto não é nenhum exagero. Quando Eli ouve, ele desmaia, resultando na sua morte (ver 4:18). A mensagem dirigida a Eli parece ser pessoal. É mais ou menos como a profecia revelada por Deus em 2:27-36, exceto que este profeta é identificado. Na verdade, o profeta será o substituto de Eli na função de profeta, sacerdote e juiz. A profecia do capítulo 2 é mais distante, devendo ter sido entregue muitos anos antes da derrota de Israel descrita no capítulo 4. A profecia dada por Samuel parece falar da derrota de Israel e da morte dos filhos de Eli como um acontecimento iminente.

A mensagem entregue a Samuel se concentra mais no pecado de Eli do que nos pecados de seus filhos. Mais especificamente, Deus revela que está julgando Eli e sua casa porque Eli conhece os pecados de seus filhos e nada faz para impedi-los. Em termos contemporâneos, Eli é um “facilitador”. Ele facilita o comportamento pecaminoso de seus filhos em vez de resistir e se opor a ele.

Fico desapontado com a tradução do verso 13 da versão NASB:

“Pois lhe digo que estou prestes a julgar sua casa pela iniqüidade que ele bem sabe, pois seus filhos trouxeram maldição sobre si mesmos e ele não os repreendeu.”

Parece claro que Eli realmente admoesta seus filhos, conforme lemos em 2:22-25. Embora a palavra “repreensão” esteja ausente, este é o sentido de suas palavras. Não creio que Deus julgue Eli por deixar de repreender seus filhos, mas por deixar de ir além de uma simples repreensão verbal quando se recusam a escutá-lo.

O contexto certamente levanta questões quanto à palavra “repreender” em 3:13, e um estudo de concordância mostra que estas questões merecem consideração. O termo usado é digno de nota. Em nenhum outro lugar do Velho Testamento (na versão NASB) é traduzido por “repreender” e aqui não deveria ter sido interpretado assim. Curiosamente, é a mesma palavra encontrada no verso 2 do mesmo capítulo (3) com referência à deficiência visual de Eli. É usado com relação à visão de Moisés, que é boa (Dt. 34:7), e à visão enfraquecida de Isaque (Gn. 27:1) e de Jó (17:7). O termo tem o sentido normal de enfraquecimento, escurecimento ou debilidade. É o termo usado em Isaías 42:3 para o pavio queimado, que o Senhor não extinguirá, e para o espírito do Messias, que não será abatido.

Como, então, os tradutores chegaram ao termo “repreender”? Receio que tenham sido influenciados demais pela tradução da LXX (a tradução grega do Antigo Testamento Hebraico). Os tradutores da Septuaginta (LXX) optaram por traduzir o termo hebraico de nosso texto com a palavra grega noutheo, a palavra que Jay Adams emprega para caracterizar seu método de aconselhamento, que ele chama de aconselhamento nouthético. Noutheo significa admoestação ou repreensão. Este, no entanto, não parece ser o sentido principal do termo hebraico ou do significado exigido pelo contexto.

Creio que as melhores traduções sejam as da Versão King James, Nova Versão King James, NVI (principalmente), Versão Padrão Americana, Versão Revista, Nova Versão Revista e outras; todas as que empregam o termo “refrear”. Em nosso texto, é como se o autor fizesse um jogo de palavras. Os olhos de Eli estão obscurecidos; mal podem enxergar. Ele não vê com clareza a conduta de seus filhos. Usando a analogia da luz, os pecados de seus filhos são como um farol alto. Talvez ele não possa apagar a “luz” de seus pecados, mas ele pode diminuir seu efeito. Ele pode fazer algumas restrições como, por exemplo, tirá-los do sacerdócio. Ele pode criar-lhes dificuldades para pecar. Em vez disso, Eli facilita seus pecados, e é por isto que Deus o trata, e a toda a sua casa, com tanta severidade.

O verso 14 demonstra que o pecado da casa de Eli está agora além do arrependimento; o juízo de Deus é iminente. Não há nenhum sacrifício ou expiação que endireite a situação, só o juízo. Em termos simples, Eli e seus filhos fizeram “um caminho sem volta”. Eles se recusam a se arrepender e o juízo está próximo. E isto porque os pecados de Eli e seus filhos são cometidos com “arrogância”; pecados da soberba.

A Hesitação de Samuel e a Persistência de Eli: A Profecia é Proferida
(I Samuel 3:15-18)

“Ficou Samuel deitado até pela manhã e, então, abriu as portas da Casa do SENHOR; porém temia relatar a visão a Eli. Chamou Eli a Samuel e disse: Samuel, meu filho! Ele respondeu: Eis-me aqui! Então, ele disse: Que é que o SENHOR te falou? Peço-te que mo não encubras; assim Deus te faça o que bem lhe aprouver se me encobrires alguma coisa de tudo o que te falou. Então, Samuel lhe referiu tudo e nada lhe encobriu. E disse Eli: É o SENHOR; faça o que bem lhe aprouver.”

Quando amanhece, Samuel parece evitar Eli. Ele cuida das coisas rotineiras como sempre faz, como se nada tivesse acontecido. Eli sabe que tem alguma coisa errada. Sabe que Deus chamou Samuel três vezes durante a noite. Sabe que Deus deve ter-lhe revelado alguma coisa. Ele não sabe o que é, embora certamente tenha seus temores. A última mensagem recebida de um profeta fora um prenúncio. Portanto, ele pressiona Samuel para que lhe diga tudo o que Deus lhe disse. Eli não deixa que Samuel se retraia. Por isso, relutantemente, Samuel lhe conta tudo.

O que é mais perturbador, pelo menos para mim, é a reação de Eli à profecia. Ele é informado de que o juízo está próximo, e o tempo pelo menos, não pode ser parado. O juízo de Deus não pode ser evitado, mas Eli pode, pelo menos, se arrepender de seus pecados de negligência. Em vez disto, ele diz palavras que têm um tom religioso e parecem ser uma evidência de sua submissão à soberana vontade de Deus, mas que, na verdade, são expressão de seu desejo de continuar em pecado. O que lemos não é uma expressão de fé na soberania de Deus, mas uma expressão de fatalismo dito em termos religiosos.

A Confirmação de Samuel Como Profeta de Deus
(3:19-21)

Crescia Samuel, e o SENHOR era com ele, e nenhuma de todas as suas palavras deixou cair em terra. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, conheceu que Samuel estava confirmado como profeta do SENHOR. Continuou o SENHOR a aparecer em Siló, enquanto por sua palavra o SENHOR se manifestava ali a Samuel.”

Creio que o primeiro encontro de Samuel com Deus seja sua experiência de conversão, e também seu chamado como profeta. Conforme mencionado anteriormente, esta experiência é bem parecida com a de Paulo no caminho de Damasco (ver Atos 9). Assim sendo, o autor nos informa que este encontro, e o conseqüente recebimento da palavra de Deus, é o primeiro de muitos. O verso 21 fala especificamente da segunda aparição de Deus a Samuel em Siló, e a conclusão é que haverá outras. É aqui, na primeira aparição de Deus a Samuel, que ele se torna não apenas crente (nas palavras do Autor, ele veio a conhecer o Senhor), mas também profeta. Logo ele também se tornará sacerdote e juiz.

A maneira de um verdadeiro profeta ser reconhecido está descrita em Dt. 13:1-5 e 18:14-22. Um verdadeiro profeta fala de forma que exorte os homens a seguirem a Deus, a obedecê-lO. Além disso, um verdadeiro profeta é alguém cujas palavras acontecem. Nosso autor diz, literalmente, que Deus não deixou que nenhuma das palavras de Samuel “caísse em terra” (verso 19). Tudo o que Samuel diz realmente acontece. E todos os israelitas percebem que a mão de Deus está sobre ele e que ele fala a palavra do Senhor. Desde Dã, no extremo norte do país, até Berseba, no extremo sul, todo o Israel reconhece Samuel como profeta de Deus. O silêncio foi quebrado.

A Derrota de Israel e a Morte dos Filhos de Eli
(4:1-11)

Veio a palavra de Samuel a todo o Israel. Israel saiu à peleja contra os filisteus e se acampou junto a Ebenézer; e os filisteus se acamparam junto a Afeca. Dispuseram-se os filisteus em ordem de batalha, para sair de encontro a Israel; e, travada a peleja, Israel foi derrotado pelos filisteus; e estes mataram, no campo aberto, cerca de quatro mil homens. Voltando o povo ao arraial, disseram os anciãos de Israel: Por que nos feriu o SENHOR, hoje, diante dos filisteus? Tragamos de Siló a arca da Aliança do SENHOR, para que venha no meio de nós e nos livre das mãos de nossos inimigos. Mandou, pois, o povo trazer de Siló a arca do SENHOR dos Exércitos, entronizado entre os querubins; os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, estavam ali com a arca da Aliança de Deus. Sucedeu que, vindo a arca da Aliança do SENHOR ao arraial, rompeu todo o Israel em grandes brados, e ressoou a terra. Ouvindo os filisteus a voz do júbilo, disseram: Que voz de grande júbilo é esta no arraial dos hebreus? Então, souberam que a arca do SENHOR era vinda ao arraial. E se atemorizaram os filisteus e disseram: Os deuses vieram ao arraial. E diziam mais: Ai de nós! Que tal jamais sucedeu antes. Ai de nós! Quem nos livrará das mãos destes grandiosos deuses? São os deuses que feriram aos egípcios com toda sorte de pragas no deserto. Sede fortes, ó filisteus! Portai-vos varonilmente, para que não venhais a ser escravos dos hebreus, como eles serviram a vós outros! Portai-vos varonilmente e pelejai! Então, pelejaram os filisteus; Israel foi derrotado, e cada um fugiu para a sua tenda; foi grande a derrota, pois foram mortos de Israel trinta mil homens de pé. Foi tomada a arca de Deus, e mortos os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias.”

Os israelitas são dominados pelos filisteus há tanto tempo que os filisteus os consideram como seus escravos (4:9). Por alguma razão, irrompe uma batalha entre eles, e os israelitas são duramente abatidos. Quando a poeira se assenta, sabe-se que 4.000 israelitas tinham morrido (verso 2). Quando os israelitas retornam ao arraial, não conseguem entender como Deus permitiu que sofressem tal derrota.

Sem jejum e oração, sem consultar a Deus, os israelitas decidem fazer o que Dale Ralph Davis chama de “Teologia do Pé de Coelho”. A Arca não é vista como símbolo da presença de Deus, mas como uma lâmpada mágica, que eles só precisam esfregar direito para invocar o auxílio de Deus. A Arca é um bom amuleto, para que, onde quer que eles a levem, sejam abençoados. “É claro”, eles pensam, “nós não levamos a Arca conosco! Amanhã a levaremos para a batalha e, com certeza, venceremos. Certamente Deus será conosco, pois Sua Arca está conosco.”

O tiro acaba saindo pela culatra. A princípio, parece que não, mas em retrospectiva é um desastre gigantesco do ponto de vista daqueles que achavam que a Arca lhes asseguraria a vitória. Quando a Arca é trazida da tenda para diante dos soldados, uma grande algazarra ecoa do arraial israelita. É como uma imensa competição entre torcidas antes de um jogo de futebol americano. Os guerreiros israelitas estão realmente empolgados. Eles não podem perder. Deus estará com eles.

Os soldados filisteus ouvem o barulho que vem do arraial israelita e se perguntam o que teria causado tal grito de triunfo. Aí, então, ficam sabendo que a Arca foi trazida ao arraial. Eles, como os israelitas, acham que a Arca seja capaz de alguma magia. Os filisteus relembram a derrota dos egípcios, quando Deus liderou os israelitas contra eles. Eles se recordam das vitórias dadas por Deus aos israelitas onde, sempre que lutavam contra seus inimigos, levavam a Arca junto com eles. Agora eles temem que a presença da Arca à frente do exército israelita dê a vitória a Israel. Os filisteus concluem que podem até morrer, mas pelo menos morrerão como homens. E assim, em vez de se darem por vencidos, eles têm motivos para lutar até a morte, e para morrer como heróis. O resultado é que os filisteus ficam muitos mais motivados a lutar do que os israelitas e, uma vez mais, eles os derrotam - só que, desta vez, 30.000 israelitas são mortos. Entre os mortos estão Hofni e Finéias, os dois filhos de Eli, que são assassinados enquanto a Arca de Deus é capturada como troféu de guerra.

Os israelitas tolamente supõem que levar a Arca de Deus para a batalha seja sua garantia de sucesso. Nos desígnios de Deus, levar a Arca com eles é um meio ordenado por Ele para cumprimento das palavras ditas pelo profeta sem nome. Hofni e Finéias acompanham a Arca na guerra e, quando os israelitas são derrotados e a Arca é tomada, os dois filhos de Eli morrem no mesmo dia (ver 2:34).

A Morte de Eli e de Sua Nora
(4:12-22)

Em parte, a Palavra do Senhor é cumprida; no entanto, há mais juízo divino chegando neste dia de infâmia. Eli está sentado próximo à estrada com o coração trêmulo enquanto espera ansiosamente notícias da batalha. Ele deve sentir que este é o dia do juízo. A Arca de Deus saiu de Siló, assim como seus filhos, e Eli não está nenhum pouco confortável. Um certo benjamita escapa da morte e foge da cena da batalha para Siló, com as roupas rasgadas e pó na cabeça. Este é um sinal de pesar e derrota que Eli não pode ver, pois sua visão já quase se foi. O resto da cidade começa a gritar enquanto a notícia da derrota circula rapidamente.

Mesmo sem poder ver, Eli pode ouvir, e o que ele ouve o deixa assustado. É como se seus ouvidos estivessem a ponto de tinir (ver 3:11). Ele pergunta o que significa aquele alvoroço, e o homem que escapou se apressa em lhe dar um resumo das notícias. Não há “boas notícias” e “más notícias” são só “más notícias” - Israel foi derrotado pelos filisteus, os filhos de Eli foram mortos e a Arca de Deus foi tomada. As notícias são maiores do que o corpo de 98 anos de Eli pode suportar. Ele sofre um colapso, caindo da cadeira de tal forma que quebra o pescoço. Eli está morto, junto com seus filhos, e tudo no mesmo dia. Seus quarenta anos de serviço como juiz em Israel terminaram.

A morte ainda não deixou a casa de Eli. A esposa de seu filho, Finéias, está grávida, e as notícias da trágica derrota de Israel, a perda da Arca e a morte de Eli e seu marido fazem com que ela entre em trabalho de parto. Ao dar à luz, as coisas não vão bem. Embora as mulheres que estão com ela tentem confortá-la, ela recusa seu auxílio. Quando fica sabendo que seu filho será um menino, ela o chama de Icabode, nome que significa “sem glória”, pois a Arca de Deus foi tomada e seu marido e seu sogro foram mortos. A nora de Eli parece ser mais perspicaz do que seu marido. Para ela, a captura de Arca significa a retirada da glória de Deus.

Na verdade, acho que ela estava errada. Pelo que entendo do Antigo Testamento, a glória de Deus deixara o tabernáculo muito tempo antes. Considere estas palavras de Êxodo, que descrevem a chegada da glória de Deus ao tabernáculo:

“Então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo. Quando a nuvem se levantava de sobre o tabernáculo, os filhos de Israel caminhavam avante, em todas as suas jornadas; se a nuvem, porém, não se levantava, não caminhavam, até ao dia em que ela se levantava. De dia, a nuvem do SENHOR repousava sobre o tabernáculo, e, de noite, havia fogo nela, à vista de toda a casa de Israel, em todas as suas jornadas.” (Êxodo 40:34-38)

Deus prometeu que se encontraria com os sacerdotes à entrada do tabernáculo:

“Este será o holocausto contínuo por vossas gerações, à porta da tenda da congregação, perante o SENHOR, onde vos encontrarei, para falar contigo ali. Ali, virei aos filhos de Israel, para que, por minha glória, sejam santificados, e consagrarei a tenda da congregação e o altar; também santificarei Arão e seus filhos, para que me oficiem como sacerdotes. E habitarei no meio dos filhos de Israel e serei o seu Deus. E saberão que eu sou o SENHOR, seu Deus, que os tirou da terra do Egito, para habitar no meio deles; eu sou o SENHOR, seu Deus.” (Êxodo 29:42-46)

Em algum lugar do passado, a glória de Deus deixou o tabernáculo. Esta partida parece não ser tão clara e espetacular quanto foi sua chegada, como descrito acima. Samuel vive no tabernáculo. Ele dorme a poucos metros da Arca de Deus (3:3), e mesmo assim ainda não conhece o Senhor e parece não ter nenhuma percepção especial de Sua presença ali. A aparição de Deus a Samuel é descrita como algo especial, algo excepcional. Deus vai até lá e fica chamando Samuel (3:10) de um jeito que realmente não é comum. Samuel não reconhece que é o Senhor; Eli tem que dizer a ele. Mesmo Eli não é rápido para compreender a aparição de Deus.

A Arca não é a manifestação de Deus a Israel ali no tabernáculo. Não é nenhum ídolo. É apenas um símbolo da presença de Deus com o Seu povo. Embora este símbolo fique sob a guarda dos sacerdotes em Siló, a glória de Deus há muito tempo já não está ali. A captura de Arca apenas simboliza aquilo que já era uma realidade, que era realidade há muito tempo. É certo que a glória deixou Siló, mas a glória de Deus jamais será encoberta por pecadores, como as próximas lições desta série irão nos mostrar.

Conclusão

Ao chegarmos ao trágico fim de uma era num passado distante de Israel (os 40 anos de serviço de Eli como juiz e sacerdote), vamos fazer uma pausa para refletir sobre as lições que este texto tem para nós, cristãos atuais.

Primeiro, vamos considerar o que o texto nos ensina sobre Deus. Como Deus é gracioso com Seu povo, Israel, sobretudo quando são pecadores e indignos. Com bondade, Deus repetidamente alerta Eli sobre o juízo que virá sobre sua casa. Os anos que se passam entre a primeira advertência e o cumprimento do juízo prometido por Deus são um tempo em que Eli poderia se arrepender e agir acertadamente com relação aos pecados de seus filhos. Deus é gracioso quando quebra o silêncio e, uma vez mais, revela-Se e a Sua Palavra à nação por meio de um profeta, Samuel.

Além de gracioso, Deus também é soberano (a graça imerecida deve, necessariamente, ser soberanamente concedida). Samuel não conhece a Deus, ele nem mesmo reconhece Sua voz. Samuel não está buscando a Deus e, mesmo assim, Deus aparece a ele, dando-Se a conhecer e chamando-o para ser profeta. Deus o confirma diante da nação, a fim de que Israel saiba que agora há um verdadeiro profeta de Deus. Deus soberanamente prepara o caminho para a saída de Eli e seus filhos, levantando o jovem Samuel, chamando-o e capacitando-o para ser profeta.

Deus odeia o pecado e julga os pecadores que não se arrependem. Estes dias são negros para a nação de Israel. O sacerdócio está corrompido. Aqueles que servem a Deus e a nação estão abusando de seu ofício e abusando das pessoas. Os sacerdotes são ladrões e roubadores. São corruptos e imorais. A Palavra de Deus mostra claramente a santidade de seu ofício e ministério e revela a maneira como os sacerdotes deveriam refletir e respeitar a santidade de Deus. Os filhos de Eli sacodem os punhos na face de Deus, mas finalmente chega o dia de seu juízo, exatamente como Deus disse. O dia do juízo de Deus pode demorar mais do que esperamos, mas certamente virá.

Deus raramente trabalha do modo que esperamos ou predizemos, para que nos maravilhemos diante da Sua sabedoria e poder em realizar Sua vontade e Sua Palavra. Quem teria pensado que o juízo de Deus seria trazido por meio dos inimigos de Deus e de Seu povo, os filisteus? Ao levar presunçosamente a Arca para a batalha, os israelitas mostram sua falta de reverência pela santidade de Deus e, ao levar a Arca para a guerra, a morte dos filhos de Eli no mesmo dia é realizada. Deus trabalha de modos estranhos e maravilhosos.

Segundo, vamos considerar o que esta passagem nos ensina sobre os homens. Da mesma forma que Deus não muda e, por isso, Ele é o mesmo “ontem, hoje e sempre”, os homens também não mudam. Nós não somos chamados para sermos profetas como Samuel, mas nosso chamado não é muito diferente do dele. Da mesma forma que ele não buscava a Deus e Deus o encontrou, assim é com os homens perdidos que não buscam a Deus hoje (ver Romanos 3:10-11). Os homens são salvos, não porque busquem a Deus, mas porque Deus busca e salva os pecadores perdidos. É Ele quem nos encontra, não nós que O encontramos. É Sua graça soberana que nos atrai a Ele. A Salvação, louvado seja Deus, é do Senhor, e Ele, somente Ele, é digno do nosso louvor.

Meu ponto principal é que Deus chama os homens hoje da mesma forma que chamou Samuel há tanto tempo atrás - e, essencialmente, pelas mesmas razões. Ele nos revelou Sua Palavra, não por meio de uma aparição pessoal ou visão, mas pela Sua Santa Palavra, a Bíblia. Nosso propósito, como o de Samuel, é levar a Palavra de Deus aos homens. Todos os cristãos são “chamados” para crer em Cristo e também para proclamar a Palavra de Cristo aos homens.

Não somos como os israelitas da época de Samuel, que dizemos que a “a palavra do Senhor é rara”. A verdade é que Deus nos últimos tempos nos falou plenamente na pessoa de Seu Filho e nas Escrituras que temos em mãos (ver Hebreus 1:1-4). O problema hoje não é que Deus não fala, mas que os homens não escutam. Não é à toa que encontramos repetidamente esta expressão no Novo Testamento “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (ver Mateus 11:15; 13:9, 43; Apocalipse 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22). Que cada um de nós possa dizer com sinceridade “Senhor, fala, que o teu servo ouve”. Este é o espírito daquele que “ouve” a Palavra do Senhor.

Enquanto medito em nosso texto, vejo três posturas que são típicas dos homens diante de Deus nos dias de hoje. A primeira é a dos israelitas. Eles querem Deus em seu meio, para “estar lá por eles” na hora da necessidade, para fazer as coisas que querem que Ele faça. Eles levam a Arca de Deus para a batalha, esperando que Ele lhes dê a vitória. Em vez de se considerarem como servos de Deus, eles consideram que Deus seja seu servo. O “deus” deles é para ser usado, não um Deus para ser honrado, glorificado, louvado, adorado e obedecido. Esta é a “teologia do pé de coelho” que Davis fala que é tão popular em nossos dias. Se fizermos tudo direitinho, dermos todos os passos certos, então Deus terá que fazer o que pedimos. Só que não é assim. Deus não está lá para fazer todas as nossas vontades. E quem tolamente supõe que esteja está com sérios problemas.

A segunda postura é a de Eli. Sua atitude é fatalista, resignada. Pelo menos em duas ocasiões Deus fala com Eli mediante um profeta, para adverti-lo do juízo que trará sobre ele e sua casa por ele não cuidar dos pecados de seus filhos. Eli não faz nada além de admoestar seus filhos. Mesmo agora, quando a morte de seus filhos é iminente, ele não faz absolutamente nada. Sua atitude tem um tom de religiosidade vazia “É o SENHOR; faça o que bem lhe aprouver” (3:18). Esta é simplesmente uma versão religiosa de “o que será, será”. Quando Davi é repreendido por seu pecado com Bate-Seba, ele é informado de que a criança morrerá (II Sam. 12:14). Isto não o impede de fazer alguma coisa sobre o que aconteceu. Ele suplica ao Senhor, prostrando-se em terra durante toda a noite, orando para que Deus poupe a criança (II Sam. 12:16-17). Eli parece simplesmente dar de ombros e dizer “É a vontade de Deus”.

Lamentavelmente, este fatalismo também é encontrado nos cristãos atuais. Em vez de encontrar na soberania de Deus incentivo para se esforçar em agradá-Lo, algumas pessoas usam o fatalismo como desculpa para não fazer nada. Quando preguei esta lição, defini o fatalismo como sendo “um Calvinismo cansado”. Depois mudei de idéia e decidi que fatalismo é um “Calvinismo aposentado” (NT: o autor faz um jogo com as palavras tired (cansado) e re-tired (aposentado). Um amigo e companheiro de Conselho, Don Grimm, chamou minha atenção para uma diferença crucial entre um verdadeiro Calvinista (aquele que crê que Deus esteja no controle e encontra nisto a base apropriada para todos os seus esforços religiosos) e um fatalista. Os caldeus do passado eram fatalistas. Eles estudavam os céus, crendo que a relação entre os corpos celestiais determinava o que aconteceria na terra. Os fatalistas não vêem a finalidade dos acontecimentos terrenos como vindo de um Deus soberano, pessoal, que deseja se relacionar com aqueles que confiam Nele. É o relacionamento pessoal de alguém com Deus, mediante a fé em Jesus Cristo, que o faz encontrar em Sua soberania a razão para lutar, em vez de uma desculpa para se sentar. A fé de Eli tinha se deteriorado a pouco mais do que o pensamento de um fatalista.

Finalmente, há a postura de Samuel. Samuel nada faz para que Deus apareça ou revele Sua palavra em profecia. Ele simplesmente está cuidando de seus afazeres diários. Não há nada de romântico ou “espiritual” em tirar o pó e limpar a mobília do tabernáculo, lavar o chão ou servir um homem quase cego e quase morto (Eli). No entanto, no decurso de suas tarefas, Deus vem a Samuel e Se revela a ele. Muitas pessoas querem fazer algo espetacular (como levar uma Arca para a guerra) para obter as bênçãos e o poder de Deus. Samuel nos ensina que esta não é a regra. Vamos cuidar de nossas vidas, fazendo fielmente o trabalho que Deus nos deu, deixando as intervenções espetaculares e os grandes sucessos para Deus. Quando for o tempo Dele as coisas acontecerão, não por aquilo que fazemos, mas porque Deus sempre mantém Suas promessas.

5. As Mãos de Dagom e a Mão de Deus (I Samuel 5:1-7:17)

“Descobertas Arqueológicas”

Introdução

Há alguns anos atrás perguntaram a um programador de computadores amigo meu, como ia seu emprego. Radiante, ele respondeu que seu emprego era o mais divertido que já tivera. A coisa mais espantosa para ele era que alguém o remunerasse para ter tanta diversão. Sinto-me da mesma maneira ao preparar esta lição. Devo confessar que meu trabalho nem sempre é assim; algumas partes são realmente muito desagradáveis. No entanto, ensinar as Escrituras é uma das partes boas, e pregar e ensinar sobre este texto tem sido realmente uma alegria.

Visão Geral e Breve Revisão

Pode parecer aos israelitas e filisteus que Deus seja refém dos inimigos de Israel. Israel foi derrotado na primeira batalha, sofrendo uma perda de aproximadamente 4.000 vidas (I Samuel 4:12). Os israelitas se perguntam como seu Deus pôde permitir tal derrota, concluindo que foi por não terem levado a Arca da Aliança para a batalha junto com eles. Como um enorme amuleto da sorte, eles crêem que a presença da Arca fará a diferença. Cheios de confiança, eles iniciam o combate. Cheios de medo, os filisteus se levantam para o desafio, temendo que isto signifique sua morte ou derrota. Em vez disto, os israelitas sofrem uma derrota ainda maior. Nosso texto nos conta que 30.000 soldados são mortos, junto com os dois sacerdotes, Hofni e Finéias. Quando Eli fica sabendo que seus filhos estão mortos e que a Arca foi capturada, ele cai da cadeira, quebrando o pescoço e morrendo na queda. Sua morte é seguida pela morte de sua nora que, ao dar à luz a seu filho, o chama de Icabode (foi-se a glória), em virtude da Arca ter sido capturada.

O texto desta mensagem prossegue a partir deste ponto. O texto permite que sejamos uma mosquinha no templo de Dagom, um dos deuses filisteus. No capítulo 5, Deus humilha Dagom (versos 1-5) e depois seus adoradores (versos 6-12). No capítulo 6, os filisteus devolvem a Arca para Israel, usando um artifício para descobrir se foi Deus ou o acaso que lhes trouxe tantos problemas. A irreverência e a desobediência com relação à Arca trazem o juízo divino sobre os israelitas, e sua primeira reação a este juízo é parecida com a dos filisteus. O capítulo 7 começa com a Arca sendo guardada, a fim de que todos saibam que o reavivamento espiritual de Israel e suas vitórias militares não são conseqüências de nenhum uso mágico da Arca, mas do arrependimento e da fé de Israel em Deus.

Somente do ponto de vista literário, a narrativa de I Samuel 5:7 já é fascinante. Além disto, as verdades teológicas e lições práticas são tantas, que faremos muito bem se prestarmos bastante atenção a este texto. Vamos deixar que o Espírito de Deus nos conduza à verdade, para o nosso bem e para a Sua glória.

Os Filisteus e Seu Deus Nas Mãos de Deus
(5:1:12)

Os filisteus tomaram a arca de Deus e a levaram de Ebenézer a Asdode. Tomaram os filisteus a arca de Deus e a meteram na casa de Dagom, junto a este. Levantando-se, porém, de madrugada os de Asdode, no dia seguinte, eis que estava caído Dagom com o rosto em terra, diante da arca do SENHOR; tomaram-no e tornaram a pô-lo no seu lugar. Levantando-se de madrugada no dia seguinte, pela manhã, eis que Dagom jazia caído de bruços diante da arca do SENHOR; a cabeça de Dagom e as duas mãos estavam cortadas sobre o limiar; dele ficara apenas o tronco. Por isso, os sacerdotes de Dagom e todos os que entram no seu templo não lhe pisam o limiar em Asdode, até ao dia de hoje. Porém a mão do SENHOR castigou duramente os de Asdode, e os assolou, e os feriu de tumores, tanto em Asdode como no seu território. Vendo os homens de Asdode que assim era, disseram: Não fique conosco a arca do Deus de Israel; pois a sua mão é dura sobre nós e sobre Dagom, nosso deus. Pelo que enviaram mensageiros, e congregaram a si todos os príncipes dos filisteus, e disseram: Que faremos da arca do Deus de Israel? Responderam: Seja levada a arca do Deus de Israel até Gate e, depois, de cidade em cidade. E a levaram até Gate. Depois de a terem levado, a mão do SENHOR foi contra aquela cidade, com mui grande terror; pois feriu os homens daquela cidade, desde o pequeno até ao grande; e lhes nasceram tumores. Então, enviaram a arca de Deus a Ecrom. Sucedeu, porém, que, em lá chegando, os ecronitas exclamaram, dizendo: Transportaram até nós a arca do Deus de Israel, para nos matarem, a nós e ao nosso povo. Então, enviaram mensageiros, e congregaram a todos os príncipes dos filisteus, e disseram: Devolvei a arca do Deus de Israel, e torne para o seu lugar, para que não mate nem a nós nem ao nosso povo. Porque havia terror de morte em toda a cidade, e a mão de Deus castigara duramente ali. Os homens que não morriam eram atingidos com os tumores; e o clamor da cidade subiu até ao céu.

Derrubando Dagom
(5:1-5)

Do ponto de vista meramente humano, parece que Deus seja refém dos filisteus. Da perspectiva dos israelitas, o sofrimento de Eli, a morte de sua nora e de outros israelitas ante a captura da Arca são compreensíveis. Mas o Deus de Israel não é um ídolo; Ele não precisa de homens para carregá-Lo. É Ele quem carrega Israel:

Com quem comparareis a Deus? Ou que coisa semelhante confrontareis com ele? O artífice funde a imagem, e o ourives a cobre de ouro e cadeias de prata forja para ela. O sacerdote idólatra escolhe madeira que não se corrompe e busca um artífice perito para assentar uma imagem esculpida que não oscile. Acaso, não sabeis? Porventura, não ouvis? Não vos tem sido anunciado desde o princípio? Ou não atentastes para os fundamentos da terra? Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra, cujos moradores são como gafanhotos; é ele quem estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para neles habitar; é ele quem reduz a nada os príncipes e torna em nulidade os juízes da terra. Mal foram plantados e semeados, mal se arraigou na terra o seu tronco, já se secam, quando um sopro passa por eles, e uma tempestade os leva como palha. A quem, pois, me comparareis para que eu lhe seja igual? — diz o Santo. Levantai ao alto os olhos e vede. Quem criou estas coisas? Aquele que faz sair o seu exército de estrelas, todas bem contadas, as quais ele chama pelo nome; por ser ele grande em força e forte em poder, nem uma só vem a faltar. (Isaías 40:18-26)

Bel se encurva, Nebo se abaixa; os ídolos são postos sobre os animais, sobre as bestas; as cargas que costumáveis levar são canseira para as bestas já cansadas. Esses deuses juntamente se abaixam e se encurvam, não podem salvar a carga; eles mesmos entram em cativeiro. Ouvi-me, ó casa de Jacó e todo o restante da casa de Israel; vós, a quem desde o nascimento carrego e levo nos braços desde o ventre materno. Até a vossa velhice, eu serei o mesmo e, ainda até às cãs, eu vos carregarei; já o tenho feito; levar-vos-ei, pois, carregar-vos-ei e vos salvarei. A quem me comparareis para que eu lhe seja igual? E que coisa semelhante confrontareis comigo? (Isaías 46: 1-5)

Até posso imaginar a alegria e a breve exultação dos filisteus por sua aparente vitória, ao levarem a Arca de Deus de Ebenézer para Asdode, uma de suas principais cidades ao norte. Para eles, derrotar os israelitas e capturar a Arca era como derrotar a Deus. Provavelmente, foi com grande cerimônia que eles levaram a Arca de Deus para a casa de um de seus principais deuses, Dagom. Eis ali, posta diante de Dagom em posição simbólica de submissão, a Arca de Deus. Agora Dagom prevalece sobre Deus da mesma forma que os filisteus prevaleceram sobre Israel - ou assim eles pensam. Eles vão cair do cavalo.

Que susto eles levam no início da manhã seguinte quando chegam para louvar e adorar seu deus, Dagom, pela vitória sobre Israel. Ali, em seu próprio templo, seu ídolo jaz prostrado no pó diante da Arca de Deus. Imagine só as desculpas e explicações dadas por eles em defesa de seu deus. Vai ver não estava na posição correta. Teria sido um terremoto? Seja qual for a razão, quando os sacerdotes filisteus deixam o templo naquele dia, seu deus está bem ancorado em sua casa. Não haverá mais nenhuma queda, com certeza.

Será que um grupo maior do que o de costume vai à casa de Dagom no dia seguinte? Será que os filisteus querem se convencer de que a manhã do dia anterior foi algum tipo de acaso? Será que não foram as forças da natureza (como dizem os inspetores de seguro)? Quando chegam no início da manhã seguinte, as coisas estão ainda piores do que no dia anterior. Dagom uma vez mais está caído diante de Deus, só que, desta vez, suas mãos e sua cabeça são separadas quando o ídolo bate no limiar da porta. Será que os filisteus ainda pensam que o Deus de Israel esteja em suas mãos? As mãos de seu deus estão no pó, assim como sua cabeça. A Arca de Deus pode estar nas mãos dos filisteus, mas o deus dos filisteus está nas mãos do único e verdadeiro Deus, o Deus de Israel.

Será que Dagom está nas mãos de um Deus irado? Creio que sim. A coisa mais espantosa nos versos 1-5 não é a prostração de Dagom diante da Arca de Deus, mas a reação dos sacerdotes filisteus a este segundo ato simbólico. A Arca não é um ídolo; a Arca não é o Deus de Israel. A Arca é um símbolo da presença de Deus em meio a Seu povo. Ela representa um papel importante no culto de Israel, mas não é um ídolo. Dagom é um ídolo que os homens esculpiram para ser seu deus. Este ídolo filisteu caiu duas vezes diante da Arca de Deus e se quebrou com o impacto, exigindo reparos. O deus dos filisteus cai diante da Arca de Deus e depois tem que ser devolvido à oficina para conserto. O que será que isto diz aos filisteus?

Será que um verdadeiro Deus tem que ser erguido do solo? Será que um verdadeiro Deus se quebra? Será que um verdadeiro Deus tem que ser colado novamente? Se estes sacerdotes pagãos pensarem direito, vão ver que a imagem de Dagom pertence ao ferro-velho ou ao depósito de lixo da cidade. Que tipo de deus tem que ser erguido e levado para o conserto porque está quebrado? Mesmo assim, estes sacerdotes não se humilham e confessam que o Deus de Israel é o único e verdadeiro Deus. Eles não deixam de adorar um pedaço de madeira, pedra ou metal. Pelo contrário, eles declaram que o limiar onde o ídolo se quebrou é santo. Daí em diante, o limiar se transforma num objeto sagrado. A destruição de seu deus no limiar da porta deveria ter lhes ensinado uma lição, mas eles não a aprenderam. Não é de admirar que algumas lições ainda mais difíceis estejam por vir.

Atormentados por Tumores
(5:6-12)

De certa forma, o autor já nos preparou para o que lemos nos versos 6-12 do capítulo 5:

Ouvindo os filisteus a voz do júbilo, disseram: Que voz de grande júbilo é esta no arraial dos hebreus? Então, souberam que a arca do SENHOR era vinda ao arraial. E se atemorizaram os filisteus e disseram: Os deuses vieram ao arraial. E diziam mais: Ai de nós! Que tal jamais sucedeu antes. Ai de nós! Quem nos livrará das mãos destes grandiosos deuses? São os deuses que feriram aos egípcios com toda sorte de pragas no deserto. Sede fortes, ó filisteus! Portai-vos varonilmente, para que não venhais a ser escravos dos hebreus, como eles serviram a vós outros! Portai-vos varonilmente e pelejai! (I Samuel 4:6-9)

Aqui no capítulo 4, uma vez mais os filisteus estão prestes a travar combate com os israelitas, quando ficam sabendo que estes trouxeram a Arca de Deus para levá-la ao campo de batalha. Ao ouvirem que a Arca está com os israelitas, os filisteus ficam muito assustados. Eles relembram o papel que a Arca desempenhou no passado de Israel, especialmente em relação à libertação do cativeiro egípcio na época do êxodo. Uma coisa é falarem sobre a derrota de faraó e seu exército, pois estão prestes a guerrear com os israelitas. Outra é falarem sobre como Deus feriu os egípcios com toda sorte de pragas no deserto. O que as pragas têm a ver com lutar com os israelitas? Os filisteus vêem a ligação, e o autor se certifica de que também a vejamos. O resultado final é que, aquilo que os filisteus temem no capítulo 4, recai sobre eles no capítulo 5.

Na casa de Dagom, Deus mostra aos filisteus que seu ídolo não tem nenhum poder em Suas mãos. Agora Deus começa a agir nos próprios filisteus. Eles pensam que venceram a Deus? As mãos de Dagom foram quebradas. A mão de Deus o fez. Agora, a mão de Deus pesa sobre os filisteus do lugar onde a Arca está - Asdode e seus arredores. É impossível ser categórico quanto à natureza exata da praga que Deus lança sobre os filisteus. Algumas traduções sugerem que o mal trazido sobre os habitantes de Asdode (e depois sobre os habitantes dos outros lugares para onde a Arca é enviada) seja hemorróida. Outros pensam que Deus tenha ferido os filisteus com alguma espécie de tumor. Não sabemos ao certo, e provavelmente não saberemos até a vinda do Senhor. Embora haja certa justiça poética em pensar nos filisteus sofrendo de hemorróidas, o mal parece ser bem mais grave que este. Parece que as pessoas não estão apenas sofrendo dor e irritação, mas estão morrendo como moscas. Alguns concluem que, uma vez que há tumores e muitas mortes de alguma forma relacionadas a roedores, esta deve ser uma manifestação de peste bubônica. Talvez tenham razão.

Seja qual for a praga, os filisteus a detestam e estão ansiosos por se livrarem dela. Seus líderes sabem que a praga nos habitantes de Asdode é devido à presença da Arca de Deus em seu meio. Eles sabem que é a mão de Deus pesando sobre eles. Deus os está julgando, e a seu deus, Dagom. Assim, eles concluem que a única maneira de se livrarem da praga é se livrando da Arca. Eles chegam a um consenso político: mandar a Arca para Gate, a próxima cidade grande dos filisteus. A conseqüência implícita é a cessação da praga em Asdode. O texto é claro em dizer que o envio da Arca para Gate é seguido pela erupção da praga na cidade e seus arredores. A praga segue a Arca.

Aí, então, eles resolvem mandar a Arca embora, desta vez para a cidade de Ecrom. O povo daquela cidade não é bobo. Nenhuma loja da Madison Avenue pode convencê-los de que o que eles precisam é da Arca do Deus de Israel - escoltada por uma praga mortal. Quando ficam sabendo que a Arca está a caminho, eles se recusam a aceitá-la. Isto me lembra uma das minhas amiguinhas que ama jogar Old Maid (jogo de carta equivalente ao Mico). Não posso lhe descrever o olhar angustiado que ela parece incapaz de disfarçar quando pega a Old Maid. O povo de Ecrom se sente muito mais angustiado por ter sido escolhido para receber a Arca de Deus. É óbvio que, se nenhuma cidade filistéia ficar com a Arca, ela terá que ser devolvida para o lugar de onde veio. Sem nenhum confronto militar, sem nenhuma negociação internacional, Israel recupera a Arca perdida sete meses antes.

Uma vez mais fica claro que os filisteus reconhecem que a praga que aflige várias cidades filistéias se deve à presença da Arca de Deus em seu meio. Eles sabem que a Arca significa problema, e que este problema é o julgamento de Deus sobre eles e seu deus Dagom. O que eles não fazem é rejeitar sua idolatria pagã e seu deus impotente. Nem confiar no Deus de Israel e O adorar. Eles simplesmente querem Deus fora de sua cidade.

Isto me lembra a reação do povo que vivia na cidade dos Gerasenos, descrita em Marcos 5. Quando Jesus cruza o Mar da Galiléia e expulsa o demônio de um temível e poderoso endemoninhado, de nome Legião, o povo daquele lugar fica aterrorizado. Eles pedem que Jesus deixe a cidade assim que possível. Eles não querem Alguém bom e poderoso entre eles. Ele é ameaçador demais. A Arca de Deus também é santa e perigosa demais, e eles só querem se livrar dela.

Colocando a Arca em Seu Lugar
(6:1-7:2)

Sete meses esteve a arca do SENHOR na terra dos filisteus. Estes chamaram os sacerdotes e os adivinhadores e lhes disseram: Que faremos da arca do SENHOR? Fazei-nos saber como a devolveremos para o seu lugar. Responderam eles: Quando enviardes a arca do Deus de Israel, não a envieis vazia, porém enviá-la-eis a seu Deus com uma oferta pela culpa; então, sereis curados e sabereis por que a sua mão se não tira de vós. Então, disseram: Qual será a oferta pela culpa que lhe havemos de apresentar? Responderam: Segundo o número dos príncipes dos filisteus, cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro, porquanto a praga é uma e a mesma sobre todos vós e sobre todos os vossos príncipes. Fazei umas imitações dos vossos tumores e dos vossos ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória ao Deus de Israel; porventura, aliviará a sua mão de cima de vós, e do vosso deus, e da vossa terra. Por que, pois, endureceríeis o coração, como os egípcios e Faraó endureceram o coração? Porventura, depois de os haverem tratado tão mal, não os deixaram ir, e eles não se foram? Agora, pois, fazei um carro novo, tomai duas vacas com crias, sobre as quais não se pôs ainda jugo, e atai-as ao carro; seus bezerros, levá-los-eis para casa. Então, tomai a arca do SENHOR, e ponde-a sobre o carro, e metei num cofre, ao seu lado, as figuras de ouro que lhe haveis de entregar como oferta pela culpa; e deixai-a ir. Reparai: se subir pelo caminho rumo do seu território a Bete-Semes, foi ele que nos fez este grande mal; e, se não, saberemos que não foi a sua mão que nos feriu; foi casual o que nos sucedeu. Assim fizeram aqueles homens, e tomaram duas vacas com crias, e as ataram ao carro, e os seus bezerros encerraram em casa. Puseram a arca do SENHOR sobre o carro, como também o cofre com os ratos de ouro e com as imitações dos tumores. As vacas se encaminharam diretamente para Bete-Semes e, andando e berrando, seguiam sempre por esse mesmo caminho, sem se desviarem nem para a direita nem para a esquerda; os príncipes dos filisteus foram atrás delas, até ao território de Bete-Semes. Andavam os de Bete-Semes fazendo a sega do trigo no vale e, levantando os olhos, viram a arca; e, vendo-a, se alegraram. O carro veio ao campo de Josué, o bete-semita, e parou ali, onde havia uma grande pedra; fenderam a madeira do carro e ofereceram as vacas ao SENHOR, em holocausto. Os levitas desceram a arca do SENHOR, como também o cofre que estava junto a ela, em que estavam as obras de ouro, e os puseram sobre a grande pedra. No mesmo dia, os homens de Bete-Semes ofereceram holocaustos e imolaram sacrifícios ao SENHOR. Viram aquilo os cinco príncipes dos filisteus e voltaram para Ecrom no mesmo dia. São estes, pois, os tumores de ouro que enviaram os filisteus ao SENHOR como oferta pela culpa: por Asdode, um; por Gaza, outro; por Asquelom, outro; por Gate, outro; por Ecrom, outro; como também os ratos de ouro, segundo o número de todas as cidades dos filisteus, pertencentes aos cinco príncipes, desde as cidades fortes até às aldeias campestres. A grande pedra, sobre a qual puseram a arca do SENHOR, está até ao dia de hoje no campo de Josué, o bete-semita. Feriu o SENHOR os homens de Bete-Semes, porque olharam para dentro da arca do SENHOR, sim, feriu deles setenta homens; então, o povo chorou, porquanto o SENHOR fizera tão grande morticínio entre eles. Então, disseram os homens de Bete-Semes: Quem poderia estar perante o SENHOR, este Deus santo? E para quem subirá desde nós? Enviaram, pois, mensageiros aos habitantes de Quiriate-Jearim, dizendo: Os filisteus devolveram a arca do SENHOR; descei, pois, e fazei-a subir para vós outros. Então, vieram os homens de Quiriate-Jearim e levaram a arca do SENHOR à casa de Abinadabe, no outeiro; e consagraram Eleazar, seu filho, para que guardasse a arca do SENHOR. Sucedeu que, desde aquele dia, a arca ficou em Quiriate-Jearim, e tantos dias se passaram, que chegaram a vinte anos; e toda a casa de Israel dirigia lamentações ao SENHOR.

Durante sete meses a Arca de Deus fica num aparente cativeiro. Durante sete meses os filisteus são afligidos pelo peso da mão de Deus. A única opção que resta agora é clara: a Arca deve ser devolvida a Israel. A única pergunta é Como? No capítulo 5, onde a Arca é considerada um problema político, o assunto é discutido pelos príncipes filisteus e ela é enviada de cidade em cidade, até que ninguém mais a queira. Agora, a Arca é um problema religioso, e os sacerdotes filisteus são questionados sobre a maneira de devolvê-la sem enfurecer ainda mais o Deus de Israel.

Os sacerdotes filisteus dão a seus príncipes instruções muito específicas quanto ao regresso da Arca. Estas instruções não são baseadas no conhecimento de Deus ou de Sua lei, mas fruto de sua própria teologia pagã. Eles recomendam que a Arca não seja enviada vazia. Ela deve ser acompanhada por uma oferta pela culpa. É interessante que a idéia de culpa seja levantada. Isto não parece ser devido a uma consciência pessoal ou coletiva de pecado. Antes parece se basear na suposição de que as pragas sejam uma manifestação do orgulho nacionalista de Deus e resultado de sua ira, devido à captura da Arca. O Deus de Israel precisa ser acalmado, mas, como? Os sacerdotes filisteus só conseguem pensar numa coisa: uma solução idólatra. Eles aconselham os príncipes a acalmar a Deus fazendo uma oferta pela culpa de ouro. Não é uma simples oferta de ouro como se fosse um suborno, mas cinco imagens de hemorróidas (ou tumores) e cinco de camundongos (ou ratos). Eles garantem que isto acalmará a Deus, resultando na cura dos filisteus. Se isto detiver a praga, eles terão certeza de que encontraram a explicação para a ira de Deus e seu sofrimento.

Em alguns aspectos, o conhecimento dos filisteus sobre a história de Israel e seu Deus é surpreendente. Eles estão bem informados a respeito do êxodo. Eles sabem que faraó e os egípcios endureceram o coração contra Deus, mesmo Ele tendo lançado diversas pragas sobre eles. Os filisteus não desejam cometer o mesmo erro. Por isso, sugerem que a Arca volte para Israel, junto com uma oferta pela culpa. Os egípcios erraram em não deixar que os israelitas fossem embora. Eles não errarão em não deixar que a Arca se vá.

Embora estejam ansiosos para se livrarem da Arca, ainda querem ser cautelosos. Eles estão dispostos a admitir que a Arca de Deus seja a causa de seu sofrimento. Eles deixarão a Arca ir como os egípcios deixaram Israel ir, mas não a enviarão sozinha. Eles bolam um plano que só funcionará se a Arca for a causa de seu sofrimento, e se Deus puder mudar o curso da natureza. Os sacerdotes aconselham os príncipes a colocarem a Arca, junto com a oferta, num carro de boi novo. O carro deve ser puxado por duas vacas leiteiras, que ainda amamentem seus bezerros. Os bezerros devem ficar presos longe de suas mães. As vacas devem, então, ser atreladas ao carro e deixadas livres para partir. Se elas seguirem o curso da natureza, voltarão para seus bezerros. Se as pragas forem de Deus, que deseja o regresso da Arca, então as vacas deixarão seus bezerros para trás, levando a Arca diretamente para Israel. Se as vacas levarem o carro e a Arca de volta aos israelitas, eles podem presumir que todos os seus problemas vêm de Deus e que fizeram a escolha certa deixando a Arca ir embora. Se não, poderão ficar com a Arca, certos de que todas as pragas são mera coincidência.

As vacas são atreladas ao carro e os bezerros presos longe de suas mães. A Arca e a oferta pela culpa são colocadas no carro e as vacas são liberadas. Elas vão direto pela estrada que leva a Bete-Semes em Israel, mugindo, sem se desviar para a direta ou para a esquerda. Os príncipes filisteus seguem à distância, até observarem o carro e sua carga irem direto para o território de Israel.

Antes de voltar nossa atenção à reação dos israelitas ao regresso da Arca, vamos fazer uma pausa para meditar sobre a oferta pela culpa que os filisteus fazem ao Deus de Israel. Como mencionado anteriormente, esta oferta é fruto da religião pagã dos filisteus e não uma prática da fé judaica, conforme prescrito na lei de Moisés. Na lei de Moisés, a oferta pela culpa era um sacrifício de sangue. Não há nenhum sangue envolvido na oferta dos filisteus. A razão para a oferta pela culpa é o pecado daquele que oferece o sacrifício a Deus. Não há nenhum reconhecimento de pecado pelos filisteus, só a idolatria dos instrumentos do juízo divino: ratos (camundongos) e hemorróidas (ou tumores). Os filisteus não percebem que sua oferta é uma ofensa ao Deus de Israel e não uma oferta que aplaque Sua ira. Há certa sabedoria humana nesta oferta pela culpa. Afinal, os ratos não são parte da praga e os tumores instrumentos da ira de Deus? Há cinco príncipes e cinco cidades principais, portanto, por que não cinco tumores de ouro e cinco roedores de ouro? Embora sua oferta seja lógica, ela não é bíblica. A suspensão da praga e a cura dos filisteus não são conseqüências de sua oferta pela culpa, mas dádivas da graça de Deus.

Os israelitas de Bete-Semes que testemunham o regresso da Arca ficam pasmos quando percebem que ela voltou a Israel. Aqueles que fazem a sega nos campos são os primeiros a vê-la, e os israelitas desse lugar, rápida e alegremente, oferecem sacrifício a Deus, usando a madeira do carro de boi para alimentar o fogo e as vacas para o sacrifício. É uma ocasião alegre e festiva, mas rapidamente o espírito dos adoradores israelitas se abate quando a praga irrompe entre os moradores da cidade. Algumas pessoas, com desobediência e irreverência, olham para dentro da Arca e boa parte dos habitantes do lugar é ferida de morte.

Os sobreviventes deste massacre ficam assustados e aterrorizados. Não sabem o que fazer. Por que Deus feriu de morte tantos adoradores israelitas? Se as pessoas morrem por razões como esta, como a Arca pode ficar entre eles? Quem é capaz de permanecer na presença do Deus Santo? E, para quem enviarão a Arca? Até parece um ardil 22. Os israelitas se encontram numa situação bastante parecida com a que foi enfrentada pelos filisteus, exceto pelo fato da Arca pertencer a Israel, não aos filisteus.

Os filisteus são alvo de uma praga enviada por Deus porque a Arca está entre eles. Por isso, procuram enviá-la de uma cidade para outra. Agora, de volta à Israel, os israelitas são alvo de um terrível mal enviado por Deus. Da mesma forma que os filisteus, os israelitas de Bete-Semes procuram enviar a Arca para outro lugar, para que o peso da mão de Deus seja retirado deles. A cidade de Quiriate-Jearim é a escolhida. Os homens daquela cidade chegam e levam a Arca de Deus para lá, colocando-a na casa de Abinadabe, aos cuidados de Eleazar, seu filho, que é especialmente consagrado para isso. Ali, a Arca de Deus ficará aproximadamente 20 anos, até que seja resgatada por Davi. Pelos próximos 20 anos, não haverá nenhum pé de coelho em que os israelitas possam depositar sua confiança. Eles terão que confiar no próprio Deus, assistido por Samuel, seu profeta, sacerdote e juiz.

Está escrito que todo o Israel se lamenta para o Senhor durante esses anos. Exatamente o quê isso significa? Será que este é o tipo de lamentação que o Senhor chama de bem-aventurança no Sermão do Monte? Lamentar é demonstrar pesar pela maneira como as coisas estão. Parece que todo o Israel lamenta o fato de, apesar de seu regresso a Israel, a Arca não ter nenhuma funcionalidade. Ela está, como se diz, fora de serviço. É mais ou menos como determinado dispositivo com uma função muito importante que está quebrado, que não pode ser utilizado. Parece uma grande tragédia; no entanto, o resto dos versículos do capítulo 7 parece indicar o contrário. Embora a Arca esteja fora de serviço e não possa ser levada para a guerra, o povo de Israel se arrepende de seus pecados, abandona seus ídolos, confia em Deus e encontra a vitória.

Dias Felizes Outra Vez, Com Samuel e Sem a Arca
(I Samuel 7:3-17)

Falou Samuel a toda a casa de Israel, dizendo: Se é de todo o vosso coração que voltais ao SENHOR, tirai dentre vós os deuses estranhos e os astarotes, e preparai o coração ao SENHOR, e servi a ele só, e ele vos livrará das mãos dos filisteus. Então, os filhos de Israel tiraram dentre si os baalins e os astarotes e serviram só ao SENHOR. Disse mais Samuel: Congregai todo o Israel em Mispa, e orarei por vós ao SENHOR. Congregaram-se em Mispa, tiraram água e a derramaram perante o SENHOR; jejuaram aquele dia e ali disseram: Pecamos contra o SENHOR. E Samuel julgou os filhos de Israel em Mispa. Quando, pois, os filisteus ouviram que os filhos de Israel estavam congregados em Mispa, subiram os príncipes dos filisteus contra Israel; o que ouvindo os filhos de Israel, tiveram medo dos filisteus. Então, disseram os filhos de Israel a Samuel: Não cesses de clamar ao SENHOR, nosso Deus, por nós, para que nos livre da mão dos filisteus. Tomou, pois, Samuel um cordeiro que ainda mamava e o sacrificou em holocausto ao SENHOR; clamou Samuel ao SENHOR por Israel, e o SENHOR lhe respondeu. Enquanto Samuel oferecia o holocausto, os filisteus chegaram à peleja contra Israel; mas trovejou o SENHOR aquele dia com grande estampido sobre os filisteus e os aterrou de tal modo, que foram derrotados diante dos filhos de Israel. Saindo de Mispa os homens de Israel, perseguiram os filisteus e os derrotaram até abaixo de Bete-Car. Tomou, então, Samuel uma pedra, e a pôs entre Mispa e Sem, e lhe chamou Ebenézer, e disse: Até aqui nos ajudou o SENHOR. Assim, os filisteus foram abatidos e nunca mais vieram ao território de Israel, porquanto foi a mão do SENHOR contra eles todos os dias de Samuel. As cidades que os filisteus haviam tomado a Israel foram-lhe restituídas, desde Ecrom até Gate; e até os territórios delas arrebatou Israel das mãos dos filisteus. E houve paz entre Israel e os amorreus. E julgou Samuel todos os dias de sua vida a Israel. De ano em ano, fazia uma volta, passando por Betel, Gilgal e Mispa; e julgava a Israel em todos esses lugares. Porém voltava a Ramá, porque sua casa estava ali, onde julgava a Israel e onde edificou um altar ao SENHOR.

Estranhamente, Samuel está ausente da narrativa dos capítulos 4 a 6. Seu nome não é mencionado desde o capítulo 4, verso 2, até o capítulo 7, verso 2. Parece que ele não está com a Arca quando ela é levada para a batalha contra os filisteus no capítulo 4. Ele não faz parte da humilhação dos filisteus nos capítulos 5 e 6. Mas ele é uma parte muito importante do reavivamento de Israel descrito no capítulo 7. As mesmas coisas que não acontecem em Israel quando a Arca está em Siló são as que acontecem sem o envolvimento da Arca no capítulo 7. A Arca não é o instrumento pelo qual Deus trabalha (como os israelitas erroneamente supunham); Ele trabalha por meio de Sua Palavra e da oração feita pelo profeta Samuel.

Deus leva embora a tábua de salvação de Israel, a Arca, e agora eles têm que procurar segurança em outro lugar. Samuel lhes diz onde procurar. Ele conclama a nação a se voltar para o Senhor de todo o coração. Eles irão demonstrar seu arrependimento abandonando todos os seus ídolos pagãos. (Por isso, vemos que a Arca realmente é um entre muitos ídolos para os israelitas - talvez o maior deles, mas apenas um ídolo). Eles se propõem a servir somente a Deus e esperar somente Nele pela libertação dos filisteus. Samuel, então, reúne todo Israel em Mispa, não muito longe de sua casa em Ramá, prometendo orar ao Senhor em favor da nação. O povo tira água e a derrama perante o Senhor. Uma vez que está escrito que eles também jejuam nesse dia, parece que a nação se abstém de comida ou água como sinal de seu arrependimento e sinceridade em buscar a Deus. Quando confessam seus pecados, Samuel ora por eles.

Aparentemente, Mispa era um lugar de adoração com vista para a área ao seu redor. Militarmente falando, era um local ideal para se defender na guerra. Os filisteus ainda não aprenderam a lição dada por Deus. Eles presumem que Israel tenha se reunido em Mispa para guerrear. Eles já tinham se saído vitoriosos sobre os israelitas antes e, por isso, presumem que serão bem sucedidos novamente. Os israelitas ficam amedrontados quando ouvem que os filisteus estão chegando. Eles não têm a Arca para levar com eles para a batalha (além disso, ela não funcionou da última vez que a usaram); portanto, tudo o que podem fazer é se lançar sobre o Senhor e confiar Nele. Eles terão que apelar para Ele na base da graça, não da mágica. Eles suplicam a Samuel, implorando que ele ore ao Senhor em seu favor, pedindo-Lhe que os livre dos filisteus que se aproximam.

Samuel oferece um holocausto completo ao Senhor em favor dos israelitas. Ele clama ao Senhor, suplicando-Lhe que os livre, e Deus atende sua oração. Samuel ainda está oferecendo o sacrifício, quando chegam os guerreiros filisteus. Os israelitas estão totalmente despreparados para este ataque, mas o Senhor parece produzir uma grande tempestade (ou, pelo menos, sons de trovão), que causa uma tremenda confusão entre os guerreiros filisteus e permite que os israelitas prevaleçam sobre eles. De Mispa, os israelitas perseguem os filisteus até Bete-Car, uma cidade cuja localização é desconhecida. Samuel, então, coloca uma pedra entre Mispa e Sem, chamando-a de Ebenézer, que significa pedra ou rocha de auxílio, um memorial de que esta batalha foi vencida com o auxílio do Senhor.

O resultado é o fim do domínio filisteu sobre Israel. Daí em diante, eles não invadem Israel novamente nos dias de Samuel, pois a mão do Senhor é com ele e contra eles. As cidades tomadas pelos filisteus são devolvidas a Israel. Também é estabelecida a paz entre os israelitas e os amorreus. O autor relaciona todas estas coisas diretamente ao governo de Samuel. Ele é sacerdote, profeta e juiz sobre todo Israel. Ele é uma espécie de juiz itinerante, que circula de Betel a Gilgal e a Mispa, julgando Israel em cada um destes lugares. Quando faz seu circuito, ele sempre retorna à sua casa em Ramá. Ali ele também julga Israel e constrói um altar ao Senhor.

Conclusão

A primeira coisa que me chama a atenção neste texto são as reversões. Israel não está servindo só a Deus, de todo o coração. Toda sorte de pecados está sendo praticada no mesmo lugar onde a Arca é mantida. Os sacerdotes são corruptos, vis e impenitentes. Israel sai para guerrear com os filisteus, levando a Arca para garantir a vitória, sendo miseravelmente derrotado e a Arca capturada e levada para Asdode em território filisteu. Ainda assim, no final da história, a Arca está de volta. Israel se arrepende de seus pecados, abandona seus ídolos e confia somente em Deus. Quando os filisteus atacam os israelitas que estão prestando culto a Deus, Deus os derrota, e o período de domínio filisteu termina. É importante ver claramente como ocorre esta reversão. O regresso da Arca, o arrependimento e reavivamento de Israel, e a vitória militar decisiva sobre os filisteus ocorrem em conseqüência da graça e do poder de Deus, não pelos méritos espirituais de Israel ou pelo uso mágico da Arca.

A segunda reversão é um pouco mais sutil, mas bastante perceptível quando refletimos sobre ela. Há uma clara mudança na intenção e na disposição de nosso texto do capítulo 5 ao capítulo 7. Pareceu-me por uns instantes perceber minha própria mudança de disposição enquanto trabalhava nele. No início da lição, no capítulo 5, estava bastante descontraído, gracejando enquanto lia a narrativa inspirada do autor sobre a humilhação de Deus à Dagom e seus adoradores filisteus. Há séculos é provável que os judeus que leiam esta narrativa da permanência da Arca por 7 meses em território filisteu morram de rir. Um judeu devoto, ao ler este relato, poderia pensar: Como os filisteus foram loucos. Como podem ser tão lerdos para entender que é a mão de Deus pesando sobre eles? Como podem ser tão loucos a ponto de tentar aplacar a ira de Deus justamente com uma oferta pela culpa de ratos e hemorróidas de ouro? E ainda imaginar a doidice de enviar a Arca de volta a Israel num carro de boi?

Se os filisteus são tão doidos, e isto poderia ser uma fonte de diversão para um judeu devoto, fico me perguntando como o olhar desse mesmo judeu deve mudar quando vê os israelitas começando a morrer aos montes, essencialmente pela mesma razão: irreverência pelas coisas santas de Deus e por desobediência às leis que proíbem exatamente as coisas que estão fazendo (tais como olhar para a Arca ou para dentro dela). Se ver os filisteus arrastando a Arca de uma cidade para outra diverte os leitores judeus, como será que eles reagem ao verem os israelitas de Bete-Semes tentando despachar a Arca para Quiriate-Jearim?

O fato é que o erro dos israelitas da época de Samuel é muito parecido com o erro dos filisteus. Tanto israelitas quanto filisteus tendem a ver a Arca com muita leviandade. Eles não têm nenhum respeito pela santidade de Deus e pelos objetos sagrados. Tanto uns quanto outros tendem a considerar a Arca como um ídolo. Eles procuram controlar a Deus, em vez que confiar Nele e obedecer a Seus mandamentos.

O erro de israelitas e filisteus parece muito antigo e longínquo. Como podemos, esclarecidos como somos, repetir os mesmos pecados? A resposta, em resumo, é Fácil. Vamos observar primeiramente os pecados dos israelitas. Deixe-me fazer algumas afirmações, pautadas na cultura dos tempos antigos que estamos considerando, e então pensar um pouco em suas versões atuais e em seus erros.

(1) O jeito de conquistar filisteus pagãos para a verdadeira fé israelita é convidá-los para o culto, minimizando qualquer elemento negativo e ofensivo (sem importar o quanto seja vital para a fé) e esforçando-se para que se sintam confortáveis e bem-vindos.

(2) Enquanto formos sinceros em nossa adoração, Deus não se importará com a forma que ela tome. Se nosso culto a Deus é diferente do culto prestado por Israel, é apenas porque Deus trabalha criando novas e excitantes formas de adorá-Lo.

(3) Sei que Deus disse em Sua Lei que as coisas sagradas do Tabernáculo deveriam ser manuseadas de certa forma e que somente pessoas escolhidas poderiam realizar determinadas funções, mas isto é politicamente incorreto. Todo mundo deveria ser igual, no sentido de que nenhuma função pode excluir alguns e incluir outros. Portanto, esqueça esse negócio de que só os levitas podem transportar a Arca, e deixe que qualquer um que se sinta em condições assuma o papel de levita no culto.

(4) Existe um jeito mágico de manipular a Deus, mantendo-O sob controle, a fim de que satisfaça nossas concupiscências e conceda nossos desejos pecaminosos. Este jeito é levar o símbolo da presença de Deus junto conosco, esperando que ele garanta nosso sucesso... Outro jeito, visto ao longo da história de Israel, é ver as leis e promessas de Deus como uma espécie de fórmula mágica: Se eu fizer isto, isto e isto, Deus vai fazer aquilo... Este é o tipo de pensamento deus constrangido e Deus não pode ser constrangido, embora certamente Ele possa e constrangerá aqueles que tentem fazê-lo.

Os filisteus erram em muitas coisas e devemos fazer uma pausa para considerar a natureza de seus erros. A coisa que mais me fascina é seu uso e abuso de métodos científicos. Nosso texto se empenha em nos informar sobre as coisas que fazem para testar suas experiências, a fim de terem certeza de que realmente é a mão de Deus que pesa sobre eles, causando a praga. Eles tentam manter a mente aberta quando Deus esparrama Dagom no chão, partindo-o em pedaços na segunda vez. Eles também querem ter certeza de que as pragas vêm da mão de Deus. Assim, há um meio cuidadosamente planejado para a Arca ser liberada de volta a Israel. Estas são antigas manifestações daquilo que chamamos de método científico.

Infelizmente, os filisteus parecem ser científicos, mas não querem ir aonde as evidências apontam. Mesmo quando tudo aponta para o Deus vivo e todo-poderoso de Israel, que está empenhado em cuidar de Seu povo, eles ainda preferem mandar Deus embora da cidade, continuando a servir a seu deus inanimado e despedaçado, Dagom. Eles o escoram, juntam seus pedaços e até santificam o limiar onde caiu, mas não abandonarão um ídolo morto para adorar e servir ao Deus vivo.

Às vezes ouço cristãos sendo criticados por não serem científicos, e também ouço cristãos criticando o método científico. Na verdade, quando aplicados cientificamente, esses métodos mostram as verdades abraçadas pelos cristãos. Será que é científico os filisteus realizarem todos estes testes e depois voltarem a seus ídolos inanimados? Seria bem mais científico se eles abandonassem seus ídolos e confiassem no Deus de Israel. Os cristãos são criticados por não serem científicos? A incredulidade é muito mais irracional, e nada científica.

Com isto desejo mostrar como Deus trabalha na vida de Seu povo, tirando-o da imoralidade e idolatria e trazendo-o ao arrependimento e restauração. Nosso texto mostra claramente uma série de acontecimentos e mudanças que levam à renovação espiritual de Israel. Primeiramente Deus produz nos israelitas um profundo senso de Sua santidade e o temor correspondente (reverência) por Si mesmo. A imoralidade e a violência tomam conta dos sacrifícios e dos objetos sagrados de Israel (como a Arca). A Arca é levada para a guerra como se fosse um pé de coelho. Depois que muitas pessoas são levadas à morte simplesmente por olharem para a Arca (ou para dentro dela), os israelitas começam a se perguntar quem é capaz de permanecer na presença do Senhor (6:20). Agora, o povo de Deus está começando a compreender quão superior e quão diferente é o único e verdadeiro Deus. Este é o ponto de partida para a renovação espiritual de Israel. Estou convicto de que é aqui que começa o verdadeiro reavivamento, com um profundo senso da santidade de Deus e o senso correspondente da magnitude de nosso pecado e da nossa indignidade diante de Deus. Os israelitas vêem sua idolatria e se arrependem, abandonando seus ídolos e voltando-se somente para Deus. É isto que os homens precisam fazer hoje. Deus providenciou um único meio pelo qual os pecadores podem ser perdoados e tornados justos, e esse meio é pela fé na pessoa e na obra de Jesus Cristo. Quando os israelitas buscaram primeiramente a Deus, Deus lhes deu a vitória sobre seus inimigos. Hoje também é assim. Um profundo senso da santidade de Deus, seguido pela confissão de nossos pecados e pelo abandono de qualquer coisa em que confiemos que não seja em Deus e na Sua providência - esta é a maneira como Deus tira os pecadores da irreverência, do pecado e do juízo, e os leva para a retidão, perdão, paz e acesso à Sua presença santa.

6. Dá-nos um Rei! (I Samuel 8:1-22)

Introdução

Ao ler o capítulo 8 de I Samuel, lembro-me de uma divertida série de acontecimentos na vida de Jacó, descrita em Gênesis 30 e 31. Jacó foge para Padã-Harã, em parte para procurar uma esposa entre seus parentes, e em parte para fugir da raiva de seu irmão, Esaú. Ele não tem dinheiro para pagar o dote por uma esposa, por isso, acaba trabalhando para Labão, seu sogro, durante 14 anos, em pagamento do dote de suas duas esposas, Lia e Raquel. Depois de cumprir 14 anos de serviço, eles negociam um novo “acordo”, estipulando um salário pelos próximos serviços de Jacó. Eles combinam que este salário será composto de todas as cabras listradas, malhadas e salpicadas, e de todos os cordeiros negros. O acordo terá início com um rebanho de tais animais retirado do gado de Labão.

Jacó não se contenta com os poucos exemplares que nascerão dessas cabras ou cordeiros; assim, ele inicia uma manobra que tornará suas chances mais favoráveis. O processo todo se baseia na premissa de que a cor dos descendentes do rebanho de Labão possa ser influenciada pelo ambiente onde forem concebidos e criados. Assim, ele se ocupa descascando varas. Removendo a casca em linhas abertas, a brancura das varas é exposta. As varas descascadas são depois colocadas nos lugares onde os rebanhos pastam, bebem e procriam.

Parece realmente funcionar! Os rebanhos de Jacó estão crescendo, enquanto os de Labão não. Jacó trabalha cada vez mais em seu projeto, sempre com sucesso. Ele parece sinceramente crer que Deus esteja abençoando seus esforços “de descascar varas”. Labão e seus filhos percebem, e não gostam nada disso. Jacó ouve os comentários e vê a raiva dos filhos de Labão. Deus lhe diz para deixar Padã-Harã e voltar à terra de seus pais. Ao tentar convencer suas esposas de que devem deixar o lugar, Jacó lhes conta o sonho que teve. No sonho, ele vê um rebanho de cabras na época do acasalamento e percebe que os machos são listrados, malhados e salpicados. O anjo de Deus chama sua atenção, dizendo-lhe que foi Ele quem o fez ser bem sucedido com seus rebanhos.

Fico me perguntando quanto tempo leva para isto ficar claro para Jacó. A prosperidade de seus rebanhos nada tem a ver com as varas que ele descascou e cuidadosamente colocou para que os animais concebessem e procriassem. As crias dos rebanhos de Labão são listradas, malhadas e salpicadas porque Deus fez com que os machos listrados, malhados e salpicados acasalassem. A prosperidade de Jacó não é fruto de suas mãos; na verdade, todo o seu descascamento de varas foi pura perda de tempo. Jacó prospera porque Deus o faz prosperar, e Ele o faz induzindo os machos listrados, malhados e salpicados a acasalar mais do que os outros.

Não é de admirar que Deus mude o nome de Jacó para Israel. Este homem, Jacó, está prestes a se tornar um dos pais da nação de Israel. Mais do que isto, Israel, xará de Jacó, demonstrará ser exatamente como seu antepassado. Eles também tentarão experimentar diversas formas de “descascamento de varas”, na tentativa de manipular as bênçãos de Deus e ser bem sucedidos.

Nos primeiros capítulos de I Samuel, os israelitas acham que podem empregar a Arca de Deus como “descascador de varas”. Depois de serem derrotados pelos filisteus, eles tomam a Arca e a levam junto com eles para a batalha, certos de que ela lhes dará a vitória. Como sabemos isto não acontece. Agora, no capítulo 8, não é na Arca, mas num rei que os israelitas depositarão sua confiança e esperança. Seu desejo por um rei nada mais é do que outro capítulo de uma longa história de “descascamento de varas”. Vamos prestar atenção às mudanças importantes que este capítulo traz à história de Israel, ansiosos para entender as lições que eles demoraram tanto para aprender.

Observações Importantes

Antes de iniciarmos nossa exposição de I Samuel 8, algumas observações muito importantes devem ser feitas, tendo em vista que afetam consideravelmente a maneira de entendermos e aplicarmos nosso texto.

Primeiro, Deus Se faz rei de Israel no Êxodo. Quando Deus liberta os israelitas do cativeiro egípcio e lhes dá a Sua lei, Ele estabelece a Si mesmo como rei de Israel. A disputa com faraó, na realidade, é entre um Rei e outro. Só depois de atravessarem o Mar Vermelho é que os israelitas percebem o fato, expressando-o num hino de louvor:

“Sobre eles cai espanto e pavor; pela grandeza do teu braço, emudecem como pedra; até que passe o teu povo, ó SENHOR, até que passe o povo que adquiriste. Tu o introduzirás e o plantarás no monte da tua herança, no lugar que aparelhaste, ó SENHOR, para a tua habitação, no santuário, ó Senhor, que as tuas mãos estabeleceram. O SENHOR reinará por todo o sempre.” (Êxodo 15:16-18, ênfase minha)

Deus é o Único que promete “ir adiante” (e depois) de Seu povo, como faria um rei (ver Êxodo 23:23; Isaías 45:2, 52:12). Estudiosos do Velho Testamento observaram que a outorga da Lei, firmando o pacto entre Deus e Israel de Êxodo a Deuteronômio, segue a mesma forma dos tratados ou pactos feitos entre os reis daquela época e seus súditos. O povo daquele tempo reconheceria imediatamente a implicação - que Deus estava firmando as bases da aliança para o Seu governo como rei de Israel. Isto é claramente indicado em outros lugares.

“Esta é a bênção que Moisés, homem de Deus, deu aos filhos de Israel, antes da sua morte. Disse, pois: O SENHOR veio do Sinai e lhes alvoreceu de Seir, resplandeceu desde o monte Parã; e veio das miríades de santos; à sua direita, havia para eles o fogo da lei. Na verdade, amas os povos; todos os teus santos estão na tua mão; eles se colocam a teus pés e aprendem das tuas palavras. Moisés nos prescreveu a lei por herança da congregação de Jacó. E o SENHOR se tornou rei ao seu povo amado, quando se congregaram os cabeças do povo com as tribos de Israel.” (Deuteronômio 33:1-5, ênfase minha; Êxodo 19:3-6; Levítico 20:26; 25:23)

No Salmo 74, Asafe considera os feitos de Deus durante o êxodo como evidências de que Ele é o Rei de Israel:

“Ora, Deus, meu Rei, é desde a antiguidade; ele é quem opera feitos salvadores no meio da terra. Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste as cabeças do crocodilo e o deste por alimento às alimárias do deserto. Tu abriste fontes e ribeiros; secaste rios caudalosos.” (Salmo 74:12-15, ver também Salmo 47:2-3)

Segundo, depois de libertar os israelitas do cativeiro egípcio, Deus os prepara para o fato de que terão um rei. Em Gênesis 49:8-12, fica claro que um descendente de Judá governará sobre Israel. Na profecia de Balaão em Números 24:15-19, uma predição semelhante fala de um dos descendentes de Jacó governando e derrotando os inimigos do povo de Deus. Em Deuteronômio 17:14-20 Deus indica que haverá uma época em que Israel pedirá um rei. Mais tarde, mais coisas serão ditas a respeito desta profecia, no entanto, deve ser salientado que aqui, em I Samuel 8, é seu cumprimento literal.

Terceiro, esta é a primeira das três vezes em I Samuel que Deus fala aos israelitas por meio de Samuel sobre o perigo de exigirem um rei (ver também 10:17-19; 12:6-18). O capítulo 8 é a primeira narrativa da exigência de um rei feita por Israel, das respostas de Samuel e de Deus, e da advertência de Samuel ao povo. Contudo, vamos nos lembrar de que este assunto será retomado nos capítulos 10 e 12. Para entendermos I Samuel 8, precisamos estudá-lo à luz dos capítulos 10 e 12.

Quarto, a ênfase do capítulo 8 não está no perigo da rejeição de Israel a Deus e sua idolatria (embora isto seja mostrado); a ênfase recai sobre os altos custos de um rei (versos 10-18). O “princípio da proporcionalidade” é sempre uma dica importante para o significado e interpretação de um texto. Em nosso capítulo, sabemos que a exigência de Israel por um rei é idolatria, idolatria do mesmo tipo que Israel vem praticando desde o êxodo (8:7-9). Sabemos que quando Samuel fala ao povo, ele lhes diz “todas as palavras de Deus” (verso 10), mas o que está escrito e preservado para nós é o conteúdo dos versos 10-18, que é uma descrição detalhada dos custos de um reino. O custo de um reino é a ênfase das palavras de Samuel neste capítulo.

Quinto, a exigência por um rei não vem apenas dos anciãos de Israel (verso 4), mas de todo o povo (ver versos 7, 10, 19, 21-22). À primeira vista, parece que apenas os anciãos estejam exigindo um rei. À medida que o capítulo se desenrola, fica bem claro que todo o povo de Israel está por trás do movimento. Para mim, isto indica que Israel está funcionando mais ou menos como uma democracia. Seus anciãos são mais representantes do que líderes do povo.

Sexto, repare que, conforme passamos do capítulo 7 para o capítulo 8, passamos do início do “governo” de Samuel como juiz no capítulo 7 para um aparente “final” de seu governo no capítulo 8. Grande parte de seu ministério é ignorada em I Samuel. Talvez seja porque o autor quer que vejamos mais claramente o contraste entre a maneira como seu “governo” começou e a maneira como o povo quer que termine. Samuel, na verdade, é o último de uma geração em extinção - os juízes. No entanto, vamos relembrar o que o autor do livro de Juízes diz no início de sua obra:

“Suscitou o SENHOR juízes, que os livraram da mão dos que os pilharam. Contudo, não obedeceram aos seus juízes; antes, se prostituíram após outros deuses e os adoraram. Depressa se desviaram do caminho por onde andaram seus pais na obediência dos mandamentos do SENHOR; e não fizeram como eles. Quando o SENHOR lhes suscitava juízes, o SENHOR era com o juiz e os livrava da mão dos seus inimigos, todos os dias daquele juiz; porquanto o SENHOR se compadecia deles ante os seus gemidos, por causa dos que os apertavam e oprimiam. Sucedia, porém, que, falecendo o juiz, reincidiam e se tornavam piores do que seus pais, seguindo após outros deuses, servindo-os e adorando-os eles; nada deixavam das suas obras, nem da obstinação dos seus caminhos.” (Juízes 2:16-19, ênfase minha)

O que me fascina é que “nos bons tempos” dos juízes, o povo de Deus seguia o Senhor durante toda a vida do juiz. Só depois que o juiz morresse é que Israel se afastava de Deus e se corrompia. Mas no caso de Samuel, ele ainda não está morto. Simplesmente está velho e parcialmente aposentado. E eles já estão ansiosos para se verem livres dele. É impressionante.

Sétimo, de forma alguma nosso texto sugere que Samuel seja outro Eli, um líder fraco e patético. Em toda a história de Israel não houve nenhum juiz mais importante do que Samuel. Com freqüência, ele fala da parte de Deus ao povo. Não há registro de nenhuma profecia de Eli. Na verdade, ele recebe suas revelações em segunda-mão (ver 2:27-36; 3:1-18). Samuel é um grande homem de oração (ver 7:5; 8:6, 21; 15:11). Não lemos orações de Eli. Samuel é um líder decisivo, que age quando Saul não o faz (I Samuel 15:32-33). Eli não poderia ser chamado de decisivo, e alguns talvez nem mesmo o chamem de líder. Samuel é de grande valia na derrota militar dos filisteus (7:13), mas Eli é associado a um período de derrota militar (compare 4:9 e 7:13-14). Samuel é um homem de grande integridade pessoal (ver 12:1-5), enquanto o mesmo não pode ser dito de Eli, que parece ter engordado com a carne mal-adquirida de seus filhos (ver 2:29). A morte de Samuel é ocasião de luto nacional (25:1; 28:3), mas não é assim com a morte de Eli (4:12-22). Vamos deixar que as próprias Escrituras façam um resumo da vida de Samuel:

“Nunca, pois, se celebrou tal Páscoa em Israel, desde os dias do profeta Samuel; e nenhum dos reis de Israel celebrou tal Páscoa, como a que celebrou Josias com os sacerdotes e levitas, e todo o Judá e Israel, que se acharam ali, e os habitantes de Jerusalém.” (II Crônicos 35:18)

“Moisés e Arão, entre os seus sacerdotes, e, Samuel, entre os que lhe invocam o nome, clamavam ao SENHOR, e ele os ouvia.” (Salmo 99:6)

“Disse-me, porém, o SENHOR: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu coração não se inclinaria para este povo; lança-os de diante de mim, e saiam.” (Jeremias 15:1)

“E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas,” (Hebreus 11:32)

O fato puro e simples é que Samuel é o maior juiz de todos os tempos. Durante o período de seu serviço, Israel alcança um de seus “pontos espirituais mais altos”.

Oitavo, os motivos dos israelitas quererem um rei nos versos 1-4 não nos contam toda a história, que é revelada conforme os acontecimentos dos capítulos seguintes vão sendo descritos. Não é somente a idade de Samuel e a corrupção de seus filhos que fazem os israelitas exigirem um rei. De acordo com o capítulo 12, ficamos sabendo que a ameaça militar feita por Naás, o rei de Amom, talvez seja a razão principal para eles desejarem um rei. A Arca de Deus está fora de serviço, Samuel em breve também estará, e os israelitas querem um rei em quem possam depositar sua confiança.

Dá-nos um Rei!
(8:1-5)

“Tendo Samuel envelhecido, constituiu seus filhos por juízes sobre Israel. O primogênito chamava-se Joel, e o segundo, Abias; e foram juízes em Berseba. Porém seus filhos não andaram pelos caminhos dele; antes, se inclinaram à avareza, e aceitaram subornos, e perverteram o direito. Então, os anciãos todos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Vê, já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações.”

A maior parte da vida e do ministério de Samuel é ignorada até o capítulo 8, onde o encontramos já avançado em idade, talvez ansiando por sua aposentadoria. Seus dois filhos são constituídos por ele como juízes “sobre Israel”, estabelecidos na cidade fronteira de Berseba. Não creio que Samuel tenha nomeado seus filhos como seus substitutos, nem que ele o faça. Samuel não é apenas sacerdote e juiz, ele é também profeta. Não temos nenhuma indicação de que Deus, por isso, tenha capacitado seus filhos; assim, como um ou ambos poderia ocupar o lugar de seu pai? Como os outros anciãos e líderes da nação, eles podem ser juízes. No entanto, a esfera de seu ministério e autoridade é limitada e, quando fica patente que eles são corruptos, a inferência talvez seja de que Samuel resolva a questão. Nada mais é dito sobre sua corrupção ou ministério. No capítulo 12, Samuel fala de seus filhos como estando junto ao povo (verso 2). Ele afirma não ter cometido nenhuma injustiça e não ser culpado de corrupção, um fato que o povo confirma. Como ele poderia falar deste modo se não tivesse tratado da corrupção de seus próprios filhos? Seus dois filhos não são piedosos como o pai; eles não “andam nos seus caminhos”.

No entanto, as coisas não são como parecem ou como os anciãos as apresentam. Eles parecem sugerir que Samuel esteja “praticamente morto”, que sua liderança esteja no fim. Não é bem isto que nosso texto mostra. Ele ainda tem muitos anos de ministério pela frente. Creio que podemos dizer com segurança que os anos em que Samuel conduz a nação depois do capítulo 8 sejam mais importantes do que anos anteriores (os anos que o autor preferiu não incluir nesta narrativa). Além do mais, a ameaça que seus filhos representam é exagerada. Seus filhos não são seus substitutos, e eles não têm um papel importante a desempenhar no futuro da nação. Não creio que os anciãos ou o povo estejam tão preocupados com os líderes que vêem diante deles quanto com os líderes desconhecidos que não podem ver. Quem irá conduzir o povo depois de Samuel? Eles querem um homem em seu lugar. Por isso, eles exigem - não pedem - um rei como o de outras nações.

De qualquer forma, a solução proposta pelos anciãos é absurda. Pense na loucura de sua lógica, que é mais ou menos esta:

“Samuel, você está ficando velho e seus filhos (que, com certeza, ficarão em seu lugar) são corruptos. Não podemos ter um futuro brilhante se nossos líderes forem corruptos. Vamos estabelecer uma ordem inteiramente nova e ter um rei, como as outras nações. Deixe que ele nos julgue. E que haja uma dinastia, a fim de que seus filhos governem em seu lugar após sua morte.”

O papel de Samuel como juiz não é uma dinastia. Deus levantou os juízes; Ele não criou uma dinastia de juízes, cujos filhos os substituam. Se os filhos de Samuel são corruptos, eles podem ser afastados, como de fato o são. No entanto, propor uma dinastia é pedir um sistema onde os filhos do rei governem em seu lugar, quer sejam ímpios ou justos. A emenda é pior do que o soneto!

Parece que os anciãos e a nação não estejam buscando uma mudança radical, mas apenas recomendando uma limpeza do sistema atual, um “ajuste” administrativo. Eles querem justiça. Querem um juiz que decida suas questões legais. Querem simplesmente um rei como juiz em vez de um juiz como Samuel. Parece bom, mas, de forma alguma, é uma simples mudança. Eles querem uma reforma total do sistema de justiça de Israel. Querem se livrar do sistema de juízes e ser governados e julgados da mesma maneira que as nações ao seu redor. Não querem ser uma nação distinta, separada das outras nações. Eles não estão simplesmente tentando demitir Samuel como seu juiz; estão procurando demitir Deus como seu rei. Deus deixa isto bem claro nos versos seguintes.

As Respostas de Samuel e de Deus
(8:6-9)

“Porém esta palavra não agradou a Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei, para que nos governe. Então, Samuel orou ao SENHOR. Disse o SENHOR a Samuel: Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele. Segundo todas as obras que fez desde o dia em que o tirei do Egito até hoje, pois a mim me deixou, e a outros deuses serviu, assim também o faz a ti. Agora, pois, atende à sua voz, porém adverte-o solenemente e explica-lhe qual será o direito do rei que houver de reinar sobre ele.”

Samuel não fica nada satisfeito com a proposta dos anciãos. Embora seja verdade que eles estejam procurando substituí-lo, não creio que seu desagrado seja porque leve isto de forma pessoal e esteja na defensiva. Literalmente, o texto nos diz que isto é “mal à vista de Samuel”. Em termos bem simples, Samuel sabe que o pedido é errado e que é pecado.

Além do mais, sua resposta confirma seu caráter piedoso. Ele não explode, despejando raiva e indignação sobre os anciãos. Ele se achega a Deus em oração, como sempre faz. A resposta de Deus à oração de Samuel confirma sua avaliação da situação, com um novo ângulo. Samuel está sendo rejeitado pelo povo; há poucas dúvidas de que isto seja verdade. Como um homem piedoso, talvez ele se torture achando que seja devido a alguma falha de sua parte. Deus lhe diz que, no fim das contas, é Ele e não Samuel quem está sendo rejeitado. A rejeição de Deus por Israel certamente não é culpa de Deus; por que, então, Samuel deveria se torturar com sua própria rejeição? Se Samuel está sendo rejeitado pelas mesmas razões que Deus está, ele deveria, então, tomar isto como elogio.

Conforme observado anteriormente, Deus se faz Rei de Israel na época do êxodo. Agora, Deus relembra Samuel de que a rejeição atual de Israel não é algo novo, mas apenas outro episódio de uma série sucessiva que teve início no êxodo (verso 8). Esta rejeição de Deus por um rei “como o de outras nações” nada mais é do que idolatria. O que realmente eles querem é um rei que seja seu ”deus”, uma questão que será retomada com mais inteireza posteriormente. Após mostrar a origem do problema, Deus diz a Samuel para atender o povo e ceder à sua pressão (verso 9a.). Embora Samuel deva conceder ao povo o seu pedido, ele também deve lhes mostrar o “direito” do rei que “reinará sobre eles” (verso 9b).

O Costume (Custo) de um Rei
(8:10-18)

“Referiu Samuel todas as palavras do SENHOR ao povo, que lhe pedia um rei, e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles; e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinqüenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros. Tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor das vossas lavouras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores. As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores. Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos. Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o SENHOR não vos ouvirá naquele dia.” (ênfases minhas)

As palavras registradas nos versos 10-18 não são a soma de tudo o que Samuel diz ao povo nesta ocasião. Elas são o que autor desejou enfatizar para nós, leitores. O verso 10 indica que Samuel “falou todas as palavras do Senhor ao povo que lhe pedira um rei”. Samuel, portanto, diz ao povo aquilo que Deus lhe diz nos versos 7-9, e talvez ainda outras palavras ditas por Deus e que não foram registradas no texto. Mas o autor quer que nos concentremos nas palavras dos versos 10-18. Elas parecem ser a essência do texto - ou, pelo menos, uma parte significativa da mensagem de Samuel aos israelitas que exigem um rei.

Nosso Senhor tinha muitos supostos “voluntários” que se ofereciam para ser Seus seguidores. A resposta de nosso Senhor a tais pessoas era um alerta. Ele os advertia a “pensarem nas conseqüências” (ver Lucas 9:57-62; 14:15-35). Samuel faz a mesma coisa em nosso texto: ele recomenda aos israelitas que “pensem nas conseqüências” de ter um rei. A essência das palavras de Samuel pode ser resumida numa única frase: “Ele tomará...

Israel está exigindo um tipo de governo muito dispendioso. Samuel procura mostrar em detalhes o custo de um reino, e que é incrivelmente caro. Para que avaliemos os altos custos de se ter um rei, primeiro precisamos refrescar nossa memória quanto ao funcionamento das coisas no governo dos juízes. No livro de Juízes vemos que não há rei, nem palácio, nem exército permanente. Quando Israel é atacado, um exército voluntário é convocado. Este exército, em parte, é formado pelas famílias daqueles que vão à luta (ver I Samuel 17:17-22). Não há conselho “administrativo”, consultores, empregados e quadro de funcionários para dar suporte e facilitar o governo do rei. Em resumo, o sistema é informal, ad hoc, e muito barato. Com Deus como seu rei, o sistema funciona, conforme vemos no livro de Juízes e em I Samuel 7, por exemplo.

Em contraste com um sistema de “baixo orçamento” para governar a nação, o que os israelitas estão exigindo é caro demais. Ter um rei que vá adiante deles e os lidere na guerra é ter um exército permanente. Uma vez que Israel seja governado por um rei, a vida no campo jamais será a mesma. O rei empregará seus filhos no serviço militar para conduzir seus carros ou como cavaleiros, ou como infantaria. Alguns serão separados como oficiais. Um exército permanente também deve ter suprimentos. Os filhos dos israelitas serão usados para plantar e ceifar as colheitas e construir e manter o equipamento militar (sem mencionar todos os suprimentos não militares exigidos). Não serão somente os jovens que o rei empregará em seu serviço. As filhas dos israelitas, que antes se sentavam à mesa e serviam seus pais, agora servirão à mesa do rei. Elas serão perfumistas, cozinheiras e padeiras.

O alto custo de um rei inclui a perda dos filhos e filhas para o serviço do rei. Mas o preço é ainda maior. O rei consumirá uma enorme quantidade de alimentos, alimentos da melhor qualidade. Isto exigirá que ele tribute tudo o que é cultivado em Israel. O melhor de seus grãos irá para o rei, junto com o melhor de suas vinhas e lavouras. Boa parte das coisas que uma família rural israelita antes apreciava agora irá ser consumida pelos servos do rei. Os servos do rei precisam viver, e o povo também pagará por esta despesa. Um décimo de suas sementes e de suas videiras será dado aos servos do rei para plantarem em seus campos (ou na terra que o rei tomar do povo).

O rei precisará de empregados para servi-lo; portanto, tomará o que Israel tem de melhor a oferecer em matéria de servos e servas. Certamente ele precisará de gado, e jumentos para arar os campos, e tudo será suprido pelo povo. Em resumo, quando o rei for concedido ao povo, será para dominá-lo, e ele dominará. Esta gente que antes conhecia a liberdade, agora será escrava do rei. E quando, finalmente, perceberem o que fizeram a si mesmos, será tarde demais para mudar o curso da história. Um dia os israelitas clamarão a Deus por causa da opressão de seu próprio rei, mas Deus não ouvirá seu lamento, pois eles estão indo para o cativeiro com os olhos bem abertos.

Os Israelitas Conseguem o Que Querem
(8:19-22)

“Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras. Ouvindo, pois, Samuel todas as palavras do povo, as repetiu perante o SENHOR. Então, o SENHOR disse a Samuel: Atende à sua voz e estabelece-lhe um rei. Samuel disse aos filhos de Israel: Volte cada um para sua cidade.”

A nação de Israel quer um rei; Samuel os adverte de que isto lhes trará um enorme sistema político com um preço exorbitante. Mas isto não interessa. O povo está determinado a ter seu rei. O povo (não só os anciãos) se recusa a dar ouvidos a Samuel ou às suas advertências. Eles insistem em ter seu rei, mas agora são mais honestos quanto ao que esperam dele. Eles querem um rei que os governe e que vá adiante deles na guerra. Na verdade, eles querem um rei que tome suas decisões e lute por eles.

Samuel ouve tudo o que o povo diz e vai a Deus repetir todas as suas palavras (verso 21). Esta afirmação é muito interessante. Não ficamos surpresos quando lemos que Samuel diz ao povo o que o Senhor lhe disse (verso 10). Mas, por que Samuel sente a necessidade de dizer a Deus tudo o que o povo lhe disse? Será que Deus não ouve o que o povo está dizendo? É claro que ouve. Por que precisamos orar, se Deus já conhece todas as nossas necessidades? (ver Mateus 6:32) Não é que Deus precise nos ouvir para ser informado; é que nós precisamos de Deus. Precisamos partilhar nossos fardos com Ele. Samuel diz a Deus tudo o que o povo diz, não porque Deus precise ser informado, mas porque Samuel precisa da intimidade com Deus.

Em resposta à oração de Samuel, Deus, uma vez mais, o instrui a dar ao povo o que eles querem. Por isso, sem saber quem será este rei, Samuel despacha os israelitas para suas casas até que Deus mostre a identidade de seu novo rei (verso 22).

Conclusão

Já enfatizei bastante o mal e a tolice de Israel exigir um rei. Algumas pessoas podem querer protestar, mencionando o texto de Deuteronômio 17. Deus não disse que seria certo Israel ter um rei? Se já havia sido profetizado que os israelitas exigiriam um rei, por que Deus, então, é tão severo quando o fazem? Vamos dar uma olhada no texto de Deuteronômio:

“Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles. Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.”

Este texto é uma profecia, e podemos ver que ela é rigorosamente cumprida quando os israelitas exigem um rei, exatamente como o de outras nações. O fato de alguma coisa ser profetizada não é prova de que aquilo que é predito seja bom ou justo. A traição de Judas foi predita, assim como a rejeição de Israel ao Messias. Isto não significa que Judas, ou os incrédulos israelitas, estivessem certos ao fazer o que fizeram. Significa apenas que Deus quer que conheçamos uma parte de Seu plano eterno.

Sugiro que, ainda que Deus prenuncie em Deuteronômio os acontecimentos descritos em I Samuel 8, há muito mais do que uma simples profecia ali. Se Deuteronômio 17:4 é uma profecia sobre a exigência de Israel por um rei, os outros versículos do capítulo são as instruções de Deus para evitar que este rei seja como o de outras nações. As instruções que Deus estabelece por meio de Moisés são o que torna Seu rei distinto das outras nações.

O rei deve ser israelita. Ele não deve ser escolhido por voto popular, mas divinamente designado e empossado. O rei de Deus não deve multiplicar para si cavalos ou esposas. Isto é o que os reis pagãos fazem, pois lhes dá poder político e militar. O rei de Deus não deve confiar em seus próprios recursos, em sua própria força, mas em Deus. Creio que seja por esta razão que a contagem das tropas israelitas por Davi seja algo tão ruim e que resulte num castigo tão severo (ver I Crônicas 21). Davi parece estar cheio de si e a contagem das tropas lhe dá sensação de poder. Por isso, Deus o trata, e ao povo, com tanta severidade. O rei não deve ter o desejo de acumular fortuna ou riquezas, pois isto também é poder. O rei deve confiar em Deus e obedecê-Lo e desafiar a nação de Israel a fazer o mesmo.

Davi é este tipo de rei quando enfrenta Golias, mas os anos de poder e prosperidade colocam sua vida à prova. Afinal, mesmo os melhores reis de Israel estão bem longe dos padrões estabelecidos por Deus em Deuteronômio 17. As falhas de Davi e Salomão nestas áreas são bastante óbvias. Enfim, só existe uma pessoa com todas estas qualificações, nosso Senhor Jesus Cristo. Ele foi rico, mas Se fez pobre por amor de nós. Ele não teve, nem empregou poderes terrenos para estabelecer Seu reino. Ele certamente não multiplicou poderes militares ou esposas. E é por isso que Cristo e somente Cristo pode ser o Rei de Deus, para reinar sobre a terra para todo o sempre.

“Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor. Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos. E os quatro seres viventes respondiam: Amém! Também os anciãos prostraram-se e adoraram.” (Apocalipse 5:11-14)

A principal lição que este texto nos ensina é aquilo que podemos chamar de “economia do pecado”. Se estou certo em minha avaliação, a ênfase principal do texto recai sobre o custo exorbitante de uma monarquia, sobretudo se comparado ao custo mínimo do governo dos juízes. Os israelitas estão errados em exigir um rei, pois o que eles realmente querem é substituir Deus por um ídolo humano. No entanto, deixando de lado os problemas bíblicos e morais associados à sua exigência, existe também um problema econômico muito claro. Em termos bem simples, ser governado por um rei não vale seu preço.

Recentemente, fui com minha esposa Jeanette a uma comemoração estadual em Des Moines, Iowa. Fomos com nossos amigos Brenda e Smith, que me lembrou de uma afirmação que fiz há alguns anos atrás em Six Flags (um parque de diversões perto de Dallas, Texas). Enquanto pensava na longa espera e no preço pago pelas entradas, observei: “Este passeio é exatamente como o pecado... o preço é alto e o passeio é curto!” É exatamente desse jeito que Samuel quer que os israelitas pensem a respeito de ter um rei. O preço vai ser muito alto.

Os israelitas não vêem desse modo, pois estão mais do que dispostos a pagar o preço detalhado por Samuel. Creio que possa entender por que. O preço da sujeição a seus inimigos é muito alto, como vemos em Juízes 6:

“Fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o SENHOR; por isso, o SENHOR os entregou nas mãos dos midianitas por sete anos. Prevalecendo o domínio dos midianitas sobre Israel, fizeram estes para si, por causa dos midianitas, as covas que estão nos montes, e as cavernas, e as fortificações. Porque, cada vez que Israel semeava, os midianitas e os amalequitas, como também os povos do Oriente, subiam contra ele. E contra ele se acampavam, destruindo os produtos da terra até à vizinhança de Gaza, e não deixavam em Israel sustento algum, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos. Pois subiam com os seus gados e tendas e vinham como gafanhotos, em tanta multidão, que não se podiam contar, nem a eles nem aos seus camelos; e entravam na terra para a destruir. Assim, Israel ficou muito debilitado com a presença dos midianitas; então, os filhos de Israel clamavam ao SENHOR.” (Juízes 6:1-6)

Para os israelitas, o preço que irão pagar por seu rei é considerado bem menor do que aquele que irão pagar pela sujeição a outras nações. O que eles não entendem é que Deus os protegerá sem custo algum se simplesmente se arrependerem de seus pecados, clamarem por libertação e O servirem de todo o coração. Receio que este seja o preço que eles consideram alto demais. Eles não querem abandonar seus ídolos pagãos. Não querem servir somente a Deus. Não querem que Deus seja seu rei. Por isso, procuram substituir tanto a Deus, quanto a Samuel, tendo um rei como as outras nações.

Ao discutir este texto, um amigo meu observou o seguinte: “Se for pagar por um deus, 10% não é muito caro”. Ele tem razão. Se você conseguisse um ”Deus” de verdade sem pagar caro por ele, seria vantajoso. Mas o fato é que, ao pagar caro por um rei, Israel recebe muito pouco em troca. Os israelitas pensam que seu rei tomará (julgará) suas decisões por eles, dizendo-lhes o que fazer, e que lutará suas batalhas. Uma recapitulação de Deuteronômio 28-32 deveria relembrar aos israelitas de que não é seu rei quem lhes dá paz e prosperidade; é seu Deus. Não é seu rei que é digno de sua fé, confiança e obediência (somente); é Deus. Eles esperam que um rei faça por eles o que só Deus pode fazer, com ou sem rei. Eles estão dispostos a pagar caro por algo que não vale a pena.

O pecado também é assim, e Satanás sempre procura nos convencer a pecar de um jeito que faria um vendedor trapaceiro de carros usados chorar de inveja. Ele procura supervalorizar nossa avaliação dos benefícios do pecado, ao mesmo tempo em que se esforça para nos convencer de que o preço é irrisório. No Jardim do Éden, Satanás fez Eva acreditar que realmente podia ser como Deus, e que comer o fruto proibido não resultaria realmente na morte. Quando pecamos, estamos acreditando na mentira de Satanás. Achamos que podemos “usar” o pecado enquanto tivermos controle sobre ele. A realidade é que o pecado rapidamente ganha o controle sobre nós e nos tornamos seus escravos. Não importa o quanto sejamos tentados e contemplemos o caminho do pecado, vamos nos lembrar do que a Bíblia nos ensina sobre sua economia: o preço é muito caro e o percurso é muito curto. O pecado não compensa.

Por que, então, mesmo depois que Samuel adverte os israelitas sobre os custos da monarquia, eles não lhe dão ouvidos e exigem seu rei? Por que os homens estão dispostos a pagar tanto por tão pouco? Creio que saiba a resposta, e que ela esteja claramente implícita em nosso texto. Os homens detestam a graça. A graça é detestável e repugnante porque é caridade. A graça não massageia nosso ego; ela produz humildade. Quando pagamos por alguma coisa (com trabalho ou dinheiro), achamos que somos donos dela. Achamos que quando pagamos, estamos no controle. Quando recebemos a graça, não estamos no controle. Deus está no controle. A graça é concedida soberanamente, por isso, não podemos ditar como e quando ela nos será concedida por Deus; não podemos controlar seus benefícios. Mas as boas e velhas obras forçam Deus a nos abençoar (como erroneamente supomos). Quando fazemos as coisas certas, Deus deve responder da forma que esperamos. Estamos no controle. Deus se torna nosso servo. Por isso, os homens preferem pagar - e pagar muito - para manter seu orgulho e sensação de controle. Esta é a razão pela qual os homens preferem os ídolos a Deus, mesmo que tenham que carregá-los. Eles crêem que servir aos ídolos faz com estejam no controle do seu “deus”. Que tolice!

Acho muito interessante que os israelitas queiram um homem como seu deus. Jamais funcionará, e o preço dessa tentativa será bem alto. O jeito de Deus é fazer-Se homem, Deus-Homem, para salvar o homem de seus pecados e governar sobre a terra como Rei, o Messias Prometido. Este Rei prometido que foi anunciado para ser Deus e homem não é nenhum outro senão o Senhor Jesus Cristo.

Ainda precisamos aprender uma última lição deste texto: Às vezes Deus nos dá aquilo que queremos e até mesmo exigimos, mesmo que isto venha a ser doloroso para nós. Lembro-me de uma passagem em Salmos que fala da queixa dos israelitas por não terem carne, fazendo com que Deus os deixe de barriga cheia. É esta:

“E ele satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar a sua alma.” (ARA)

“Deu-lhes o que pediram, mas mandou sobre eles uma doença terrível.” (NVI)

Existe uma persistência na oração e na súplica que não é evidência de fé, mas evidência de torpe ganância. Existe uma perseverança na oração que, de forma alguma, é santa. É possível que, se persistirmos em pedir aquilo que não é bom, Deus nos atenda. Será doloroso se isto acontecer, mas ao nos dar aquilo que tanto desejamos, Deus nos disciplina para que aprendamos a deixar estas coisas em Suas mãos. Em termos bíblicos, devemos nos concentrar em buscar primeiro a Deus, e confiar Nele para que todas as coisas nos sejam acrescentadas (Mateus 6:33). Vamos ter cuidado para que nossas petições a Deus não sejam exigências. Aprendamos com os israelitas do passado para que não andemos nos caminhos que eles andaram.

7. A Constituição do Primeiro Rei de Israel (I Sam. 9:1 - 11:13)

Introdução

Há mais de quarenta anos atrás, meus pais moravam num pequeno povoado que tinha vista para Puget Sound, no Estado de Washington (a vista era tão espetacular que meu pai construiu uma ala da casa no alto da colina, de frente para a paisagem e para a estrada). Um domingo à tarde, enquanto meus pais estavam tirando uma soneca, minha irmã e eu brincávamos junto à estrada, quando um carro parou ao nosso lado e o motorista perguntou se tínhamos visto um porco. Ele nos contou que o porco dera um jeito de escapar de seu cercado e estava andando à solta em algum lugar das proximidades. Decidindo que a caça ao porco seria uma grande atividade para a tarde, minha irmã e eu entramos no carro para ajudar a procurar o porco.

O motorista nos avisou que a serra no assoalho traseiro acabara de ser afiada, mas o aviso veio tarde demais. Minha irmã já passara a perna nos dentes afiados, produzindo vários cortes profundos. O motorista entrou em pânico, enrolando um trapo nada esterilizado em seu tornozelo para diminuir o sangramento. O hospital mais próximo ficava a 8 ou 10 milhas de distância, e ele nos levou para lá tão rápido quanto pôde. Foi do hospital que liguei para meus pais, que ainda dormiam. Pensando que Ruth e eu estávamos ali fora, eles levaram um choque ao saber que eu estava ligando do hospital e que minha irmã tinha um grande número de pontos na perna.

Essa foi uma caçada ao porco que saiu às avessas. Aquilo que parecia ser uma aventura excitante revelou-se não apenas uma aventura mal sucedida, mas extremamente dolorosa e dispendiosa. Nosso texto nos fala de uma caçada que acabou saindo exatamente o contrário. Ela começa com várias jumentas vagando perdidas, com Saul e seu servo em seu encalço. De fato, eles jamais encontraram os animais perdidos, mas, como veremos, a jornada em busca destes animais errantes bem valeu o esforço. Aquilo que talvez tenha começado como uma tarefa quase irritante termina com uma revelação que deve ter feito a cabeça de Saul girar de surpresa e excitação.

O estado de ânimo da maioria dos Israelitas é de grande expectativa. Os anciões da nação, fortemente apoiados pelo povo, tinham vindo a Samuel para exigir um rei que os governasse, como em todas as nações ao seu redor. Samuel não se agrada. Ele sente que isto não foi movido por fé e obediência a Deus, e Deus confirma suas suspeitas enquanto o conforta da afronta feita pela exigência dos anciões. Como no passado, os Israelitas ainda se voltam para os ídolos. O povo não está rejeitando Samuel como juiz; eles estão rejeitando a Deus como seu rei. A despeito de seu pecado em pedir um rei, Deus instrui Samuel a avisar o povo sobre os altos custos de um rei, informando-os a seguir que eles realmente terão um rei (8:22).

Esquecidos dos avisos e da seriedade de seu pecado, os Israelitas ficam empolgados com seu futuro rei. Como Deus já instruíra em Deuteronômio 17:15, o rei deve ser alguém de Sua escolha. Certamente isto significa que Samuel será aquele que nomeará o escolhido de Deus. Todos os olhos estão sobre Samuel. Cada homem que cruza o caminho deste juiz e profeta é visto como candidato a rei. Não é de estranhar que o tio de Saul esteja tão interessado naquilo que Samuel tem a lhe dizer (10:14-16).

Ninguém jamais teria imaginado como Deus faria conhecida Sua escolha. Os capítulos 9 a 11 de I Samuel nos dizem. Os acontecimentos destes três capítulos têm um propósito muito importante, pois demonstram enfaticamente que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, e que Deus o capacitou totalmente para desempenhar esta tarefa. Os acontecimentos do capítulo 9 deixam claro a Samuel que Saul é o escolhido de Deus. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que devem convencer Saul de que ele é escolhido de Deus. E os capítulos 10 e 11 registram o sorteio, a designação de Saul, e a grande vitória militar sobre Naás e os amonitas, que convencem os Israelitas de que Saul é seu rei. Estas três passagens da transmissão de cargo podem ser ilustradas desta maneira:

9:1 9:17

Para o benefício de Samuel

9:1 9:18 10:9

Para o benefício de Saul

9:1 10:10 11:13

Para o benefício de Israel

Samuel Entende a Mensagem: Saul Será o Rei de Israel
(9:1-17)

Havia um homem de Benjamim, cujo nome era Quis, filho de Abiel, filho de Zeror, filho de Becorate, filho de Afias, benjamita, homem de bens. Tinha ele um filho cujo nome era Saul, moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo. Extraviaram-se as jumentas de Quis, pai de Saul. Disse Quis a Saul, seu filho: Toma agora contigo um dos moços, dispõe-te e vai procurar as jumentas. Então, atravessando a região montanhosa de Efraim e a terra de Salisa, não as acharam; depois, passaram à terra de Saalim; porém elas não estavam ali; passaram ainda à terra de Benjamim; todavia, não as acharam. Vindo eles, então, à terra de Zufe, Saul disse para o seu moço, com quem ele ia: Vem, e voltemos; não suceda que meu pai deixe de preocupar-se com as jumentas e se aflija por causa de nós. Porém ele lhe disse: Nesta cidade há um homem de Deus, e é muito estimado; tudo quanto ele diz sucede; vamo-nos, agora, lá; mostrar-nos-á, porventura, o caminho que devemos seguir. Então, Saul disse ao seu moço: Eis, porém, se lá formos, que levaremos, então, àquele homem? Porque o pão de nossos alforjes se acabou, e presente não temos que levar ao homem de Deus. Que temos? O moço tornou a responder a Saul e disse: Eis que tenho ainda em mãos um quarto de siclo de prata, o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho. (Antigamente, em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia: Vinde, vamos ter com o vidente; porque ao profeta de hoje, antigamente, se chamava vidente.) Então, disse Saul ao moço: Dizes bem; anda, pois, vamos. E foram-se à cidade onde estava o homem de Deus. Subindo eles pela encosta da cidade, encontraram umas moças que saíam a tirar água e lhes perguntaram: Está aqui o vidente? Elas responderam: Está. Eis aí o tens diante de ti; apressa-te, pois, porque, hoje, veio à cidade; porquanto o povo oferece, hoje, sacrifício no alto. Entrando vós na cidade, logo o achareis, antes que suba ao alto para comer; porque o povo não comerá enquanto ele não chegar, porque ele tem de abençoar o sacrifício, e só depois comem os convidados; subi, pois, agora, que, hoje, o achareis. Subiram, pois, à cidade; ao entrarem, eis que Samuel lhes saiu ao encontro, para subir ao alto. Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim. Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo.

Ainda que os acontecimentos deste texto sejam para o benefício de Saul e de todo Israel, seu benefício primário é para Samuel. Afinal de contas, por instrução de Deus, Samuel prometeu um rei a Israel, e agora ele deve compreender exatamente quem pode ser esse rei. Os acontecimentos de nosso texto levam Saul ao contato com Samuel de um jeito que faz este profeta ter certeza de que ele é o escolhido de Deus.

Quis, o pai de Saul, é um homem de certa reputação da tribo de Benjamim. Nosso texto nos informa que ele é um homem de bens (9:1). Esta expressão pode ser entendida como se referindo à coragem de um homem, seu sucesso e suas habilidades militares, ou mesmo à sua riqueza. Por uma razão ou outra, ele é um homem de renome. Saul vem de uma boa descendência. E ainda que Saul não tenha estabelecido sua própria reputação, ele tem todos os atributos físicos que o tornarão extremamente útil ao povo. Em resumo, ele é aquilo que nossas adolescentes chamariam de um gato. É alto (mais alto quer qualquer outro Israelita), moreno (como as pessoas daquela parte do mundo - e, uma vez que ele trabalha no campo, deveria ter um bronzeado espantoso), e lindo. No entanto, será necessário muito mais do que isto para que Saul cumpra seu chamado como rei.

E assim é que alguns animais do rebanho de Quis se perdem. Não sabemos como as jumentas se soltaram, mas, de alguma forma elas fugiram de sua fazenda. Quis manda seu filho, Saul, atrás dos animais perdidos, instruindo-o a levar consigo um dos servos para ajudar. Os dois partem para uma busca mal sucedida, até que as jumentas perdidas se transformam numa preocupação, mas algo que, de certa forma, acaba sendo proveitoso. Nos três dias seguintes eles cobrem uma grande área, mas não encontram as jumentas. Saul está prestes a jogar a toalha e desistir de tudo. Com toda a certeza seu pai começará a se preocupar mais com eles do que com as jumentas.

O jovem servo de Saul não tem tanta certeza. Ele sabe que chegaram muito próximo do lugar onde vive o homem de Deus. Parece que nem o servo, nem Saul conhecem este homem de Deus pelo nome, e que o servo sabe muito mais sobre ele do que Saul. Este homem de Deus é um vidente, nome antigamente usado para designar um profeta. O servo conhece Samuel por sua reputação, não pelo nome. Ele é um homem muito estimado, cujas palavras se cumprem - um verdadeiro profeta. Talvez possam lhe perguntar sobre sua jornada e descobrir o paradeiro das jumentas.

Saul parece gostar da idéia, mas levanta um problema muito prático - eles não têm nada para oferecer ao vidente. Suas reservas estão completamente vazias. Eles consumiram todos os seus suprimentos e sequer têm pão para comer. Como podem solicitar seus serviços sem nada lhe oferecer em troca? O servo também tem solução para este problema. Ele tem uma moeda que prata que será suficiente. Com este incentivo, Saul consente em pedir ajuda ao homem de Deus, ao que parece, completamente esquecido de quem ele é ou a que isto pode levar.

Quando Saul e o servo alcançam as imediações da cidade, encontram algumas jovens indo buscar água, e indagam se o vidente está lá. Elas dizem que o homem realmente está lá e que, se eles se apressarem, podem pegá-lo enquanto ainda está disponível. Ele está para abençoar o sacrifício e então celebrar a refeição com alguns convidados. Logo que tudo comece, Saul e seu servo terão que esperar algum tempo, uma vez que não são convidados e não ousariam interromper o sacrifício e a celebração. Este é o momento certo, mas precisam se apressar.

Saul e seu servo continuam subindo em direção à cidade. Quando se aproximam, Samuel os vê chegando. É neste ponto que encontramos outro parêntese, descrito nos versos 15 e 16. Do ponto de vista meramente humano, a chegada de Saul é improvável (eles vagueavam por lá, mal sucedidos em encontrar os animais perdidos, e agora estão sem comida e ansiosos por voltar prá casa). Do ponto de vista das jovens, eles estavam com sorte. Do ponto de vista divino eles eram esperados, como veremos a seguir. Um dia antes Deus falou com Samuel, indicando que ele encontraria o novo rei no dia seguinte. Será alguém da tribo de Benjamim e deve ser ungido por Samuel. Este rei é um gracioso presente de um Deus misericordioso, que ouviu o clamor de Seu povo e está levantando este homem para livrar Israel das mãos dos filisteus. Quando Samuel levanta os olhos e vê Saul e seu servo chegando à cidade, Deus lhe diz que este é o homem. Dessa forma Samuel sabe que aquele que vem em sua direção é o escolhido de Deus como rei de Israel.

Saul é Informado e Transformado
(9:17 - 10:9)

Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo. Saul se chegou a Samuel no meio da porta e disse: Mostra-me, peço-te, onde é aqui a casa do vidente. Samuel respondeu a Saul e disse: Eu sou o vidente; sobe adiante de mim ao alto; hoje, comereis comigo. Pela manhã, te despedirei e tudo quanto está no teu coração to declararei. Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? Então, respondeu Saul e disse: Porventura, não sou benjamita, da menor das tribos de Israel? E a minha família, a menor de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com tais palavras? Samuel, tomando a Saul e ao seu moço, levou-os à sala de jantar e lhes deu o lugar de honra entre os convidados, que eram cerca de trinta pessoas. Então, disse Samuel ao cozinheiro: Traze a porção que te dei, de que te disse: Põe-na à parte contigo. Tomou, pois, o cozinheiro a coxa com o que havia nela e a pôs diante de Saul. Disse Samuel: Eis que isto é o que foi reservado; toma-o e come, pois se guardou para ti para esta ocasião, ao dizer eu: Convidei o povo. Assim, comeu Saul com Samuel naquele dia. Tendo descido do alto para a cidade, falou Samuel com Saul sobre o eirado. Levantaram-se de madrugada; e, quase ao subir da alva, chamou Samuel a Saul ao eirado, dizendo: Levanta-te; eu irei contigo para te encaminhar. Levantou-se Saul, e saíram ambos, ele e Samuel. Desciam eles para a extremidade da cidade, quando Samuel disse a Saul: Dize ao moço que passe adiante de nós, e tu, tendo ele passado, espera, que te farei saber a palavra de Deus. Tomou Samuel um vaso de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Não te ungiu, porventura, o SENHOR por príncipe sobre a sua herança, o povo de Israel? Quando te apartares, hoje, de mim, acharás dois homens junto ao sepulcro de Raquel, no território de Benjamim, em Zelza, os quais te dirão: Acharam-se as jumentas que foste procurar, e eis que teu pai já não pensa no caso delas e se aflige por causa de vós, dizendo: Que farei eu por meu filho? Quando dali passares adiante e chegares ao carvalho de Tabor, ali te encontrarão três homens, que vão subindo a Deus a Betel: um levando três cabritos; outro, três bolos de pão, e o outro, um odre de vinho. Eles te saudarão e te darão dois pães, que receberás da sua mão. Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.

Enquanto Samuel sabe que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, Saul não tem este conhecimento. A próxima seção é amplamente dedicada ao processo usado por Deus para informar e transformar Saul como novo rei. Fica evidente pelo nosso texto que Saul não conhece Samuel. Quando chega à entrada da cidade, Saul se volta para a primeira pessoa que vê e pergunta o caminho para a casa do vidente. Samuel é aquele a quem Saul faz a pergunta. Ele o informa que é o vidente. Antes mesmo de Saul poder deixar escapar sua pergunta, Samuel lhe diz palavras que ele nunca pensou que ouviria. Samuel o instrui a subir à sua frente ao alto, onde o sacrifício e a refeição cerimonial estão prestes a serem realizados. Saul deve comer com Samuel nesse dia, e depois passar a noite. Na manhã seguinte Samuel lhe dirá tudo quanto está no seu coração e depois o despedirá. Tendo dito isto, Samuel prossegue dizendo algo que deve deixar Saul espantado: Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? (9:20)

Saul nem mesmo tem que fazer a pergunta, pois Samuel já sabe o que ele quer saber. Sem Saul nem mesmo perguntar, Samuel lhe diz o que está faltando, há quanto tempo estão procurando, e o que foi encontrado. Se isto surpreende Saul, mais surpresas ainda estão por vir. Samuel disse a Saul que lhe contaria tudo quanto estava em seu coração... no dia seguinte (verso 19). Se esta questão das jumentas perdidas não é o que está em seu coração, então, o que é? Creio que são as coisas ditas a seguir por Samuel a Saul, no verso 20: E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? As palavras que Saul diz em resposta a Samuel, registradas no verso 21, são a essência daquilo que Saul terá em seu coração a partir de agora, uma vez que a questão das jumentas já foi resolvida. O que significam as palavras de Samuel? E por que Samuel as diz a Saul? Como pode ser isto, se ele nem mesmo é de uma tribo ou família importante? Creio que isto seja o que Samuel coloca na cabeça de Saul, e que ele explicará mais detalhadamente na manhã seguinte. E assim será.

Samuel, Saul e seu servo seguem seu caminho para o alto, onde Samuel lhes dá o lugar de honra à cabeceira da mesa dos convidados. Samuel é um homem de fé. Quando Deus o informa que o rei virá no dia seguinte (9:16), ele deixa reservado para Saul o lugar do convidado de honra na refeição cerimonial (9:23-24). Ele separou uma porção escolhida, dizendo ao cozinheiro para servi-la quando instruído a fazê-lo (tão logo surgisse o rei prometido). Quando Saul e seu servo se assentam, Samuel instrui o cozinheiro a trazer a porção que estava reservada, à espera de sua chegada. O homem que parece ser um visitante inesperado é, na realidade, esperado, e nenhum outro senão o convidado de honra.

Há mais uma conversa entre Samuel e Saul sobre o eirado antes que Saul se prepare para a noite. Logo cedo na manhã seguinte, Samuel desperta Saul para despachá-lo em particular antes que o povo esteja circulando e observando com grande curiosidade e interesse. Quando eles estão deixando a cidade, Samuel instrui Saul a enviar seu servo adiante para que possa lhe falar em particular. Quando ele faz isto, Samuel toma seu vaso de azeite e unge sua cabeça, beijando-o, e informando que Deus de fato o escolheu para governar sobre todo Israel.

Sem dúvida, esta é uma bomba para Saul. Pelos acontecimentos dos dias anteriores e pelas misteriosas afirmações que Samuel lhe fez, era evidente que ele só poderia estar falando de Saul como o futuro rei. Mas agora não há lugar para mal-entendidos. As palavras e as ações de Samuel (a unção) deixam muito claro que Saul foi designado e ungido para ser o rei. Mas Saul é um homem que precisa de algum convencimento (ver 10:22). Então Samuel profetiza a respeito dos acontecimentos que ocorrerão nas próximas horas. Primeiro, na estrada para o túmulo de Raquel, eles encontrarão dois homens que os informarão sobre aquilo que Samuel já lhes dissera, ou seja, que as jumentas perdidas foram encontradas, e que o pai de Saul estava agora preocupado com seu filho.

Mais adiante, quando alcançarem o carvalho de Tabor, irão encontrar três homens subindo para adorar a Deus em Betel. Um dos homens terá três cabritos, o outro três pedaços de pão, e o terceiro um odre de vinho. Estes três não somente saudarão a Saul e seu servo, eles lhes darão dois pedaços de pão, que eles devem pegar. Este pão servirá como mantimento pelo restante do caminho prá casa.

Os versos 14 a 16 do capítulo 10 são parte da confirmação particular de Deus a Saul de sua escolha como rei de Israel. O escritor descreve os acontecimentos seguintes ao encontro de Saul com Samuel em ordem cronológica; assim, a chegada de Saul em sua casa, e seu diálogo com o tio, vêm depois dele se tornar profeta por algum tempo (versos 10-13). Mas, para seguir com o argumento, a conversa com o tio é parte da confirmação particular de Saul.

Quando Saul chega em casa, seu tio lá está para saudá-lo e questioná-lo sobre o que ele fez nos últimos dias. Saul dá apenas um resumo dos fatos, para que a questão da sua unção não seja levantada ou discutida. Talvez o silêncio de Saul tenha apenas estimulado seu tio, pois, certamente ele está interessado no que aconteceu, especialmente por saber que Saul se encontrou com Samuel. Saul está disposto a lhe dizer somente a parte referente às jumentas; assim, terá que ser Samuel aquele que apresentará publicamente Saul como rei de Israel, o que acontece na próxima seção.

O Rei é Apresentado a Israel
(10:10 - 11:13)

Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas? E, tendo profetizado, seguiu para o alto. Perguntou o tio de Saul, a ele e ao seu moço: Aonde fostes? Respondeu ele: A buscar as jumentas e, vendo que não apareciam, fomos a Samuel. Então, disse o tio de Saul: Conta-me, peço-te, que é o que vos disse Samuel? Respondeu Saul a seu tio: Informou-nos de que as jumentas foram encontradas. Porém, com respeito ao reino, de que Samuel falara, não lho declarou. Convocou Samuel o povo ao SENHOR, em Mispa, e disse aos filhos de Israel: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Fiz subir a Israel do Egito e livrei-vos das mãos dos egípcios e das mãos de todos os reinos que vos oprimiam. Mas vós rejeitastes, hoje, a vosso Deus, que vos livrou de todos os vossos males e trabalhos, e lhe dissestes: Não! Mas constitui um rei sobre nós. Agora, pois, ponde-vos perante o SENHOR, pelas vossas tribos e pelos vossos grupos de milhares. Tendo Samuel feito chegar todas as tribos, foi indicada por sorte a de Benjamim. Tendo feito chegar a tribo de Benjamim pelas suas famílias, foi indicada a família de Matri; e dela foi indicado Saul, filho de Quis. Mas, quando o procuraram, não podia ser encontrado. Então, tornaram a perguntar ao SENHOR se aquele homem viera ali. Respondeu o SENHOR: Está aí escondido entre a bagagem. Correram e o tomaram dali. Estando ele no meio do povo, era o mais alto e sobressaía de todo o povo do ombro para cima. Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa. Também Saul se foi para sua casa, a Gibeá; e foi com ele uma tropa de homens cujo coração Deus tocara. Mas os filhos de Belial disseram: Como poderá este homem salvar-nos? E o desprezaram e não lhe trouxeram presentes. Porém Saul se fez de surdo. Então, subiu Naás, amonita, e sitiou a Jabes-Gileade; e disseram todos os homens de Jabes a Naás: Faze aliança conosco, e te serviremos. Porém Naás, amonita, lhes respondeu: Farei aliança convosco sob a condição de vos serem vazados os olhos direitos, trazendo assim eu vergonha sobre todo o Israel. Então, os anciãos de Jabes lhe disseram: Concede-nos sete dias, para que enviemos mensageiros por todos os limites de Israel e, não havendo ninguém que nos livre, então, nos entregaremos a ti. Chegando os mensageiros a Gibeá de Saul, relataram este caso ao povo. Então, todo o povo chorou em voz alta. Eis que Saul voltava do campo, atrás dos bois, e perguntou: Que tem o povo, que chora? Então, lhe referiram as palavras dos homens de Jabes. E o Espírito de Deus se apossou de Saul, quando ouviu estas palavras, e acendeu-se sobremodo a sua ira. Tomou uma junta de bois, cortou-os em pedaços e os enviou a todos os territórios de Israel por intermédio de mensageiros que dissessem: Assim se fará aos bois de todo aquele que não seguir a Saul e a Samuel. Então, caiu o temor do SENHOR sobre o povo, e saíram como um só homem. Contou-os em Bezeque; dos filhos de Israel, havia trezentos mil; dos homens de Judá, trinta mil. Então, disseram aos mensageiros que tinham vindo: Assim direis aos homens de Jabes-Gileade: Amanhã, quando aquentar o sol, sereis socorridos. Vindo, pois, os mensageiros, e, anunciando-o aos homens de Jabes, estes se alegraram e disseram aos amonitas: Amanhã, nos entregaremos a vós outros; então, nos fareis segundo o que melhor vos parecer. Sucedeu que, ao outro dia, Saul dividiu o povo em três companhias, que, pela vigília da manhã, vieram para o meio do arraial e feriram a Amom, até que se fez sentir o calor do dia. Os sobreviventes se espalharam, e não ficaram dois deles juntos. Então, disse o povo a Samuel: Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Trazei-os para aqui, para que os matemos. Porém Saul disse: Hoje, ninguém será morto, porque, no dia de hoje, o SENHOR salvou a Israel.

Finalmente Saul e seu servo alcançam o monte de Deus, onde a tropa dos filisteus está acampada, e onde ocorre o terceiro sinal. O terceiro sinal é diferente dos dois primeiros em pelo menos duas coisas. Primeiro, é testemunhado publicamente e, pelo menos parcialmente compreendido como algo importante. Já fomos informados sobre a profecia que Samuel deu a Saul a respeito dos dois homens que ele encontraria e depois dos três homens a caminho de Betel, mas não temos um relato completo de como estas coisas ocorrem. Apenas temos a informação geral de que todos esses sinais se deram naquele mesmo dia (10:9). Mas, quando chega a terceira profecia - aquela que fala sobre o Espírito vindo sobre Saul - temos um relato que inclui o impacto que isto tem sobre a nação. Os dois primeiros sinais são quase inteiramente para o benefício exclusivo de Saul. Somente a ele foi dito que estas coisas aconteceriam. Qualquer um que presenciasse o cumprimento destas duas profecias não entenderia que são sinais, pois ignoraria sua predição detalhada. Mas este terceiro sinal é algo que chama a atenção do povo, tanto que se transforma em provérbio.

Segundo, o que acontece a Saul no monte de Deus não é normal, é sobrenatural. O Espírito de Deus desce sobre ele e ele profetiza, junto com aqueles que são conhecidos como profetas. Não há dúvida por parte daqueles que testemunham este acontecimento surpreendente - Saul está entre os profetas. Então, por que isto é importante? É importante porque é uma demonstração pública de que Deus capacitou Saul para julgar a nação. Em Êxodo 18, Jetro, o sogro de Moisés, o aconselha a distribuir o peso do trabalho de julgar a nação. A indicação daqueles 70 juízes é descrita em Números 11, onde todos os 70 profetizam diante dos olhos da nação, demonstrando que o Espírito de Deus está sobre eles, capacitando-os a servirem como juízes. A mesma coisa está acontecendo agora com Saul. O Espírito de Deus veio sobre ele, capacitando-o a julgar a nação como seu rei. Este acontecimento é claramente sobrenatural, e é público. De fato, a mudança de Saul se torna proverbial, para que mesmo aqueles que não testemunhem este sinal possam ouvir falar sobre ele. Esta é a primeira indicação pública de que Saul deve ser o rei de Israel.

A próxima indicação será muito mais notória. Samuel convoca todo o Israel a Mispa (o lugar onde se arrependeram e se voltaram para Deus no início do ministério de Samuel - ver capítulo 7), onde ele se defronta com uma audiência muito ansiosa. Em todo o seu entusiasmo e otimismo pelo que está por vir, Samuel uma vez mais relembra aos Israelitas que sua exigência por um rei é uma manifestação de desobediência e incredulidade. Samuel indica que isto foi (no capítulo 8), e ainda é neste mesmo dia, uma rejeição a Deus. Este Deus, que eles trocaram por um rei humano, é o Único que os livra de todas as suas dificuldades. Não é o seu novo rei quem os livrará delas, pois foi Deus quem sempre os livrou, e quem continuará a livrá-los. A despeito do pecado de Israel, Deus está prestes a lhes dar graciosamente o rei que estão exigindo.

O rei, como visto em Deuteronômio 17:15, deve ser um homem da escolha de Deus, e esta escolha será indicada por sorteio. A primeira restrição é para a linhagem de Benjamim e então, finalmente, para Saul, exatamente aquele que Deus já indicou previamente a Samuel, aquele que Samuel já ungiu como rei. Mas este processo é para o benefício das pessoas da nação, para que sejam convencidos de que Saul é o escolhido de Deus.

Quando Saul é indicado por sorteio, ele não pode ser encontrado em parte alguma. Ninguém parece saber dele ou de seu paradeiro. É por meio de mais uma indagação ao Senhor que Ele indica que Saul está escondido entre a bagagem. O povo corre até lá, encontra Saul e o traz a Samuel. Quando as pessoas olham para Saul, ficam muito impressionadas. Eis um homem que já sabemos que é muito bonito (9:2), e uma vez mais é dito que ele é mais alto que qualquer outro israelita. De fato, Saul é o Golias de Israel, um gigante, e, fora isto, um homem extremamente atraente. De uma perspectiva meramente física, Saul é material de primeira.

Samuel mostra ao povo o que a escolha extremamente agradável de Deus faz. Deus não faz e não dá nenhuma tranqueira. Saul é um magnífico espécimen humano. Ninguém poderia ter pedido melhor. E assim o povo começar a gritar: Viva o rei!’ (verso 24). Neste ponto Samuel esclarece todas as regras que fazem parte do governo real, escrevendo isto num livro que coloca diante de Deus. E então despede o povo para casa.

Da mesma forma, Saul vai para sua casa, acompanhado por um grupo de homens valentes cujos corações Deus tocou. Estes homens parecem ser algo como o serviço secreto de Saul, acompanhando-o aonde quer que vá, protegendo-o de qualquer um que possa querer prejudicá-lo. Estes valentes são mais uma evidência de que Saul, de fato, é o escolhido de Deus como rei de Israel.

No entanto, nem todo o povo entende desta forma, pois nosso texto nos informa que há um grupo - de desordeiros - que não vê Saul como seu libertador. Será que estes homens conhecem o velho Saul tão bem? Eles o desdenham por ter se escondido em meio à bagagem? Ele não é o seu tipo de líder? Realmente não sabemos porque eles olham Saul com desprezo, mas seu pecado mais grave é duvidar e discutir a escolha de Deus. Enquanto todos os outros trazem presentes para Saul, estes desordeiros não. Seu desdém por Saul é óbvio. Todavia, Saul prefere ficar em silêncio e não fazer nada com eles por enquanto. No entanto, eles aparecerão outra vez em nosso texto.

O que os israelitas realmente querem é um rei que os livre de seus inimigos. Eles querem um rei que vá adiante deles na guerra (8:19-20). E, especificamente, eles querem um rei que lide com Naás, o rei dos amonitas (12:12). A prova da realeza de Saul será conclusiva se ele puder liderá-los na guerra com sucesso. O capítulo 11 é justamente sobre tudo isto.

Naás, o rei amonita, sitiou a cidade israelita de Jabes-Gileade. O povo está prestes a desistir e pedir a Naás que declare seus termos de paz. As pessoas de Jabes-Gileade estão dispostas a lhe serem sujeitas; eles parecem realmente não ter escolha. Mas os termos de paz do rei são severos. Ele não apenas quer que a cidade israelita se renda, mas insiste em vazar o olho direito de cada um deles. Isto causará pelo menos duas coisas: 1) humilhará os israelitas; 2) os incapacitará, fazendo com que lutem com grande dificuldade. (Já tentou apontar uma arma ou mirar um arco e flecha sem o olho direito?)

O povo de Jabes pede a Naás sete dias para pedir auxílio a seus irmãos judeus. Se ninguém vier em seu socorro, eles prometem que se sujeitarão a ele. Mensageiros são enviados por todo o Israel, pedindo auxílio. Parece que nada está sendo feito, e que ninguém pretende se envolver. Mas, finalmente, a mensagem chega a Gibeá de Saul, e quando chega, o povo daquela cidade começa a chorar. Saul está vindo do campo e observa o lamento e pergunta o que aconteceu. Quando lhe dizem, fica furioso. Ele mata uma junta de bois (seus bois, ou de algum espectador indiferente?), parte-os em pedaços e envia os pedaços por todo o território de Israel, avisando que, qualquer um que se recuse a se reunir para a guerra, encontrará seus bois mortos da mesma forma. Parece que alguns estavam se desculpando em vir em auxílio de seus irmãos por não poderem se ausentar de suas fazendas naquele momento. As ações de Saul deixam claro que eles não terão nada com que trabalhar em suas fazendas se eles se recusarem a ajudar seus irmãos. Ele ameaça lhes tirar o equivalente a seus tratores.

Um grandioso montante de 300.000 soldados se reúne, 30.000 dos quais são homens de Judá. Uma mensagem é enviada ao povo de Jabes, assegurando-lhes que a ajuda está a caminho. Os homens de Jabes informam a Naás que no dia seguinte irão se entregar. Naás acha que isto significa que eles pretendem se render. O povo de Jabes espera que isto signifique que irão se entregar à luta. E assim, quando os irmãos israelitas atacam os amonitas no dia seguinte, eles realmente se entregam lutando, e o resultado é uma derrota devastadora dos amonitas. Como o texto indica não ficaram dois deles juntos (verso 11).

Saul vira herói num instante. Uma coisa para Saul é estar entre os profetas; ainda outra coisa é ele ser escolhido rei por sorteio. Mas, quando ele é aquele que pode reunir toda a nação e assim derrotar os amonitas, esta é toda a prova que o povo precisa ou quer. E agora, o povo pergunta, Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Deixem que sejam trazidos à frente e tratados por nós!

O momento mais admirável de Saul não é ao reunir a nação para a guerra, nem ao obter a impressionante vitória sobre os amonitas. Seu momento mais admirável é quando trata daqueles de seu próprio povo que falaram contra ele. Saul pode se vingar, e assim fazendo, trazer grande contentamento ao povo, assim como a si mesmo. Mas Saul se recusa a arrefecer o entusiasmo do dia com tal atitude. Foi o Senhor quem salvou a Israel (verso 13), e assim Saul não levantará a mão contra aqueles que desdenharam dele. Israel verdadeiramente tem seu rei, e alguém bom nisso.

Conclusão

Esta última observação provavelmente é a mais inesperada, ou seja, Saul é um bom rei. Infelizmente, antes disso eu só havia considerado Saul em retrospectiva. Não podia olhar para Saul sem primeiro pensar em Davi. E quando pensava em Saul à luz de Davi, Saul sempre ficava em segundo plano, e com boas razões. Além disso, descobri que sou culpado de ver o início de Saul como rei de Israel apenas sob a luz de seus últimos dias, dias que o colocaram sob uma luz bem obscura.

No entanto, se tomarmos este texto como ele se apresenta, precisamos olhar de modo diferente para Saul, à luz dos seguintes fatos: 1) Saul é um gracioso presente de Deus a Seu povo, a despeito de sua exigência pecaminosa em ter um rei. Deus dá Saul a Israel como seu rei por misericórdia e compaixão, pois notou as calamidades e o sofrimento da nação, e mandou Saul livrar o povo, da mesma forma que fez desde o êxodo (9:16; 10:18). 2) Saul não é dado a Israel porque Deus quer que ele fracasse, escolhendo assim a pior espécie humana possível para dar à nação como rei. Deus escolhe um homem fisicamente superior, cuja aparência e estatura parecem se ajustar perfeitamente à tarefa que lhe está sendo dada. 3) Deus sobrenaturalmente capacita Saul, colocando nele Seu Espírito, para habilitá-lo a julgar e a liderar com sabedoria e poder. Qualquer fraqueza que Saul tenha como homem, Deus a trata sobrenaturalmente, para que ele se torne um outro homem (ver 10:6, 9). 4) E, finalmente, Deus identifica Saul de tal forma que ninguém, exceto alguns tolos desordeiros, negam que ele seja o rei indicado.

Deus não está tentando sabotar o reinado de Saul, ainda que certamente Ele saiba que seu reinado fracassará. As falhas de Saul não são devido à sabotagem de Deus, mas ao seu fracasso pessoal em andar nos caminhos de Deus, ao seu fracasso de confiar em Deus e obedecê-Lo. Saul falha em tomar posse dos recursos que Deus graciosamente lhe deu para capacitá-lo a governar com justiça e retidão. Saul não é um rei de segunda classe, dado por um Deus despeitado; ele é um rei de primeira linha, completamente equipado para sua tarefa, e totalmente responsável por suas falhas. Este rei, sem dúvida, não é um Davi, mas também não é um fracassado. Para mim, este é um novo pensamento, mas um pensamento ensinado em nosso texto.

Como Deus é gracioso conosco, apesar de nosso pecado. Deus dá um rei a Israel, mas este rei não é como o rei das outras nações. Este rei é o ser humano mais magnífico disponível, um homem transformado no coração e sobrenaturalmente capacitado pelo Espírito de Deus. Quando Saul anda no Espírito, age como o libertador do povo de Deus. Quando anda no Espírito, reconhece que as vitórias sobre seus inimigos são vitórias de Deus, não suas. Ele é um homem marcado por humildade e graça. Isto mudará, e bem depressa. Mesmo que saibamos que esta mudança ocorrerá, vejamos quão magnífico é este rei, pelo menos por algum tempo.

A vitória militar dos israelitas liderada por Saul (capítulo 11) não é devido a Israel ter um rei, nem a qualquer mérito por parte de Israel, mas unicamente devido à graça e misericórdia de Deus, que ouve o clamor de Seu povo e uma vez mais vem para salvá-lo. Os israelitas depressa abraçam este novo rei. Ele é o tipo de rei que eles querem. Quando Jesus vem como Rei de Israel, Ele não é nenhum Saul. Não tem uma aparência impressionante, que atrai os homens, e não é abraçado entusiasticamente como o Filho de Deus:

Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. (Is. 53:1-3)

Seus seguidores, e mesmo Seus discípulos mais próximos, querem que Jesus seja um rei como Saul, mas Jesus se recusa. Ele não vem para acabar com o governo romano, mas para dar Sua vida em resgate de muitos. Ele vem a um mundo pecaminoso, e suporta a pena de homens vis, para que possam ter seus pecados perdoados e se tornem filhos de Deus. Este é o tipo de rei que muitos rejeitam hoje. Eles gostariam de um rei mais parecido com Saul. Saul é o primeiro rei de Deus, e no início é um bom rei. Mas, na verdade, há somente um único grande rei, e este é Jesus, o Rei dos judeus, que veio à terra como filho do homem (sem deixar Sua divindade), viveu uma vida sem pecado, e foi crucificado por causa do pecado dos homens, e ressurgiu da morte ao terceiro dia. Este é o mesmo Rei que irá voltar, e então, todos O reconhecerão, e todo joelho se sobrará diante Dele. Ele subjugará todos os Seus inimigos e então governará sobre a terra em perfeita justiça. Este é o Rei pelo qual esperamos.

Finalmente, este texto é uma passagem fascinante no que se refere a conhecer a vontade de Deus. Deus revelou através do profeta Samuel que Ele daria um rei a Israel (I Samuel 8). E então, providencialmente (de forma circunstancial) leva Saul e seu servo ao exato lugar onde está Samuel, e à festa onde Saul é um desconhecido (de nome), mas esperado, convidado de honra. Deus revela diretamente a Samuel que o rei chegará no dia seguinte. Quando Samuel vê Saul pela primeira vez, Deus lhe diz que este é o convidado prometido, que deve ser o rei de Israel. E então, por meio de sinais sobrenaturais, por sorteio, e por uma vitória militar espetacular, Ele indica a Saul e a toda a nação de Israel que este homem deve ser seu rei.

Não vemos Saul buscando o reinado, nem mesmo buscando a Deus em oração. Ele está disposto a encontrar Samuel para pedir orientação divina a fim de encontrar suas jumentas, mas isto somente depois que seu servo dá a idéia e se oferece para pagar por isto. Saul é designado como rei de Israel quando cuida dos afazeres diários da vida. Quem pensaria que este homem começaria procurando jumentas e acabaria sendo apontado como o rei de Israel?

Parece também que Samuel obtém a orientação divina ao cuidar do curso normal de sua vida e ministério. Samuel está ministrando como sempre faz, quando Deus lhe diz que o rei chegará no dia seguinte. Samuel compreende a vontade de Deus a respeito do rei de Israel, quando desempenha fielmente seus deveres como profeta e juiz de Israel. Deus tem um jeito de tornar clara Sua vontade para nós, quando nos é necessário conhecê-la. Ele não tenta esconder Sua vontade, e quando é seu intento revelá-la, não podemos evitá-la. A vontade de Deus não é um segredo que precisa de uma técnica especial para ser conhecido.

Quando você se levantar amanhã de manhã, pense neste texto e no que ele implica. Que tarefa irritante estará em seu caminho? Será procurar jumentas perdidas? Provavelmente não, mas haverá algumas tarefas cotidianas e irritantes, que parecem consumir sua vida com pouco significado. Deus tem um modo de usar tais tarefas irritantes como meios para fins muito maiores.

Israel ansiosamente aguarda a chegada de seu rei. Cada ação, cada palavra de Samuel é vista com grande expectativa e interesse. Se estes antigos israelitas aguardavam tão ansiosamente seu primeiro rei, quanto mais ansiosos devemos estar pela vinda do Rei dos reis, nosso Senhor Jesus Cristo? Será que iniciamos cada dia nos perguntando se este é o dia? Estamos cuidando fielmente de nossas obrigações, ansiosos em agradar ao Rei que vem? Vamos começar cada dia com senso de ansiosa antecipação, sabendo que a vinda de nosso Rei pode ser hoje.

8. Renovando o Reino (I Samuel 11:14 -12:25)

Introdução

Na semana passada, eu e minha esposa Jeanette tivemos uma nova experiência - tornamo-nos avós pela primeira vez! Depois de 25 horas de trabalho de parto (de minha filha), nasceu Taylor Nicole. Há sempre uma sensação de alegria e otimismo no nascimento de uma criança, tal como numa festa de casamento. Mas você e eu sabemos que esta alegria, com o tempo, será vista por outro ângulo. Um pequeno recém-nascido, adorável e indefeso, logo fará dois anos e então será um adolescente! Tempos difíceis virão para seus pais, e todos nós que somos pais sabemos disto. Tempos difíceis virão também para os recém-casados.

Quando penso em nosso texto de I Samuel, lembro-me de um retrato que tirei anos atrás, quando estava no colégio. Nossa família tinha ido acampar... Nosso primeiro e único acampamento. O retrato foi tirado nas montanhas do Parque Nacional Glacier em Montana. Na foto, o céu está azul, com poucas nuvens. Meus pais, minhas duas irmãs e meu irmão caçula estão sentados à frente de nossa barraca, todos com um sorriso no rosto. Que coisa maravilha é acampar! Como podíamos ter perdido tais prazeres até agora? Poucas horas depois, o retrato é completamente diferente - um retrato que só existe na minha cabeça, pois as coisas ficaram caóticas demais para tirar fotos, no meio da noite, em meio a uma tempestade das montanhas, com uma barraca enfiada numa poça d’água de quase cinco cm. (Por que será que ninguém nos falou para armar a barraca num lugar alto com a porta para o lado oposto ao vento?)

As coisas nem sempre terminam do jeito que começam, como vemos com Saul, o novo rei de Israel. Em I Samuel 8, o povo exige um rei para governá-los, como todas as nações. Isto dá a entender que Samuel vai se aposentar e ser substituído. Samuel não gosta daquilo que ouve, e com razão. Ele adverte o povo sobre os altos custos de um rei, e os israelitas dizem que estão dispostos a pagar o preço. Assim, Samuel manda o povo de volta para casa, com a promessa de que terão seu rei. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que levam à designação pública de Saul como rei de Israel. O capítulo 11 fala sobre Naás, o amonita, que sitia Jabes-Gileade e exige a rendição desta cidade israelita, anunciando que, quando se renderem, ele vazará o olho direito de cada inimigo derrotado. O povo da cidade pede tempo para buscar ajuda com seus irmãos, algo que Naás parece entender de modo diferente. Quando os mensageiros são enviados de Jabes-Gileade com o pedido de socorro, a notícia sobre estes irmãos israelitas em apuros chega a Gibeá de Saul. Quando Saul volta do campo, fica sabendo da situação e se enfurece pelo Espírito do Senhor. Ele dilacera uma junta de bois, enviando os pedaços por todo o território de Israel, com o aviso de que, qualquer um que não se ajunte para guerrear encontrará seus bois do mesmo jeito. Todo o Israel se ajunta - 330.000 homens. Deus dá uma grande vitória sobre os amonitas, libertando o povo de Jabes-Gileade de sua tirania.

No que diz respeito ao povo, esta é uma prova positiva de que Saul é o tipo de rei que eles querem. Ele é o homem! A grande comemoração que se segue é mais ou menos como a comemoração de um time vencedor do Super Bowl (torneio de boliche). É como um comercial de cerveja, onde um israelita se vira para outro e diz: “Cara, não tem nada melhor do que isto!” É como um candidato presidencial recebendo a notícia de sua eleição na sede de sua campanha eleitoral. Se os israelitas tivessem uma banda, eles tocariam “Os dias felizes voltaram...”

Neste exato momento, Samuel convoca o povo para ir a Gilgal, onde eles “renovarão o reino” (11:14). Saul é constituído rei, sacrifícios são feitos perante o Senhor e os “homens de Israel muito se alegram” (11:15). Mas que negócio é este de “renovar o reino”? Se Saul é o primeiro rei de Israel, então ele é o “novo” rei. Como, então, eles podem “renovar o reino”, proclamando Saul como rei?

Cheguei à conclusão de que Samuel não está falando sobre a ”renovação” do novo reino que acaba de ser inaugurado com a investidura de Saul como rei, mas da “renovação” do reino de Deus, com Deus como Rei, como já fora estabelecido no êxodo. Existem duas razões muito fortes para isto. Primeiro, há toda a mensagem e ênfase do capítulo 12, que iremos considerar por alguns instantes. Segundo, a “renovação” deve acontecer em Gilgal, não em Mispa (ver 7:5 e ss). Gilgal é a cidade que está daquém (a oeste) do Jordão. É o lugar onde os israelitas cruzaram o rio Jordão pela primeira vez e entraram na terra prometida, o lugar onde foi construído o memorial de 12 pedras. É o lugar onde os israelitas (a segunda geração) foram circuncidados e onde Israel renovou sua aliança com Deus (ver Josué 4 e 5). Gilgal é o lugar aonde o “anjo do Senhor” veio relembrar aos israelitas a sua libertação no êxodo, sua aliança com Deus e a razão para guerrear com as nações à sua volta (Juízes 2:1-5). É também uma das cidades do circuito de Samuel (I Samuel 7:16) e o lugar onde ele diz para Saul esperá-lo (I Samuel 10:8); Gilgal é a cidade que tem maior ligação com a aliança entre Deus e Israel.

A Inocência de Samuel e a Culpa de Israel
(12:1-5)

Então, disse Samuel a todo o Israel: Eis que ouvi a vossa voz em tudo quanto me dissestes e constituí sobre vós um rei. Agora, pois, eis que tendes o rei à vossa frente. Já envelheci e estou cheio de cãs, e meus filhos estão convosco; o meu procedimento esteve diante de vós desde a minha mocidade até ao dia de hoje. Eis-me aqui, testemunhai contra mim perante o SENHOR e perante o seu ungido: de quem tomei o boi? De quem tomei o jumento? A quem defraudei? A quem oprimi? E das mãos de quem aceitei suborno para encobrir com ele os meus olhos? E vo-lo restituirei. Então, responderam: Em nada nos defraudaste, nem nos oprimiste, nem tomaste coisa alguma das mãos de ninguém. E ele lhes disse: O SENHOR é testemunha contra vós outros, e o seu ungido é, hoje, testemunha de que nada tendes achado nas minhas mãos. E o povo confirmou: Deus é testemunha.

Neste parágrafo, Samuel coloca a si mesmo em julgamento diante de Deus e de todo o povo. Creio que seja por causa das acusações que Israel faz ou insinua contra ele no capítulo 8, e que eles consideram ser motivo suficiente para sua substituição por um rei. Em vez de ficar constrangido pelas acusações, Samuel as expõe publicamente, desafiando quem quer que seja a acusá-lo de má conduta, especialmente em relação a seus deveres oficiais.

Várias alegações são feitas no capítulo 8, as quais são consideradas por Samuel em nosso texto. A primeira coisa que Samuel diz ao povo é que ele os ouviu e lhes concedeu o que pediram. Não espere isto de um rei. Samuel não foi insensível aos seus desejos, nem indiferente. Segundo, ele chama a atenção para a sua idade, dizendo-lhes que está “velho e cheio de cãs”. No capítulo 8 eles insinuaram que ele estava velho demais para desempenhar suas tarefas de julgar a nação. Que conclusão absurda! Será que a idade é de alguma forma incompatível com a habilidade de julgar sabiamente? Dê uma olhada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Será que é melhor ter uma corte cheia de jovens recém saídos do colégio ou da Faculdade, ou com pessoas que tenham sido amadurecidas por anos de experiência? Samuel não está velho demais para desempenhar seu chamado como juiz. Ele ainda continuará a servir este povo por algum tempo. Ele não está com o “pé na cova”.

O ministério de Samuel é público, e seus filhos estão lá entre os israelitas. Sua integridade e generosidade devem ser visíveis, assim como seus defeitos. No capítulo 8, os israelitas chamam a atenção para a conduta dos filhos de Samuel. Eles os acusam de não “andar nos caminhos de seu pai” (ver 8:5), e as acusações são verdadeiras (ver 8:1-3). A questão é se Samuel lidou com seus filhos da maneira como deveria. Tudo indica que ele não tem culpa, ao contrário de seu predecessor, Eli.

Se Samuel não tem culpa quanto à sua família, será que ele tem culpa quanto ao seu ministério? Será que Samuel de alguma forma falha em serviço, para que os israelitas peçam sua demissão e substituição por um rei? A resposta é muito clara “não!” Samuel afirma sua inocência e integridade no ministério sob três aspectos. Primeiro, ele não defraudou ninguém. Ele não cometeu nenhuma injustiça para que as pessoas fossem defraudadas devido à distorção ou abuso no processo judicial. Segundo, ao contrário de seus filhos, ele não recebeu suborno para distorcer a justiça em seus julgamentos (ver 8:3). Terceiro, ele garante que não oprimiu ninguém. Ele não abusa de seu poder para oprimir aqueles a quem julga. Ele é “servo”, não “senhor”. Finalmente, Samuel não “tomou o boi ou o jumento de ninguém”. Não creio que ele esteja falando sobre furto. Creio que ele queira dizer que não tomou bois ou jumentos como os reis farão:

“Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.” (I Sam. 8:16)

Como o apóstolo Paulo, Samuel não cobra por seu ministério. Certamente ele vive de sua porção dos sacrifícios, mas não cobra um alto preço por isto. Seus encargos, com toda a certeza, não são tão dispendiosos quanto serão os encargos do rei.

Se Samuel “não é culpado” das acusações feitas pelos israelitas contra ele, então, por inferência, Israel deve ser culpado por fazer acusações infundadas. Os cinco primeiros versos do capítulo 12 demonstram que Samuel é qualificado para julgar Israel e, desta forma, qualificado para julgar o caso de Deus contra eles nos versos seguintes. Samuel é inocente, conseqüentemente, Israel procura injustamente sua destituição. Samuel é inocente, por isso, pode chamar esta nação rebelde a prestar contas de seu pecado contra ele e contra Deus.

Uma Lição da História de Israel
(12:6-11)

“Então, disse Samuel ao povo: Testemunha é o SENHOR, que escolheu a Moisés e a Arão e tirou vossos pais da terra do Egito. Agora, pois, ponde-vos aqui, e pleitearei convosco perante o SENHOR, relativamente a todos os seus atos de justiça que fez a vós outros e a vossos pais. Havendo entrado Jacó no Egito, clamaram vossos pais ao SENHOR, e o SENHOR enviou a Moisés e a Arão, que os tiraram do Egito e os fizeram habitar neste lugar. Porém esqueceram-se do SENHOR, seu Deus; então, os entregou nas mãos de Sísera, comandante do exército de Hazor, e nas mãos dos filisteus, e nas mãos do rei de Moabe, que pelejaram contra eles. E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.”

Aqui vemos outro exemplo de “pensamento histórico” na Bíblia. Samuel leva os israelitas de volta ao início do “reino”, o qual foi estabelecido por Deus no êxodo, e traça brevemente sua história até o presente. Seu objetivo é demonstrar que sua exigência em ter um rei como as demais nações nada mais é senão outro caso de rebelião contra Deus - como a rebelião característica de seus antepassados.

A história de Israel como reino começa no êxodo. A primeira coisa enfatizada por Samuel aos israelitas de seus dias é que, em última análise, não foram Moisés e Arão quem os libertou do cativeiro egípcio - foi Deus (verso 7). Foi Deus quem “designou Moisés”, e foi Deus quem “tirou seus pais da terra do Egito”. Desde o princípio, nunca foram os homens - nem mesmo os grandes homens como Moisés - que libertaram Israel, foi Deus. Deus levanta líderes e Deus liberta Seu povo. Deus usa os homens, é verdade, mas os homens não salvam o povo de Deus.

Com base nesta verdade central – de que foi Deus o libertador de Israel e não os homens - Samuel convoca os israelitas a se colocarem diante do Senhor (verso 7). Os israelitas estão sob julgamento e Samuel é o promotor. A História é a primeira testemunha contra Israel. A história de Israel não é sobre sua retidão e as bênçãos recebidas; a história de Israel é sobre os feitos justos de Deus, realizados em seu benefício, sempre num contexto de pecado de Israel. Foi a justiça de Deus que libertou os antepassados daqueles israelitas que estão diante de Samuel em Gilgal.

Brevemente, Samuel delineia a história de Israel desde o dia do nascimento da nação no êxodo até o presente momento, quando Israel tem o rei exigido. Citando ilustrações dos principais períodos (o êxodo e a peregrinação de Israel no deserto, a posse da terra sob Josué e o período dos juízes, terminando com Samuel), Samuel procura demonstrar um padrão constante no comportamento de Israel, e no trato de Deus com Seu povo. Embora Deus dê graciosamente a Seu povo a libertação de seus inimigos, Israel se esquece de Deus e se volta para outros deuses. Deus entrega a nação a seus vizinhos, que são inimigos de Israel e que oprimem e afligem o povo de Deus. Os israelitas, então, reconhecem seu pecado e clamam a Ele por libertação, o que Ele graciosamente concede. Eles reconhecem sua idolatria e a abandonam, prometendo servir a Deus se Ele os livrar novamente.

A Lição da História e da Exigência de Israel por um Rei
(12:12-18a)

“Vendo vós que Naás, rei dos filhos de Amom, vinha contra vós outros, me dissestes: Não! Mas reinará sobre nós um rei; ao passo que o SENHOR, vosso Deus, era o vosso rei. Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais. Ponde-vos também, agora, aqui e vede esta grande coisa que o SENHOR fará diante dos vossos olhos. Não é, agora, o tempo da sega do trigo? Clamarei, pois, ao SENHOR, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade, que tendes praticado perante o SENHOR, pedindo para vós outros um rei. Então, invocou Samuel ao SENHOR, e o SENHOR deu trovões e chuva naquele dia...”

No verso 12, Samuel relaciona a história que acaba de contar com o tempo presente. Como os antigos israelitas, o povo de Deus uma vez mais está sendo oprimido por uma nação vizinha. Desta vez Naás lidera os amonitas. A reação dos israelitas da época de Samuel à ameaça dos amonitas não é como a reação descrita por ele nos versos anteriores. Quando oprimidos por seus inimigos, os israelitas dos tempos passados viam sua situação à luz da Aliança Mosaica, especialmente à luz de Deuteronômio 28-32. Eles compreendiam que a opressão sofrida às mãos de seus inimigos era devido ao seu pecado. Os antigos israelitas se arrependiam de seus pecados e clamavam a Deus por libertação. Não é assim com estes que estão diante de Samuel em Gilgal. Este pessoal não reconhece que a razão de suas tribulações é o pecado. Eles atribuem seus problemas à “má liderança”, especificamente à “má liderança” de Samuel e seus filhos. Sua solução não é se arrepender de seus pecados e clamar a Deus por libertação; sua solução é se livrar de Samuel e conseguir um rei exatamente como o de outras nações.

Quando Samuel fala sobre Naás e os amonitas no verso 12, ele mostra a verdadeira razão dos israelitas quererem um rei. Eles não reconhecem seu pecado, nem confiam em Deus para libertá-los. Não é que Samuel realmente esteja tão velho, velho demais para continuar julgando. Não é que realmente seus filhos sejam corruptos. É que os israelitas estão com medo da ameaça feita pelo inimigo e não reconhecem que a raiz do problema seja seu próprio pecado. Eles jogam a culpa na má liderança, e por isso se sentem justificados em ter um rei que querem de qualquer jeito.

Anos atrás, dei aulas numa prisão de segurança média que possibilitava aos internos obter seu diploma do segundo grau. Um dia, surgiu o assunto da teoria da evolução, e mostrei que creio na criação, não na evolução. Jamais me esquecerei do que disse um dos internos: “Vou lhe dizer por que acredito na evolução”, disse ele com ousadia, “é porque não acredito em Deus”. Receio que os israelitas dos dias de Samuel fossem como este sujeito. Repare no “não” do começo de sua resposta a Samuel no verso 12. Eles não querem a liberdade do jeito de Deus; querem do seu jeito. Eles realmente querem a liberdade, mas de um jeito que exclua a Deus. Não é de admirar que Deus diga a Samuel que o povo não rejeitou a ele e sim a Deus.

A despeito do pecado de Israel em pedir um rei, Deus é gracioso para com Seu povo, mostrando-lhes “uma saída” nos versos 13-15 (ver I Co. 10:13). A primeira coisa que Samuel diz ao povo sobre este rei é que ele é seu rei, não Seu rei. Este rei é aquele que eles escolheram, que eles pediram (verso 13). Deus lhes dá este rei, mas ele é seu rei. Os versos 14 e 15 devem dar muito que pensar aos israelitas. Será que eles consideram que este rei seja seu libertador? Será que eles põem toda a sua confiança neste homem, ou em qualquer outro (simples) homem? Se for assim, as palavras de Samuel devem ser um choque.

Parece que os israelitas dos dias de Samuel têm a mesma visão de liderança que é tão popular hoje em dia, ou seja:

“Tal líder, tal nação”.

Há certa verdade nisto. Reis corruptos geralmente tendem a levar a nação ao pecado. Líderes justos tendem a levar a nação a praticar a justiça. Mas aqui Samuel está dizendo uma coisa bem diferente. Será que os israelitas estão vendo seu rei como um “deus”, alguém que eles pensam que será seu salvador? Será que eles pensam ter o homem certo para lhes garantir a vitória militar sobre seus inimigos, trazendo paz e prosperidade? Samuel parece dizer que a obediência da nação aos mandamentos do Senhor é que é a chave para a paz e prosperidade nacional - não as proezas de seu líder. Se o povo “temer ao SENHOR, e o servir, e lhe atender à voz, e não lhe for rebelde ao mandado, e seguir o SENHOR, seu Deus, tanto eles (literalmente “vocês”) como o seu rei que governa sobre eles, bem será. (verso 14)

O rei não é a chave para o sucesso de Israel. A chave é Israel confiar em Deus e obedecê-Lo. Uma nação ímpia terá um rei ímpio. Uma nação justa terá um rei justo. Absolutamente nada mudou com a designação de um rei sobre Israel. O princípio dominante ainda é a Aliança Mosaica, resumida em Deuteronômio 28-32. Israel será abençoado enquanto confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos e, da mesma forma, será amaldiçoado por se afastar de Deus e de Suas leis. Se a nação confiar em Deus e obedecê-Lo, Israel terá um rei justo e provará as bênçãos prometidas. Se a nação se afastar de Deus, seu rei certamente não a salvará do julgamento divino. As condições de Deus para Suas bênçãos são as mesmas que eles sempre tiveram e ter um rei não mudará nada. Deus não abdicou de ser o rei de Israel. Sua aliança ainda é a constituição do país.

No auge do sucesso de Israel sob a liderança de seu novo rei, Deus põe os pingos nos is. A mesma aliança, a Aliança Mosaica, ainda rege os tratos de Deus com Seu povo. Samuel informa aos israelitas a gravidade de seu pecado em pedir um rei como fizeram. Ainda assim, suas palavras não causam o efeito desejado; por isso, ele ressalta a seriedade de seu pecado à vista de Deus invocando a disciplina divina. De certo modo, mais ou menos como Elias, Samuel anuncia o julgamento divino como indicação da seriedade do pecado de Israel em pedir um rei. Ele deixa claro que o juízo virá em relação à colheita do trigo, que é iminente. Embora não seja época de tempestade ou chuva de granizo, em resposta à oração de Samuel, um grande temporal desaba sobre o país. Esta questão do rei é muito séria para Deus, e agora também para Seu povo.

O temporal faz o povo se lembrar de que Samuel é profeta de Deus, e que rejeitá-lo não é uma boa idéia. O temporal dá grande ênfase às palavras de Samuel, as quais mostram que a exigência por um rei é pecado. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, isto faça Israel se lembrar de uma verdade muito importante: tanto a calamidade quanto a bênção vêm de Deus:

“Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro. Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas.” (Isaías 45:5-7, ênfase minha)

Os israelitas consideram seu rei como seu libertador. Na cabeça deles, este rei é a chave para o sucesso. Eles acreditam que ele os livrará de seus opressores e que levará a nação à prosperidade. Basicamente, Deus faz Israel se lembrar de que Ele é tanto a fonte de seu sofrimento, quanto de suas bênçãos. A calamidade vem sobre a nação por causa do seu pecado. As bênçãos não vêm sobre a nação devido à sua justiça, mas por causa da graça e da misericórdia de Deus. Sua prosperidade não é porque Israel faz o bem, mas porque quando está sofrendo, ele clama a Deus por libertação. A devoção de Israel a Deus e seu serviço a Ele são frutos da graça de Deus, não a fonte de Suas bênçãos. Em nosso texto esta verdade é claramente transmitida.

Maravilhosas Palavras de Vida
(12:18b -25)

“... pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao SENHOR, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o SENHOR, mas servi ao SENHOR de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são. Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo. Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o SENHOR, deixando de orar por vós; antes, vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.”

Os israelitas investiram demais no novo rei e as palavras e atitudes de Samuel colocam as coisas no lugar certo. Em conseqüência de sua pregação - e, especialmente, do temporal - o povo “...temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel” (verso 18b). É assim que deve ser. Embora não seja dito expressamente, creio que podemos deduzir que a opinião do povo sobre o rei diminui, enquanto seu conceito sobre Samuel e Deus aumenta. Agora, o povo está começando a compreender a enormidade de seu pecado, especialmente o pecado de exigir um rei. Parece que eles temem mais disciplina. Eles rogam a Samuel que ore por eles. As palavras de Samuel em resposta ao seu pedido são realmente “maravilhosas palavras de vida”. Vamos destacar alguns elementos neste parágrafo.

Primeiro, repare que o povo não olha para o rei para ser liberto, mas para Samuel. Agora os israelitas reconhecem que seu principal problema não é a “liderança” política, mas o pecado. Eles entendem perfeitamente que merecem a ira de Deus. Eles sabem que a libertação de que mais precisam não é a de seus vizinhos, mas da justa ira do Deus que eles rejeitaram. Eles sabem que não são dignos da libertação e sentem a necessidade de um intercessor. Por isso, suplicam a Samuel que ore por eles ao Senhor (verso 19).

Segundo, observe que Samuel estimula o povo de Israel a confiar em Deus em vez de confiar nos homens. Suas palavras são cheias de misericórdia, graça e esperança. Sua mensagem não é a das ”uvas azedas” por ter sido rejeitado pelo povo. Ele lhes diz para não temer. O temor que ele procura afastar não é aquele temor saudável de Deus, mas o temor doentio da desesperança, um temor que poderia levar ao desespero. Os israelitas parecem estar a ponto de concluir que seu fracasso tenha sido tão grande que não haja nenhuma esperança de restauração. Sem diminuir a gravidade do pecado, Samuel lhes dá boas razões para ter fé, esperança e paciência. Eles não devem “se desviar de seguir o SENHOR” (verso 20), mas, com toda certeza, deixar de seguir as “coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco podem livrar” (verso 21). A libertação de Israel de seus pecados, e sua esperança para o futuro, requer que o povo pare de adorar e servir seus ídolos para adorar e servir somente a Deus. Especificamente, a ”coisa vã que não beneficia ou liberta Israel” é um rei em quem confiem e sirvam em lugar de Deus. Ter um rei, em si mesmo, não é errado. O que é errado é confiar em qualquer homem para salvação e libertação da culpa pelo pecado. Somente Deus pode verdadeiramente salvar e libertar.

Terceiro, a salvação de Israel não se fundamenta na sua fidelidade ou nas suas boas obras, mas na graça de Deus. Em lugar algum Samuel incentiva Israel a “se esforçar mais” ou a fazer o bem para receber as bênçãos de Deus. Samuel lhes diz para confiar em Deus, cuja fidelidade é a base para sua esperança e salvação. A obediência de Israel e seu serviço a Deus são considerados como conseqüências da graça de Deus, não a sua causa.

“Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez.” (I Sam; 12:24)

Quando Samuel recapitula a história da nação desde o êxodo até seus dias, ele enfatiza de forma consistente os pecados dos israelitas e a graça e misericórdia de Deus. Jamais Samuel fala da salvação de Deus como resposta às boas obras de Seu povo. Deus vem em socorro de Seu povo pecador porque eles “clamam” (12:8, 10) a Ele por libertação, não porque sejam dignos disso. Deus os salva por Sua graça.

Este é um ponto importante que deve ser muito bem esclarecido e enfatizado à luz da Aliança Mosaica. Samuel deixa claro neste capítulo que ter um rei não muda as bases do trato de Deus com Seu povo. A Aliança Mosaica fala das bênçãos e maldições condicionais de Deus (ver Levítico 26; Deuteronômio 28-32). Nesta aliança, muito menor ênfase é dada às promessas de bênçãos por obediência às leis de Deus do que às promessas de maldição por desobediência. Há uma boa razão para isto, como Paulo mostra em Romanos 3:

“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.”

A Lei de Moisés (portanto, a Aliança Mosaica) jamais foi dada aos homens como meio de salvação. Ela, sem dúvida, foi um recurso de Deus para mostrar a pecaminosidade do homem. A Lei condena todos os homens como pecadores, dignos da ira eterna de Deus. Cumprir a Lei não salva o homem, pois nenhum homem jamais conseguiu cumprir toda a Lei. Quando Samuel fala da Aliança Mosaica aos israelitas, ele o faz para mostrar que o julgamento de Deus (entregando-os à opressão de seus vizinhos) é devido ao seu fracasso em cumprir Sua lei. Mas, quando fala da esperança de Israel, Samuel não incentiva o povo a tentar ganhar as bênçãos de Deus cumprindo Sua Lei. Antes, eles os incentiva a confiar na graça e misericórdia de Deus, que os escolheu como Seu povo e que lhes trará salvação para a Sua glória.

Eis o fundamento para a esperança, confiança e serviço de Deus. A Sua fidelidade:

“Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo.” (12:22)

Antes mesmo que o Senhor desse a Lei aos israelitas, eles já tinham se afastado Dele e de Moisés, como vemos em Êxodo 32. Como Samuel, Moisés intercedeu por eles. Ele não apelou para Deus com base em que povo se esforçasse mais, que guardasse Sua Lei. Ele apelou para Deus com base no Seu caráter e na Sua natureza. Deus escolhera esta nação, e propusera e prometera levá-los à Terra Prometida. Sua reputação e Sua glória estavam em jogo no destino de Israel. Por isso, podemos confiar que Deus termina aquilo que começa - não por causa daquilo que somos - mas por causa de quem Ele é. A Lei pode apenas mostrar que os homens são pecadores, dignos do juízo divino. É a graça que salva e santifica. É a graça que capacita e dá fé e obediência. E é a graça, a graça de Deus, que Samuel proclama a este povo cheio de culpa, garantindo-lhes que a salvação de Deus é certa por causa de quem Ele é.

Esta salvação é pela graça - para aqueles que pela Sua graça “temem o Senhor e O servem de todo coração”, com base em “tudo aquilo que Deus fez por eles” (verso 24). Mas, para aqueles que rejeitam esta graça, o juízo divino é tão certo quanto a salvação:

“Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (verso 24)

Se o povo rejeitar a graça de Deus e seguir seus próprios caminhos, eles serão levados para o cativeiro prometido na Aliança Mosaica (ver Levítico 26:33-39; Deuteronômio 28:63-68).

Se Deus é gracioso e fiel em Sua aliança com Israel, Samuel também é. O povo agora lhe pede para interceder por eles junto a Deus, apesar de terem rejeitado sua liderança sobre eles. Como Deus, Samuel age graciosamente e de acordo com seu caráter. Ele garante ao povo que não pecará contra Deus deixando de orar por eles e de ensiná-los “o caminho bom e direito” (verso 23). Como no Novo Testamento, “orar e ministrar a Palavra” (ver Atos 6:4) são prioridades para os líderes espirituais. Samuel não tem nenhuma intenção de pecar contra Deus abandonando seu ministério.

Conclusão

Nosso texto tem muita coisa a dizer aos homens de nossa época, exatamente como tem dito aos homens de todas as épocas. Uma das coisas que ele nos ensina é a termos cuidado para não secularizar o pecado. Os israelitas dos dias de Samuel não conseguem entender que seus problemas (a opressão que sofrem das nações vizinhas) são de origem divina, e que a disciplina divina é conseqüência (e correção) de seus pecados. Eles vêem sua sujeição aos governos estrangeiros como conseqüência de uma liderança inadequada. Deus mostra que o verdadeiro problema é o pecado. Receio que façamos a mesma coisa. Definimos um problema resultante de pecado em termos seculares e depois buscamos uma solução secular.

A igreja de Jesus Cristo está quase acostumada a definir o pecado em termos seculares e a procurar a solução por meios humanos. Quando a igreja trata de suas finanças, busca os mesmos métodos e os mesmos homens que levantam grandes somas de dinheiro para causas seculares. Quando a igreja trata de sua organização e estrutura, busca os mesmos modelos seculares empregados por grandes corporações. Quando a igreja se propõe a evangelizar, busca a mesma estratégia de marketing usada pela Madison Avenue para vender sabonete e creme de barbear. E quando a igreja procura solucionar problemas particulares e pessoais busca terminologia e metodologia psicológica secular. Quando definimos o “pecado” em termos seculares e buscamos sua solução por meios seculares nos metemos numa grande encrenca.

Que grande comentário temos neste texto sobre o caráter de Deus e de Seu servo, Samuel. Não é de admirar que a rejeição a Samuel seja rejeição a Deus. Nem é de se estranhar que a fidelidade de Deus ao povo de Israel tenha seu paralelo na fidelidade de Samuel em ministrar a este povo. O caráter de Samuel é como o caráter de Deus e sua origem está em Deus. Que Deus gracioso nós temos, que nos disciplina quando pecamos, a fim de que nos voltemos novamente para Ele em fé, obediência, amor e gratidão.

Nosso texto fala sobre liderança e sobre como algumas pessoas idolatram seus líderes. A liderança é de vital importância, seja na vida de uma nação, seja na família ou na igreja. Líderes piedosos são exemplos (ver I Timóteo 3, Tito 1, Efésios 5:22-23). No entanto, os líderes sempre correm certo perigo. Deus é o nosso supremo e derradeiro líder; Ele é tudo. Satanás jamais ficará satisfeito com seu papel. Ele quer mais. Ele quer ser “como Deus”, para estar na posição que somente Deus é digno de estar. Alguns cristãos elevam seus líderes acima dos padrões adequados. Erroneamente podemos “idolatrar” nossos líderes e colocar neles a nossa fé em vez de colocá-la em Deus. Foi isto que os israelitas fizeram com Saul, e é por isso que o pecado de Israel é tratado em termos tão dramáticos. Este é um perigo que está sempre diante de nós. Que jamais demos aos homens aquilo que pertence somente a Deus. Que jamais pensemos que “um homem” possa nos salvar e que o nosso futuro ou o futuro de nossa igreja ou de nosso país dependam de um homem. É deveras importante que nos lembremos disto nas eleições presidenciais. Os homens jamais devem ser idolatrados. Deus é a fonte suprema de nossas provações, tribulações e correção, e Deus é a fonte suprema de nossa salvação e bênção. Na melhor das hipóteses, os homens são apenas instrumentos de Deus.

Nosso texto fica como uma palavra de alerta para aqueles que parecem ser bem sucedidos. Certamente o texto coloca o aparente “sucesso” de Saul dentro da perspectiva correta. O povo fica radiante após a vitória sobre os amonitas, mas tende a considerar seu “sucesso” como conseqüência da liderança de Saul. Na verdade, este livramento, como todos os demais antes dele, é reflexo da graça de Deus, não evidência de uma liderança magnífica. Aqueles que parecem ser bem sucedidos devem tomar cuidado com sua definição de sucesso, assegurando-se de atribuir todo sucesso humano à graça divina, não à habilidade e sabedoria humana.

Nosso texto mostra uma palavra de esperança e encorajamento para aqueles que são arruinados por seus pecados e deixam de viver de acordo com os padrões de Deus. Muitos pensam que fracassaram de forma irreversível, que não haja nenhuma esperança de futuro para eles, e por isso ficam tentados a abandonar sua vida cristã. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23). Pelos padrões de Deus, nenhum homem é bem sucedido, todos falham e merecem a ira eterna de Deus. Nossa esperança de salvação não se baseia em nosso desempenho, mas na graça de Deus. Enfim, não somos nós que escolhemos a Ele, é Ele quem nos escolhe, a fidelidade não é nossa, é Dele. Deus é fiel. Deus é misericordioso. Deus é gracioso. Deus é a nossa salvação. Jesus Cristo não veio ministrar para os justos, mas para salvar pecadores. Que todos aqueles que conhecem suas falhas pensem nesta maravilha.

Este texto fala sobre salvação. Os israelitas dos dias de Samuel confiam em Saul (seu rei) para sua salvação, sua libertação. Eles consideram a salvação em termos militares e monetários, não em termos espirituais. Nosso texto nos diz que nenhum “rei” humano pode salvar ou libertar os homens de seus pecados. O que o “rei” de Israel não pode fazer o “Rei” de Deus já fez - a salvação para os homens pecaminosos que clamam por Sua graça. Todos os “reis” de Israel falharam, mesmos os melhores - Davi, Salomão e outros. Os israelitas são tentados a tomar um homem, nomeá-lo como rei e confiar nele como seu deus. Esse rei não pode salvar. Mas Deus enviou o Seu próprio Filho, Jesus Cristo, para ser o “Rei dos Judeus”, para todos os que crêem Nele. Deus (a segunda pessoa da Trindade) Se fez homem, vindo a primeira vez para viver uma vida perfeita, morrer pelos pecados dos homens e ser ressuscitado dos mortos e ascender aos céus. Este, Jesus Cristo, é o Rei de Deus. Ele veio para salvar os homens de seus pecados e em breve voltará para estabelecer Seu reino. Ele é a nossa esperança! Ele é a nossa salvação! Aquilo que um rei dos homens jamais poderia fazer, o Rei de Deus já realizou.

Você não tem que ser bom o bastante para Deus salvá-lo. Você já é ruim o suficiente para estar qualificado para a Sua graça. Se você ainda não reconheceu seu pecado como seu maior problema, como algo que merece a ira eterna de Deus, eu recomendo que o faça agora. E, quando reconhecer seu pecado, confie Naquele que veio para suportar a penalidade de seu pecado, Jesus Cristo. Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Ele ressuscitou dos mortos e está assentado à destra de Deus nos céus. Em breve Ele virá para abençoar Seus santos e derrotar Seus inimigos. Olhe para este Rei e só para Ele para a salvação de seus pecados, e para a esperança de viver para sempre em Seu reino.

9. Saul Sacrifica Seu Reino (I Samuel 13:1-14)

Introdução

Um grande amigo meu e sua esposa decidiram que era hora de vender seu carro antigo e comprar uma minivan nova. Embora o carro antigo lhes servisse muito bem, precisava cada vez mais de reparos. Craig e Grace conversaram muito sobre as vantagens e desvantagens de comprar um novo carro em vez de um usado, decidindo, finalmente, que um carro novo seria melhor. Mesmo concordando que isto aumentaria um pouco seu orçamento, eles cuidariam bem do carro e ele duraria muito tempo. Com menos de 10.000 milhas, a correia de transmissão da minivan quebrou - aquela por onde passa praticamente tudo, da direção hidráulica ao alternador e à bomba d’água. O carro superaqueceu e, mesmo depois que a correia foi trocada, Craig e Grace ainda passaram maus bocados. Depois, quando estavam caminho de casa após um picnic da igreja, desabou um súbito temporal, atingindo o carro com pedras de granizo. Mais incrível ainda, a caminho do centro da cidade, alguém bateu na traseira do carro. Depois destes desastres, Craig confessou, meio irônico: “Nem mesmo lavamos o carro.”

Algumas coisas começam muito bem - e então, de repente, terminam em desastre. Com certeza, foi o que aconteceu a meu amigo, Craig. Durante algum tempo aquela minivan brilhante, reluzente e mecanicamente perfeita foi muito legal, até que graves problemas começaram a surgir. Quando vejo nosso texto, o reinado de Saul me faz lembrar daquela experiência com o carro novo. Seu reinado começa muito bem, vitorioso. Após sua escolha e indicação, ele lidera os israelitas numa impressionante vitória sobre os amonitas (I Sam. 11). Então, no auge da euforia, o povo é trazido de volta à realidade pela dolorosa reprimenda de Samuel no capítulo 12, ratificada pelo próprio Deus, que provoca uma tempestade devastadora no exato momento em que o trigo está pronto para a colheita. Agora, ainda no capítulo 13 de I Samuel, chegamos a um incidente que custa à descendência de Saul a esperança de governar para sempre em lugar de seu pai.

Se formos realmente honestos conosco e com nosso texto, precisamos admitir que a atitude de Saul não parece tão ruim assim. Aparentemente, parece que Samuel está atrasado e que a sobrevivência de Saul e da nação é incerta, a menos que alguém faça alguma coisa bem depressa, e que Saul, com certeza, parece ser o homem para tal. O que há de tão errado com a atitude de Saul, dada a demora de Samuel e a ameaça dos filisteus? Deus, no entanto, leva as ações e atitudes de Saul muito a sério, e nós também devemos levar. Ao estudarmos este texto, procuraremos entender porque isto é tão ruim aos olhos de Deus e averiguar o que aconteceu com Saul. Vamos ainda procurar aprender e aplicar os princípios e as lições que nosso texto traz aos cristãos, pois o pecado de Saul é importante o suficiente para lhe custar o reino, e a seus descendentes, para sempre.

Um Problema Numérico

Os estudiosos da Bíblia apontam vários problemas em relação aos números de nosso texto. Os dois primeiros são encontrados no verso um que, literalmente, diz:

Saul {é} filho de um ano em seu reinado, sim, dois anos ele reinou sobre Israel (Tradução Literal de Young).

Retirando as palavras em itálico (adicionais) da versão NASB, o verso diz:

Saul tinha ... anos quando começou a reinar, e reinou ... dois anos sobre Israel.

Obviamente, temos aqui um problema. Creio que a melhor solução é tirar o máximo sentido das palavras que temos, em vez tentar decidir quais delas aplicar para dar sentido ao texto. A nova versão King James parece fazer isto da melhor forma possível:

Saul reinou um ano, e quando reinara dois anos sobre Israel, Saul escolheu para si 3.000 homens de Israel... (13:1-2a).

Alguns alegam haver um problema numérico no verso 5, onde lemos que 30.000 carros filisteus são despachados para Israel para pelejar contra os israelitas, junto com 6.000 cavaleiros e um exército de soldados a pé como as areias à beira-mar. Eles acham que 30.000 seja um número grande demais, indicando que o termo para 30.000 é muito parecido com o termo para 3.000, sugerindo que 3.000 talvez seja um número mais razoável. Eles também apontam que, tendo em vista haver muito mais carros do que “condutores”, o número deve estar errado. Gosto da maneira como a versão NASB trabalha com isto. Os 6.000 não são “condutores”, mas “cavaleiros”. Embora 30.000 seja um número bastante grande, não é um número impossível, e devemos aceitar o texto como ele se apresenta. O autor está tentando impressionar o leitor com a impossibilidade da situação do ponto de vista dos israelitas. Os números fornecidos são coerentes com o sentido de desesperança que o autor descreve.

Outro Problema:
A Presença dos Filisteus

Devo confessar que enquanto leio I Samuel fica difícil entender exatamente o que está acontecendo. Os filisteus estão por toda parte em Israel. Sabemos por I Samuel 4:9 que os israelitas são, em certo sentido, escravos dos filisteus. No capítulo 4, os filisteus prevalecem sobre eles na guerra, mesmo os israelitas levando consigo a Arca de Deus. No capítulo 10, quando Saul é informado por Samuel que ele é o escolhido de Deus como rei de Israel, ele profetiza numa cidade israelita - que é também um posto avançado dos filisteus (10:5). Apesar disto, o capítulo 11 fala sobre o ataque dos amonitas e a grande vitória israelita. Como os israelitas podem se reunir para a guerra quando seu território está ocupado pelas tropas filistéias? E como Saul mantém um exército permanente de 3.000 homens sem nenhum protesto dos filisteus?

Creio que estou começando a entender um pouco melhor a situação. Em primeiro lugar, devemos nos lembrar que a nação de Israel é cercada de terra por todos os lados, e que esta terra está dividida entre diversos reinos:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Os filisteus habitam na Filistia, que fica na costa do Mediterrâneo, ao sul e a oeste de Israel. A batalha que eles travam no capítulo 4 é na fronteira ocidental de Israel, como seria de se esperar. A arca é levada para a Filistia e depois devolvida para a cidade de Bete-Semes, que fica junto à fronteira israelita-filistéia. No entanto, os amonitas estão localizados do outro lado do rio Jordão, a leste de Israel. O ataque à cidade de Jabes-Gileade é a noroeste de Israel, a aproximadamente 20 milhas da fronteira de Amom, e longe da Filistia, que fica do lado oposto de Israel.

Não creio que os filisteus pretendam ou desejem destruir totalmente os israelitas, mas apenas mantê-los sob jugo. Afinal, os israelitas estão prestes a comerciar sua tecnologia, especialmente nas coisas feitas de ferro (ver 13:19-23). Israel também pode servir como escudo entre os filisteus e outras nações mais agressivas. Quando os israelitas se juntam para lutar contra os amonitas, parece que isto é de grande interesse para os filisteus. Se os israelitas forem enfraquecidos pela guerra não serão ameaça para eles. E, se eles vencerem os amonitas, os filisteus terão um domínio ainda maior, pois os israelitas ainda estão sob seu domínio. O fato de Saul manter uma pequena força de homens como exército permanente também não é nenhuma ameaça aos filisteus. O que um mísero exército de 3.000 homens pode fazer a uma nação cujas forças podem ser contadas como as areias à beira-mar? Sendo assim, Israel pode iniciar uma guerra contra os amonitas enquanto continua sob o domínio dos filisteus.

O Terror no Coração dos Israelitas e de seu Rei
(13:1-7)

“Um ano reinara Saul em Israel. No segundo ano de seu reinado sobre o povo, escolheu para si três mil homens de Israel; estavam com Saul dois mil em Micmás e na região montanhosa de Betel, e mil estavam com Jônatas em Gibeá de Benjamim; e despediu o resto do povo, cada um para sua casa. Jônatas derrotou a guarnição dos filisteus que estava em Gibeá, o que os filisteus ouviram; pelo que Saul fez tocar a trombeta por toda a terra, dizendo: Ouçam isso os hebreus. Todo o Israel ouviu dizer: Saul derrotou a guarnição dos filisteus, e também Israel se fez odioso aos filisteus. Então, o povo foi convocado para junto de Saul, em Gilgal. Reuniram-se os filisteus para pelejar contra Israel: trinta mil carros, e seis mil cavaleiros, e povo em multidão como a areia que está à beira-mar; e subiram e se acamparam em Micmás, ao oriente de Bete-Áven. Vendo, pois, os homens de Israel que estavam em apuros (porque o povo estava apertado), esconderam-se pelas cavernas, e pelos buracos, e pelos penhascos, e pelos túmulos, e pelas cisternas. Também alguns dos hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e o povo que permaneceu com Saul, estando este ainda em Gilgal, se encheu de temor.”

O reinado de Saul em Israel começa com grande alarde. Sob sua liderança, Deus livra muitos israelitas da rendição humilhante a Naás, líder do exército amonita, que ameaçava os habitantes da cidade de Jabes-Gileade. Para tanto, um exército voluntário de 330.000 israelitas é convocado (11:8). Após a vitória, os voluntários retornam às suas casas e Saul fica com um pequeno exército permanente de 3.000 homens.

Por que Saul mantém um exército tão pequeno? O texto não nos diz, mas parece que podemos deduzir que um exército de 3.000 homens seria tolerado pelos filisteus, enquanto um exército maior, não. Saul mantém estes homens porque é o tanto que ele pode manter sem precipitar a ira e a reação dos filisteus. Saul também não parece disposto a “tumultuar as águas” mantendo muitos soldados na ativa ou tomando qualquer atitude a respeito da guarnição(ões?) dos filisteus acampada em Israel.

Jônatas muda tudo, sem o consentimento ou permissão de seu pai. Saul dividiu suas tropas. Ele mantém 2.000 homens com ele em Micmás e na região montanhosa da Judéia; os 1.000 restantes são colocados sob o comando de Jônatas em Gibeá. Desconhecemos as razões para Jônatas atacar a guarnição dos filisteus; só é dito que ele o faz. Pelo que já conhecemos de Jônatas, parece que suas ações são movidas pela fé. Afinal, Deus deu esta terra aos israelitas e os instruiu a expulsar os povos que habitam nela. A sujeição às nações estrangeiras é descrita em Levítico 26 e Deuteronômio 28 a 32, como castigo divino para a incredulidade e desobediência de Israel. O rei não deve facilitar a sujeição dos israelitas às nações circunvizinhas, mas deve ser usado por Deus para livrá-los de suas algemas (ver 14:47-48). Isto não ocorrerá a menos que os israelitas tomem uma atitude para remover aqueles que ocupam sua terra. Saul parece relutante e indisposto a “mexer no vespeiro”.

Jônatas não parece disposto a aceitar as coisas como estão, por isso lidera seus homens num ataque à guarnição dos filisteus em Geba, situada aproximadamente 6 milhas (?) ao norte de Jerusalém, a meio caminho entre Gibeá ao sul e Micmás ao norte. Esta cidade pode muito bem ser a mesma diante da qual Saul profetiza junto com outros profetas (ver 10:5, 10:13).

A reação dos filisteus a este ataque é previsível, fazendo com que nos perguntemos se Jônatas queria e esperava por isso. Deixe-me tentar descrever a reação dos filisteus em termos atuais. Há alguns anos atrás os Estados Unidos (junto com alguns aliados) atacou e derrotou as forças do Iraque que ocupavam o Kwait. Suponhamos que após esta vitória os Estados Unidos colocassem várias companhias de nossas tropas dentro da fronteira do Iraque, para garantir que não houvesse mais ataques ofensivos. Suponhamos então que Saddam Hussein lançasse um ataque com armas químicas a uma destas companhias americanas dentro do Iraque. Chegam à América notícias sobre centenas, talvez milhares, de mortos, e de muitos outros gravemente feridos. Como americanos, nos sentiríamos justificados em empregar uma ação militar maciça contra o Iraque.

Esta reação é muita parecida com a reação dos filisteus ao ataque de Jônatas contra a guarnição em Geba. Os filisteus derrotaram os israelitas tempos atrás e lhes deram considerável liberdade (até mesmo para iniciar uma guerra contra os amonitas). No entanto, eles ainda têm tropas em Israel, para prevenir qualquer tentativa de libertação da opressão de seu cativeiro. Quando Jônatas ataca esta guarnição, tal ação é vista como um ataque contra a Filistia, e como um terrível insulto. Conforme é dito em nosso texto: “e também Israel se fez odioso aos filisteus” (verso 4). Os filisteus estão vindo e estão doidos! Eles vão fazer Israel pagar por isso - eles pretendem fazer um estrago enorme em Israel. Eles vêm com 30.000 carros, 6.000 cavaleiros, e tantos soldados a pé quanto as areias à beira-mar. Eles se levantam contra Israel, acampando em Micmás, onde Saul recentemente acampara com seus soldados.

Parece que a reação de Saul ao ataque de Jônatas e à chegada dos filisteus é induzida pela necessidade. Em resumo, Saul parece não ter outra opção, a não ser tentar se defender do ataque dos filisteus. Tentando dar a melhor aparência possível à situação, ele faz soar a trombeta que reúne toda a nação uma vez mais para a batalha. A “chamada” de Saul poderia ser: “Saul ataca a guarnição dos filisteus”. De uma perspectiva administrativa, é claro, Jônatas está sob a autoridade de Saul; no entanto, parece que Saul não quer admitir sua passividade, enquanto Jônatas assume o controle da situação.

No capítulo 13, a situação parece ser totalmente diferente daquela descrita no capítulo 11. No capítulo 11, Saul está capacitado pelo Espírito Santo quando fica furioso e conclama energicamente todo o Israel para lutar contra os amonitas. Aqui não é dito que ele esteja capacitado pelo Espírito e, com certeza, não é nenhum pouco enérgico quando conclama a nação para a guerra. Os israelitas são convocados, mas parece que são bem menos que os 330.000 reunidos anteriormente. E aqueles que se apresentam estão hesitantes. Quando o tamanho do exército filisteu é conhecido, os israelitas ficam apavorados. O povo começa a desertar, escondendo-se em cavernas e moitas, penhascos, buracos e cisternas. Tal situação já ocorrera antes (ver Juízes 6:1-6), o que não torna esta situação mais tolerável.

Quando Saul procura juntar seu exército, ele convoca o povo para se reunir em Gilgal, segundo as instruções que Samuel lhe dera quando disse que ele seria rei de Israel.

“Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer.” (I Sam. 10:8)

As instruções de Samuel são muito específicas: Saul deve ir a Gilgal e esperar que ele chegue. Até lá serão 7 dias. Samuel oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas. Aí, então, dirá a Saul o que ele deve fazer.

Durante este período de espera, Saul, em agonia, observa seu exército se encolhendo, quando os soldados vão se evaporando de medo. Todos os dias, à medida que a situação fica cada vez mais perigosa, os soldados fogem, procurando se salvar. Alguns procuram se salvar atravessando o rio Jordão (verso 7). Outros, aparentemente, estão dispostos a se juntar aos filisteus (ver 14:21). Aqueles que ficam com Saul estão tremendo de medo.

A Tolice de Saul e a Repreensão de Samuel
(13:8-15)

“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para o saudar. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou. Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens.” (I Sam. 13:8-15)

Saul consegue esperar durante seis dias e a maior parte do sétimo. Mas, quando o sétimo dia começa a chegar ao fim, ele está tão atormentado que não sabe o que fazer. Até posso imaginar o que se passa em sua cabeça. “Onde será que está esse homem, e o que será que está fazendo? Ele não sabe que estamos em perigo? Será que não compreende a urgência da situação e a necessidade de agir rapidamente? Vou dar a ele mais 30 minutos, depois vou ter que continuar sem ele.”

Como o povo continuasse a debandar, Saul começa a tratar do assunto pessoalmente. Pelo que parece é o próprio Saul quem oferece o holocausto. Ele dá ordens para que lhe sejam trazidos o holocausto e as ofertas pacíficas. Não há menção de algum sacerdote fazendo parte da cerimônia. Saul parece dar muita importância a esta oferta, e acho que sei porque. Em I Samuel 7, todo o Israel se reúne em Mispa para se arrepender e renovar sua aliança com Deus. Os filisteus interpretam mal este ajuntamento, presumindo que haja algum propósito militar por trás. Eles cercam os israelitas e estão prestes a atacar. Quando o ataque está para começar, Samuel está ocupado oferecendo o holocausto:

“Tomou, pois, Samuel um cordeiro que ainda mamava e o sacrificou em holocausto ao SENHOR; clamou Samuel ao SENHOR por Israel, e o SENHOR lhe respondeu. Enquanto Samuel oferecia o holocausto, os filisteus chegaram à peleja contra Israel; mas trovejou o SENHOR aquele dia com grande estampido sobre os filisteus e os aterrou de tal modo, que foram derrotados diante dos filhos de Israel.” (I Sam. 7:9-10)

Como seria fácil ver esta oferta como um meio de livrar Israel. Da mesma forma que os israelitas viram a Arca da Aliança como uma espécie de arma secreta, talvez agora Saul veja o holocausto como um meio para garantir a ação de Deus em favor de Israel. Se for assim, não é de se estranhar que Saul esteja tão ansioso para fazer com que o sacrifício seja oferecido, com ou sem Samuel.

No exato momento em que Saul termina o sacrifício do holocausto, Samuel chega. Parece claro que, se Saul tivesse esperado só mais alguns minutos, Samuel teria chegado na hora e ainda a tempo de oferecer tanto o holocausto quanto as ofertas pacíficas. Saul sai para cumprimentá-lo e sua saudação revela sua culpa. Não é Saul quem fica ali com as mãos na cintura, censurando Samuel por estar tão atrasado, mas é Samuel quem lhe pergunta o que foi que ele fez. A explicação de Saul não convence. Ele diz a Samuel que o povo estava desertando e que o profeta não veio dentro do prazo combinado. Ele mostra que os filisteus estão se reunindo para a guerra em Micmás e que sua atitude foi necessária para não ser atacado em Gilgal. Embora ele realmente não quisesse fazer o que fez, simplesmente tinha que fazê-lo e, assim, se viu forçado a oferecer o holocausto.

Samuel não fica impressionado, como demonstram suas palavras duras e diretas. A atitude de Saul foi uma tolice - pois desobedeceu deliberadamente ordens claras e diretas de Samuel. Também foi tolice porque teve efeito exatamente oposto ao que ele pensou. Com toda certeza Saul deve ter pensado que esperar por Samuel (e por suas instruções) era uma tolice. Ele estava errado. Sua desobediência lhe custará sua dinastia. Mesmo que seu reinado não acabe imediatamente, seus filhos jamais se sentarão em seu trono. Se ao menos Saul tivesse obedecido a ordem de Deus, seu reinado teria durado para sempre. Agora, seu reinado morrerá com ele. Deus já buscou e escolheu um homem cujo coração se ajusta ao Seu para substituí-lo. Tudo isto é conseqüência direta de sua desobediência.

A partida de Samuel é completamente diferente daquela descrita em I Samuel 15:24-31. Aqui, parece que Saul não fica abalado com as palavras de Samuel e, com certeza, não está arrependido. Se Saul fosse um adolescente de nossos dias, sua resposta à bronca de Samuel seria “Qual é.” Saul se ocupa com a contagem de seu parco e desgrenhado exército, agora composto de cerca de 600 homens, e Samuel se levanta e parte para Gibeá.

Conclusão

Este incidente não é o “começo do fim” para Saul; é o fim. Seu reinado durará alguns anos, mas não sobreviverá à sua morte. Dois anos de reinado e a dinastia de Saul está selada. Ao lermos estes versos, a maioria de nós talvez admita que a atitude de Saul é quase compreensível e que a resposta de Deus parece muito dura. Por que todo este estardalhaço sobre este incidente, esta asneira? Vamos considerar primeiro a gravidade da atitude de Saul e depois algumas implicações e aplicações que nosso texto oferece.

Primeiro, precisamos entender esta passagem à luz daquilo que Deus declarou sobre os reis no livro de Deuteronômio:

“Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles. Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:14-20)

Observe especialmente os versos 18 a 20. Quando o rei subir ao trono, deve escrever uma cópia da lei para si mesmo - deve fazer isto na presença dos levitas sacerdotes. Parece que isto implica numa “divisão de poderes” muito clara. O rei tem grande autoridade mas, com relação à lei, ele não apenas está sujeito a ela, como também deve ouvir os levitas sacerdotes quanto ao seu significado. Os livros da lei do Velho Testamento são o manual do rei, e os levitas sacerdotes seus professores ou tutores. Esta lei deve ser seu guia constante, a base de seu governo. Ele deve lê-la e relê-la todos os dias da sua vida. Isto não apenas dá ao rei sabedoria para governar e princípios para seu reino (a constituição do reino), mas também resguarda o rei de se ensoberbecer e se elevar acima de seus irmãos (verso 20). Esta leitura constante da lei prolongará os dias do rei, dele e de seus descendentes (verso 20).

Será que isto não explica a gravidade da resposta de Deus à desobediência de Saul? Saul não deu atenção a estas instruções registradas em Deuteronômio e, muito provavelmente, reiteradas e esclarecidas por Samuel:

“Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa.” (I Sam. 10:24-25)

Além destas instruções gerais para Saul como rei de Israel, há ainda as instruções específicas (“a ordem”) de I Samuel 10:8. Saul não tem nenhuma desculpa; seu sacrifício é um ato deliberado de desobediência, pelo qual ele perde seu reinado.

Vamos passar de Saul e sua desobediência às lições que este texto tem para cada um de nós hoje. Resumiremos as lições importantes na forma de princípios:

(1) Como Saul, quando não temos noção da nossa vocação, somos conduzidos pelos problemas. O povo quer um rei para governá-los e, em última instância, isto significa que querem um rei para libertá-los do cativeiro das nações ao seu redor. Samuel faz esforços consideráveis para transmitir a Saul o que Deus lhe designou para fazer, mas não parece ir muito longe antes do sentido de vocação de Saul ficar confuso. Em nosso texto parece faltar a Saul um profundo senso daquilo a que foi chamado a fazer, ou falta o compromisso para fazê-lo - ou talvez ambos. Quando considero os escritos do apóstolo Paulo, vejo um homem com um profundo senso de sua vocação e um grande compromisso para realizá-la (ver Rm. 1:1, I Co. 1:1, Gl. 1:15, II Tm. 4:7-8). Paulo também fala bastante a respeito de nosso chamado, e nos desafia a viver de acordo com ele - tanto com relação ao chamado comum (a que todo cristão é chamado - ver Rm. 1:6-7, 8:28/30, I Co. 1:2/9, Gl. 5:13, Ef. 4:1, I Ts. 4:7, II Ts. 1:11), quanto com relação ao chamado individual (I Co. 7:17). Saul parece não ter muita noção daquilo para o que Deus o chamou. Grande parte de suas escorregadelas vistas nos capítulos de I Samuel parece ser conseqüência de seu fracasso em compreender exatamente aquilo a que foi chamado a fazer.

Todos os cristãos foram “chamados”, e cada um de nós tem um “chamado” específico. Não estou falando de um ”chamado” especial para um “ministério em tempo integral” ou para “o trabalho missionário”. Estou falando de chamado no sentido individual, de acordo com o qual o cristão tem uma noção geral do porque Deus o(a) salvou, e uma noção mais específica de seu trabalho e contribuição no corpo de Cristo. Há cristãos demais que parecem ter perdido a noção de sua vocação e, como Saul, parecem estar se “escondendo na bagagem” da igreja e seu ministério, em vez de fazer sua parte.

2) As ordenanças de Deus servem como testes para nossa fé e obediência. Saul recebeu instruções específicas para ir a Gilgal e esperar por Samuel. Este é o seu teste de fé e obediência. As ordenanças da Bíblia são dadas por boas razões. Uma delas é que são testes específicos para nossa fé. Ouço muitos cristãos reagindo a qualquer tipo de ênfase nas ordens divinas e na nossa necessidade de obediência. “Isso é legalismo”, ouço alguns dizerem. Algumas pessoas podem obedecer a Deus de modo legalista, e esse é o problema. Mas, longe dos crentes julgarem as ordens de Deus tão levianamente. Jesus instruiu Seus discípulos a “ensiná-los a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt. 28:20). Quantas ordens de Cristo você leva à sério hoje?

3) Os privilégios cristãos também são um teste para nossa fé e amor a Deus. No capítulo 10, verso 7, Samuel instrui Saul:

“Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo.” (I Sam. 10:7)

O que, então, impede Saul de enfrentar os filisteus que ocupam Israel e oprimem o povo de Deus? Por que ele não faz o que obviamente precisa ser feito, confiando que, ao fazê-lo, Deus estará com ele? Não só a maioria de nós não consegue obedecer às ordens de Deus, também não conseguimos exercer nossos direitos como deveríamos. Direitos, como a lei, são testes onde muitas vezes somos reprovamos.

4) As emergências não são desculpas para desobedecer às ordens de Deus, mas um teste para nossa fé e obediência. Deus muitas vezes nos testa levando-nos ao limite. É desse jeito que testamos os produtos que fabricamos. A Ford não testa seus carros andando vagarosamente em volta de obstáculos. Eles são colocados na pista de teste, que golpeia a suspensão ininterruptamente e gira e pressiona o motor com superaquecimento, frio intenso, e longas distâncias. Deus também nos testa levando-nos ao limite, levando-nos ao ponto de exaustão.

Quando chegamos ao “limite”, nossa fé em Deus se torna evidente. Quando chegamos ao fim de nossas forças, aí precisamos confiar em Deus. Deus leva Saul “ao limite” retardando a chegada de Samuel até o último minuto, mas Saul não consegue esperar. Ele está convencido de que sua situação é uma “emergência” e, como tal, as regras podem ser descartadas. Nessas horas - quando somos pressionados até o limite - nossa fé e obediência são testadas para ver se guardamos ou não as leis de Deus, se obedecemos ou não a Ele.

O livro de Provérbios fala duas vezes sobre o “leão no caminho” (ver Pv. 22:13, 26:13). Esta é razão que faz o preguiçoso evitar a tarefa que ele realmente não quer fazer. Afinal, quem sairia para cortar a grama se realmente houvesse um leão lá fora? Situações emergenciais, onde o desastre parece iminente e quebrar as regras parece ser a solução, podem ser nada mais do que leões no caminho. Pode ser que estejamos dispostos a fazer exceções às ordens de Deus, mas Deus não. Vamos ter cuidado em não permitir que a crise vire desculpa para nossa desobediência.

Duvido que a desobediência de Saul ao fazer o sacrifício do holocausto seja um acontecimento isolado. Antes, é mais provável que seja o clímax, o ápice, de uma longa história de desobediência. Como demonstramos anteriormente, Saul sabe que seu dever como rei de Israel é lutar contra os filisteus e com as nações circunvizinhas que oprimem o povo de Deus. Dia após dia, mês após mês, Saul parece fechar os olhos ao sofrimento de seu povo e à presença dos filisteus em Israel. A desobediência de Saul com relação aos sacrifícios em Gilgal não é um pecado fortuito - um completo imprevisto. É a conseqüência lógica, quase inevitável de uma vida de desobediência. Esta crise apenas mostra Saul como ele é (ou como não é). Conosco é da mesma forma.

Não posso deixar de notar que não há nenhuma evidência de espiritualidade em Saul antes dele se tornar rei, nem depois. No entanto, Davi é um jovem que aprendeu a confiar em Deus quando ainda jovem pastor, a sós com seu rebanho. Davi aprendeu a confiar em Deus e a adorá-Lo. Ele andava com Deus antes de se tornar rei, e continua andando depois. Saul não tem nenhuma disciplina religiosa em sua vida, e demonstra isto, especialmente em Gilgal, quando se depara com os testes da fé.

5) O julgamento de Deus pode ser pronunciado bem antes de suas conseqüências serem visíveis. Deus pode pronunciar um julgamento muito tempo antes de concretizá-lo. Deus rejeitou Saul como rei. Isto é, o reinado de Saul não continuará (ver 13:14). Depois que isto é dito, Saul ainda reina por muitos anos antes de sua morte. Podemos ter certeza de que o julgamento de Deus é certo, mesmo que seja em alguma época por vir. É assim com Saul e é assim com a ira vindoura de Deus. A condenação de Satanás já havia sido pronunciada e, no entanto, ainda o veremos se opondo ao nosso Senhor e à Sua igreja. Apesar disso, o julgamento de Deus é certo, mesmo que não seja imediato.

6) Deus trabalha por meio de pessoas imperfeitas e que não são ideais. Não me canso de ficar maravilhado diante do tipo de pessoas que Deus usa para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Saul é uma dessas pessoas. A despeito de todas as suas fraquezas e pecados, Deus usa Saul para libertar Israel do cativeiro das nações circunvizinhas (ver 14:47-48). Ao longo da história, Deus escolhe usar as coisas “fracas e tolas” deste mundo, confundindo os sábios e trazendo glória a Si mesmo. Se Deus pode usar um homem como Saul, podemos ter certeza de que Ele pode nos usar também. Como deveríamos ser agradecidos por Deus não se limitar a usar somente pessoas perfeitas. Isto não desculpa nossas imperfeições ou nossos pecados, mas nos dá esperança de que Deus pode e usa pessoas fracas e pecaminosas para realizar Seus propósitos.

10. Saul, Jônatas e os Filisteus (I Samuel 13:15 --14:15)

Introdução

Tenho uma foto tirada no ano passado quando participava de uma pescaria com três amigos que retrata muito bem minhas recordações desse passeio. A foto foi tirada de cima prá baixo, quando meu amigo Bart Johnson estava no topo mais alto de uma montanha. A primeira coisa que você vê é a ponta das botas de Bart - depois, seus olhos podem captar um declive acentuado que, na realidade, é a encosta de um rochedo - até o lago embaixo. Não subi até lá com Bart e seu irmão Randall. Mas também estava no topo de uma espécie de rochedo - seguramente aninhado debaixo de uma árvore - e a descida era de apenas uns 20 a 25 pés (6 a 7 metros) até a água. Lançando meu anzol sem entusiasmo, via as trutas observarem minha isca, beliscando de vez em quando - até levei a isca para perto de alguns peixes bem interessantes - do meu cantinho debaixo da árvore.

Meus amigos Bart e Randall não pescaram com segurança e conforto. Quando perguntaram aos guardas florestais sobre a pesca em determinado lago, um deles respondeu: “Oh, eu não tentaria pescar naquele lago. É um lago afastado, e vocês têm que andar 600 metros montanha acima e depois descer outro tanto para chegar até lá.” Isso era tudo o que Bart e Randall precisavam ouvir; eles empacotaram suas coisas e se puseram a caminho. Disseram que a pescaria ali foi tão boa que, quase todas as vezes em que lançaram o anzol, pegaram alguma coisa. Talvez sim, mas vi suas fotos no topo daquele penhasco íngreme e cortante que eles tiveram que subir e descer para voltar. Não fiquei triste por ter ficado no meu refúgio de pesca favorito, poucos metros acima da água.

Ler a narrativa da campanha pessoal de Jônatas contra os filisteus neste texto me faz lembrar da foto de Bart e Randall encarapitados no topo daquele penhasco. Exatamente como fiz na pescaria, Saul descansa tranqüilamente à sombra de uma árvore, enquanto Jônatas e seu escudeiro escalam um sólido rochedo para lutar com a guarnição dos filisteus. Nem a subida, nem as chances impressionantes a favor dos filisteus impedem Jônatas de lutar com estes inimigos de Israel. Mas, como veremos, há muito mais nesta história do que apenas uma escalada perigosa. Conforme estivermos considerando atentamente esta passagem, aprenderemos muito mais sobre Saul e Jônatas - e sobre confiar em Deus.

Revisão

Israel exige um rei e Deus promete atender seu pedido (I Samuel 8). Mediante uma série de acontecimentos, Deus designa Saul como rei de Israel (capítulos 9 e 10). Quando Naás e os amonitas ameaçam Jabes-Gileade, Saul está possuído pelo Espírito de Deus e abate uma junta de bois, enviando os pedaços por toda a terra, ameaçando fazer o mesmo aos bois de qualquer um que se recuse a defender seus irmãos. Isto resulta numa tropa de 330.000 israelitas para guerrear contra os amonitas e numa grande vitória israelita (capítulo 11). Samuel avisa os israelitas para não ficarem otimistas demais com o novo rei, lembrando-lhes que é Deus, não os homens, quem tem livrado Seu povo ao longo da história de Israel. Se os israelitas se rebelarem contra Deus, não confiando e obedecendo a Ele, eles, junto com seu rei, serão entregues a seus inimigos. Se eles realmente temerem a Deus, então Deus terá misericórdia deles e de seu rei (capítulo 12).

Agora, no capítulo 13, as coisas rapidamente começam a azedar para Israel e para Saul, seu rei. O ataque de Jônatas à sua guarnição deixa os filisteus muito irritados e ocasiona um aumento maciço de suas tropas em Israel. À medida que o capítulo se desenrola, as coisas parecem ir de mal a pior. Saul é obrigado a reunir os israelitas para a guerra depois de ter acabado de mandá-los prá casa. Os voluntários são poucos e esparsos e, quando percebem o tamanho do exército filisteu, começam a desertar, escondendo-se em qualquer lugar. Quando Samuel demora a chegar, Saul assume seu papel, oferecendo o holocausto e pretendendo oferecer as ofertas pacíficas. Samuel chega logo após o holocausto, rejeitando as desculpas esfarrapadas de Saul e censurando-o por sua tolice. Além disso, ele anuncia a Saul que, devido à sua desobediência, seu reino não subsistirá, pois Deus escolheu como rei um homem cujo coração está em sintonia com o Seu (13:1-14).

Missão: Impossível
(13:15-23)

“Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens. Saul, e Jônatas, seu filho, e o povo que se achava com eles ficaram em Geba de Benjamim; porém os filisteus se acamparam em Micmás. Os saqueadores saíram do campo dos filisteus em três tropas; uma delas tomou o caminho de Ofra à terra de Sual; outra tomou o caminho de Bete-Horom; e a terceira, o caminho a cavaleiro do vale de Zeboim, na direção do deserto. Ora, em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada, nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice. Os filisteus cobravam dos israelitas dois terços de um siclo para amolar os fios das relhas e das enxadas e um terço de um siclo para amolar machados e aguilhadas. Sucedeu que, no dia da peleja, não se achou nem espada, nem lança na mão de nenhum do povo que estava com Saul e com Jônatas; porém se acharam com Saul e com Jônatas, seu filho. Saiu a guarnição dos filisteus ao desfiladeiro de Micmás.” (I Sam. 13:15-23)

Voltamos à história com Samuel deixando Saul em Gilgal e subindo para Gibeá e, ao que parece, sem “mostrar-lhe o que deveria fazer” (10:8). Samuel não dá a Saul nenhuma orientação de como ele deve lidar com a invasão em massa dos filisteus, resultante do ataque de Jônatas à sua guarnição em Geba (13:3, ver também 10:5). Preparando-se para a guerra, Saul conta suas tropas, descobrindo que há 600 homens com ele prontos para lutar. Tendo em vista os milhares de soldados das tropas filistéias, as chances se acumulam contra Israel e seu novo rei.

Talvez imaginemos uma espécie de distância entre o exército filisteu, acampado em Micmás, e as forças israelitas sob o comando de Saul e Jônatas, acampadas em Geba (13:16). Mas este não é bem o caso. Enquanto o exército principal dos filisteus parece estar entrincheirado em Micmás, três destacamentos de “saqueadores” são enviados por todo Israel (13:17, 14:15). Um é enviado para o norte em direção a Ofra, outro para oeste em direção a Bete-Horom, e o terceiro para leste em direção ao deserto (os israelitas estão ao sul). Estas tropas de saqueadores, ou destruidores, parecem ser ”forças especiais” cuja função é matar, queimar ou destruir a vida humana, o gado, as construções ou a colheita. Quanto mais longe puderem ir, destruindo tudo pelo caminho, pior será para Israel. Se os filisteus não forem derrotados e expulsos, haverá muitos problemas para a nação.

Brutalmente excedidos em número, os israelitas estão tão apavorados que desertam em bandos. Saul imprudentemente ofereceu o holocausto e foi censurado por Samuel. As tropas de saqueadores estão percorrendo a terra, deixando atrás de si um rastro de destruição. E agora, os poucos remanescentes das tropas israelitas estão mal equipados, se comparados aos filisteus. Para estes, pelo menos, a Idade do Ferro já chegou. Sua tecnologia permite que tenham espadas e lanças de ferro e carruagens com rodas de ferro. Seus agricultores têm ferramentas afiadas e que não se quebram com facilidade. Os israelitas não possuem a tecnologia dos filisteus. Os filisteus vendem implementos agrícolas de ferro aos israelitas, mas não armas de ferro, e nem permitem que eles fabriquem ou possuam tais armas. Isto dá aos filisteus um avanço decisivo (perdão pelo trocadilho) sobre israelitas. O escritor nos fala deste “avanço” e que somente Saul e Jônatas possuem espadas (13:22). As coisas não parecem boas para Israel.

Nas questões agrícolas, os israelitas praticamente dependem dos filisteus. Eles precisam comprar suas ferramentas deles e depois pagar para afiá-las. Todos os dias os israelitas são relembrados de sua sujeição aos filisteus. Militarmente falando, as coisas parecem sem solução. Os filisteus têm um vasto e bem equipado exército e destacamentos de saqueadores que percorrem Israel à vontade, levando morte e destruição. Israel tem um pequeno exército de homens apavorados, muitos dos quais estão desertando, com alguns até mesmo se juntando aos filisteus (ver 14:21). Na melhor das hipóteses, o rei de Israel está desanimado. Com uma tecnologia infinitamente inferior, os israelitas estão num beco sem saída.

Lembro-me da “guerra dos seis dias” entre Israel e seus vizinhos, em junho de 1967. Lembro-me bem desta guerra porque minha esposa e eu estávamos nos preparando para partir para o seminário em Dallas, Texas. Nós nos perguntávamos se o Senhor viria antes de chegarmos lá. Ouvíamos as notícias de que Israel era inferior em homens e em armas e, por isso, vulnerável. Como estavam erradas as estimativas das chances de sucesso de Israel! Como a guerra terminou rapidamente; tudo, creio, devido ao cuidado providencial de Deus para com Seu povo.

A Estupidez de Saul e a Fé de Jônatas
(14:1-15)

“Sucedeu que, um dia, disse Jônatas, filho de Saul, ao seu jovem escudeiro: Vem, passemos à guarnição dos filisteus, que está do outro lado. Porém não o fez saber a seu pai. Saul se encontrava na extremidade de Gibeá, debaixo da romeira em Migrom; e o povo que estava com ele eram cerca de seiscentos homens. Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, filho de Eli, sacerdote do SENHOR em Siló, trazia a estola sacerdotal. O povo não sabia que Jônatas tinha ido. Entre os desfiladeiros pelos quais Jônatas procurava passar à guarnição dos filisteus, deste lado havia uma penha íngreme, e do outro, outra; uma se chamava Bozez; a outra, Sené. Uma delas se erguia ao norte, defronte de Micmás; a outra, ao sul, defronte de Geba. Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos. Então, o seu escudeiro lhe disse: Faze tudo segundo inclinar o teu coração; eis-me aqui contigo, a tua disposição será a minha. Disse, pois, Jônatas: Eis que passaremos àqueles homens e nos daremos a conhecer a eles. Se nos disserem assim: Parai até que cheguemos a vós outros; então, ficaremos onde estamos e não subiremos a eles. Porém se disserem: Subi a nós; então, subiremos, pois o SENHOR no-los entregou nas mãos. Isto nos servirá de sinal. Dando-se, pois, ambos a conhecer à guarnição dos filisteus, disseram estes: Eis que já os hebreus estão saindo dos buracos em que se tinham escondido. Os homens da guarnição responderam a Jônatas e ao seu escudeiro e disseram: Subi a nós, e nós vos daremos uma lição. Disse Jônatas ao escudeiro: Sobe atrás de mim, porque o SENHOR os entregou nas mãos de Israel. Então, trepou Jônatas de gatinhas, e o seu escudeiro, atrás; e os filisteus caíram diante de Jônatas, e o seu escudeiro os matava atrás dele. Sucedeu esta primeira derrota, em que Jônatas e o seu escudeiro mataram perto de vinte homens, em cerca de meia jeira de terra. Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.”

Quando estava no seminário, numa aula do Dr. Bruce Waltke, ele fez uma comparação entre Jacó e Isaque e descreveu Jacó dizendo: “Se Isaque era uma brisa; Jacó era um furacão!” Devo admitir que, quanto mais leio sobre Saul, menos gosto dele. Vamos rever aquilo que dissemos a seu respeito. No capítulo 8, o povo exige um rei. Nos capítulos 9 e 10, Saul é divinamente designado como rei de Israel. Mais, Saul é divinamente capacitado para ser rei de Israel pelo Espírito Santo que desce sobre ele. Estou particularmente interessado na descida do Espírito sobre Saul e nas implicações desse acontecimento conforme dito por Deus por meio de Samuel:

“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles.” (I Sam. 10:5-10)

Os dois primeiros sinais são apenas para Saul, para convencê-lo de que as palavras de Samuel são palavras de Deus. A poderosa descida do Espírito sobre Saul é sinal para ele e para as pessoas que testemunham o fato (10:11-12). As palavras de Samuel para Saul, conforme registrado no verso 7, são muito importantes. Quando estes sinais forem realizados, Samuel diz a Saul que ele deve “fazer o que a ocasião pedir”, confiando que Deus estará com ele em tudo o que fizer. No verso 8, então, Samuel lhe dá instruções específicas a respeito de ir a Gilgal e esperar durante sete dias, quando ele oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas, e “declarará o que ele há de fazer”. Por que dois anos, ou mais, separam a descida do Espírito sobre Saul e sua viagem a Gilgal? Por que não ouvimos falar de nenhuma ação de Saul nesses anos intermediários entre sua capacitação e sua ida a Gilgal?

Temos que admitir que Saul realmente conclama os israelitas a irem à guerra contra os amonitas, para proteger seus irmãos em Jabes-Gileade (capítulo 11). Conforme leio o texto, vejo que esta não é uma decisão tomada conscientemente por Saul, mas uma manifestação imediata do Espírito agindo sobre ele de maneira incomum - Saul não age até que o Espírito aja. Enfim, nem mesmo é Saul quem inicia a guerra contra os amonitas; é o Espírito de Deus.

Anteriormente Deus havia levantado juízes para livrar os israelitas de seus inimigos:

“E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.” (I Sam. 12:10-11)

É evidente que os israelitas querem (exigem) um rei para liderá-los na guerra (ver 8:19-20). Há um acréscimo muito interessante no texto da Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) no capítulo 10, verso 1. Numa nota à margem do verso 1, a Nova Versão King James nos diz o que foi acrescentado:

LXX, Vg. acréscimo - E livrarás Seu povo das mãos de todos os seus inimigos em derredor. E isto te será por sinal de que Deus te ungiu para seres príncipe.

Mais à frente, no capítulo 14, a administração de Saul como rei de Israel é resumida desta maneira:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Se entendo corretamente o texto, Israel exige um rei que os livre dos inimigos ao seu redor como fizeram os juízes anteriormente. Deus lhes dá Saul como rei, o qual deve livrá-los de seus inimigos, sendo que, tanto ele quanto a nação devem confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos. O Espírito de Deus desce sobre Saul, como fez com Sansão e tantos outros, para capacitá-lo a conduzir os israelitas vitoriosamente contra seus inimigos. Assim que o Espírito desce sobre ele, Samuel lhe dá instruções, e ele deve agir de forma apropriada, confiando que Deus estará com ele para livrar Israel de seus inimigos.

Parece que Saul não é um homem espiritual. Apesar de Samuel ser conhecido por seu tio (10:14-16) e por seu servo (10:5-10), aparentemente ele é desconhecido para Saul, e isto numa época em que a profecia é muito rara (3:1). O ponto mais distante do circuito das viagens de Samuel (8:16-17) não fica a mais de 15 milhas da cidade de Saul, Gibeá. E sua casa em Ramá fica aproximadamente a 3 milhas de Gibeá, a cidade de Saul. Como pode um homem espiritualmente sensível nada saber a respeito de Samuel?

A situação só piora. Sabemos que, devido a ameaça a Jabes-Gileade, Saul se vê “forçado” a agir e reúne um exército de 330.000 israelitas. Já que os amonitas estão derrotados, por que Saul não vai em frente, expulsando também os filisteus? Afinal, é para isto que ele foi designado. Em vez disto, Saul manda os soldados de volta prá casa, ficando apenas com um exército esquelético, uma pequena força de 3.000 homens, e que está dividido em duas companhias. É como se ele não quisesse enfrentar os filisteus e só quisesse viver de seu status. Não é a iniciativa de Saul, mas a de seu filho, Jônatas, que provoca o confronto com os filisteus, levando-os à derrota.

Não é de se admirar que Samuel faça tanto esforço para relembrar aos israelitas que sempre foi Deus quem os livrou de seus inimigos. Também não é de se admirar que Samuel chame a nação ao arrependimento por colocar mais fé em seu rei do que em seu Deus. O capítulo 13 se concentra na nação de Israel e na ameaça dos filisteus, que não só ocupam Israel, mas que também ameaçam destruí-lo. O capítulo 14 se concentra em Saul e em seu filho Jônatas, de forma a retomar o contraste feito pelo autor entre os dois iniciado no capítulo 13.

Os filisteus, finalmente, estão em vantagem na região montanhosa de Judá e Benjamim, estabelecendo sua base principal em Micmás (13:16), ao que parece, no pico das montanhas que separam as planícies do vale do Jordão e as planícies litorâneas onde vivem. Cerca de 600 soldados ficam com Saul e Jônatas, enquanto o restante deserta escondendo-se dos filisteus ou juntando-se a eles (13:6-7; 14:20-22). Saul e seu “exército” estão acampados em Geba (13:16), e no capítulo 14 em Gibeá, um pouco mais ao sul e mais distante dos filisteus, que ainda estão em Micmás, ao norte.

Que contraste nosso autor faz entre Saul e seu filho, Jônatas. A nação de Israel está em guerra, desesperadamente excedida em número e miseravelmente equipada. E, mesmo assim, Saul se encontra debaixo “da romeira em Migrom” (14:2). Enquanto Saul fica fora do sol e à salvo, fora do alcance dos filisteus, seu filho Jônatas está prestes a enfrentar muitos deles, acompanhado por seu escudeiro. Esta é uma investida particular. Jônatas não pede a permissão de seu pai, nem o informa, e também não deixa que ninguém mais saiba de sua partida. Acho que ele sabe o que seu pai pensará de qualquer atitude agressiva contra os filisteus. Saul não quer ter problemas com eles, e Jônatas não quer mais que Israel seja atormentado por eles.

Eis Saul sentado à sombra de uma árvore (pelo que parece). Saul tem uma das duas únicas espadas de Israel. Junto com ele está Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, e neto de Eli (14:3). Aías veste (ou carrega com ele) a estola sacerdotal, um dos meios para discernir a vontade de Deus (ver I Sam. 23:9-12, 30:6-8). Saul não consegue obter instruções de Samuel em Gilgal devido à sua desobediência (13:1-14), e agora ele tem a estola sacerdotal e um sacerdote com ele; contudo, não pergunta a Deus o que deve fazer.

Jônatas, no entanto, tem uma noção definida da vontade de Deus que o faz agir. Primeiro, ele conhece muito bem a vontade de Deus pela história de Israel e pela natureza do próprio Deus. Suas palavras a seu escudeiro são cheias de fé e senso de dever. São palavras que explicam sua confiança e ação e que incentivam a lealdade de seu escudeiro:

“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (14:6)

Os filisteus são “incircuncisos”, eles não possuem um relacionamento pactual com Deus como os israelitas. A aliança feita por Deus com Israel lhes dá a garantia de Sua presença e de Sua proteção contra seus inimigos. Deus os tirou da escravidão do Egito e lhes prometeu dar a terra de Canaã e a liberdade das nações ao seu redor. Com certeza, Israel não tem esta liberdade. As guarnições dos filisteus ocupam a terra e os israelitas não podem sequer cultivá-la sem ter que comprar as ferramentas e obter sua manutenção dos filisteus. Jônatas entende que Deus não pretende que Seu povo seja escravizado pelas nações ao seu redor. Ele entende que agora é responsabilidade do rei liderar o povo na guerra contra os inimigos de Israel e seu Deus. Ele também entende, pela natureza de Deus e pela história de Israel, que a vitória de Israel não depende do “braço da carne”, da quantidade de tropas ou do tipo de armas que possuem. Deus deu a vitória sobre os midianitas quando Gideão liderava 300 homens na batalha (ver Juízes 7). Se é da vontade de Deus que Israel prevaleça sobre seus inimigos, não são necessários 600 homens - podem ser apenas dois.

A questão na cabeça de Jônatas não é se Deus pode entregar os filisteus nas mãos dos israelitas, mas se isto é, ou não, da vontade de Deus. Saul tem o sacerdote e a estola sacerdotal, mas não se importa em perguntar a Deus. Ele prefere sentar-se à sombra de uma árvore! Por isso, Jônatas determina outra maneira de discernir a vontade de Deus com relação à sua intencionada investida contra a guarnição dos filisteus.

Jônatas busca um sinal de Deus que indique se ele e seu escudeiro devem atacar os filisteus. Micmás e Gibeá são dois pontos elevados do local. O acesso a Micmás é através do passo de Micmás, uma passagem muito estreita, aparentemente o curso de uma pequena correnteza. Os filisteus parecem ter uma pequena companhia de soldados em cima do passo, onde podem avistar e parar qualquer um que tente atravessá-lo. O plano de Jônatas é descer a face rochosa de um dos penhascos e tornar sua presença visível aos filisteus no topo do penhasco do outro lado da passagem. Se os filisteus demonstrarem que vão descer para atacá-lo e a seu escudeiro, eles não tentarão subir o penhasco onde eles estão. Se, no entanto, os soldados os desafiarem a subir, este será o sinal de que Deus quer que eles façam a perigosa escalada até o posto de observação dos filisteus e de que Ele dará a vitória a Israel.

Com total apoio de seu escudeiro, estes dois valentes israelitas se tornam visíveis, ao que parece quando descem a face do penhasco até o passo embaixo. Os sentinelas filisteus os avistam e supõem que estejam saindo de seu esconderijo nas rochas. Os filisteus, então, convidam os dois para subir, e Jônatas e seu escudeiro recebem isto como sinal de Deus de que Ele lhes dará a vitória.

Jamais poderia imaginar que os filisteus pudessem dizer tal coisa. Por que não jogam pedras e rochas sobre Jônatas e seu ajudante? Por que não despacham as tropas até o passo para matá-los? Por que, quando eles estão mais vulneráveis, enquanto escalam o penhasco rochoso, os filisteus não se aproveitam de sua vulnerabilidade e os matam com rapidez e facilidade? Acho que a resposta está no texto. Os filisteus convidam os dois para subir para “lhes dizer alguma coisa”. A princípio, pensei que isto fosse um desafio, e acho que poderia ser. Talvez as coisas estejam maçantes e enfadonhas, e os filisteus queiram uma pequena contenda; por isso, pretendem deixá-los vir ao topo, onde podem se engajar com eles.

Agora, estou inclinado a uma explicação diferente. Creio que os filisteus deixam Jônatas e seu escudeiro subirem para que se entreguem e se juntem a eles contra Israel. Os filisteus sabem que têm a vantagem. Sabem que possuem armas superiores e superam em muito os 600 soldados que seguem Saul. Sabem que podem enviar saqueadores por todo o país com pouquíssima resistência por parte dos israelitas. E eles já acrescentaram um certo número de israelitas às suas próprias tropas (14:21). Por que não permitir que estes dois israelitas assustados, que estão rastejando prá fora de seus buracos, se dêem por vencidos e se juntem ao exército vencedor? Com certeza, não é seguro para os filisteus assumirem esta posição, mas este é um sinal convincente, pelo menos na cabeça de Jônatas. E assim eles escalam esse penhasco íngreme e rochoso até os filisteus.

Os filisteus não barganharam pelo que veio a ocorrer. Jônatas começa a usar sua espada com destreza, e aqueles que ele deixa vivos atrás de si são despachados por seu escudeiro. Em pouco tempo e num pequeno espaço, o grupo de sentinelas é morto, tornando possível aos israelitas atravessarem o passo até Micmás e perseguirem os filisteus.

Mas, espere - como diz um comercial de TV de R$ 40,00 - tem mais! Se Deus está com Jônatas em seu ataque ao posto dos filisteus, agora Ele está prestes a mostrar Seu braço poderoso, dando a Israel a vitória sobre a guarnição dos filisteus em Micmás. Amo o jogo de palavras que se encontra nos capítulos 13 e 14:

“E os hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e, estando Saul ainda em Gilgal, todo o povo veio atrás dele, tremendo...” (I Sam. 13:7)

“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.” (I Sam. 14:15)

Não era Elvis Presley que cantava: “Estou todo sacudido, uh, uh, uh...”? Bem, Deus “sacudiu” os filisteus. Tudo começa com as tropas israelitas que seguem Saul. Eles percebem como é fraca sua posição contra os filisteus. Eles também devem sentir a fraqueza da liderança de Saul. Eles estão com sérios problemas - como nosso autor nos informa, eles estão “sacudidos” (13:7). Isto impede Deus de dar a vitória a Israel? Claro que não! Deus passa a “sacudir” os filisteus.

Imagine, se puder, a presunçosa sensação de segurança que os filisteus devem sentir enquanto estão ocultos em Micmás. Para chegar até eles, o minúsculo exército israelita precisa atravessar o passo de Micmás, e uns vinte homens podem facilmente rechaçá-los. A segurança dos filisteus está numa estreita passagem, num ponto elevado das montanhas, protegido por rocha maciça, o que funciona muito bem, até ocorrer um terremoto. Agora, este lugar anteriormente seguro se transforma no lugar mais perigoso do mundo. Saul e suas sentinelas observam enquanto o exército filisteu se agita de um lado para o outro, provavelmente em sincronia com o solo, que se encrespa como os vagalhões do mar durante uma tormenta. Todas as coisas que antes pareciam garantir sua vantagem sobre os israelitas se tornam desvantagens. Em pânico e em movimento, eles matam uns aos outros com suas espadas, não os israelitas. Seus carros e cavalos são inúteis, uma vez que os animais aterrorizados se recusam a obedecê-los; fendas escancaram-se no solo e pedras rolam de todos os lados acima do passo. Em todos os lugares prevalece o pânico absoluto, impedindo qualquer ataque e atrapalhando qualquer retirada. Os filisteus se tornam seus próprios e piores inimigos, matando uns aos outros na insanidade daqueles momentos.

Conclusão

Que texto incrível, de onde se extraem muitos princípios e implicações para nós, cristãos da atualidade.

A primeira área de instrução e aplicação que salta desta passagem é a questão da liderança. Nos círculos cristãos atuais, a questão da liderança é a área principal das meditações, escritos e discussões. Infelizmente, muitas coisas ensinadas sobre liderança nos chamados círculos cristãos é simplesmente teoria secular, requentada e sacralizada. Uma vez que há uma infinidade desse material, não precisamos repetir o conceito secular de liderança. Saul e Jônatas proporcionam exemplos de liderança espiritual positiva e negativa. As palavras confiar e obedecer talvez não resumam tudo o que há para ser dito sobre a vida cristã mas, com certeza, descrevem as duas dimensões de maior importância. Saul é um homem quase sem fé. A palavra “medo” parece caracterizá-lo melhor. Ele teme dizer a seu tio que Samuel o ungiu como rei de Israel. Ele se esconde na bagagem quando sabe que será publicamente eleito como rei. Ele tem medo de perder suas tropas e por isso se vê forçado a oferecer o holocausto. E, parece que ele teme tanto enfrentar os filisteus, que faz o mínimo possível para atacá-los ou provocá-los.

O “Saul” que vemos no capítulo 11 é o “novo Saul”, que Deus faz surgir quando o Espírito desce poderosamente sobre ele. Mas este Saul não parece ir além do capítulo 11. É o “velho Saul” que encontramos em outros lugares. É o “velho Saul” que vemos descrito nos capítulos 13 e 14. Quando o “novo Saul” reúne os israelitas para a guerra, 330.000 se apresentam. Quando o “velho Saul” reúne Israel para ir a Gilgal, apenas uma pequena fração deste número se apresenta, e muitos deles desertam de medo. O medo de Saul é contagioso. Uma vez que ele não confia em Deus, nem O obedece, seus seguidores não confiam nele, nem o obedecem.

Como Jônatas é diferente - eis um homem de fé. Ele confia que Deus lhe dará a vitória sobre a guarnição dos filisteus no capítulo 13. Ele está disposto a enfrentar os filisteus no passo de Micmás, mesmo que isto envolva ter que escalar um penhasco íngreme com sua armadura, seguido unicamente por seu servo. Este é um homem que confia em Deus apesar da aparência das circunstâncias. E eis um homem que seu escudeiro está disposto a seguir na batalha, mesmo que isto pareça suicídio. Por que? Creio que é porque Jônatas não é apenas um homem de fé, mas um homem cuja fé é contagiosa. Os que estão com Saul tremem porque ele treme. Os que estão perto de Jônatas confiam em Deus porque ele confia.

Isto leva a uma definição muito simples de liderança espiritual:

Liderança espiritual começa com fé em Deus, a qual compele um homem a agir obedientemente, a despeito dos obstáculos e das circunstâncias adversas, e faz com que outros o sigam em sua obediência.

Enfim, liderança espiritual não é uma questão de aparência, charme ou técnicas de administração e motivação. Liderança espiritual é uma questão de homens e mulheres que confiam em Deus e obedecem à Sua palavra e, desta forma, levam outros a confiarem e a obedecerem com eles. Saul não é um líder espiritual, Jônatas é.

Uma segunda aplicação diz respeito à nossa avaliação do êxito dos líderes. Deixe-me tentar afirmar isto como princípio:

Quando os líderes são bem sucedidos, em última análise, é devido à graça de Deus e, muitas vezes, pode ser conseqüência da fidelidade de outras pessoas cujos ministérios de apoio não sejam tão evidentes.

Considere estes versos que falam sobre o êxito da liderança de Saul:

“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)

Não desejo tirar todo o crédito de Saul, mas realmente creio que nosso texto deixa bem claro que ele só é bem sucedido devido à graça de Deus, não devido à sua própria habilidade, coragem ou poder. E a vitória de Israel sobre os filisteus não é devido à sua iniciativa, mas devido à iniciativa de seu filho. Quantas vezes são aclamados como grandes líderes os que recebem as glórias pertencentes àqueles que, por detrás dos panos, os tornam grandes? São muitos os que procuram os refletores. Bem-aventurados aqueles que fazem seus superiores parecerem bem, enquanto se afastam dos refletores.

Uma terceira área de aplicação é a relação entre fé e ação. Pelo contraste entre ambos, Jônatas e Saul ilustram a maneira como a fé se comporta. Às vezes, a fé é demonstrada pela nossa espera, não pelo nosso trabalho. A fé espera quando nosso trabalho seria fruto de nossa desobediência. Abraão deveria ter esperado pelo filho prometido ao invés de tê-lo com Agar. Saul deveria ter esperado ao invés de oferecer o holocausto. Quando não existe maneira de agirmos com fé e obediência, devemos esperar que Deus aja de maneira que supra as nossas necessidades.

Em outras ocasiões, somos inclinados a esperar quando a fé deveria ser demonstrada pelas nossas obras. Saul, que não poderia esperar por Samuel (mesmo tendo sido ordenado a isso), está mais do que disposto a esperar para livrar Israel do cativeiro dos filisteus, que não só ocupam sua terra (suas guarnições), mas também oprimem economicamente os israelitas com o monopólio da exploração do ferro. Um agricultor não poderia sequer sustentar-se sem pagar caro por suas ferramentas, e depois pagar muitas outras vezes para mantê-las (afiadas). Saul parece ter intenção de manter seu status junto aos filisteus. Ele pode (e aparentemente o faz) esperar indefinidamente para expulsá-los de Israel. Eis uma ação necessária que requer fé; no entanto, Saul quer esperar. Seus ataques às suas guarnições provocam um confronto militar que resulta na derrota dos filisteus - e na glória de Deus. Quantas vezes esperamos quando deveríamos agir e agimos quando deveríamos esperar. Como saber quando agir? Quando a palavra de Deus nos instrui a isso. Quando esperar? Quando a palavra de Deus nos instrui a tal, e quando agir demonstra nossa falta de fé e nossa desobediência.

Quarto, como muitos outros, o nosso texto nos dá uma perspectiva inteiramente nova das situações que parecem impossíveis. Aqui, como em outros lugares, Deus conduz Seu povo a circunstâncias aparentemente impossíveis. Vemos novamente um princípio muito importante ilustrado em nosso texto:

Deus intencionalmente leva os homens a situações “impossíveis” para deixar perfeitamente claro que não podemos salvar a nós mesmos, e que Ele nos liberta de forma que toda a glória seja dada a Ele.

Em outro lugar na Bíblia lemos:

“Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura.” (Isaías 42:8)

Diversas vezes na Bíblia Deus coloca os homens em situações impossíveis a fim de poder salvá-los de maneira a receber toda a glória por isso. Ele prometeu um filho a Abrão e Sarai, os quais, humanamente falando, estavam “mortos” com relação a poder ter filhos (ver Romanos 4:19), e eles tiveram um filho. Jesus sabia que Lázaro estava doente mas, deliberadamente esperou que ele estivesse morto para ir ao seu túmulo (ver João 11), a fim de poder demonstrar Seu poder sobre a morte ao ressuscitá-lo de entre os mortos.

Deus ama mostrar Sua força através das nossas fraquezas. O capítulo 13 de I Samuel mostra Israel e Saul em toda a sua fraqueza. Os soldados israelitas estão completamente inferiorizados em número e totalmente ultrapassados em suas armas. A despeito do que parece ser uma situação sem esperança, Deus lhes proporciona uma importante vitória sobre os filisteus. E isto acontece porque dois homens (um sem espada) confiam em Deus o suficiente para enfrentar os filisteus. Deus transforma o tremor dos israelitas no tremor de um terremoto, tão poderoso que traz confusão e caos às fileiras filistéias e, a maior parte dos que morrem ao fio da espada, morrem pelas mãos de seus irmãos filisteus.

Muitos cristãos parecem ter fé somente quando a vitória parece ser possível devido a esforços humanos, mas desmoronam quando as circunstâncias parecem impossíveis. Precisamos aprender com Jônatas que a vitória de Deus não depende das nossas forças, e com o apóstolo Paulo que a Sua força é manifestada através das nossas fraquezas (ver I Samuel 14:6; II Coríntios 12:9-10).

A ênfase nos círculos seculares (e, infelizmente, também nos círculos evangélicos) está no “poder do pensamento positivo”. Talvez haja ali um elemento de fé, mas há também um erro muito grave. Deus não é limitado por nossas habilidades, como demonstra a libertação de Saul, Jônatas e Israel dos filisteus. E Deus não é limitado pela nossa imaginação, nem pelos nossos pensamentos.

“mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam.” (I Co. 2:9)

“Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém!” (Ef. 3:20-21)

Deus leva os pecadores ao ponto do desespero e da desesperança (em suas condições, em seu “fanatismo” e em seus pecados) para que deixem de confiar em si mesmos e se voltem para Ele. O que nenhum homem jamais foi capaz de fazer para salvar a si mesmo, Jesus Cristo o fez na cruz do Calvário. Ele viveu uma vida de perfeita obediência a Deus. Ele morreu, não por seus próprios pecados, mas pelos pecados dos homens. Jesus pagou a pena pelos nossos pecados e oferece aos homens pecaminosos e indignos o dom da Sua justiça e da vida eterna. Jesus pagou por tudo. Tudo o que precisamos fazer é admitir nosso pecado, nossa corruptibilidade e nossa total incapacidade de salvar a nós mesmos. O que é impossível aos homens é possível para Deus:

“Mas ele respondeu: Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus.” (Lc. 18:27)

Você já chegou ao seu limite? Já percebeu que receber o favor de Deus e alcançar o céu são coisas humanamente impossíveis? Se já, isto é uma bênção, se confia em Jesus Cristo para sua salvação.

Vamos concluir nosso estudo louvando a Deus junto com o apóstolo Paulo por Sua sabedoria em realizar coisas que achamos impossíveis, por meios que jamais poderíamos imaginar:

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)

11. Saul Luta Contra os Filisteus (I Samuel 14:15-52)

Mark Twain estava na cidade de São Francisco quando o terremoto de 1865 abalou a cidade; ele descreveu seu primeiro terremoto com as seguintes palavras:

“Foi logo depois do almoço, num dia ensolarado de outubro. Eu descia a Rua Três. As únicas coisas em movimento naquele denso e povoado quarteirão eram um homem numa carruagem atrás de mim e um bonde terminando lentamente a travessia da rua. Fora isso, era um sábado calmo e tranqüilo.

Conforme virei a esquina, próximo a uma casa apainelada, havia um grande tumulto e gritaria, e ocorreu-me que ali havia assunto para uma matéria! Sem dúvida havia uma briga naquela casa. Antes que eu pudesse me virar e procurar pela porta, ocorreu um tremendo choque; debaixo de mim o chão parecia ondular suspenso por um violento sacolejo, e havia um barulho ensurdecedor como o de casas em atrito. Caí de encontro à casa e machuquei meu cotovelo. Agora eu sabia o que era... aconteceu um terceiro choque ainda mais forte e, enquanto eu cambaleava na calçada tentando manter o equilíbrio, vi uma coisa espantosa. Toda a frente de um alto edifício de tijolos da Rua Três abriu-se como uma porta e caiu, desmoronando no meio da rua e levantando uma grande nuvem de poeira!

E aí veio a carruagem - o homem foi lançado prá fora e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, o veículo desmanchou-se em mil pedaços ao longo de 300 jardas de rua... O bonde tinha parado, os cavalos estavam empinando e refugando, e os passageiros jorrando de todos os lados... Cada porta de cada casa, tão longe quanto a vista pudesse alcançar, vomitavam uma torrente de seres humanos; e antes mesmo que alguém pudesse piscar, havia uma enorme multidão enfileirando-se numa procissão infindável que descia pelas ruas até onde eu estava. Nunca um lugar tão deserto ficou tão fervilhante de vida com tanta rapidez.

Terremotos são experiências assombrosas. Lembro-me muito bem do terremoto que ocorreu quando eu lecionava para os alunos da 6ª série no Estado de Washington. Duvido que os sobreviventes filisteus da época de Saul tenham se esquecido do terremoto ocasionado por Deus, que os levou à derrota às mãos de Deus e de Seu povo, Israel. A vitória de Israel foi grande, mas não foi o que poderia ter sido. Nosso texto faz o contraste entre a fé e a coragem de Jônatas e a loucura de seu pai, Saul. Vamos prestar bastante atenção à nossa passagem para ver o que é que distingue este filho de seu pai.

O Contexto

Apesar de sua designação como rei de Israel e de sua vitória decisiva sobre os amonitas, Saul parece determinado a não “criar caso” com os filisteus que ocupam Israel. O domínio dos filisteus sobre o povo de Deus é claro em vários aspectos. Suas guarnições estão acampadas em território israelita (ver I Sam. 10:5; 13:3) e os israelitas são rigorosamente limitados na posse e na utilização do ferro. Eles podem ser ferreiros, mas não podem ter armas de ferro (espadas, por exemplo), e pagam caro pelo uso das ferramentas agrícolas (I Sam. 13:19-23). Apesar da opressão dos filisteus, de sua designação como rei e de sua capacitação divina (ver cap. 9 e 10), Saul prefere mandar prá casa os 330.000 soldados que convoca para livrar os cidadãos de Jabes-Gileade. Ele fica apenas com um exército básico de 3.000 homens. Parece que isto é para manter seu status junto aos filisteus.

Jônatas não está disposto a deixar a situação como está. Com seus 1.000 homens ele ataca a guarnição dos filisteus em Geba (13:3), provocando um poderoso contra-ataque filisteu (13:5 e ss). Saul não tem outra escolha, a não ser convocar os israelitas para a guerra, embora apenas um pequeno número se apresente, e muitos desertem quando percebem a situação desesperadora de Israel (humanamente falando). Alguns abandonam Saul para encontrar um lugar onde se esconder dos filisteus, enquanto outros desertam e se juntam a eles (13:6; 14:21-22). Saul reúne as tropas em Gilgal, aparentemente segundo as instruções de Samuel (10:8). Mas, quando parece que Samuel não chegará no prazo determinado, Saul vai em frente e oferece o holocausto. Samuel chega assim que a oferta é feita e repreende Saul por sua desobediência, mostrando que isto lhe custará um reino duradouro (13:11-14).

A guerra entre israelitas e filisteus não vai nada bem. Além dos filisteus sobrepujarem os israelitas em homens e em armas, os poucos soldados israelitas que restam estão apavorados, e Saul parece paralisado. Ao mesmo tempo, os filisteus acampados em Micmás despacham grupos de saqueadores que causam destruição e devastação por onde passam (o que parece ser em qualquer lugar que queiram - ver 13:15-18).

Se Saul não está disposto a tomar a iniciativa de lutar contra os filisteus, Jônatas está. Ele e seu escudeiro se preparam secretamente para lutar com os filisteus. Eles descem um íngreme penhasco e escalam o outro lado, quando a reação dos filisteus à sua presença mostra que Deus dará a vitória a Israel. Quando os dois bravos israelitas alcançam o topo, eles travam batalha com seus inimigos, matando 20 deles num espaço de meio acre (14:1-4). Nesse ponto da batalha, Deus intervém divinamente com um assombroso terremoto, o qual enfraquece e dispersa os filisteus. Voltamos à nossa lição no começo desse terremoto.

Sacudindo o Inimigo
(14:15-23)

“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus. Olharam as sentinelas de Saul, em Gibeá de Benjamim, e eis que a multidão se dissolvia, correndo uns para cá, outros para lá. Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. Contaram, e eis que nem Jônatas nem o seu escudeiro estavam ali. Saul disse a Aías: Traze aqui a arca de Deus (porque, naquele dia, ela estava com os filhos de Israel). Enquanto Saul falava ao sacerdote, o alvoroço que havia no arraial dos filisteus crescia mais e mais, pelo que disse Saul ao sacerdote: Desiste de trazer a arca. Então, Saul e todo o povo que estava com ele se ajuntaram e vieram à peleja; e a espada de um era contra o outro, e houve mui grande tumulto. Também com os filisteus dantes havia hebreus, que subiram com eles ao arraial; e também estes se ajuntaram com os israelitas que estavam com Saul e Jônatas. Ouvindo, pois, todos os homens de Israel que se esconderam pela região montanhosa de Efraim que os filisteus fugiram, eles também os perseguiram de perto na peleja. Assim, livrou o SENHOR a Israel naquele dia; e a batalha passou além de Bete-Áven.”

Lembro-me muito bem do dia em que fiz algo errado na aula de ginástica e meu professor da 6ª série, Sr. Johnstone, me pegou e me sacudiu contra a parede. Entendi a mensagem alta e clara. Os filisteus também entendem a mensagem, bem mais alto e bem mais claro. Mesmo um terremoto “normal” (se é que existe tal coisa) teria abalado os filisteus, mas este parece extraordinário. O momento é perfeito, vindo logo após a rápida vitória de Jônatas e seu servo. O terremoto parece restrito aos lugares onde estão os filisteus. Nosso texto não dá nenhuma indicação de que os israelitas sintam ou sejam aterrorizados pelo abalo. Na verdade, por essa narrativa, é possível que os israelitas nem mesmo saibam qual a razão para tal pânico entre os filisteus. É um terremoto de Deus, e seu impacto é assustador.

Desde que nunca sentimos um terremoto como este em Dallas, Texas, talvez seja útil lermos alguns relatos de pessoas que foram aterrorizadas pelos efeitos de um terremoto.

“Na última sexta-feira, 9 de janeiro, a cidade de Santa Bárbara foi acometida por uma sucessão de abalos sísmicos, um dos quais foi o mais forte que sentimos deste lado da costa em muitos anos...

Nesta cidade, a manhã de um dia movimentado foi precedida por um sol ameno; o ar estava tranqüilo e nenhum fenômeno atmosférico incomum indicava a aproximação de qualquer perigo... Por volta das 8h30min, ou às 8h22min, de acordo com aqueles que afirmam ter a “hora exata”, começou o abalo mais forte, que durou de 40 a 60 segundos. Ele foi sentido em toda a cidade e suas vibrações foram tão violentas que todos os habitantes fugiram de suas casas, a maioria dos quais, de joelhos e com os corações palpitantes de terror, fazia preces fervorosas para que o perigo iminente e ameaçador fosse providencialmente afastado.”

Um patrulheiro da Califórnia assim descreve sua experiência:

“Era como se eu estivesse dentro de um misturador de tinta. Sem nenhum aviso, a casa começou a chacoalhar violentamente de um lado para outro. Eu descansava na sala de estar lendo o jornal de domingo quando o terremoto nos atingiu. Meu primeiro pensamento foi que um carro tivesse colidido com a casa ou que um avião tivesse caído. Mas aí continuou e eu soube o que era.

Meu aparelho de som caiu da estante, enquanto eu tentava ficar em pé para sair da casa. Eu só queria sair dali. Mas, quando tentei descer para outro andar, não consegui. Após alguns segundos, os abalos acalmaram um pouco e fui capaz de me levantar e levar minha esposa para fora, para o terreno em frente...”

Um jogador, a caminho do campo de golfe na manhã do terremoto de Santa Bárbara de 1925, o descreve desta forma:

“Fiquei hipnotizado por um rugido, algo que jamais ouvi antes, que possa explicar racionalmente, ou que espere ouvir novamente, aí fui levantado e sacudido violentamente como se algum monstro me tivesse pegado pelos ombros com a única intenção de arrancar minha cabeça. Tudo o que consegui fazer foi ficar em pé. As colinas pareciam subir e descer - não, eu estava perfeitamente bem, sem visões - a ondulação da paisagem sendo claramente visível por todos os lados. Não eram só aquelas sacudidelas sentidas de vez em quando em algumas partes do Estado, mas um balanço longo e prolongado que, creio, poria muitas das nossas montanhas-russas de praia num chinelo.

Dois ou três segundos antes do verdadeiro abalo, o rugido que o precedeu parecia vir de muito longe, mas veio com a rapidez de uma bala.”

O medo paralisante produzido por um terremoto é demonstrado nesta narrativa feita pelo encarregado de uma casa de máquinas no terremoto de Santa Bárbara de 1925:

“Não é preciso dizer que muitos escaparam por um triz de sofrer lesões pessoais e darei aqui apenas dois exemplos dos estranhos efeitos surtidos em dois homens geralmente normais. Um deles é um operador de caldeira que estava na extremidade leste da casa de máquinas. Os tijolos estavam caindo da parede leste, enormes pedaços de pedra eram lançados a uma distância de 12 pés; a parte do teto acima dele desabou e foi parar na locomotiva. Este homem tem uma natureza ousada e destemida, no entanto, ficou tão assustado que suas pernas ficaram bambas; depois de um forte ataque de náuseas ele conseguiu rastejar para fora ileso e sem auxílio...”

Imagine como deve ter sido para um soldado filisteu. O tremor pode ter sido precedido por um estrondo, que alguns descrevem como sendo mais forte que o estrondo de 1.000 canhões. A terra começa a sacudir para cima e para baixo. Num único tremor calcula-se que o solo se mova verticalmente até 2 polegadas, e até 240 vezes por minuto. O solo se encrespa como as ondas do mar, fazendo com que os soldados rodopiem e caiam. E, então, o pior de todos os talvezes, o solo se move horizontalmente, sendo este movimento mais abrangente e devastador.

Pense no que pode ter acontecido nesse dia. Chega aos ouvidos do acampamento principal a notícia de que alguém (Jônatas e seu escudeiro) atacou o posto da guarda e causou muitas baixas. Os “saqueadores”, ou destruidores, enviados para matar e destruir, estão aterrorizados. Eles são as “forças especiais” do dia. O acampamento principal está em alerta total e as tropas são convocadas para formação de batalha. Com suas temíveis espadas desembainhadas e apontadas para frente (algo como baionetas), o exército se dirige para frente de batalha. Naquele instante, o rugido do terremoto assusta as tropas. À medida que avançam, o chão treme e se encrespa debaixo deles. Os homens começam a cair. E então, quando o chão se move horizontalmente, as espadas daqueles que estão atrás traspassam as costas desprotegidas dos homens que estão à sua frente. Os homens à frente, em pânico e talvez pensando que o inimigo esteja atrás, se voltam e atacam as pessoas atrás deles - de modo que muitos jazem mortos, todos pelos “golpes de suas próprias tropas”.

Posso não ter todos os detalhes precisos, mas as conseqüências são parecidas. Os filisteus ficam incapacitados e aterrorizados pelo terremoto. Em pânico absoluto, eles se voltam uns contra os outros e se matam uns aos outros com suas espadas. Todas as baixas são conseqüência de uma luta entre os próprios filisteus, antes que os israelitas entrem em combate com eles. Sem dúvida, isto é um “terror de Deus” (I Sam. 14:15). Deveríamos temer diante desta poderosa intervenção de Deus a favor de Israel. Seus sentinelas observam como Deus traz o caos e a derrota ao poderoso exército filisteu. Eles podem não saber que isto é causado por um terremoto, mas podem ver os soldados se movendo prá lá e prá cá, em ondas. É por causa do movimento do solo? É porque o solo está se abrindo? Nós não sabemos, e duvido que os sentinelas israelitas soubessem. Mas, pelo que vêem e ouvem, sabem que algo extraordinário está acontecendo.

O leitor deve estranhar a reação de Saul. A primeira coisa que ele faz é contar suas tropas, não para se preparar para a batalha, mas para saber quem está faltando. Discordo da maneira que os tradutores da Nova Versão King James interpretam o versículo 17:

“Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. E quando eles contaram, surpreendentemente, Jônatas e o seu escudeiro não estavam ali.” (I Sam. 14:17 NVKJ)

A palavra “observar” da Nova Versão Padrão Americana é, de longe, a maneira mais comum para traduzir esta expressão hebraica. O termo pode ser uma expressão de surpresa, que é a maneira como a NVKJ traduz. Vejo-a de modo totalmente contrário. Apesar de ser muito reticente em oferecer minha própria tradução, penso que o contexto geral e o termo hebraico em si confirmem esta tradução:

17 E então Saul disse àqueles que estavam com ele: “Por favor, contem as tropas para que possamos ver quem saiu de entre nós.” E eles contaram e como previsto Jônatas e seu escudeiro saíram. (minha tradução/paráfrase de I Sam. 14:17)

Saul não está surpreso. Quando as tropas são contadas, o resultado é exatamente aquilo que ele teme. Pense nisso. Tudo vai relativamente bem com os filisteus (pelos padrões de Saul), até que Jônatas bagunça tudo atacando sua guarnição em Geba (I Sam. 13:3). Este completo desastre (como Saul o vê), com o levantamento em massa dos filisteus em Micmás, é culpa de Jônatas. Ele não pode deixar isso prá lá. Agora, quando os dois exércitos estão acampados e em guerra um contra o outro, Saul maneja as coisas para evitar mais ação (aí ele se senta sob a romãzeira - 14:2) e, de repente, há a maior confusão entre os filisteus. Alguma coisa tem que causar este tumulto. Saul não pensa primeiro em Deus, mas em seu filho desordeiro, Jônatas. Ao contar as tropas, ele é capaz de descobrir quem não está entre eles, e então deduzir quem causou todo este problema - de novo.

Finalmente, Saul decide consultar a Deus - agora que está “num beco sem saída”, como se diz. Naquela época havia várias maneiras de se discernir a vontade de Deus. Um profeta, obviamente, poderia falar diretamente da parte de Deus, mas Samuel deixou Saul em Gilgal devido à sua desobediência (ver 13:8-14). Há a estola sacerdotal, vestida e usada pelo sacerdote, que está ali com Aías, o sacerdote (14:3), mas Saul não requer seu uso. Em vez disto, ele manda buscar a arca da aliança. De certa maneira, isso envolve a intervenção do sacerdote Aías para que a vontade de Deus seja conhecida. Parece que este processo leva algum tempo. Se este fosse um aparelho elétrico (de válvula, é claro), ele estaria “aquecendo”. Todos sabemos que Saul não é muito paciente (ver cap. 13). O tumulto no acampamento filisteu fica tão grande que até Saul conclui que um ataque contra eles signifique vitória certa para Israel. Assim, ele instrui o sacerdote a reter a mão, para “desligar o aparelho da vontade de Deus”. Saul e seus homens vão então atrás dos apavorados e feridos filisteus, que estão se matando uns aos outros. Conforme os soldados israelitas se aproximam, podem ver com mais clareza a vitória operada por Deus.

Hesitantes, os guerreiros vão para a batalha contra os filisteus. Jônatas e seu escudeiro lideram a investida; Saul segue um tanto relutante, bem depois de a vitória estar assegurada. Junto com Saul e seus 600 homens estão aqueles que desertaram das fileiras de seu exército e venderam seus serviços aos filisteus (14:21). Quando aqueles que fugiram de Saul e se esconderam nas colinas vêem a derrota e retirada dos filisteus, eles também se juntam a Saul, a fim de multiplicar suas forças.

O Conjuramento Insano de Saul
(14:24-30)

“Estavam os homens de Israel angustiados naquele dia, porquanto Saul conjurara o povo, dizendo: Maldito o homem que comer pão antes de anoitecer, para que me vingue de meus inimigos. Pelo que todo o povo se absteve de provar pão. Todo o povo chegou a um bosque onde havia mel no chão. Chegando o povo ao bosque, eis que corria mel; porém ninguém chegou a mão à boca, porque o povo temia a conjuração. Jônatas, porém, não tinha ouvido quando seu pai conjurara o povo, e estendeu a ponta da vara que tinha na mão, e a molhou no favo de mel; e, levando a mão à boca, tornaram a brilhar os seus olhos. Então, respondeu um do povo: Teu pai conjurou solenemente o povo e disse: Maldito o homem que, hoje, comer pão; estava exausto o povo. Então, disse Jônatas: Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por ter eu provado um pouco deste mel. Quanto mais se o povo, hoje, tivesse comido livremente do que encontrou do despojo de seus inimigos; porém desta vez não foi tão grande a derrota dos filisteus.” (I Sam. 14:24-30)

É uma derrota dos filisteus e uma vitória de Deus, mas não é a vitória que poderia ter sido; poderia ser muito mais categórica. Nos versos 24 a 30 o autor explica por que a vitória não é aquilo que poderia e deveria ter sido. Em resumo, os soldados israelitas estão “angustiados” nesse dia, de modo que não conseguem perseguir e destruir mais filisteus. O único responsável pela aflição de Israel é nenhum outro senão seu rei, Saul. É seu conjuramento insano que atrapalha os soldados israelitas.

Parece que a imagem de Saul entrou em decadência desde a sua impressionante vitória sobre os amonitas em Jabes-Gileade no capítulo 11. Saul é humilhado pelos filisteus, não só pela ocupação de Israel, mas também pela maneira como tiram proveito da tecnologia do ferro (13:19-23). A maior parte das dificuldades de Saul é conseqüência direta do ataque de Jônatas aos filisteus. Agora, quando vê que os filisteus estão sendo derrotados pelos israelitas, ele resolve fazê-los pagar por sua humilhação. Sua luta contra eles vira uma questão pessoal. Não é uma batalha de Deus, ou mesmo de Israel; é sua batalha e sua vitória. Por isso, Saul coloca seus homens sob juramento: ninguém deve comer até o anoitecer. Os homens devem lutar com o estômago vazio. Saul parece raciocinar que isto evitará uma valiosa perda de tempo (e luz do dia?), parando para preparar e comer a refeição. (Uma vez que Saul não planejou esta batalha, nem ele nem seus homens estão realmente preparados para os acontecimentos do dia). Na pressa, não há rações prontas para os homens comerem, ou assim parece a Saul. Por isso, ele proíbe seus homens de comerem durante o dia, e eles lutam o dia inteiro sem comida.

Saul está errado em duas coisas. Primeiro, está errado em pensar que sua ordem produzirá uma vitória maior dos israelitas sobre os filisteus. Saul parece achar que suas ordens resultarão em mais tempo de perseguição à preciosa luz do dia e, assim, mais filisteus serão mortos. Não funciona desse jeito. À medida que os filisteus procuram fugir para seu país, a batalha se alastra para leste, primeiro para Bete-Áven (14:23) e depois para Aijalom (14:31). Os israelitas os perseguem por mais de 20 milhas de território montanhoso, e isto sem comer. Eles ficam exaustos e debilitados pela fome, e não conseguem perseguir seus inimigos com tanta eficácia quanto se estivessem bem alimentados.

Saul está errado ainda numa segunda coisa. Está errado em supor que a única maneira de alimentar seus guerreiros é com “comida caseira”, o que levará muito tempo. Afinal, não é dia de “comida pronta” e Saul acha que não existe nenhuma chance de conseguir uma rápida fonte de energia. Ele está errado. Deus tem uma comida “mais do que pronta” disponível. Ele colocou estrategicamente um favo de mel na floresta, e comê-lo não demora absolutamente nada. Os soldados, da mesma maneira que Jônatas, só precisam enfiar a ponta da vara no mel, tirá-la e levá-la à boca. Não existe comida mais rápida, ou melhor, nos arredores. Este é o alimento mais perfeito e mais natural que alguém poderia esperar. Faz “Gatorade” parecer patético.

Jônatas não ouve a ordem de Saul até que seja muito tarde. Ele está ocupado demais atacando e lutando com os filisteus para se sentar no acampamento esperando que Saul passe um decreto. E assim, enquanto persegue os filisteus, as forças de Saul se juntam a ele. Quando Jônatas se alimenta com o mel, um dos homens o informa sobre a ordem ridícula de Saul. Jônatas diz aquilo que a maioria de nós deve estar pensando neste momento: “Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por eu ter provado um pouco deste mel.” (14:29) Seu pai deve ser louco e egoísta para não deixar seus homens se alimentarem. Se os israelitas pudessem fazer o mesmo que ele, a vitória seria muito maior. Saul não é a fonte dos sucessos militares de Israel, mas um empecilho a eles. As vitórias de Israel são mais a despeito de seu rei do que conseqüências de sua liderança. Todos os soldados israelitas devem pensar isto, e Jônatas simplesmente tem coragem de dizê-lo.

Saul, uma Pedra de Tropeço para Israel
(14:31-35)

“Feriram, porém, aquele dia aos filisteus, desde Micmás até Aijalom. O povo se achava exausto em extremo; e, lançando-se ao despojo, tomaram ovelhas, bois e bezerros, e os mataram no chão, e os comeram com sangue. Disto informaram a Saul, dizendo: Eis que o povo peca contra o SENHOR, comendo com sangue. Disse ele: Procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra. Disse mais Saul: Espalhai-vos entre o povo e dizei-lhe: Cada um me traga o seu boi, a sua ovelha, e matai-os aqui, e comei, e não pequeis contra o SENHOR, comendo com sangue. Então, todo o povo trouxe de noite, cada um o seu boi de que já lançara mão, e os mataram ali. Edificou Saul um altar ao SENHOR; este foi o primeiro altar que lhe edificou.

Já é ruim o suficiente quando as bobagens de Saul impedem uma grande vitória de Israel, mas é indesculpável quando sua ordem resulta em pecado. Obedientemente, os israelitas acatam a ordem insana de Saul para não comer até o anoitecer. E, devido à sua fadiga, menos filisteus são mortos. Mas, quando o dia chega ao fim, o povo faminto encontra o gado deixado por seus inimigos. É triste dizer que os soldados israelitas temem mais desobedecer as ordens de Saul do que temem desobedecer as leis de Deus. Os soldados famintos devoram o rebanho sem prepará-lo adequadamente, e por isso, acabam pecando (Lv. 17:10; 19:26).

Alguém diz a Saul que Israel está pecando desse jeito (14:33). Se alguém não lhe tivesse dito, seria de admirar que Saul tivesse percebido. Em vez de assumir a responsabilidade por ser uma “pedra de tropeço” a seus compatriotas, a justiça própria de Saul aponta seu dedo acusador para os homens famintos: “procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra.” (14:33b) Esta é uma tentativa de minimizar os prejuízos causados pelo próprio Saul com sua ordem insana. Pelo menos ele está preocupado em impedir que seus homens cometam mais pecado.

Duas coisas parecem estranhamente irônicas quanto ao fato de Saul edificar um altar de pedra na noite em que os israelitas fazem suas “ofertas”. Primeiro, esta adoração mal pode ser chamada de sincera, tanto da parte dos israelitas, quanto da parte de Saul. Ela é simplesmente uma forma de santificar a satisfação do apetite dos soldados para que não pequem mais. E, quando é dito que este é o primeiro altar edificado por Saul, também não ficamos impressionados. Será que Saul precisa passar por esse tipo de crise para adorar a Deus? Será que ele só constrói altares em tempos de crise? Eu não chamaria este de um “momento santo” na história de Israel. Eles estão simplesmente cobrindo suas apostas, minimizando o dano causado pelo pecado, pecado este induzido por Saul e praticado por seus soldados.

Segundo, esta “refeição” é muito irônica. Saul proíbe seus soldados de comerem antes do anoitecer, embora a “comida pronta” providenciada por Deus não demore mais do que alguns minutos (como vemos pelo fato de Jônatas se satisfazer durante o combate). Saul acredita que comer será perda de tempo e um empecilho à capacidade de Israel de obter uma grande vitória. Mesmo assim os israelitas perseguem seus inimigos noite adentro; só que estão tão famintos e tentados pelos despojos de guerra, que pecam na maneira de comê-los. Para corrigir a situação, Saul tem que construir um altar e depois garantir que o sacrifício de cada homem seja feito e preparado de forma correta. Quanto tempo você acha que levou esta “refeição”? Isto é ineficiência!

Saul é Rápido para Matar - Seu Filho
(14:36-45)

“Disse mais Saul: Desçamos esta noite no encalço dos filisteus, e despojemo-los, até o raiar do dia, e não deixemos de resto um homem sequer deles. E disseram: Faze tudo o que bem te parecer. Disse, porém, o sacerdote: Cheguemo-nos aqui a Deus. Então, consultou Saul a Deus, dizendo: Descerei no encalço dos filisteus? Entregá-los-ás nas mãos de Israel? Porém aquele dia Deus não lhe respondeu. Então, disse Saul: Chegai-vos para aqui, todos os chefes do povo, e informai-vos, e vede qual o pecado que, hoje, se cometeu. Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto. Porém nenhum de todo o povo lhe respondeu. Disse mais a todo o Israel: Vós estareis de um lado, e eu e meu filho Jônatas, do outro. Então, disse o povo a Saul: Faze o que bem te parecer. Falou, pois, Saul ao SENHOR, Deus de Israel: Mostra a verdade. Então, Jônatas e Saul foram indicados por sorte, e o povo saiu livre. Disse Saul: Lançai a sorte entre mim e Jônatas, meu filho. E foi indicado Jônatas. Disse, então, Saul a Jônatas: Declara-me o que fizeste. E Jônatas lhe disse: Tão-somente provei um pouco de mel com a ponta da vara que tinha na mão. Eis-me aqui; estou pronto para morrer. Então, disse Saul: Deus me faça o que bem lhe aprouver; é certo que morrerás, Jônatas. Porém o povo disse a Saul: Morrerá Jônatas, que efetuou tamanha salvação em Israel? Tal não suceda. Tão certo como vive o SENHOR, não lhe há de cair no chão um só cabelo da cabeça! Pois foi com Deus que fez isso, hoje. Assim, o povo salvou a Jônatas, para que não morresse.”

Finalmente, depois de uma espera recorde pelo jantar, a refeição está terminada. Agora Saul está pronto para lutar - mas, e Deus? Saul ordena que seus homens voltem à batalha para causar mais danos ao exército filisteu e obter mais despojos. O povo consente com ele. Eles estão prontos para voltar à batalha. Mas o sacerdote não está tão certo disto. Ele insiste em primeiro buscar a vontade de Deus. Quando Saul consulta a Deus, ele espera um “sim” ou ”não” como resposta. “Descerei no encalço dos filisteus? Entrega-los-á nas mãos de Israel?”

Saul tira uma porção de conclusões precipitadas. Primeiro ele conclui que, uma vez que não obteve resposta, deve ser porque alguém pecou. Parece não lhe ocorrer que o pecado seja dele mesmo ou de seus soldados por comerem carne sem drenar adequadamente o sangue. Ele presume que haja pecado, e que este pecado seja uma violação à sua ordem insana (não da lei de Deus). Além disso, ele presume que é bem possível que tenha sido Jônatas o culpado por este pecado. E finalmente ele conclui que este “pecado” seja digno de morte. Não creio que seja por coincidência que ele diga: “Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto.” (v. 39) Por que, dentre os milhares de homens que estão com ele, Saul se concentra em Jônatas, seu filho? Receio saber o porquê, e não gosto disto em absoluto. Creio que o filho de Saul, Jônatas, é um homem muito parecido com Davi. Na guerra, Saul conclui que Jônatas seja, na melhor das hipóteses, uma amolação, e, com certeza, um obstáculo. Creio que ele esteja procurando uma desculpa para dar cabo de Jônatas, e esta situação parece perfeita para a ocasião. Antes que a sorte seja lançada, Saul deixa claro que, se Jônatas for indicado, ele morrerá. Creio que ele saiba que Jônatas será indicado.

Até onde vai o registro bíblico, Saul decide a questão com muita rapidez e arbitrariedade. Ele e seu filho ficam frente a frente com o restante dos soldados. Sem nenhuma surpresa, ele e Jônatas são indicados. Então Saul lança a sorte entre ele e Jônatas, e Jônatas é indicado. O povo consente com este processo, pelo menos por enquanto (v. verso 40). Quem irá se opor a Saul nesse estado de espírito? Quando Jônatas é isolado pelo lançamento de sortes, seu pai lhe pergunta o que ele fez (não é interessante que Saul já tenha estabelecido a punição antes mesmo que o crime seja revelado?). Jônatas “confessa” que realmente provou um pouco de mel com a ponta da vara. Uma pequena lambida no mel, dada sem nenhum conhecimento da ordem de seu pai e nenhuma perda de tempo, é o crime abominável que Saul supõe seja a razão de Israel não ter conseguido concluir a batalha iniciada por Jônatas. Saul parece sentir que é melhor matar seu filho do que admitir seu próprio pecado e idiotice.

Mesmo aqui Jônatas é um filho exemplar. Ele não dá nenhuma desculpa, nem faz qualquer acusação contra seu pai, ainda que ele seja louco. Jônatas coloca sua vida nas mãos de seu pai, o rei. Ele está disposto a morrer se essa for a vontade de seu pai, se essa for a vontade de Deus. Com grande pompa, Saul uma vez mais assevera a morte de Jônatas. É como se Saul não pudesse fazer nada mais justo.

Finalmente, o povo que calmamente suportara todas as cenas do rei, teve o suficiente. Eles estão dispostos a deixar que Saul submeta a si mesmo e a Jônatas à prova (v. 40), mas não a permitir que Saul mate seu filho. Eles percebem o quanto as atitudes de Saul são insanas. Jônatas, não Saul, lhes deu grande libertação (verso 45). Será que ele deve ser morto por causa disto? Ele agiu com Deus, não contra Ele, e por isso não será morto como pecador. Muito pelo contrário! Nenhum fio de cabelo de sua cabeça cairá no chão. E assim é que Jônatas, trabalhando com Deus, salva Israel, e Israel, enfrentando Saul, salva Jônatas. Saul, que não salva ninguém, não tem permissão para destruir seu próprio filho. Com este incidente, tem fim a batalha com os filisteus, mais depressa e menos decisiva do que deveria, tudo devido à insensatez de Saul, o “libertador” de Israel.

Encerrando com o “Sucesso” de Saul e Seus Sucessores
(14:46-52)

“E Saul deixou de perseguir os filisteus; e estes se foram para a sua terra. Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam. Os filhos de Saul eram Jônatas, Isvi e Malquisua; os nomes de suas duas filhas eram: o da mais velha, Merabe; o da mais nova, Mical. A mulher de Saul chamava-se Ainoã, filha de Aimaás. O nome do general do seu exército, Abner, filho de Ner, tio de Saul. Quis era pai de Saul; e Ner, pai de Abner, era filho de Abiel. Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”

Há um sentido no qual este capítulo é uma espécie de bênção com relação à vida e reinado de Saul como rei de Israel. Há um sumário de seus aparentes sucessos, uma clara alusão a seus fracassos e uma lista de seus descendentes. O capítulo 15 descreve o pecado que significa o fim do reinado de Saul (o pecado anterior significava o fim da dinastia de Saul - o reinado de seus descendentes). Os capítulos posteriores apresentam Davi como seu substituto e mostram o ciúme de Saul e sua oposição a Davi. O último capítulo de I Samuel descreve a morte de Saul e seu filho. No entanto, este capítulo parece ser a bênção sobre Saul e seu reinado.

A batalha acabou, mas não a guerra. Os filisteus sofrem uma grande perda, mas não uma derrota total. Cada exército - israelita e filisteu - segue seu próprio caminho. As duas nações continuam em guerra uma contra a outra pelo resto da vida de Saul. Isto é particularmente acentuado no verso 52:

“Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”

Pelo resto da vida de Saul haverá conflito, e sua consideração pelos filisteus pode ser vista no fato de ele procurar agregar a seu exército qualquer “homem forte e valente”. As conseqüências de sua loucura vão segui-lo todos os dias de seu reinado. Como veremos no capítulo 31, Saul e seu filho Jônatas morrem às mãos dos filisteus. Que lamentável que a vitória sobre os filisteus não tenha sido completa nesta batalha iniciada por Jônatas.

Tenho me referido a Saul como louco e fracassado. Como podemos, então, explicar a avaliação de seu reinado nos versos 47 e 48, que parecem colocá-lo sob um ângulo favorável? A resposta tem pelo menos dois aspectos. Primeiro, parece correto dizer que um homem pode ser um fracasso moral e espiritual e, no entanto, ser um grande líder militar. Veja o homem usado por Deus no livro de Juízes para libertar Seu povo. Sansão não é nenhum gigante moral, mas é usado por Deus para libertar Israel das mãos de seus inimigos. O mesmo pode ser dito de muitos outros juízes levantados por Deus. Deus não se limita a usar somente pessoas piedosas para cumprir Suas promessas e Seus propósitos. Portanto, a vitória militar pode ser alcançada por meio de um homem como Saul, a despeito do tipo de homem que ele é. Quantos de nós atribuem nossos méritos e nossa bondade à graça e misericórdia de Deus para conosco?

Segundo, as coisas ditas nestes dois versos são realmente verdadeiras e representam a avaliação da liderança de Saul do ponto de vista de um historiador secular. Saul, como rei de Israel, realmente luta contra todas as nações em derredor e lhes impõe castigo. Com relação à batalha com os amalequitas, Saul age mesmo com valentia e livra Israel daqueles que os despojam.

Parece que a batalha entre Israel e os filisteus, descrita nos capítulos 13 e 14, é uma coisa típica da vida e do reinado de Saul em Israel. Ele luta com os filisteus e os israelitas vencem. A batalha é travada sob sua liderança. Mas a vitória não foi o que poderia ter sido devido à sua loucura. E a batalha não é resultante de sua fé e iniciativa, mas da fé e iniciativa de Jônatas. Apesar disto, como lemos em 13:4, é divulgada uma notícia de que Saul “derrotara a guarnição dos filisteus”. Do ponto de vista de um historiador secular, as vitórias de Israel sob os cuidados de Saul são suas vitórias. Sabemos que estas vitórias foram obtidas pela graça de Deus, muitas vezes devido à atitude de pessoas como Jônatas e, com freqüência, a despeito da inércia e loucura de Saul.

Apesar das “vitórias” de Saul e Israel, os filisteus jamais são destruídos, jamais são completamente derrotados, a fim de que Saul e Israel contendam com eles durante todo o seu reinado. Confiando no “braço da carne”, parece que Saul procura heróis que lutem por ele e por Israel. Com toda a certeza o terreno está sendo preparado para Davi e o papel que desempenhará na batalha com os filisteus e com Golias, seu campeão.

Conclusão

Primeiro, não é nada difícil perceber porque Jônatas e Davi se tornarão amigos dedicados. Na verdade, eles são almas gêmeas. Jônatas é um homem de fé e compreensão espiritual. Ele é um homem que age com ousadia devido à sua fé em Deus, enquanto seu pai espera que o mau tempo passe. Jônatas teria sido um grande rei, mas ele é benjamita e não descendente de Judá; e, assim, nenhum de seus descendentes poderia ser o Messias. Mas, quando Jônatas vê que a mão de Deus está sobre Davi, ele é um dos primeiros israelitas a recebê-lo como o próximo rei de Israel, sem ciúmes ou hesitação.

Segundo, este texto prepara o terreno para a introdução de Davi nos capítulos 16 e 17. O caráter de Saul é evidente. Sua loucura e seu ciúme contra Davi não chegam a nos surpreender, pois já haviam sido demonstrados no seu trato com seu próprio filho, Jônatas. Saul já havia tentado matá-lo; não será nenhuma surpresa vê-lo também tentando matar Davi, bem como outras pessoas. Assim como ele relutou em enfrentar os filisteus no princípio, ele também hesitará em enfrentá-los quando Golias for seu campeão. Nos próximos capítulos haverá poucas surpresas para nós sobre Saul, devido àquilo que já lemos nos primeiros capítulos de I Samuel.

Terceiro, vemos que a visão histórica de um homem pode ser muito diferente da visão de Deus. A avaliação feita por um semelhante com certeza não é perfeita. No que diz respeito a Deus, com certeza esta não é a verdadeira ”medida de um homem”, pois quando Deus julga o homem, Ele vê o coração. A história secular pode considerar Saul um sucesso, mas, em termos bíblicos e espirituais, ele é um miserável fracasso. Os índices seculares de sucesso não são indicadores da aprovação ou da bênção de Deus. O autor de I Samuel quer que vejamos Saul como um homem que é rejeitado por Deus. Como é triste ser valorizado pelo mundo e desprezado por Deus. Como é melhor, se necessário for, ser desprezado pelo mundo e valorizado por Deus (ver I Pe. 4).

Quarto, vemos neste texto que os cristãos podem e agem de maneira que aparentemente atrapalhe a realização plena da obra de Deus. Em última análise, os homens não podem impedir aquilo que Deus propôs e prometeu fazer. Deus usa a fé e a obediência dos homens para cumprir Seus propósitos, mas Ele não se limita a estes meios. A soberania de Deus também permite que Ele empregue a incredulidade e a desobediência para alcançar Seus propósitos (ver Gn. 50:20, Sl. 76:10). Ele usa até mesmo Satanás para atingi-los (v. II Co. 12:5-10). Contudo, reconhecendo a soberania de Deus sobre todas as coisas, também deve ser dito que Deus, às vezes, permite que a ação (ou a inércia) dos homens atrapalhem aquilo que poderia ter sido feito (v. II Re. 13:14-19). Deus é soberano na história mas, em Seu controle absoluto sobre todas as coisas, Ele estabeleceu que as ações têm conseqüências, e que a desobediência e a falta de fé podem resultar em algo menor do que poderia e deveria ter sido se tivéssemos agido de maneira santa. Com toda a certeza isto é ilustrado pela maneira como a loucura de Saul no capítulo 14 impede uma vitória cabal sobre os filisteus.

Quinto, o governo de Saul é fonte de grandes problemas para Israel, mas também é meio para a sua própria destituição. Sabemos pelo capítulo 14 que a ordem insana de Saul impede Israel de obter uma vitória esmagadora sobre os filisteus. Conseqüentemente, pelo resto de seus dias, ele e a nação são atormentados pelos filisteus (v. 52). O ataque do capítulo 17 lança a ascensão e projeção de Davi em Israel e o início do fim para Saul. A batalha de Israel com os filisteus no capítulo 31 resulta na morte de Saul e de Jônatas. Como lemos em Cantares de Salomão, são as “raposinhas que devastam os vinhedos” (2:15). Este momento aparentemente insignificante de insensatez tem graves conseqüências para Israel e seu rei.

Finalmente, vemos em nosso texto uma excelente ilustração de legalismo. Zelar pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus não é legalismo, é discipulado. Com muita freqüência ouço algumas pessoas se referirem aos sermões baseados nos mandamentos de Deus (do Novo ou do Velho Testamento) como sendo “legalistas”. Embora algumas pessoas sejam legalistas na maneira como buscam obedecer aos mandamentos de Deus, o zelo pelo conhecimento e obediência a eles não é legalismo. O Salmo 119 é um excelente exemplo de um crente que zela pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus. O amor à lei do Senhor não é legalismo.

Legalismo é um descontentamento com os mandamentos de Deus da forma como eles são. O legalismo supõe que os mandamentos e as proibições de Deus não sejam suficientes. O legalismo procura consertar este “problema” adicionando mais regras e regulamentos. Estes acréscimos são mantidos de forma tão intensa quanto os mandamentos das Escrituras (às vezes, até mais). Aqueles que deixam de obedecê-los são severamente julgados por aqueles que os adotam.

Deixe-me ilustrar o legalismo do Novo Testamento. A lei de Moisés requeria que os homens guardassem o sábado, e isto significava que o sábado deveria ser um dia de descanso. Não significava que fosse pecado os discípulos de Jesus colherem alguns grãos e comê-los. Não significava que fosse pecado nosso Senhor curar um doente no sábado. Os escribas e fariseus não podiam acusar nosso Senhor de violar qualquer lei de Deus; eles apenas podiam acusá-lo de violar as leis do Antigo Testamento como eles as interpretavam e aplicavam, e como eles as aperfeiçoavam com suas tradições. Procurar “incrementar” as leis de Deus, acrescentando alguma coisa a elas, era colocar-se acima da Lei como juiz:

“Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo?” (Tg. 4:11-12)

Pelo que entendo deste texto de Tiago, aqueles que “julgam” injustamente seus irmãos, geralmente o fazem com base em suas próprias regras legalistas, e não de acordo com a Palavra de Deus. Tiago diz que, aqueles que julgam os outros por suas próprias regras, julgam também a Lei de Deus como inadequada.

O rei Saul é um legalista. Como rei de Israel, ele deveria conhecer bem a lei de Deus, e ter cuidado em obedecê-la e cuidar que fosse obedecida em seu reino (Dt. 17:18-20). Parece até que ele não teria percebido a violação da lei de Deus, caso alguém mais não lhe tivesse mostrado (v. I Sam. 14:33). Saul facilmente justifica sua negligência em cumprir os mandamentos de Deus e, no entanto, está pronto - quase ansioso, para condenar seu próprio filho à morte por violar uma de suas regras idiotas. Como todos os legalistas, Saul acha fácil coar o mosquito e engolir o camelo (Mt. 23:23-24). Ele distila sua indignação quando os outros transgridem suas regras, mas é mais do que tolerante com suas flagrantes transgressões aos mandamentos de Deus.

Ao contrário do que os legalistas pensam, o legalismo não impede o pecado; ele o favorece. As proibições que os legalistas amontoam sobre si e sobre os outros não são a cura para as concupiscências da carne (Cl. 2:20-23). Havia nos tempos do Novo Testamento aqueles que proibiam o casamento e comer certos alimentos (I Tm. 4:3), mas estes eram enganadores e mentirosos que procuravam desviar o povo de Deus da verdade. Embora Paulo fosse solteiro, ele instruiu os maridos e as esposas a não se absterem de sexo, a menos que fosse por uma razão importante, e apenas por algum tempo. O legalismo faz os homens caírem, como a ordem legalista de Saul fez os israelitas pecarem ao comer carne sem o devido preparo. Vamos tomar cuidado com o legalismo, em todas as suas formas mais piedosas.

Uma palavra final. O contraste entre Saul e Jônatas em nosso texto é difícil de ser ignorado. Jônatas é aquilo que Saul não é. Não vamos nos esquecer de que Jônatas é filho de Saul. Não são os bons “cuidados paternais” de Saul que fazem de Jônatas o que ele é. Sua devoção é a despeito de Saul, não por causa dele. Que todos aqueles que gostariam de levar o crédito pelo modo como seus filhos se saem observem isto. E observemos também que muitos pais crentes dão à luz filhos descrentes. Lembro-me, por exemplo, de Sansão e seus pais (v. Jz. 13:1-23, especialmente o verso 8).

Até agora eu estava disposto a ver Saul como uma anomalia, uma espécie de caso excepcional. Seus pecados são mais notórios, mais visíveis, e talvez mais dramáticos do que os nossos, mas, em última análise, suas tentações e fracassos, na verdade, são “comuns aos homens” (v. I Co. 10:13; Tg. 5:17). Suas falhas não estão registradas a fim de que gostemos de odiar este homem. Creio que estão registradas como advertência, para que não precisemos repetir os pecados que ele tão obviamente comete. Gostaria de pensar que minha vida se espelha mais em Jônatas do que em seu pai, mas este nem sempre é o caso. Vamos prestar atenção e aprender destes dois homens tão diferentes, Saul e Jônatas. E vamos nos esforçar para servir a Deus fielmente, obedecendo Seus mandamentos, para que não nos tornemos exemplos negativos de desatino para as futuras gerações.

12. Saul e os Amalequitas (I Samuel 15:1-35)

Introdução

Sempre tive problemas em jogar coisas fora. Quando Jeanette e eu éramos recém-casados, vivíamos no interior do Estado de Washington. Uma vez que não havia coleta de lixo, tínhamos que levar nossos detritos para o depósito da região. Eu tinha um trailer que usava para isto e, literalmente, toda vez que me preparava para ir ao depósito, as últimas palavras de Jeanette eram “Não traga nada de volta!”. Isto porque muitas vezes eu voltava do depósito com mais tralhas do que havia levado.

Quando vim para Dallas para fazer o seminário, trabalhei num departamento de garantia de qualidade. Os itens danificados que não tinham conserto iam para a pilha de “descarte”. Imagine o quanto aquilo era difícil para mim; eu odiava jogar fora qualquer coisa que parecesse ter alguma utilidade. Ainda hoje, em nossa vizinhança, sou um dos poucos a quem as pessoas se dirigem para dizer onde tem algum bom cacareco - no beco perto de casa. Um dia, um vizinho descia do beco e gritou pela janela “Bob, tem um cortador de grama fantástico lá no beco, atrás da casa do Tinsley.” Encontrei o cortador e estava aparando minha grama com ele, quando o vizinho que o tinha jogado fora voltava do trabalho. Quando lhe expliquei como achei seu cortador, ele respondeu: “Fico contente que você o tenha consertado e esteja usando; quer um bagageiro também? Esqueci de jogá-lo fora com o cortador.”

Saul e eu não somos nada parecidos nessa questão de guardar coisas consideradas sem valor pelos outros. Saul joga fora as tranqueiras com prazer. O que o incomoda é ver coisas em perfeito estado serem destruídas. Ele não tem problema algum para matar homens e mulheres amalequitas, mesmo seus filhinhos. No entanto, o que é difícil para ele é matar seu rei, Agague. Ele não tem nenhum problema em massacrar o gado comum, mas não agüenta desperdiçar carne de primeira e um bom cordeiro.

A recusa de Saul em aniquilar totalmente os amalequitas lhe custa o reinado. Este é um pecado gravíssimo. Nosso texto não mostra apenas o pecado de Saul, mostra também o nosso. Saul está disposto a fazer coisas que jamais pensaríamos - como matar criancinhas. Será que teríamos matado crianças amalequitas como Saul? Se não, por que não? Nosso texto chama a atenção para a natureza da desobediência de Saul, que é muito parecida com a desobediência comum entre os cristãos atuais. Nosso texto tem lições importantes para aprendermos sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências e, também, sobre a nossa própria desobediência às determinações de Deus.

A Ordem Para Matar os Amalequitas

Os amalequitas, um nome que poderia soar vagamente familiar ao leitor da Bíblia, pode ser estranho para nós, mas não é estranho para os israelitas. Os amalequitas são um dos povos que habitam a parte sul de Canaã. Quando os israelitas deixaram o Egito e se dirigiam para Canaã (ver Ex. 17:8 e ss), eles foram uma das primeiras nações que os israelitas encontraram. Esta é uma das nações vizinhas com quem Israel está em constante conflito. Os amalequitas atacam Israel, que, desobedientemente, procura possuir a terra prometida depois de sua incredulidade em Cades-Barnéia (ver Nm. 14:25, 43, 45). Eles se juntam aos midianitas para atacar e saquear Israel e são uma das nações que ameaçam tanto Israel, que Gideão precisa ter certeza da presença de Deus com ele na batalha (ver Jz. 6:3, 33, 7:12). Esta é a nação atacada por Davi, que invade Ziclague e captura sua família e seus bens e a família e os bens de seus homens (ver I Sam. 27:8, 30:1, 18, II Sam. 1:1).

A ordem para matar a nação inteira e seu gado não é algo novo. Deus exigiu isto dos israelitas quando encontrassem as nações cananéias:

“No entanto, nada do que alguém dedicar irremissivelmente ao SENHOR, de tudo o que tem, seja homem, ou animal, ou campo da sua herança, se poderá vender, nem resgatar; toda coisa assim consagrada será santíssima ao SENHOR. Ninguém que dentre os homens for dedicado irremissivelmente ao SENHOR se poderá resgatar; será morto.” (Lv. 27:28-29)

“Porém, das cidades destas nações que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o SENHOR, teu Deus, destruí-las-ás totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o SENHOR, vosso Deus.” (Dt. 20:16-18)

“No sétimo dia, madrugaram ao subir da alva e, da mesma sorte, rodearam a cidade sete vezes; somente naquele dia rodearam a cidade sete vezes. E sucedeu que, na sétima vez, quando os sacerdotes tocavam as trombetas, disse Josué ao povo: Gritai, porque o SENHOR vos entregou a cidade! Porém a cidade será condenada, ela e tudo quanto nela houver; somente viverá Raabe, a prostituta, e todos os que estiverem com ela em casa, porquanto escondeu os mensageiros que enviamos. Tão-somente guardai-vos das coisas condenadas, para que, tendo-as vós condenado, não as tomeis; e assim torneis maldito o arraial de Israel e o confundais. Porém toda prata, e ouro, e utensílios de bronze e de ferro são consagrados ao SENHOR; irão para o seu tesouro. Gritou, pois, o povo, e os sacerdotes tocaram as trombetas. Tendo ouvido o povo o sonido da trombeta e levantado grande grito, ruíram as muralhas, e o povo subiu à cidade, cada qual em frente de si, e a tomaram. Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos.” (Js. 6:15-21)

O texto de I Samuel 15 e as passagens acima podem provocar muitas perguntas nos leitores cristãos atuais. (1) Em primeiro lugar, por que Deus ordena o extermínio de nações inteiras? (2) Por que o gado e até mesmo crianças inocentes devem ser destruídos? (3) Por que os amalequitas são particularmente indicados para serem exterminados? (4) Por que uma geração posterior de amalequitas é punida pelos pecados de uma geração anterior? (5) Por que o fato de Saul poupar um homem e umas poucas cabeças de gado é uma ofensa tão grave para Deus? Vamos tentar responder estas questões.

Primeiro, existem razões gerais para o extermínio de povos como os cananeus. Estes são os povos que possuem a terra prometida que Deus deu a Israel. A principal razão afirmada acima é que estes povos são extremamente maus. Se não forem totalmente destruídos, ensinarão aos israelitas suas práticas pecaminosas, colocando-os, dessa forma, debaixo da condenação divina. É fácil ver a razão pela qual todos os guerreiros do inimigo devam ser mortos; mas por que mulheres, crianças e o gado? O pecado que envolvia os Cananeus tinha contaminado e corrompido seus animais, e Deus não permitiria que qualquer um sobrevivesse.

Segundo, aqueles que Deus ordena que sejam aniquilados são aqueles que são culpados, para os quais a punição é uma justa retribuição. Mesmo que seus antepassados tenham pecado gravemente, as pessoas que Deus ordena que Saul destrua também são pecadores culpados, cujo destino é uma justa recompensa:

“Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los.” (I Sam. 15:18)

“Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal.” (I Sam. 15:33)

Os amalequitas são pecadores, merecedores da ira de Deus mediante Israel. Estes pecadores, os amalequitas, são aqueles que desfilharam mulheres e, dessa forma, é justo que experimentem o sofrimento e a crueldade que eles mesmos infligiram a seus inimigos.

Terceiro, somos lembrados de que Deus não tem prazer em punir o inocente:

“Então, perguntou Deus a Jonas: É razoável essa tua ira por causa da planta? Ele respondeu: É razoável a minha ira até à morte. Tornou o SENHOR: Tens compaixão da planta que te não custou trabalho, a qual não fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” (Jn. 4:9-11)

Quarto, o extermínio dos amalequitas da época de Saul é a execução de uma ordem dada muitos anos antes e reiterada diversas vezes.

Êxodo 17:8-15

“Então, veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Com isso, ordenou Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, e peleja contra Amaleque; amanhã, estarei eu no cimo do outeiro, e o bordão de Deus estará na minha mão. Fez Josué como Moisés lhe dissera e pelejou contra Amaleque; Moisés, porém, Arão e Hur subiram ao cimo do outeiro. Quando Moisés levantava a mão, Israel prevalecia; quando, porém, ele abaixava a mão, prevalecia Amaleque. Ora, as mãos de Moisés eram pesadas; por isso, tomaram uma pedra e a puseram por baixo dele, e ele nela se assentou; Arão e Hur sustentavam-lhe as mãos, um, de um lado, e o outro, do outro; assim lhe ficaram as mãos firmes até ao pôr-do-sol. E Josué desbaratou a Amaleque e a seu povo a fio de espada. Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué; porque eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu. E Moisés edificou um altar e lhe chamou: O SENHOR É Minha Bandeira. E disse: Porquanto o SENHOR jurou, haverá guerra do SENHOR contra Amaleque de geração em geração.” (Ex. 17:8-16)

Números 24:20-25

“Viu Balaão a Amaleque, proferiu a sua palavra e disse: Amaleque é o primeiro das nações; porém o seu fim será destruição. Viu os queneus, proferiu a sua palavra e disse: Segura está a tua habitação, e puseste o teu ninho na penha. Todavia, o queneu será consumido. Até quando? Assur te levará cativo. Proferiu ainda a sua palavra e disse: Ai! Quem viverá, quando Deus fizer isto? Homens virão das costas de Quitim em suas naus; afligirão a Assur e a Héber; e também eles mesmos perecerão. Então, Balaão se levantou, e se foi, e voltou para a sua terra; e também Balaque se foi pelo seu caminho.” (Nm. 24:20-25)

Deuteronômio 25:17-19

“Lembra-te do que te fez Amaleque no caminho, quando saías do Egito; como te veio ao encontro no caminho e te atacou na retaguarda todos os desfalecidos que iam após ti, quando estavas abatido e afadigado; e não temeu a Deus. Quando, pois, o SENHOR, teu Deus, te houver dado sossego de todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança, para a possuíres, apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu; não te esqueças.” (Dt. 25:17-19)

Quando os israelitas partem do Egito e rumam para a terra prometida, eles são atacados pelos amalequitas, como descrito em Êxodo 17. Sabemos por Deuteronômio 25:18 que este ataque é covarde, pois eles atacam pelas costas, tomando de assalto os retardatários que estão cansados e abatidos. Deus dá a Israel a vitória sobre o exército amalequita, mas isto não extermina toda a nação. Deus dá ordens específicas às futuras gerações para que apaguem a memória deste povo, e sua ordem é registrada para a posteridade de Israel.

Em Números 24, há uma referência muito interessante a esta “maldição” que Deus impõe sobre os amalequitas. Balaque, o rei de Moabe, teme os israelitas e procura causar seu fim, contratando Balaão para amaldiçoá-los. Balaque deve ignorar a Aliança Abraâmica:

“Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:1-3, ênfase minha)

Os amalequitas não abençoaram os israelitas, eles os amaldiçoaram, atacando-os no caminho. Por isso, Deus os amaldiçoa, como Se comprometera com Abraão e seus descendentes. Agora, Balaque procurar atrair Balaão para “amaldiçoar” Israel, o povo a quem Deus abençoou. Balaão, não só abençoa Israel, mas também reitera a maldição sobre os amalequitas, pronunciada anteriormente em Êxodo 17. Além de amaldiçoar os amalequitas, ele também abençoa os queneus, que mostraram misericórdia para com os israelitas (Nm. 24:21, v. I Sam. 15:6). A despeito de si mesmo, Balaão abençoa aqueles a quem Deus abençoa (incluindo aqueles que abençoam Israel), e ele deve amaldiçoar aqueles a quem Deus amaldiçoa (aqueles que amaldiçoam Israel).

Em Deuteronômio 24, a segunda geração de israelitas que está prestes a entrar na terra prometida é relembrada do dever de seus descendentes de destruir os amalequitas, tão logo a nação tenha se estabelecido e vencido as nações circunvizinhas. É interessante que este lembrete do dever de exterminar os amalequitas seja encontrado no contexto de ensino sobre justiça (ver 25:1-16). Por inferência, a aniquilação dos amalequitas é o cumprimento da justiça.

A pergunta que talvez permaneça é: “Mas, por que esta geração deve ser destruída, quando foi uma geração anterior que tratou com crueldade a Israel?” Já dissemos que a geração de amalequitas da época de Saul é má e merece a morte. Parece certo dizer que esta geração é ainda pior do que aquela que oprimiu Israel no deserto, como descrito em Êxodo 17. Julgo a destruição dos amalequitas à luz das palavras ditas por Deus a Abraão séculos antes:

“Ao pôr-do-sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande pavor e cerradas trevas o acometeram; então, lhe foi dito: Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice. Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus.” (Gn. 15:12-16)

Deus diz a Abraão (aqui Abrão) que vai lhe dar a terra de Canaã, mas primeiro seus descendentes serão escravizados numa terra desconhecida durante 400 anos. Sabemos que esta terra é o Egito. Quando os 400 anos de cativeiro estiverem completos, Deus então lhes dará a terra de Canaã. A razão dada para esta demora é que “não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus” (Gn. 15:16). Deus preferiu que o pecado deste povo amadurecesse, alcançasse sua maturidade completa, para então levá-los a julgamento. Quando Deus ordena a Saul que extermine os amalequitas, podemos presumir, com certeza, que seus pecados tenham amadurecido e tenha chegado o tempo de seu julgamento.

Além disso, podemos dizer que a demora no julgamento de Deus é também devido à Sua graça, pois, ao retardar seu julgamento, Deus dá tempo aos seus escolhidos para serem salvos de Sua ira:

“Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão.” (Rm. 9:22-23)

“Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento.” (II Pe. 3:9)

A Desobediência de Saul

Este capítulo fala sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências; portanto, vamos refletir sobre a natureza de sua desobediência a fim de entendermos a gravidade de suas conseqüências.

A desobediência de Saul não provém de sua compaixão. Podemos ser tentados a pensar que Saul desobedece a ordem de Deus por sincera, embora equivocada, motivação. Talvez considerássemos sua desobediência de modo diferente se o víssemos poupando as criancinhas amalequitas. Mas Saul não poupa nenhuma criança amalequita; ele poupa Agague, o rei dos Amalequitas. Saul não desobedece a Deus porque seja misericordioso, humano, bondoso. Ele friamente assassina cada homem, mulher e criança amalequita, exceto um - o rei.

Creio que podemos presumir com segurança que Saul poupe Agague, junto com o melhor das manadas e rebanhos amalequitas, porque seja de seu próprio interesse. Com certeza, ele ganha certa popularidade ao permitir que os israelitas tenham uma boa refeição sacrificial com os animais amalequitas. Afinal, isto significa não só que podem se banquetear com carne, mas também que não têm que sacrificar seus próprios animais. Poupar a vida de Agague provavelmente dá a Saul um troféu por sua proeza e poder. Quando Agague se assenta à sua mesa é como se fosse uma cabeça de alce empalhada, pendurada e exibida no gabinete de um caçador. Lembro-me das palavras de outro rei registradas no livro de Juízes:

“Adoni-Bezeque, porém, fugiu; mas o perseguiram e, prendendo-o, lhe cortaram os polegares das mãos e dos pés. Então, disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, a quem haviam sido cortados os polegares das mãos e dos pés, apanhavam migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E o levaram a Jerusalém, e morreu ali.” (Jz. 1:6-7)

Para Saul, ter um rei assentado à sua mesa, cativo e dependente dele, é como ter um troféu desse rei. Creio que seja por isso que Saul poupe a vida de Agague e não a vida de qualquer outro amalequita.

A desobediência de Saul é perpetrada por sua obediência parcial. A desobediência, às vezes, ocorre de forma grosseira, ousada, tal como a de Adão e Eva com relação ao fruto proibido no Jardim do Éden. Mas, aqui, Saul peca por não obedecer à risca as ordens de Deus. Saul faz a maior parte daquilo que Deus lhe diz para fazer por meio de Samuel, mas não obedece totalmente. Samuel vê essa obediência incompleta como pecado.

A desobediência de Saul é de natureza religiosa. A desobediência de Saul é vista e retratada como obediência. Não sei como ele justifica o fato de ter poupado a vida de Agague. Para mim não me parece muito religioso. Mas Saul é mestre em camuflar seu pecado a respeito dos rebanhos amalequitas. Ele diz que ele e o povo pouparam o melhor dos rebanhos para sacrificar ao Senhor. Ora, talvez eles tenham realmente pretendido fazer isto, mas sua motivação, com toda a probabilidade, é interesseira. A matança de todo o gado, como Deus ordenou, também seria um sacrifício, mas o povo não poderia comer nada. Poupar os animais, e depois sacrificá-los a Deus, proporciona pelo menos duas coisas. Primeiro, o povo tem uma refeição grátis às custas de Deus. Eles podem partilhar a refeição sacrificial (2:12-17; 9:11-25). E segundo, eles podem sacrificar este gado para Deus em lugar de seu próprio gado, evitando assim um verdadeiro sacrifício de sua parte. A questão é que a desobediência de Saul tem uma fachada piedosa, mas, no fundo, é um pecado interesseiro. Assim, as ações de Saul são hipócritas, parecendo religiosas quando são pagãs.

A desobediência de Saul é conjunta. Saul não age sozinho. A princípio, quando fala com Samuel, ele está disposto a conversar sobre sua autodenominada obediência na primeira pessoa “Executei as palavras do SENHOR” (verso 13). Mas, uma vez que fica evidente que sua “obediência” é inaceitável para Deus, subitamente ele procura jogar a culpa sobre o povo de Israel:

“Respondeu Saul: De Amaleque os trouxeram; porque o povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao SENHOR, teu Deus; o resto, porém, destruímos totalmente.” (verso 15)

“Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente;” (verso 20)

Só depois que suas desculpas são rejeitadas e seu pecado é exposto por Samuel, é que Saul “confessa” seu papel neste pecado, junto com o povo:

“Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz.” (verso 24)

Quantas vezes o pecado se transforma num acontecimento social, cogitado e formado por muitas pessoas.

A desobediência de Saul não é levada muito a sério por ele. Saul é tardio em assumir a responsabilidade por seu pecado, como mostrado por Samuel. Mesmo quando confessa o pecado, ele joga parte da culpa sobre o povo e, então, tenta - rápido demais para o meu gosto - “ir adiante” com as bênçãos de Deus, esperando escapar da disciplina divina. Isto fica claro nos versos 24 a 33. De certa forma, Saul diz algo assim: “O.K., O.K., então eu baguncei tudo. Admito. Agora a gente pode continuar. Quero que fique comigo para a adoração, para que minha imagem não fique manchada diante do povo.” Na verdade, como no pecado da obediência parcial, Saul está mais preocupado com a opinião do povo do que com a opinião de Deus. Saul quer deixar seu pecado para trás sem ter aversão por ele, sem renunciar a ele.

O pecado de Saul é hipócrita. Caso você se lembre, Saul é um homem que não tolera que qualquer um descumpra suas ordens, mesmo quando elas são insensatas e prejudiciais. No capítulo 14, o filho de Saul, Jônatas, inadvertidamente viola a ordem de Saul para não comer até o anoitecer. Jônatas não ouviu a ordem por estar muito ocupado lutando contra os filisteus, mas Saul está determinado a condená-lo à morte por sua desobediência, e o teria feito se o povo não tivesse se recusado a permitir que tal acontecesse (14:36-46). Ora, quando chega sua vez de obedecer a ordem de Deus, ele é espantosamente indulgente consigo mesmo. Desobedecer a Deus? Pode ser. Desobedecer a Saul? Jamais!

A desobediência de Saul é repetição do mesmo tipo de desobediência vista anteriormente em I Samuel. Este é o segundo dos dois maiores exemplos da desobediência de Saul. O primeiro se encontra no capítulo 13, quando ele oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel. Em resposta a esse pecado, Samuel diz:

“Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13b-14)

Agora, no capítulo 15, encontramos o segundo exemplo da desobediência de Saul:

“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (I Sam. 15:22-23)

Por que esta acusação do capítulo 13 aparentemente é repetida no capítulo 15? Por que Samuel diz a Saul que Deus o rejeitou como rei, quando já havia dito quase a mesma coisa no capítulo 13? A resposta é que a primeira sentença é uma profecia condicional, que não seria cumprida caso Saul se arrependesse genuinamente de seu pecado. É isto que vemos afirmado como um princípio pelo profeta Jeremias:

“Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o SENHOR; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe.” (Jr. 18:6-8)

Naturalmente, era por isto que o rei de Nínive esperava e recebeu:

“Começou Jonas a percorrer a cidade caminho de um dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Os ninivitas creram em Deus, e proclamaram um jejum, e vestiram-se de panos de saco, desde o maior até o menor. Chegou esta notícia ao rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais, cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre cinza. E fez-se proclamar e divulgar em Nínive: Por mandado do rei e seus grandes, nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem os levem ao pasto, nem bebam água; mas sejam cobertos de pano de saco, tanto os homens como os animais, e clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos? Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez.” (Jn. 3:4-10)

Existem, então, algumas profecias que são absolutamente certas, profecias que não podem ser revertidas ou mudadas. E existem também profecias que são advertências sobre o julgamento que virá a menos que os homens se arrependam e sejam perdoados. Quando José interpreta os sonhos de Faraó, ele lhe diz que os dois sonhos dizem respeito à mesma coisa, e isto indica que aquilo que o sonho profetiza certamente ocorrerá (Gn. 41:32). As palavras de Samuel, o profeta, no capítulo 13, são um aviso do julgamento e uma oportunidade para Saul se arrepender. No capítulo 15, vemos que Saul sem dúvida não se arrepende, mas persiste em sua desobediência. Assim, as palavras de Samuel neste capítulo dizem respeito à remoção de Saul de seu cargo, mesmo que isto ocorra alguns anos mais tarde. É exatamente isto que Samuel deixa claro para Saul no versículo 29:

“Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.”

Como, então, podemos enquadrar as palavras do verso 29 àquilo que acabamos de ler no verso 11?

“Arrependo-me de haver constituído Saul rei, porquanto deixou de me seguir e não executou as minhas palavras. Então, Samuel se contristou e toda a noite clamou ao SENHOR.”

O mesmo termo hebraico é empregado nos dois versículos 11 e 29, portanto, não ousamos tentar solucionar nosso problema dizendo que o termo original não seja o mesmo. O que podemos dizer é que o termo empregado aqui é encontrado mais de 100 vezes no Velho Testamento. A forma empregada (Niphal) é traduzida como “arrepender-se” 38 vezes na Versão King James, e muitas delas se referindo ao “arrependimento” de Deus. No primeiro exemplo deste verbo (verso 11 do nosso texto), o autor fala da tristeza de Deus a respeito da maneira como anda a monarquia de Saul. Não é que Deus seja pego de surpresa ou que isto não faça parte de Seu plano soberano. Deus não é imune ao pecado humano; Ele sofre com ele. Mesmo quando Deus propõe que o mal faça parte de Seu plano eterno, Ele não se alegra com ele. Pelo contrário, isto Lhe causa pesar, que é o que diz o verso 11.

No verso 29, a mesma forma hebraica (Niphal outra vez) é usada, mas o contexto dita como este termo um tanto amplo deve ser compreendido. Quando Deus repreende Saul por sua desobediência no capítulo 13, Ele o adverte de que ele perderá sua dinastia, seu reino. Esta é uma profecia condicional, que pode ser evitada caso Saul verdadeiramente se arrependa. Ele não o faz. Portanto, agora no verso 29, quando Saul suplica a Samuel que não o abandone, que não traga a promessa de julgamento sobre ele, Samuel o relembra de que Deus não é homem para cometer erros e depois se “arrepender” e mudar o curso das coisas. A sentença de Samuel indica que Saul será removido do poder. Saul implora que não seja assim. Samuel lhe diz que Deus não erra em tais julgamentos, por isso, Deus não se “arrependerá” do curso que determinou para Saul. É tarde demais, e a opinião Deus não mudará agora, pois o tempo para arrependimento já se foi.

O Princípio Dominante
(15:22-23)

Saul procura desculpar sua desobediência afirmando que pretende usar os animais poupados para oferecer sacrifícios a Deus. Samuel não aceita suas desculpas. Nos versos 22 e 23, ele estabelece um princípio que será adotado diversas vezes pelos profetas posteriores, por nosso Senhor e por Seus apóstolos. O princípio é afirmado tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo. No verso 22 Samuel faz uma afirmação positiva. Ele nos informa que, ainda que em Seus planos Deus tenha prescrito rituais religiosos como uma coisa boa (principalmente se forem feitos com mãos limpas e coração puro), a obediência aos Seus mandamentos é muito melhor.

Saul supõe exatamente o contrário. Suas palavras e ações nos dizem que prestar rituais religiosos por prestar é a coisa mais importante do mundo. Para Saul, desobedecer a ordem de Deus não é tão importante, desde que sua desobediência permita que Ele ofereça a Deus um sacrifício ritual. Para ele, oferecer o sacrifício é mais importante do que obedecer a Deus. Para Samuel, a obediência a Deus é a mais sublime de todas as formas de sacrifício (compare com Rm. 12:1-2). Obedecer a Deus é melhor do que todos os sacrifícios. Desobedecer a Deus, e depois oferecer sacrifícios, é inútil.

No verso 23 Samuel compara o pecado de um israelita com os pecados dos gentios, os quais um bom judeu jamais pensaria cometer. Saul não leva a sério seu pecado de desobediência. Este povo pagão, os amalequitas, merece morrer. Saul não questiona isto. Os pecados que os pagãos cometem são aqueles que os israelitas odeiam. Samuel dá uma pequena aula a Saul ao lhe dizer quer sua desobediência não é menos desprezível do que os pecados pagãos de adivinhação, iniqüidade ou idolatria. Na verdade, os pagãos cometem seus pecados em total ignorância. Eles não possuem as Escrituras como o povo de Deus. O pecado de Saul é igual aos pecados pagãos que ele tanto odeia. Obedecer é melhor do que a adoração ritual; desobedecer é pior do que a idolatria pagã ou a feitiçaria (ARA).

O Arrependimento de Saul
(15:23-31)

É realmente triste ler o registro bíblico da desobediência de Saul. Mas, ainda mais triste é ler o relato de sua resposta à repreensão de Samuel. Saul começa afirmando ter obedecido a ordem de Deus. Depois, quando seu pecado é exposto, ele admite sua falha em executar totalmente a ordem, mas tenta santificar sua desobediência afirmando que é melhor irem adorar a Deus. Quando Samuel rejeita suas desculpas esfarrapadas, Saul finalmente confessa que pecou, jogando, no entanto, uma parte da culpa sobre o povo. Ele afirma que temeu o povo, e por isso, cedeu à pressão que exerciam sobre ele (verso 24). Sua preocupação não é que tenha pecado contra um Deus justo, mas que sua imagem pública ficará manchada se Samuel abertamente cortar relações com ele. Ele não tem uma profunda convicção a respeito da vileza de seu pecado. Simplesmente ele teme que seja muito ruim se a situação não for manejada de forma apropriada. Por isso, ele implora que Samuel volte e adore com ele, aparentando que tudo vai bem.

Samuel cumpre totalmente a ordem de Deus
(I Sam. 15:32-35)

“Disse Samuel: Traze-me aqui Agague, rei dos amalequitas. Agague veio a ele, confiante; e disse: Certamente, já se foi a amargura da morte. Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal. Então, Samuel se foi a Ramá; e Saul subiu à sua casa, a Gibeá de Saul. Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.”

Saul peca no capítulo 13 quando oferece o holocausto que é tarefa de Samuel. Mas agora, no capítulo 15, é necessário que Samuel cumpra a tarefa de Saul. E, neste caso, isto não é pecado. Saul parece relutante em se “arrepender” e voltar atrás em sua decisão de deixar o rei Agague vivo. Assim sendo, Samuel mesmo cumpre a ordem de Deus, pois é necessário que todos os amalequitas sejam mortos, especialmente o rei, que os liderou em sua maldade. Agague é trazido à frente. O rei está certo de que, uma vez que não foi executado na hora, o perigo já tenha passado. Certamente ele se sente à salvo enquanto estiver sob a custódia de Saul. Mas sua confiança não tem fundamento. Samuel é agora o único diante de quem ele deve ficar, e Samuel age no interesse de Deus. Da mesma forma que ele, comandante-em-chefe do exército amalequita, desfilhou mulheres, agora, sua mãe ficará desfilhada com sua morte (verso 33). Samuel não o mata simplesmente, ele o despedaça, sem dúvida porque esta é a maneira como ele tratava os inimigos que derrotava. Ainda que o texto não nos diga, é provável que Samuel cuide para que todo o gado dos amalequitas que os israelitas pouparam também seja morto.

Não é dito que Saul verdadeiramente lamente seu pecado ou mesmo seu rompimento com Samuel. No entanto, é um dia triste para Samuel. Ele chorou e intercedeu junto ao Senhor durante toda a noite anterior à repreensão de Saul (15:11). Ele lamenta por Saul depois que se eles separam (15:35). E o Senhor também lamenta por Saul, e pelo fato de tê-lo constituído rei de Israel. Isto não é nenhuma surpresa para Deus, pois é parte de Seu plano eterno. Saul não pode ser o rei do qual virá o Messias, pois ele não é da tribo de Judá, mas da tribo de Benjamim. Mesmo assim, Deus lamenta tê-lo posto de lado. Foi necessário, mas não é fonte de alegria. Será que pensamos que Deus, que é todo-poderoso, faz somente coisas que O deixem feliz? Deus realmente faz coisas que Lhe causam tristeza, como constituir Saul como rei, e como enviar Seu Filho para morrer na cruz do Calvário às mãos de vis pecadores. Deus faz tudo isto para Sua glória e para o nosso bem.

Conclusão

Primeiramente, devemos ver em nosso texto que Deus sempre cumpre Seus intentos. Não só na época do êxodo (Ex. 17:8-16), mas muitas vezes depois (Nm. 24:20-21; Dt. 25:17-19), Deus ordenou aos israelitas o extermínio dos amalequitas devido à gravidade de seu pecado, como demonstrado por seu ataque aos israelitas após o êxodo. Deus não Se esquece de Sua Palavra e, em I Samuel 15, a despeito da desobediência de Saul, a Palavra de Deus é cumprida. Deus mantém Suas promessas, sejam elas de bênção (como no caso dos israelitas e dos queneus) ou de julgamento.

Vemos na preservação dos queneus e na destruição dos amalequitas não apenas o cumprimento de uma promessa específica de Deus, mas também o cumprimento da aliança de Deus com Abraão (Gn. 12:1-3). Nesta aliança, Deus promete abençoar todos os que abençoarem Abraão e seus descendentes (por exemplo, os queneus), e amaldiçoar todos os que amaldiçoarem Abraão e sua descendência (os amalequitas). A aliança Abraâmica é um fator preponderante na história de Israel, explicando o julgamento e a bênção de Deus com relação às nações que se relacionam com Israel.

Receio que a atitude arrogante de Saul com relação ao seu pecado é semelhante à maneira que muitas pessoas vêem seu próprio pecado nos dias atuais. Por exemplo, dentro do Catolicismo Romano, algumas pessoas sentem-se livres para pecar e depois ir ao confessionário e dizer “Pai, perdoa-me porque pequei...” Muitos cristãos evangélicos também não levam a sério seus pecados. Dizemos muitas vezes que Cristo morreu por nossos pecados, que morreu por todos eles: passados, presentes e futuros. De fato, isto é verdade. No entanto, não nos dá licença para pecar. A graça de Deus jamais deve ser usada como desculpa para o nosso pecado (v. Rm. 5:18-6:11; Jd. 1:4). Abusar da graça de Deus e pecar deliberadamente, esperando ser perdoado, talvez seja o pecado mais terrível de todos (v. Hb. 10:26-31).

Nossa passagem também nos alerta sobre o perigo de classificar os pecados. Pecados odiosos são aqueles que os outros praticam, enquanto somos inclinados a considerar nossos próprios pecados, tal como mentir, como “mentirinhas brancas”. Nas igrejas evangélicas não bebemos, fumamos ou dançamos, falando contra aqueles que o fazem. É relativamente fácil para os cristãos condenarem os homossexuais e os imorais, se este não for o “nosso” tipo de pecado. Vamos ficar alertas, pois a desobediência à Palavra de Deus é considerada o pior de todos os pecados. Saber o que Deus nos ordena a fazer (ou a não fazer), e então desobedecer, é rebelar-se deliberadamente contra Deus. Nenhuma adoração ritualística, nenhuma atividade religiosa, cancela o mal de tal pecado.

Ver o pecado de Saul em nosso texto nos ensina uma lição valiosa sobre liderança espiritual. Na verdade, liderança espiritual não é dar às pessoas aquilo que elas querem, mas é fazer aquilo que Deus quer. Os líderes espirituais primeiramente devem ser seguidores de Deus. Saul é designado como rei de Israel. Sua tarefa é conhecer e obedecer aos mandamentos de Deus para liderar a nação em obediência. Mesmo que as palavras de Saul sobre a pressão exercida pelo povo sejam verdadeiras, Saul deixa de liderar de maneira piedosa. Sua tarefa não é agradar os homens, mas agradar a Deus. Na nossa época atual, quando líderes são eleitos muitas vezes, quase sempre sua eleição é baseada no quanto agradam aos outros. Este não é um teste de um líder espiritual. O teste é o quanto esta pessoa agrada a Deus obedecendo à Sua Palavra e desafiando os outros a segui-lo enquanto assim o faz. Isto não justifica uma liderança despótica, que simplesmente afirma falar por Deus. Significa que é uma liderança bíblica, baseada na Palavra de Deus e provada por ela.

Nosso texto é ainda mais difícil para nós do que poderíamos imaginar. Não só a desobediência à Palavra de Deus é um pecado muito grave, mas também a obediência parcial. Saul nos ensina que obediência parcial aos mandamentos de Deus é, de fato, verdadeira desobediência. Como Saul, muitos de nós somos inclinados a dar a nós mesmos o benefício da dúvida, se obedecermos as ordens de Deus em sua quase totalidade. Deus não vê a obediência parcial como vemos. Servir a Deus não é como um jogo de ferradura, onde alguém ganha pontos por se aproximar da marca. Pecado é não alcançar a marca, não importa quão perto você chegue dela.

Na Bíblia, repetidamente, o padrão é a obediência total, não a obediência parcial. As palavras de despedida de nosso Senhor, que conhecemos como a “Grande Comissão”, incluem esta afirmação:

Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” (Mt. 28:20, ênfase minha).

É incrível como temos nos convencido de que muitos dos mandamentos de nosso Senhor não sejam mais aplicáveis hoje em dia. Será que esta é apenas outra forma de obediência parcial? Deveríamos refletir seriamente sobre esta questão.

Alguns cristãos chamam a luta para obedecer plenamente os mandamentos de Deus de legalismo. Legalismo não é deixar de manter o alto padrão estabelecido pelas Escrituras. Legalismo é achar que o padrão colocado pelas Escrituras é muito baixo e acrescentar seus próprios requisitos àqueles dados por Deus. Legalismo é ir além dos mandamentos de Deus. O cristianismo bíblico não deve procurar manter um baixo padrão dos mandamentos de Deus.

Jamais obedecemos perfeitamente os mandamentos da Bíblia. Os escribas e fariseus tolamente achavam que obedeciam, mas estavam errados. Lembre-se do que nosso Senhor falou a respeito de sua obediência:

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.” (Mt. 5:20)

Ninguém obedece perfeitamente aos mandamentos de Deus. Mesmo quando parece que o fazemos, nossa atitude e nossa motivação nunca são aquilo que deveriam ser. Minha “justiça”, muitas vezes, é “justiça própria” e meu serviço, “interesseiro”.

Na verdade, há apenas uma pessoa cuja obediência foi perfeita, e podemos agradecer a Deus por Ele, nosso Senhor Jesus Cristo.

“Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:18-20)

“Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei.” (Sl. 40:8)

Ainda que o rei de Deus devesse obedecer à Sua Palavra, nenhum dos reis do Velho Testamento, incluindo Davi, nem sequer se aproximou do padrão da obediência perfeita. Somente Jesus Cristo, o Messias de Deus, pôde reivindicar perfeita obediência à vontade de Deus, e esta obediência tornou possível a salvação de pecadores indignos como eu e você:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)

“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados. Por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste; não te deleitaste com holocaustos e ofertas pelo pecado. Então, eu disse: Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade. Depois de dizer, como acima: Sacrifícios e ofertas não quiseste, nem holocaustos e oblações pelo pecado, nem com isto te deleitaste (coisas que se oferecem segundo a lei), então, acrescentou: Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade. Remove o primeiro para estabelecer o segundo.” (Hb. 10:4-9)

Paulo resumiu a questão toda nestas palavras:

“Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos.” (Rm. 5:19)

Foi o pecado de Adão, sua desobediência, que mergulhou toda a raça humana em pecado. Foi a obediência de nosso Senhor Jesus Cristo que tornou possível a nossa salvação. Devemos abandonar todos os pensamentos de mérito pela nossa salvação e perceber que nossas obras de justiça são como trapos de imundície (Is. 64:6). Precisamos nos agarrar à justiça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu na cruz do Calvário, suportando a punição pelos nossos pecados, e que ressurgiu do túmulo, declarando-nos justos e dando-nos a vitória sobre o pecado e a morte. Eis aqui a nossa esperança, e eis aqui a nossa salvação.

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