Não estamos preparados para o livro de I Samuel até que tenhamos lido o livro de Juízes. Os dias dos juízes foram dias obscuros para a nação de Israel. Deus havia libertado os israelitas do cativeiro do Egito. Devido à sua incredulidade, a primeira geração de israelitas não entrou na terra prometida. A segunda geração entrou em Canaã e, sob a liderança de Josué, foram razoavelmente bem. No entanto, após a morte de Josué, as coisas começaram a desmoronar. Israel passou por repetitivos ciclos de bênção e castigo, como resultado de sua obediência ou rebelião. Quando desobedeciam, Deus entregava a nação a um inimigo opressor. Quando se arrependiam e clamavam a Deus, Ele enviava um “juiz” para livrá-los. Quando o juiz morria, o povo voltava ao pecado. O ciclo parecia interminável.
Após ler o livro de Juízes, alguns poderiam concluir que o problema fosse a ausência de um rei em Israel: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Juízes 21:25). Em I Samuel, Israel terá seu rei. Saul, o primeiro rei, será um rei do jeito que o povo quer, e provará ser o rei que Israel merece. Davi, o segundo rei, substituirá Saul. Ele é um rei do jeito de Deus, um homem segundo o Seu coração. I Samuel conta a história de pessoas fascinantes como Ana e Samuel, como Saul e Davi. Não há nenhum momento monótono nesta história magistralmente bem escrita. O livro termina com a morte de Saul e, desta forma, com o fim das fugas de Davi de suas mãos, pois Saul procura matá-lo como a um inimigo.
Embora as pessoas e os acontecimentos de I Samuel estejam há muitos anos atrás e num lugar muito distante, as lutas que estes homens e mulheres enfrentaram são as mesmas que enfrentamos hoje, procurando agradar a Deus vivendo num mundo caído. Há muitas maneiras pelas quais podemos nos identificar com os antigos israelitas e muitas lições que podemos aprender com seus sucessos e fracassos. Enquanto embarcamos em nosso estudo, vamos fazê-lo com expectativa, orando para que Deus nos modifique e trabalhe em nossa vida da mesma forma Ele fez na vida dos homens e mulheres daquela época. Que Deus possa utilizar este livro para nos fazer homens e mulheres segundo o Seu coração.
Quando os Jogos Olímpicos foram em Atlanta, Geórgia, o mundo inteiro conheceu o nome e a fama da jovem Kerri Strug. Kerri foi a chave para que a equipe americana de ginástica feminina recebesse a medalha de ouro. Se ela se saísse bem ao realizar seu salto, sua equipe ganharia a medalha de ouro; se não, elas teriam que se contentar com outra posição. Seu primeiro salto não foi bom, o que resultou num tornozelo torcido. Só um segundo salto excelente poderia ganhar a medalha de ouro. Enquanto ela voltava com dificuldade à linha inicial, o mundo se perguntava se ela tentaria outro salto e, se tentasse, será que conseguiria? Todos sabemos que ela tentou, e que realizou um salto excelente, às custas de uma lesão ainda maior. O resultado foi a medalha de ouro, e mais, muito mais. A foto de Kerri estampou a página principal de quase todos os jornais do mundo. Num instante ela se tornou uma heroína, não só porque seu salto fez com que sua equipe ganhasse a medalha de ouro, mas porque ela o executou em meio a uma grande adversidade. Se não fosse por sua lesão anterior, sua performance teria sido esquecida. Por causa dela, Kerri Strug sempre será lembrada por sua coragem e habilidade num momento difícil e decisivo.
A história de Ana é muito parecida com a de Kerri Strug. Ana foi uma grande mulher, mãe de Samuel, um dos maiores profetas de Israel. Se não fosse por uma vida cheia de agonia e adversidade, o nascimento de seu primeiro filho teria sido esquecido. No entanto, seus anos de agonia e suas lágrimas de aflição fazem do nascimento de seu filho Samuel um acontecimento a ser lembrado. Estes anos formam o universo de seu salmo de louvor, que tem sido consolo e inspiração para os crentes ao longo dos séculos. Maria, a mãe de nosso Senhor, estava atenta a ele, conforme vemos em seu próprio Salmo em Lucas 1:46-55. Vamos examinar o nascimento do filho de Ana e seu salmo, pois temos muito a aprender para aplicar em nossa vida.
Em nossa Bíblia, o livro de I Samuel vem em seguida ao de Rute. Nos manuscritos do Antigo Testamento, I Samuel vinha imediatamente após o livro de Juízes. Sendo assim, as últimas palavras escritas na Bíblia hebraica antes de nosso texto em I Samuel são:
“Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto.” (Juízes 21:25)
“Aqueles dias” estavam longe de ser os mais relevantes da vida espiritual de Israel como nação. O livro de Juízes descreve os dias caóticos em que os israelitas foram oprimidos pelas nações circunvizinhas. Deus enviava um juiz para livrá-los, mas sua liberdade só durava enquanto o juiz vivesse. Até mesmo seus juízes não foram exatamente modelos de santidade. Sansão, por exemplo, foi um homem cuja vida foi dominada pela carne, não pelo Espírito. O escritor de Juízes relaciona a decadência espiritual e o caos político de Israel à falta de um rei. O livro de I Samuel registra o processo pelo qual Deus providenciou um rei para Seu povo. Da mesma forma que Isabel no Novo Testamento, Ana é mãe do profeta que indicará o rei escolhido por Deus. Saul será ungido como o primeiro rei de Israel. E então, após sua rejeição por Deus, Davi será ungido como precursor de uma dinastia eterna. Em meio à anemia espiritual de Israel, Ana e seu marido, Elcana, estão muito acima de seus pares. Vamos ouvir esta história e o salmo de louvor, que é o seu clímax.
Elcana é um piedoso descendente de Levi que vive na região montanhosa de Efraim. Por causa da região onde vive, ele é conhecido como efraimita, embora seja realmente da tribo de Levi (ver I Crônicas 6:33-38). Elcana tem duas esposas, Ana e Penina. Penina tem filhos de Elcana, mas Ana não (1:2), pois Deus fechou seu ventre (1:6).
Todos os anos, Elcana, Penina e seus filhos, e a estéril Ana vão a Siló, 20 milhas ou mais ao norte de Jerusalém, onde fica o tabernáculo. Eles vão celebrar uma das três festas anuais de Israel (1:3; ver Êxodo 23:14-17; Dt. 16:16). Esta época especial deve ser de alegria, e a tristeza é proibida:
“Nas tuas cidades, não poderás comer o dízimo do teu cereal, nem do teu vinho, nem do teu azeite, nem os primogênitos das tuas vacas, nem das tuas ovelhas, nem nenhuma das tuas ofertas votivas, que houveres prometido, nem as tuas ofertas voluntárias, nem as ofertas das tuas mãos; mas o comerás perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher, tu, e teu filho, e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que mora na tua cidade; e perante o SENHOR, teu Deus, te alegrarás em tudo o que fizeres.” (Dt. 12:17-18)
Para Ana e, provavelmente, para Elcana também, regozijar-se diante do Senhor é muito difícil. Primeiro, os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, ministram ali como sacerdotes (1:3). Para aqueles que são verdadeiramente justos, estes sacerdotes patéticos lançam uma nuvem negra sobre a genuína adoração (ver 2:12-17. 22-25). No entanto, a fonte principal do sofrimento de Ana nesta jornada anual até Siló é Penina, que se aproveita da oportunidade para atormentá-la ano após ano, sem cessar (ver 1:4-7). Isto resulta em muitas lágrimas para Ana e a incapacidade de se juntar à refeição festival (1:7).
Não é que Elcana, seu marido, não tente consolá-la ou vir em seu auxílio. Elcana declara seu amor por ela dando-lhe porção dupla da carne que foi sacrificada (1:5). Ele faz um esforço sincero para compensá-la de sua esterilidade, relembrando-a do que ela significa para ele e do que ele é para ela (1:8). A despeito de todas estas coisas, Ana teme a peregrinação anual a Siló, onde deve conviver de perto com Penina, seu tormento.
Não é difícil imaginar o que acontece. Durante o ano, provavelmente, Ana e Penina vivam em tendas separadas, bem distantes uma da outra. Elas nem comem na mesma mesa. No entanto, na jornada anual a Siló, todos devem viajar e comer juntos. Quando a refeição sacrificial é servida, cada esposa tem sua porção. Mesmo que Ana receba porção dupla, Penina recebe para si e para seus filhos. Até posso ouvi-la cruelmente atormentando Ana: “Ó, Elcana, que pedação delicioso de carne para mim e para as crianças! Ó, querida, que pedacinhos saborosos para você também, Ana.”
Nesta viagem, em particular, Ana mal consegue fazer a refeição. De alguma forma ela se fortalece contra os gestos e observações cruéis de Penina. Mas, depois de comer e beber, ela se afasta depressa em direção ao tabernáculo, onde derrama a alma perante Deus. Em seu íntimo ela ora silenciosamente, enquanto Eli, sentado junto à porta, observa com interesse. Ele vê o movimento de seus ombros, enquanto ela soluça em grande aflição e chora amargamente (1:10). Não ouvindo suas palavras, Eli tira a conclusão errada, presumindo que ela tenha festejado demais e que sua alegria seja pura embriaguez. Ele a repreende pela embriaguez e lhe diz para abandonar a bebida (1:13-14).
Rapidamente Ana lhe assegura que não está embriagada, mas que está derramando sua alma perante o Senhor (1:15). Ela suplica que ele não a julgue como filha de Belial (1:16). Ironicamente, a expressão usada por Ana (“filha de Belial”) é o mesmo termo usado pelo autor no capítulo 2 (verso 12) para descrever os dois filhos de Eli. Ela lhe diz que, até agora, esteve expressando a agonia de sua alma.
Todos sabemos, como talvez Eli também soubesse, que entre as palavras soluçadas por Ana está um voto. Ela promete a Deus que, se Ele lhe conceder um filho, ela o devolverá a Ele como nazireu (1:11, ver Nm. 6:1-21; Jz. 13:2-7). Eli lhe assegura que Deus lhe concederá seu pedido e a abençoará (1:17). Desse momento em diante, Ana já pode participar da cerimônia de adoração. Ela faz a refeição e seu rosto agora irradia alegria e não tristeza.
Levantando-se de madrugada, eles adoram o Senhor antes de pegar o caminho de volta a Ramá. Algum tempo depois, Ana concebe e dá à luz o filho prometido. Ela dá à criança o nome de Samuel. Embora os estudiosos discutam os termos e seus significados, está escrito o que este nome significa para ela. Ela sabe que este é o filho que pediu ao Senhor, e que ele é a resposta à sua oração (1:20). O nome Samuel é um lembrete constante de sua origem e de seu destino.
Enquanto a criança ainda está sendo amamentada, chega a época da família fazer a viagem anual a Siló. Elcana sobe com o restante da família, mas Ana fica para trás. Ela não está tentando evitar o cumprimento de seu voto (ver 1:21-23). Muito pelo contrário! Pelas palavras ditas a seu marido, concluo que ela não queira subir com Samuel e depois voltar com ele, uma vez que ele ainda está sendo amamentado e não pode ser deixado em Siló tão novinho. Sua intenção parece ser ficar em casa este ano e desmamar o menino para o ano seguinte. Ela, então, o levará consigo quando chegar a época da próxima jornada, não retornando com ele a Ramá. Talvez Ana não quisesse estabelecer um precedente, indo a Siló com Samuel e depois voltando com ele, por temer ficar tentada a descumprir seu voto.
Chega a época em que a criança é desmamada, e Ana deve levar Samuel consigo para Siló e deixá-lo com Eli. Ele ainda é muito novinho, mas tem idade suficiente para ser cuidado por outra pessoa que não seja sua mãe (ver 1:24). Um novilho de três anos é levado com eles para ser abatido e entregue a Eli. Ana relembra a Eli que ela é a mulher que esteve ali, orando com tanto fervor que ele lhe garantiu que Deus lhe concederia seu pedido. Ela diz que, para cumprir seu voto, trouxe seu filho para dá-lo ao Senhor. Em outras palavras, ela deixará a criança aos cuidados de Eli. Antes de partir, ela faz uma oração louvando ao Senhor, uma oração pela qual será lembrada durante muito tempo.
“Então, orou Ana e disse: O meu coração se regozija no SENHOR, a minha força está exaltada no SENHOR; a minha boca se ri dos meus inimigos, porquanto me alegro na tua salvação. Não há santo como o SENHOR; porque não há outro além de ti; e Rocha não há, nenhuma, como o nosso Deus. Não multipliqueis palavras de orgulho, nem saiam coisas arrogantes da vossa boca; porque o SENHOR é o Deus da sabedoria e pesa todos os feitos na balança. O arco dos fortes é quebrado, porém os débeis, cingidos de força. Os que antes eram fartos hoje se alugam por pão, mas os que andavam famintos não sofrem mais fome; até a estéril tem sete filhos, e a que tinha muitos filhos perde o vigor. O SENHOR é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir. O SENHOR empobrece e enriquece; abaixa e também exalta. Levanta o pobre do pó e, desde o monturo, exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória; porque do SENHOR são as colunas da terra, e assentou sobre elas o mundo. Ele guarda os pés dos seus santos, porém os perversos emudecem nas trevas da morte; porque o homem não prevalece pela força. Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido.”
Neste Salmo de louvor há uma porção de coisas dignas de nota. Enquanto as examinamos, talvez elas o estimulem a fazer um estudo pessoal e mais profundo deste texto.
Primeiro, a oração de Ana é um salmo. Várias traduções indicam isto pela maneira como o texto é disposto. A oração de Ana se parece com um dos salmos do Livro de Salmos. A oração de Ana emprega paralelismo e simbolismo, que são típicos de um salmo.
Segundo, o salmo de Ana é uma oração, uma oração que talvez ela tenha preparado para fazer antes da adoração.Diante da majestade destas palavras, não podemos nos esquecer que esta é uma oração de louvor. É um salmo, mas, como os salmos, é uma oração dirigida a Deus, uma oração de louvor e agradecimento. Algumas pessoas, quase automaticamente, presumem que Ana tenha emprestado este salmo como expressão de seu louvor a Deus. Os salmos da Bíblia colocam de forma maravilhosa nossas orações em palavras para, com muita habilidade, descrever aquilo que está dentro do nosso coração, mas não há nenhuma indicação de que este não seja um salmo composto pela própria Ana. Será que a julgamos incapaz de uma obra tão magnífica? Ou será que pensamos que Deus não possa colocar tal louvor dentro do nosso coração? Vamos em frente.
Terceiro, o salmo de Ana agora faz parte das Escrituras. Seu salmo não é mais algo seu, particular, mas é uma parte permanente das Escrituras Sagradas para todos nós lermos e repetirmos (se quisermos), e para a edificação de nossa alma.
Quarto, o salmo de Ana, portanto, é um salmo inspirado por Deus. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para repreensão, para correção, para educação na justiça...” (II Tm. 3:16). Uma vez que este salmo faz parte das Escrituras, sabemos que é inspirado pelo Espírito Santo de Deus (ver I Co. 2:10-13; II Pe. 1:21). Será que as palavras de Ana estão além de sua capacidade natural de expressão? Todas as palavras de cada autor inspirado das Escrituras são assim. É exatamente esta a razão pela qual podemos facilmente aceitar que Ana tenha escrito este salmo, pela capacitação do Espírito Santo.
Quinto, o salmo de Ana é fruto de suas experiências.As Escrituras não são transmitidas mecanicamente por seus autores humanos. De alguma forma misteriosa (tão misteriosa quanto Jesus é tanto divino quanto humano), a revelação de Deus é gerada mediante instrumentos humanos, com suas próprias histórias e experiências, expressando suas personalidades individuais e, ainda assim de forma a transmitir exatamente e inerrantemente as palavras de Deus.
Sexto, o salmo de Ana também parece refletir as experiências de Israel com Deus no passado. A Escritura inspirada tem sua própria forma de se relacionar com o restante das Escrituras. As palavras de louvor do salmo de Ana parecem fluir, em parte, das experiências de Israel no passado, particularmente da época do êxodo. Muitas vezes as palavras ou expressões inspiradas de um escritor são emprestadas de outro texto bíblico e, às vezes, parecem ser quase uma parte inconsciente da estrutura do pensamento do autor. Ana se refere a Deus como sua “rocha” (verso 2). Em Deuteronômio 32:30-31, Deus é descrito como a “Rocha” de Israel. No verso 1, Ana diz que sua “força” (chifre) é exaltada em Deus; Moisés usa o simbolismo do “chifre” em Deuteronômio 33:17. Quando Ana fala sobre o pobre e o necessitado sendo elevados ao poder e à proeminência, não foi isto o que aconteceu a Israel no êxodo? Quando fala dos famintos sendo alimentados, não foi o que aconteceu no êxodo? Quando fala dos poderosos sendo humilhados, não foi o que aconteceu ao Egito no êxodo? Creio que Ana via o trabalho de Deus em sua vida sob a perspectiva da obra de Deus na vida de Israel no êxodo.
Sétimo, a oração de Ana vai muito além de sua própria experiência, enfocando o caráter do verdadeiro Deus a quem ela adora e a quem louva.Diferentemente do “salmo” de Jonas (Jonas 2), mas muito parecido com os salmos do Livro de Salmos, o salmo de Ana não se concentra apenas em sua tristeza, em seu sofrimento, ou mesmo em suas bênçãos. O salmo de Ana se concentra em seu Deus. Em meio ao seu sofrimento e à sua exaltação, ela passa a ver Deus mais claramente e, como conseqüência, ela O louva por quem e pelo que Ele é. Seu salmo se refere a Deus como santo (verso 2), fiel (“rocha”, verso 2), onisciente (conhecedor de todas as coisas, verso 3), gracioso (verso 8), todo-poderoso (verso 6), soberano, o grande modificador das circunstâncias (versos 6-10). Quanta coisa há sobre Deus em tão poucos versos!
Oitavo, a oração de Ana vai muito além de suas experiências, de seu passado e presente, antecipando um futuro distante. O salmo de Ana é profético; é uma profecia. O salmo fala com ansiedade da época em que Israel terá um rei (verso 10). Creio que o salmo fala da vinda do derradeiro “Rei”, nosso Senhor Jesus Cristo, que é o cumprimento final de sua profecia messiânica. Não é por isso que o ”salmo” de Maria nos soa tão familiar (ver Lucas 1:46-55)? É bem verdade que Maria talvez veja outros paralelos entre a sua bênção e a de Ana, mas não acho que a ligação messiânica seja ignorada.
Nove, não devemos nos esquecer que, ainda que o salmo de Ana seja expressão de seu louvor e alegria, ele é oferecido na época em que ela deixa seu filho para trás, jamais tendo-o consigo novamente. Esta é a época em que Ana expressa sua alegria e gratidão a Deus pela vida de Samuel, a resposta às suas orações. É a época em que Ana expressa sua fé em Deus e sua devoção a Ele. Mas também é a época da separação, quando ela deixará Samuel em Siló e voltará para Ramá. A fidelidade de Deus no passado é a garantia de Sua fidelidade no futuro e, assim, ela pode entregar seu filho a Deus.
Nosso texto revela a piedade de Ana e Elcana em contraste com a lamentável paternidade de Eli e a inutilidade de seus filhos, Hofni e Finéias. Elcana é um marido piedoso, sensível à angústia de sua esposa. Ele realmente procura animá-la (dando-lhe porção dobrada da refeição sacrificial e dizendo-lhe palavras bondosas e gentis de incentivo, garantindo-lhe seu amor, mesmo que ela não tenha filhos). Ele gentilmente lhe recorda que seu espírito abatido é impróprio à adoração. Ele lhe dá liberdade para adorar sem oprimi-la ou dizer-lhe o que deve fazer. Ele deixa que ela vá adorar sozinha, quando ela faz seu voto. Ainda que ele pudesse ter anulado o voto, ele não o faz. Ele lhe dá liberdade para decidir quando subirá a Siló com Samuel.
Elcana também é piedoso em seu relacionamento com Deus. Ele cuida para que sua esposa faça as coisas direito diante de Deus. Ele é fiel ao fazer sua jornada anual a Siló, mesmo que haja boas razões para não fazê-la. Ele poderia alegar falta de tempo ou que a viagem é muito dispendiosa. Melhor ainda, ele poderia apontar a corrupção dos sacerdotes, especialmente de Hofni e Finéias, alegando não querer expor sua família à hipocrisia, à imoralidade e à brutalidade. Ele também sabe que na época do sacrifício anual Penina torna as coisas bem mais difíceis para Ana e para ele. Apesar de todas estas razões, ele pode ser visto em Siló ano após ano.
Ana é um exemplo de mulher e esposa piedosa. Ela suporta anos de sofrimento silencioso devido à sua esterilidade e à crueldade de sua rival, Penina. Ela sempre acompanha seu marido e sua família (incluindo Penina) a Siló, sabendo o quanto isto é doloroso. Seu sofrimento silencioso é enorme, sem nenhuma indicação de retaliação contra sua adversária, Penina. Ela adora a Deus fielmente, derramando suas lágrimas e súplicas. E, quando Deus responde suas orações, ela não só mantém seu voto, mas louva a Deus de tal forma que seu louvor continua inspirando e encorajando os crentes ao longo dos séculos. Tão certo quanto as falhas paternas de Eli fazem parte da conduta vergonhosa de seus filhos como sacerdotes, da mesma forma a piedade de Ana e de seu marido influencia positivamente o sacerdócio de Samuel. E, ainda hoje, também nos influencia positivamente como exemplos de fé e devoção.
Nosso texto estabelece o contexto para o desenrolar dos eventos descritos em I e II Samuel.O último verso do livro de Juízes uma vez mais menciona o fato de Israel não ter um rei nestes dias. O salmo profético de Ana fala da vinda de um rei. Ana e Elcana, como seus pares do Novo Testamento, Isabel e Zacarias (Lucas 1), não têm filhos. As duas esposas estéreis se tornam mães de um profeta que indica o rei prometido. Da mesma forma que Samuel indica tanto Saul quanto Davi, João Batista indica Jesus, o Nazareno, como o Messias e Rei de Deus.
A adoração de Ana traz grande compreensão sobre o papel da mulher na adoração nos tempos do Antigo Testamento. Seu papel não é algo público ou oficial; no entanto, ela continua tendo grande impacto espiritual na vida dos crentes ao longo dos séculos. O status público e oficial de Eli, ao contrário, nada faz por sua vida espiritual ou pela de seus filhos. Ana, em seu sofrimento silencioso, e em seu ministério oculto e discreto a Samuel, tem um impacto importante e duradouro em sua época e na nossa também. A súplica de Ana, onde ela profere seu voto, é silenciosa; no entanto, suas conseqüências têm importância nacional. Seu louvor faz parte das Escrituras Sagradas e é fonte de grande instrução, conforto e encorajamento. Mesmo não tendo posição oficial de liderança e sendo seu ministério particular, ela teve grande impacto espiritual. Que os homens e mulheres que desejam proeminência, posição e status aprendam com a maneira como Deus usou Ana e seu ministério.
O sofrimento de Ana e seu salmo são exemplos da maneira como Deus Se revela nas Escrituras. O salmo de Ana, como o restante das Escrituras, é produto do esforço humano, supervisionado e divinamente capacitado pelo Espírito Santo. O salmo é tanto produto do esforço humano quanto expressão de sua personalidade, composto pelas coisas que Ana vivenciou. Ela não poderia ter escrito esta parte das Escrituras sem ter sofrido o que sofreu às mãos de Penina, devido à sua esterilidade. Nem poderia ter escrito o que escreveu acerca do futuro sem a inspiração divina. Suas palavras que foram registradas para nós também são a Palavra de Deus.
O salmo de Ana, como qualquer outra parte das Escrituras, é o escrito de uma pessoa que reflete sua educação, sua personalidade e a história de suas experiências. É também obra do Espírito Santo, que transmite o “pensamento de Deus” para nós. Exatamente como nosso Senhor foi totalmente divino e perfeitamente humano numa só Pessoa, assim as Escrituras são produto do homem e obra de Deus num mesmo trabalho.
O salmo de Ana não poderia ter sido escrito sem o sofrimento que o precedeu. Foi Deus quem fechou o ventre de Ana. Foi Deus quem intencionalmente a fez sofrer nas mãos de uma rival cruel, Penina. Foi Deus quem orquestrou todos os momentos de sua vida, tanto dolorosos, quanto agradáveis, a fim de que resultassem num salmo que se tornou uma obra-prima. É desta forma que Deus emprega o humano e o divino na composição das Escrituras. Ainda que você e eu não escrevamos as Escrituras hoje, creio que Deus orquestra nossa história e nossa vida de maneira a nos preparar e equipar de forma única para o ministério que ele tem para nós. Que nos recusemos a ver as nossas dificuldades do passado como entraves ao presente ou ao futuro. Ao olharmos as recordações dolorosas do nosso passado, vamos encará-las como pedras fundamentais para o nosso ministério presente e futuro, regozijando-nos, portanto, em nossas tribulações e provações à luz da maneira como Deus propõe usá-las para o nosso bem e para a Sua glória.
Nosso texto é um retrato da maneira como Deus proporciona Suas bênçãos e manifesta Sua graça em meio à tristeza, ao sofrimento e às fraquezas humanas. Tendo acabado de concluir um estudo sobre I e II Coríntios, não posso deixar de ver os paralelos entre as experiências e o salmo de Ana e as experiências e as epístolas de Paulo. Considere estas palavras da pena de Paulo à luz do sofrimento de Ana e seu salmo:
“... foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte. ” (II Co. 12:7b-10)
Como Paulo deixa bem claro em suas epístolas, o poder de Deus é demonstrado em nossas fraquezas. Isso é graça. A graça de Deus não procura ressaltar nossos pontos fortes, Sua graça busca nossos pontos mais fracos, para que fique absolutamente claro para todos que é Deus quem realiza grandes coisas por meio de nós. As coisas que causam a Ana as maiores tristezas, as maiores dores, são exatamente as mesmas coisas que Deus usa para lhe trazer grandes alegrias. Para aqueles que confiam Nele, sempre será desse jeito:
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.” (Rm. 8:28-30)
Você ama a Deus? Você é um de Seus filhos pela fé na morte, sepultamento e ressurreição de Jesus Cristo em seu lugar? Estas são as boas novas do evangelho. O evangelho não é boa-nova para aqueles que se acham justos. Para eles é uma ofensa. Essas pessoas acham que Deus lhes deve a vida eterna e desdenham a graça salvadora de Deus em Cristo como ”caridade”. Mas é caridade! Aqueles que abraçam alegremente as boas novas do evangelho sabem que não têm esperança e estão desesperadamente perdidos em seus pecados, dignos da ira eterna de Deus. Eles se regozijam no fato de não poderem comprar a salvação de Deus, pois Cristo já o fez por eles pela Sua morte, sepultamento e ressurreição. Eles recebem com gratidão o perdão dos pecados e o dom da justiça como caridade divina. E aprendem que o mesmo princípio da graça divina pelo qual foram salvos é o princípio com que Deus continua operando em nossa vida. Oro para que você tenha recebido a graça de Deus pelo dom da salvação pela fé em Jesus Cristo. Senão, oro para que você a receba e a Ele neste exato momento.
Quando eu era seminarista, um casal de outra igreja morava nas proximidades do Seminário. Certa vez, sua igreja organizou uma semana de encontros com um pregador muito conhecido em todo o país, e eles prontamente se ofereceram para pegá-lo no aeroporto. Seus três filhos foram com eles. Ao chegarem a casa, perguntaram ao orador sobre o tema da semana e ele respondeu que ainda não se decidira. Na primeira reunião, quando anunciou que “O Senhor o levara a falar sobre educação de filhos”, imediatamente souberam que ele tomara sua decisão com base na conduta de seus filhos na volta do aeroporto. O mau comportamento de seus filhos, e sua falta de controle sobre eles, levaram-no a se decidir pelo assunto. Eles também sabiam que se o homem falava para alguém, era para eles.
O leitor rapidamente perceberá que o tema principal de nossa passagem é o relacionamento entre pais e filhos. Espero que fique claro que este assunto emerge diretamente do texto. Se vou expor I e II Samuel sistematicamente, não posso deixar de lado este texto ou o assunto da educação de filhos. Não pense, por favor, que eu me sinta totalmente à vontade para ensinar sobre este assunto só porque que minha filha mais nova terminou a Faculdade e está saindo de casa para lecionar em outro Estado. Talvez pareça que nosso trabalho paterno já esteja feito e até mesmo que nossos filhos tenham se saído muito bem. Duas coisas devem ser ditas a esse respeito. Primeiro, como a maioria dos pais descobre a esta altura, nosso trabalho realmente não termina, nunca. Nosso papel como pais muda e diminui, mas ainda temos certas responsabilidades, da mesma forma que nossos filhos ainda têm certas responsabilidades para conosco (tal como em nossa velhice, que ainda está bem longe!). Não podemos levar o crédito por todas as coisas boas que acontecem na vida de nossos filhos, tal como alguns de vocês não deveriam levar toda a culpa pelas coisas que saíram erradas na vida de seus filhos. No que se refere a nossos filhos andarem com Deus, é pela graça e para a glória de Deus. Não ousamos tomar o crédito por Sua obra. Finalmente, estamos muito perto de entrar no excitante mundo dos avós que, com certeza, trará novos desafios.
Por isso, você pode ver que estou tão “ameaçado” e “intimidado” pelo texto quanto você. Não tenho nenhum prazer em pregá-lo, embora ele me permita lhe dar minha opinião sobre o que fazer como pais. Entendo que o padrão de paternidade estabelecido em nosso texto é aquele todos nós temos que aceitar, mas que nem sempre conseguiremos manter. A morte de Eli e seus dois filhos (brevemente descrita em I Samuel 4) é um claro aviso sobre o alto preço que os pais pagam por não guardar as instruções de Deus com relação à educação de seus filhos. Devemos considerar este texto com a maior seriedade e nos esforçar para entender o que Deus nos diz sobre a impressionante tarefa de educar nossos filhos.
Precisamos ler, interpretar e aplicar nosso texto à luz de seu contexto. O texto do capítulo 2 estabelece o cenário para os acontecimentos do capítulo quatro, fazendo o contraste entre a vida de Samuel e a vida dos dois filhos de Eli, Hofni e Finéias. Alternando entre Samuel eos dois “filhos de Belial”, nosso texto faz o contraste entre eles. Gosto do jeito como Dale Ralph Davis ilustra a mistura de Samuel e os filhos de Belial:
Samuel servindo, 2:11
pecados litúrgicos, 2:12-17
Samuel servindo, 2:11
pecados morais, 2:22-25
Samuel crescendo, 2:26
profecia do julgamento, 2:27-36
Samuel servindo, 3:1a
O escritor descreve no capítulo 3 a ascensão de Samuel aos ofícios de sacerdote e profeta. No final do capítulo, toda a nação o aceita e o respeita como verdadeiro profeta de Deus. O capítulo 4 descreve o cumprimento das advertências proféticas de Deus a respeito de Eli e seus filhos (feitas por um profeta desconhecido no capítulo 2 e por Samuel no capítulo 3). Israel é derrotado pelos filisteus e a Arca da Aliança é tomada e levada, e Eli e seus dois filhos morrem, junto com sua nora. Os avisos e profecias dos capítulos 2 e 3 devem ser interpretados à luz de seu cumprimento no capítulo 4.
Precisamos conhecer mais sobre os sacerdotes levitas para uma compreensão total do que vai acontecer com os filhos de Eli. Arão e seus filhos foram os primeiros a serem designados por Deus para servir como sacerdotes. Nadabe e Abiú, os dois filhos mais velhos de Arão, são mortos por não exercerem seu sacerdócio corretamente. Eles oferecem “fogo estranho” e são mortos por isso. Assim, são substituídos pelos outros filhos de Arão, Eleazar e Itamar (Lv. 10:1-3; Nm. 3:4; 26:60-61).
Os sacerdotes têm diversos deveres. Eles cuidam do tabernáculo e de seu funcionamento (Ex. 27:21; Lv. 24:1-7; Nm. 18:1-7). Entre seus deveres está a manutenção do altar. Eles devem retirar as cinzas e manter o fogo aceso (Lv. 6:8-13). Deus promete se encontrar com eles à porta da tenda da congregação (Ex. 29:42-46). Devido à sua posição privilegiada e à sua proximidade com o Deus Santo, eles devem ser muito meticulosos para não se contaminar de forma que impeça seu serviço. Isto inclui evitar bebidas fortes (Lv. 10:8-11), o que pode ter sido o fator contribuinte para o “fogo estranho” de Nadabe e Abiú (10:1-3). Eles não devem se contaminar pelo contato com os mortos, por tomar prostitutas como esposas, ou por ter uma filha prostituta (Lv. 21:1-9). Um sacerdote não deve ter nenhum defeito físico ou conduzir seus deveres sacerdotais quando estiver cerimonialmente impuro (Lv. 21:1-10-22:9). Os sacerdotes são responsáveis por inspecionar diversas doenças para determinar se é lepra, infecção ou contaminação (ver Lv. 13-16). Eles devem tocar as trombetas que convocam os israelitas (Nm. 10:8). Os deveres sacerdotais vão ainda mais além, pois eles devem ensinar ao povo de Israel a Lei de Moisés e também julgá-los (Dt. 17:8-13; 33:8-11). As falhas dos sacerdotes em fazer estas coisas trazem severo juízo sobre eles (Malaquias 2:1-10). Suas vestes, que incluem uma túnica e uma sobrepeliz, também são símbolos da santidade de seu ofício e de seus deveres (Ex. 28:40-43).
Deus não dá uma herança aos sacerdotes, como faz com as outras tribos (NM. 18:24). Em vez disto, Ele cuida deles de forma especial. Uma parte da carne oferecida pelos israelitas é dada a eles, bem como o restante dos dízimos e sacrifícios que são trazidos pelo povo como oferta a Deus (Nm. 18:8-32). A eles também é dado o pão colocado no santuário (Lv. 24:8-9). Deus especifica a parte do animal sacrificado que é dada aos sacerdotes: o peito e a coxa direita, mas somente depois que a gordura for queimada no altar (Lv. 7:31-34; ver também 3:3-5, 14-17; 7:22-25).
“Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial e não se importavam com o SENHOR; pois o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém sacrifício, vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a carne, com um garfo de três dentes na mão; e metia-o na caldeira, ou na panela, ou no tacho, ou na marmita, e tudo quanto o garfo tirava o sacerdote tomava para si; assim se fazia a todo o Israel que ia ali, a Siló. Também, antes de se queimar a gordura, vinha o moço do sacerdote e dizia ao homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote; porque não aceitará de ti carne cozida, senão crua. Se o ofertante lhe respondia: Queime-se primeiro a gordura, e, depois, tomarás quanto quiseres, então, ele lhe dizia: Não, porém hás de ma dar agora; se não, tomá-la-ei à força. Era, pois, mui grande o pecado destes moços perante o SENHOR, porquanto eles desprezavam a oferta do SENHOR.”
Já vimos como Deus cuida das necessidades dos sacerdotes. Quando eles oferecem um sacrifício, devem primeiro queimar a gordura como oferta a Deus. Aquele que estiver fazendo o sacrifício recebe uma parte da carne sacrificada para ser comida com sua família (ver 1:5). O sacerdote recebe o peito e a coxa direita (ver acima). É assim que está prescrito na Lei de Moisés, mas que não é feito pelos sacerdotes. Estes homens “não se importavam com o SENHOR”, nem com o ”costume dos sacerdotes” (versos 12-13). Estes filhos, que “não se importavam com o SENHOR”, são chamados de “filhos de Belial” (literalmente), ou “homens sem valor” (verso 12). É interessante notar que, embora os filhos de Eli sejam chamados de “filhos de Belial”, o juízo apressado que ele faz de Ana, e sua repreensão, sugerem que ela seja “filha de Belial” (ver 1:16), acusação negada por ela.
O que será que estes “filhos de Belial” fazem que seja tão errado? O escritor nos diz. Primeiro, eles se recusam a aceitar as partes que são designadas a eles e insistem em examinar o “tacho” para selecionar seu pedaço de carne. Quando a carne está cozinhando na caçarola e alguém vem oferecer o sacrifício, o sacerdote envia seu servo com um garfo de três pontas para pegar qualquer coisa que consiga espetar (2:13-14). Este pedaço de carne, então, é levado ao sacerdote como a parte designada a ele do animal sacrificado.
Devo confessar que sou cínico. Não creio que a carne pega pelo servo fosse realmente ao acaso. Quando eu era pequeno, costumávamos comer frango frito - geralmente um frango inteiro. Eu gostava de carne branca e não ligava para a coxa ou sobrecoxa. Meu pai era sempre servido primeiro, e ele costumava dizer que comia “qualquer pedaço que Evalyn (minha mãe) lhe desse”. “Dá prá ele o curanchim ou o pescoço, mãe”, eu pedia, mas ela nunca dava. De alguma forma, meu pai sempre ficava com o maior pedaço de carne branca. O pedaço de frango que meu pai conseguia de maneira alguma era pego ao acaso, e todos nós sabíamos disso.
Também não creio que o pedaço de carne dado aos sacerdotes fosse uma questão do acaso. Para eles, o peito ou um pedaço da coxa não significavam uma chuleta, pois esta era retirada da parte traseira - alcatra, sim, carne assada, sim, mas filé-mignon, não - a menos, é claro, que o servo do sacerdote “acabasse” tirando-o da panela. Duvido que estes camaradas cometessem algum engano quanto ao pedaço de carne pego para o sacerdote. Não haveria nenhum bife de acém para eles, nem osso do pescoço. Da forma como escolhiam a carne, os sacerdotes desprezavam a lei, satisfazendo seus desejos ao pegar os melhores pedaços.
Os sacerdotes parecem achar que carne cozida é muito sem graça, querendo churrasco (ou carne grelhada) em vez disto. Seus servos se aproximam dos ofertantes antes que a carne seja cozida, antes mesmo que a gordura seja oferecida a Deus, e exigem o melhor pedaço para os sacerdotes. Israelitas piedosos, como Elcana e Ana, sabem que, antes de tudo, a gordura deve ser queimada no altar. Quando pessoas como eles dizem ao servo do sacerdote que espere até a gordura ser queimada, o servo fica violento. Ele exige a carne imediatamente, ameaçando tomá-la à força, se necessário.
Podemos imaginar o impacto negativo que isto causa na adoração a Deus em Siló. Os israelitas piedosos fazem a jornada anual a Siló para adorar a Deus no tabernáculo e não encontram sacerdotes dedicados que os auxiliem, mas sacerdotes vorazes que deturpam a adoração. Deliberadamente ou por ignorância (isto ficará evidente numa das traduções dos versos 12 e 13), os sacerdotes agem com total desrespeito ao ofício sagrado do sacerdócio do Antigo Testamento, o que talvez faça com que alguns israelitas abandonem completamente a adoração no tabernáculo. Nestes dias, não há rei em Israel, e cada um faz o que é certo aos seus próprios olhos, incluindo os sacerdotes que deveriam ensinar e julgar Israel de acordo com a lei de Deus.
O verso 17 nos dá uma avaliação de Deus da conduta dos sacerdotes: ”Era, pois, mui grande o pecado destes moços perante o SENHOR, porquanto eles desprezavam a oferta do SENHOR.” Os intérpretes traduzem este verso de diferentes formas. Alguns o interpretam para mostrar que, em conseqüência da corrupção do ministério dos sacerdotes, o povo também começa a seguir seus líderes, menosprezando os sacrifícios:
17 “Era, pois, muito grande o pecado destes mancebos perante o Senhor, porquanto os homens vieram a desprezar a oferta do Senhor.” (Almeida Atualizada)
Outros o traduzem para mostrar que o pecado dos sacerdotes era muito grande, pois eles (os sacerdotes) desprezavam as ofertas do Senhor:
17 “Assim, o pecado destes jovens era muito grande aos olhos do Senhor, pois tratavam com desprezo as ofertas que o povo trazia perante Deus.” (O Livro)
Desconfio que as duas versões estejam certas. Os sacerdotes não respeitam os sacrifícios e ofertas que fazem em favor dos homens em Siló e, como conseqüência, muitas pessoas também começam a desprezá-los. Este pecado realmente é muito grave, tanto para os sacerdotes que levam outros a pecar, como para aqueles que os seguem. Estes são dias realmente tristes na história de Israel. Como as palavras ditas por Malaquias muitos anos mais tarde se aplicam bem aos dias dos juízes:
“Agora, ó sacerdotes, para vós outros é este mandamento. Se o não ouvirdes e se não propuserdes no vosso coração dar honra ao meu nome, diz o SENHOR dos Exércitos, enviarei sobre vós a maldição e amaldiçoarei as vossas bênçãos; já as tenho amaldiçoado, porque vós não propondes isso no coração. Eis que vos reprovarei a descendência, atirarei excremento ao vosso rosto, excremento dos vossos sacrifícios, e para junto deste sereis levados. Então, sabereis que eu vos enviei este mandamento, para que a minha aliança continue com Levi, diz o SENHOR dos Exércitos. Minha aliança com ele foi de vida e de paz; ambas lhe dei eu para que me temesse; com efeito, ele me temeu e tremeu por causa do meu nome. A verdadeira instrução esteve na sua boca, e a injustiça não se achou nos seus lábios; andou comigo em paz e em retidão e da iniqüidade apartou a muitos. Porque os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento, e da sua boca devem os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do SENHOR dos Exércitos. Mas vós vos tendes desviado do caminho e, por vossa instrução, tendes feito tropeçar a muitos; violastes a aliança de Levi, diz o SENHOR dos Exércitos. Por isso, também eu vos fiz desprezíveis e indignos diante de todo o povo, visto que não guardastes os meus caminhos e vos mostrastes parciais no aplicardes a lei.” (Malaquias 2:1-9)
“Samuel ministrava perante o SENHOR, sendo ainda menino, vestido de uma estola sacerdotal de linho. Sua mãe lhe fazia uma túnica pequena e, de ano em ano, lha trazia quando, com seu marido, subia a oferecer o sacrifício anual. Eli abençoava a Elcana e a sua mulher e dizia: O SENHOR te dê filhos desta mulher, em lugar do filho que devolveu ao SENHOR. E voltavam para a sua casa. Abençoou, pois, o SENHOR a Ana, e ela concebeu e teve três filhos e duas filhas; e o jovem Samuel crescia diante do SENHOR.”
Há um filme muito engraçadinho chamado “Pequeno Lorde Fontleroy”, no qual um nobre senhor europeu descobre que tem um herdeiro vivendo nos Estados Unidos. Ele leva o garoto para morar com ele, a fim de que um dia assuma seu lugar de posição e prestígio. Relutantemente, este senhor também leva a mãe do garoto, mas faz com que ela viva longe de sua mansão. Este rapazinho, que costumava correr pelas ruas com suas roupas maltrapilhas, agora está vestido como um nobre - pequeno Lorde Fontleroy. Ele conquista não só o coração das pessoas, pelas quais tem compaixão e demonstra generosidade (como sua mãe), mas também conquista o coração de seu avô mesquinho e carrancudo. No final, o garotinho transforma o avô num homem bondoso e gentil.
Quando leio os versos de nosso texto, não consigo deixar de pensar no “Pequeno Lorde Fontleroy”. Este texto parece muito singelo e sentimental. O retrato que nosso autor faz deste garotinho é tocante. Até posso ouvir alguém dizendo: “Não é um doce...?” É. Ana teve que deixar seu único e precioso filho em Siló, para manter seu voto. Todos os anos ela vem para a adoração, mas também vem para ver seu querido filho. E, todos os anos, ela traz uma pequena túnica carinhosamente confeccionada nos meses anteriores. É provável que ela tenha que fazer algumas alterações em suas roupas tentando calcular seu tamanho no próximo ano, para poder confeccioná-las antes de vir. Você não vê o pequeno Samuel todo bem vestido em sua roupa nova? Não é um doce?
Sim, é; o fato é que a cada ano, pelos próximos anos, Ana será acompanhada por outro filho, terminando com 3 meninos e 2 meninas - seis no total, contando com Samuel. Eli vê a triste partida de Elcana e Ana e pronuncia uma bênção sobre eles, pedindo a Deus que substitua o filho que Ana dedicou ao Senhor. Deus responde, concedendo-lhes graciosamente cinco filhos a mais. Eli também percebe que, em lugar de seus filhos inúteis, Deus lhe deu um filho para educar, um filho que deve ter sido uma alegria para o coração deste velho sacerdote.
No entanto, eis aqui mais do que um mero sentimento afetivo. Poderíamos pensar que, uma vez que Samuel vive tão longe da casa de seus pais, Ana e Elcana tenham pouca influência sobre sua vida. Creio que eles têm muita influência sobre Samuel. Se lermos I Samuel 2:19 à luz dos ensinamentos da Lei a respeito das vestes sacerdotais, Ana não está só costurando roupas para o seu garotinho, ela está costurando vestes sacerdotais para ele. Você pode ouvir Ana falando a Samuel sobre a dignidade e os deveres dos levitas sacerdotes? Não pode vê-la instruindo-o sobre a grandeza do seu chamado e o que as vestes sacerdotais pretendem transmitir? Creio que Ana tem um impacto tremendo na vida de seu filho pelas coisas que faz e, sem dúvida, por aquilo que diz. Como é que uma simples costura pode ter impacto espiritual? É melhor perguntar a Ana, ou melhor ainda, a Samuel.
“Era, porém, Eli já muito velho e ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel e de como se deitavam com as mulheres que serviam à porta da tenda da congregação. E disse-lhes: Por que fazeis tais coisas? Pois de todo este povo ouço constantemente falar do vosso mau procedimento. Não, filhos meus, porque não é boa fama esta que ouço; estais fazendo transgredir o povo do SENHOR. Pecando o homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro; pecando, porém, contra o SENHOR, quem intercederá por ele? Entretanto, não ouviram a voz de seu pai, porque o SENHOR os queria matar.”
Os versos 12 a 17 falam sobre o pecado dos sacerdotes em relação à carne oferecida como sacrifício a Deus. Agora, os versos 22 a 25 falam de sua imoralidade com as mulheres que servem à porta da tenda. Estas ”mulheres" parecem ser as mesmas mencionadas em Êxodo:
“Fez também a bacia de bronze, com o seu suporte de bronze, dos espelhos das mulheres que se reuniam para ministrar à porta da tenda da congregação (Êx. 38:8).”
Hofni e Finéias são culpados de imoralidade sexual, e sabemos que pelo menos Finéias é casado (ver I Sam. 4:19). Isto é adultério e é um pecado punível com a morte. É um pecado ainda mais grave se considerarmos quem o comete e onde é cometido. Considere a perversidade dos filhos de Eli à luz da promessa de Deus aos levitas sacerdotes:
“Este será o holocausto contínuo por vossas gerações, à porta da tenda da congregação, perante o SENHOR, onde vos encontrarei, para falar contigo ali. Ali, virei aos filhos de Israel, para que, por minha glória, sejam santificados, e consagrarei a tenda da congregação e o altar; também santificarei Arão e seus filhos, para que me oficiem como sacerdotes. E habitarei no meio dos filhos de Israel e serei o seu Deus. E saberão que eu sou o SENHOR, seu Deus, que os tirou da terra do Egito, para habitar no meio deles; eu sou o SENHOR, seu Deus (Êx. 29:42-46, ênfase minha).
A porta da tenda da congregação é o lugar onde Deus se encontra com os sacerdotes, o lugar onde Deus revela Sua glória. Ali, Arão e seus filhos foram consagrados, separados para seu ofício sacerdotal. Agora, não muitos anos depois, este lugar se transforma num lugar de encontro de um tipo muito diferente, um lugar onde os filhos de Eli têm encontros com mulheres com quem cometem imoralidade sexual.
Refiro-me a esta passagem como a “repreensão de Eli” mas, na verdade, não é dito que ele repreenda seus filhos. Eli certamente nada faz para conter ou impedir a conduta pecaminosa de seus filhos. Suas palavras não têm nenhum impacto sobre sua rebeldia. Pior ainda, suas palavras são autocondenatórias. Parece que ele quer fazer seus filhos se sentirem culpados, o que obviamente não funciona. Suas palavras, no entanto, ressaltam sua própria culpa. O autor nos diz que Eli “ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel”. Não é por ignorância que Eli deixa de agir com rigor. Ele conhece tudo o que eles fazem, e também sabe que agem de modo arrogante, com todo o Israel. Seus pecados não são lapsos momentâneos de caráter ou conduta; são um padrão habitual, um estilo de vida.
Não é interessante que, embora Eli demonstre grande desaprovação quanto à imoralidade sexual de seus filhos, não haja menção (pelo menos em nosso texto) quanto aos pecados relativos à carne dos sacrifícios? A razão, como iremos propor adiante, talvez esteja nos versos 27-29. Enfim, as palavras de Eli a seus filhos revelam que ele entende muito bem a gravidade de seus pecados. Estes pecados não são contra o homem, mas contra Deus. São pecados deliberados, para os quais não há compensação. Estes filhos de Belial agitam os punhos na face de Deus; eles conhecem seu pecado (se não for por outra razão, é porque Eli acaba de lhes dizer ), e Eli também. No entanto, a despeito de tudo o que Eli sabe, ele não chega ao ponto de verdadeiramente fazer alguma coisa sobre isso. Amo o comentário de Dale Ralph Davis desta parte do texto:
“Eli tinha repreendido seus filhos por suas ofensas morais (v. 22-25); talvez - embora não possamos dizer pelos versos 23-25 - ele também os tenha reprovado por suas ofensas litúrgicas (v. 13-17). De qualquer forma, ele não tomou nenhuma atitude para expulsar Hofni e Finéias do ofício sacerdotal. Eli podia protestar, mas seus filhos não iam ficar desempregados. Não havia disciplina na igreja.”
“Por isso, o homem de Deus (o profeta dos versos 27-36) condena o pecado da racionalização, da disposição em tolerar o pecado, permitindo que a honra de Deus seja colocada em segundo plano, preferindo “meus filhos” a “meu Deus”. Para Eli, o sangue falou mais alto que a fidelidade.”
“Como é fácil exercer uma compaixão medrosa que nunca quer ofender ninguém, que confunde escrúpulos com amor e, por isso, ignora a lei de Deus e, principalmente, despreza sua santidade. Nem sempre buscamos a glória de Deus quando poupamos os sentimentos humanos.”
“Mas o jovem Samuel crescia em estatura e no favor do SENHOR e dos homens.”
Como o sacerdócio se tornou pecaminoso! Crentes piedosos como Elcana e Ana devem ranger os dentes quando vão adorar a Deus em Siló. As coisas parecem ir de mal a pior. Eli está velho e próximo da morte. Seus dois filhos são os próximos na linha de sucessão. Com certeza os justos tremem ante este pensamento. E, mesmo assim, neste dia obscuro para Israel, um garotinho está crescendo. Os filhos de Eli estão condenados à vista de Deus; Ele tem intenção de matá-los (verso 25). Eles não são benquistos pelos crentes. Assim, há Samuel. Este jovenzinho encontra o favor de Deus e dos homens - se pelo menos os homens soubessem o que o futuro deste jovem reserva para eles e para a nação. Num dos dias mais negros da história de Israel, quando tudo parece estar se desmoronando, Deus levanta alguém que pretende usar para servi-Lo fielmente, e aos homens também. Este é Samuel. Os filhos de Eli estão em queda; Samuel está em ascensão.
Este verso soa estranhamente familiar, não é? Sabemos que Lucas usa palavras muito parecidas ao se referir a Jesus de Nazaré, quando Ele está crescendo:
“E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.” (Lucas 2:52)
Por que as palavras são tão parecidas? Por que Lucas emprega a mesma descrição que o autor de I Samuel emprega ao falar do desenvolvimento de Samuel quando criança? Os dias em que nosso Senhor nasceu também foram dias negros na história de Israel. O sistema religioso se desviara da Palavra de Deus, da mesma forma que nos dias de Samuel. Mesmo assim, embora as coisas parecessem muito sombrias para Israel, um Jovem estava crescendo, praticamente desconhecido e despercebido pela nação. Esta criança era o Messias. Ele salvaria Seu povo de seus pecados. Algum dia Ele se sentaria no trono de Seu pai, Davi. E Ele, como seu tipo, Samuel, exerceria o sacerdócio de forma as libertar o povo de Deus de seus pecados.
“Veio um homem de Deus a Eli e lhe disse: Assim diz o SENHOR: Não me manifestei, na verdade, à casa de teu pai, estando os israelitas ainda no Egito, na casa de Faraó? Eu o escolhi dentre todas as tribos de Israel para ser o meu sacerdote, para subir ao meu altar, para queimar o incenso e para trazer a estola sacerdotal perante mim; e dei à casa de teu pai todas as ofertas queimadas dos filhos de Israel. Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel? Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos. Eis que vêm dias em que cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais velho nenhum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, a um tempo com o bem que fará a Israel; e jamais haverá velho em tua casa. O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade. Ser-te-á por sinal o que sobrevirá a teus dois filhos, a Hofni e Finéias: ambos morrerão no mesmo dia. Então, suscitarei para mim um sacerdote fiel, que procederá segundo o que tenho no coração e na mente; edificar-lhe-ei uma casa estável, e andará ele diante do meu ungido para sempre. Será que todo aquele que restar da tua casa virá a inclinar-se diante dele, para obter uma moeda de prata e um bocado de pão, e dirá: Rogo-te que me admitas a algum dos cargos sacerdotais, para ter um pedaço de pão, que coma.”
Com poucas exceções, a expressão “homem de Deus” é quase sempre empregada se referindo a um profeta. Os dias em que “a palavra do SENHOR era mui rara” (I Sam. 3:1) foram uma verdadeira ocasião para um profeta falar aos homens diretamente da parte de Deus. Em nosso texto, um profeta sem nome aparece para censurar as falhas de Eli - ou melhor, sua recusa - em lidar decididamente com seus filhos. Nos versos 27-29, o profeta coloca o sacerdócio dentro da perspectiva histórica e teológica correta. Ele relembra o passado, no tempo em que o sacerdócio araônico e levítico foi estabelecido no êxodo. Daí, nos versos 30-34, ele reflete sobre o futuro, profetizando a respeito do castigo que Deus suscitará sobre Eli e sua casa. Então, nos versos 35 e 36, ele se refere a um futuro um pouco mais distante, quando Deus edificará uma nova casa de sacerdotes. Vamos considerar os três pontos da mensagem deste profeta sem nome.
Certa vez ameacei escrever um trabalho intitulado “Pensamento Bíblico”. As Escrituras empregam diversas linhas de pensamento; uma delas é o que chamo de “idéia original”. A idéia original consiste no raciocínio que volta à origem da questão e segue daí em diante. Por exemplo, quando Jesus foi questionado pelos fariseus a respeito do divórcio, eles Lhe perguntaram: “É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” (Mt. 19:3). Alguns pensavam que o marido poderia se divorciar de sua esposa por uma razão qualquer. Outros eram mais rigorosos. Mas, todos os que ali estavam ficaram chocados com a firmeza da posição assumida pelo Senhor. Quero chamar a atenção para o raciocínio de Jesus:
“Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, OS FEZ HOMEM E MULHER e que disse: POR ESTA CAUSA DEIXARÁ O HOMEM PAI E MÃE E SE UNIRÁ A SUA MULHER, TORNANDO-SE OS DOIS UMA SÓ CARNE? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.” (Mateus 19:4-6)
O raciocínio dos fariseus está fora do contexto de sua própria cultura, de seus dias e de sua época, e de seus próprios valores. Jesus os desafia a pensar na questão do divórcio com base na “idéia original”. No princípio, quando Deus criou o mundo e a raça humana, Ele também criou a instituição do casamento. “Como”, Jesus pergunta a seus oponentes, “se pretendia que o casamento funcionasse originalmente? O que Deus pretendia que o casamento fosse quando o criou?” Deus queria que um homem e uma mulher se unissem e jamais se separassem, exceto pela morte. “Pode um homem se divorciar de sua esposa por qualquer motivo?” A resposta de Jesus nos força a concluir que, de acordo com a idéia original, “Deus nunca pretendeu que o homem se divorciasse de sua esposa, por qualquer motivo que fosse”.
Mediante um profeta sem nome, Deus desafia Eli (e o leitor) a pensar na idéia original. Os problemas de Eli, e de seus filhos, são problemas relativos ao sacerdócio. A solução para estes problemas é um novo sacerdote (Samuel) e uma nova casa (ou dinastia) de sacerdotes. “Portanto”, desafia o profeta, “como era originalmente o sacerdócio?” O sacerdócio levítico foi introduzido quando os israelitas ainda estavam no cativeiro do Egito. É lá que Deus designa Arão como sacerdote.
É lá que a “casa” sacerdotal de Arão é estabelecida. A palavra “casa” é repetida diversas vezes por boas razões. Deus não designa só Arão como sacerdote, ele também designa seus filhos e os filhos de seus filhos, a “casa” de Arão. Como é que Eli pode ter pleno conhecimento dos pecados cometidos por seus filhos como sacerdotes e não ficar preocupado o suficiente para tratar adequadamente de sua “casa”? O sacerdócio não é apenas um assunto individual, é um assunto da “casa”, que envolve todos os membros da família (ver Levítico 21:1-9). Deus constituiu uma “casa” para Arão e seus descendentes, e Eli faz parte desta casa. Ele precisa urgentemente administrar sua “casa”.
Os pronomes pessoais abundam nos versos 27-29, e a maior parte deles se refere a Deus. Três vezes nos versos 27 e 28 Deus diz por meio do profeta: “Eu não...”. Deus Se revela a Arão. Deus escolhe Arão e designa sua casa para que O sirvam como sacerdotes. Deus dá aos sacerdotes uma “porção” dos sacrifícios para sustentá-los em seu ministério. A idéia original requer a conclusão de que o sacerdócio é “de Deus”, que o criou, estabeleceu e atribuiu regras e regulamentos que o governam. Conseqüentemente, Deus fala em “Meu sacrifício”, “Minha oferta”, “Minha morada”, “Meu povo” e, por inferência, “Minha glória”, a glória que é devida a Ele pelos sacerdotes por tudo o que Ele fez em relação ao seu sacerdócio.
É aí que Eli erra. Eli honra mais a seus filhos do que a Deus (verso 29). Ele parece temer enfrentar seus filhos e tratá-los com rigor, pois eles poderiam odiá-lo e até mesmo desprezá-lo. Sendo o tipo de filhos que são, poderiam até matá-lo. Eli teme mais a seus filhos do que a Deus. Ele quer sua aprovação e afeição mais do que a aprovação e afeição de Deus... Como pode? O verso 29 sugere o porquê de Eli ser tão omisso e passivo quanto aos pecados de seus filhos. Deus diz: “Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel?” (verso 29).
Sei que serei visto como politicamente incorreto, mas creio que interpreto acuradamente o que Deus diz a Eli pelo profeta. Não falo por maldade, mas Eli é um homem muito gordo (ver 4:18). Não estou fazendo nenhuma alusão negativa sobre pessoas acima do peso (entre as quais devo estar incluído). Mas parece que Deus diz a Eli: “Olhe-se no espelho, Eli. Você engordou como sacerdote! Pense no que teria acontecido. Você e seus filhos se tornaram obesos por causa da carne que têm comido, a carne que conseguiram injustamente como sacerdotes.”
Nosso texto nos diz que Eli ouvia “tudo” o que seus filhos faziam a todo Israel. Portanto, ele sabe como seus filhos conseguem a carne. Ele conhece sua imoralidade. Em nosso texto, ele repreende seus filhos pela imoralidade sexual, mas não diz nada a respeito dos métodos usados para conseguir carne. Talvez Eli esteja velho e seus sentidos estejam embotados, mas creio que ele sabe a diferença entre carne grelhada e carne cozida. Tenho certeza que ele conhece a diferença entre uma carne assada e um filé. Talvez ele não diga nada sobre o pecado de seus filhos com relação aos métodos de conseguir da carne porque ele também a come. Ele se beneficia pessoalmente dos pecados de seus filhos e, em vez de tomar uma atitude enérgica quanto a eles, ele é passivo. Deus o relembra de que todos os benefícios e bênçãos de seu sacerdócio vêm Dele - não de seus filhos. Por isso, Eli fará bem se honrar a Deus mais do que a seus filhos, em vez de continuar a honrá-los (os filhos de Belial) mais do que a Deus, deixando de discipliná-los por seus pecados. Eli injustamente censura Ana por achar que ela esteja embriagada, mas não consegue repreender seus próprios filhos pela maneira como adquirem a carne. Ele está relutante em dar um fim ao sistema que o sustenta, ao sistema que o faz engordar.
O pecado de Eli é exposto e explicado. As bênçãos do sacerdócio vêm de Deus. Deus é o único a quem ele deve honrar. Os filhos de Eli precisam ser repreendidos. Mas, devido às “vantagens” que ele goza com o pecado de seus filhos - e que ele tem medo de perder - ele se recusa a tratar o pecado de seus filhos como deveria. Assim, O julgamento de Deus vem não só sobre ele, mas sobre sua “casa”, um julgamento descrito nos versos 30-34:
“Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos.” (I Sam. 2:30)
Deus quebrará Sua promessa? De forma alguma. Em primeiro lugar, precisamos lembrar que a promessa de Deus é uma aliança que Eli e seus filhos quebram em virtude de seus pecados. Deus diz que alguns de sua “casa” irão morrer. Especificamente, Hofni e Finéias irão morrer, no mesmo dia (verso 34). Mas Deus não cortará todos os descendentes de Eli:
“O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade.” (verso 33)
Eli e seus filhos “engordaram” com os sacrifícios? Eles só comem as melhores partes? Isso vai mudar:
“Será que todo aquele que restar da tua casa virá a inclinar-se diante dele, para obter uma moeda de prata e um bocado de pão, e dirá: Rogo-te que me admitas a algum dos cargos sacerdotais, para ter um pedaço de pão, que coma.” (verso 36)
Deus vai empobrecer a “casa” de Eli, mas eles ainda vão servir como sacerdotes. Deus tirará sua “força” e os tornará “fracos” (verso 31). Não será uma bela visão, mas todos verão que Deus não permitirá que Seu sacerdócio seja manchado indefinidamente.
Os versos 30-34 descrevem o juízo que Deus está prestes a trazer sobre Eli e seus filhos, a “casa” de Eli. Os versos 35 e 36 falam da bênção que Deus trará sobre Israel pela ascensão de um “sacerdote fiel” e de uma “casa estável” de sacerdotes (verso 35). Se a “casa” de Eli receber alguma bênção, será somente pela submissão a este “sacerdote fiel” (verso 36).
Isto levanta duas questões: quem é este “sacerdote fiel”, e qual é esta ”casa estável” de sacerdotes? As palavras do verso 35 soam familiares àquelas de II Samuel 7, conhecidas como a “Aliança Davídica”:
“Prepararei lugar para o meu povo, para Israel, e o plantarei, para que habite no seu lugar e não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o aflijam, como dantes, desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu povo de Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa. Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. Segundo todas estas palavras e conforme toda esta visão, assim falou Natã a Davi.” (II Sam. 7:10-17)
A “casa” de Eli é como a “casa” de Saul, exceto que, enquanto a casa de Eli continua em declínio, a casa de Saul chega ao fim com relação ao seu reino. No entanto, ainda que os descendentes de Eli continuem a servir como sacerdotes, eles estarão sujeitos a um sacerdote superior. Quem é este sacerdote superior? E por que Deus faz uma aliança que terá uma “casa estável”?
A resposta tem duas partes. Creio que haja um cumprimento imediato e outro mais distante, eterno, para a aliança sacerdotal feita por Deus em nosso texto. Primeiro, Deus proverá Seu povo com uma “casa” de sacerdotes superior à casa de Eli e seus filhos, e isto acontecerá num futuro de Israel não muito distante (da perspectiva de Eli). O sacerdócio levítico vem da linhagem de Arão, um descendente de Levi (ver Êxodo 2:1 e ss). Quando Arão é feito sumo sacerdote, seus dois filhos, Nadabe e Abiú servem sob ele. Quando eles são mortos devido ao “fogo estranho” que oferecem, os dois outros filhos de Arão, Eleazar e Itamar, são designados em lugar de seus irmãos (Levítico 10). A linhagem sacerdotal de Arão, portanto, continua por meio destes dois filhos sobreviventes, Eleazar e Itamar. Originalmente, o sumo sacerdócio vem pela descendência de Eleazar, mas Eli, que serve como sumo sacerdote, é descendente de Itamar. A profecia deste profeta sem nome parece inicialmente ser cumprida quando Samuel se torna sacerdote em lugar de Eli; tempos depois, no reinado de Davi, Zadoque, descendente de Eleazar, será feito sumo sacerdote (I Reis 1:7-8; I Crônicas 16:4-40). No Reino do Milênio, os “filhos de Zadoque” servirão como sacerdotes (Ezequiel 44:15; 48:11).
Segundo, creio que o cumprimento final desta profecia é nosso Senhor Jesus Cristo, tal como Ele é o cumprimento final da aliança do Senhor com Davi. A história de Israel mostra que nenhum rei humano é digno de um reino eterno, de um reino sem fim. Ninguém é digno - nem Davi, nem Salomão, nem qualquer outro, exceto o "Rei dos Judeus", nosso Senhor Jesus Cristo, que veio para "se sentar no trono de Seu pai, Davi". Ele é o cumprimento total e final da Aliança Davídica. Da mesma forma, nosso Senhor é o cumprimento total e final da aliança sacerdotal de nosso texto. Jamais houve na história de Israel um sacerdote digno de servir eternamente como sacerdote - nem Eli, e nem Samuel. Mesmo que Deus esteja prestes a dar a Israel sacerdotes superiores a Eli e seus filhos, Ele dará a Seu povo, num dia ainda por vir, um sacerdote perfeito, o Senhor Jesus Cristo, o último e perfeito profeta, sacerdote e rei.
Como mencionei no início desta lição, nosso texto tem muito a nos ensinar sobre educação de filhos. Mais precisamente, nosso texto chama a atenção para a maneira como os pais lidam com filhos adultos que são rebeldes e desobedientes a Deus. Podemos dizer que muitos dos problemas tratados de maneira errada por Eli com relação a seus filhos são conseqüências de suas falhas em tratá-los adequadamente quando crianças. Mas também é possível que filhos educados num lar bastante piedoso possam se desviar do caminho, como os filhos de Eli. A questão em nosso texto é que Eli não consegue lidar com seus filhos de forma apropriada como sumo sacerdote e juiz da nação de Israel. Eli deveria ter tratado seus filhos da mesma maneira que teria tratado qualquer outro homem que fosse sacerdote e fosse sexualmente imoral, que desonrasse a Deus, profanasse o sacerdócio e não atendesse à sua admoestação. Eli não consegue lidar direito com seus filhos porque são seus filhos, e ele permite que este fato seja um fardo para todos os outros. Vamos rever primeiramente o fracasso de Eli em lidar com seus filhos.
(1) Eli não consegue instruir seus filhos na Lei do Senhor, especialmente nos costumes dos sacerdotes.
(2) Eli parece “cego” aos pecados que estão bem debaixo do seu nariz - pecados sobre os quais ele deve ouvir de muitos israelitas. Esses pecados ocorrem nos mesmos lugares em que Eli esteve, ou deveria estar, em seu ministério sacerdotal. É quase inconcebível que ele não tenha percebido. Contudo, devo dizer que vejo muitos pais cujos filhos agem de forma errada diante deles, mas eles não conseguem ver seus erros. Receio que todos nós sejamos tentados a fazer vista grossa para as coisas que simplesmente não queremos ver. Eli está literalmente cego mas, com certeza, não está surdo. Ele não tem como deixar de saber o que acontece, a menos, é claro, que ele realmente não queira saber.
(3) Eli espera demais para corrigir os pecados de seus filhos. Mesmo depois de todo o Israel lhe contar sobre os pecados de seus filhos, Eli não age com muita rapidez. Sua tímida palavra de desaprovação e advertência é fraca demais e tardia demais. Tem-se a nítida impressão de que os pecados que se tornaram uma prática normal na vida de seus filhos são os mesmos evidenciados muito tempo antes, quando poderiam ter sido “cortados pela raiz”. Paternidade e procrastinação não se misturam.
(4) Eli não faz nada a seu alcance para corrigir seus filhos - ou, pelo menos, para opor-se à sua conduta pecaminosa. Uma coisa é Eli não saber o que seus filhos estão fazendo. Pelo menos seria compreensível se ele ignorasse a seriedade de seu pecado. Mas, pelas suas próprias palavras, sabemos que ele tem pleno conhecimento da sua gravidade. Ele sabe que a atitude dos filhos é pecaminosa, e que são pecados contra Deus. No entanto, quando seus filhos desprezam sua admoestação, ele simplesmente deixa de empregar outros meios à sua disposição. Ele deveria, e poderia, ter apedrejado seus filhos. Ele poderia tê-los removido do sacerdócio. Mas ele nada faz para pará-los depois que eles rejeitam sua admoestação.
Hoje, vejo pais torcendo as mãos da mesma forma que Eli, quando seus filhos se recusam a obedecê-los. Seus filhos não são todo músculos, com 2 metros de altura e 115 kg. Muitas vezes são crianças de 5 anos de idade, e os pais têm muitas opções. No entanto, depois de uma repreensão, quando a criança obstinadamente se recusa a obedecer, eles erguem os ombros como se dissessem: “O que mais posso fazer?” Preciso mesmo lhe dizer? Leia Provérbios; você pensará em alguma coisa.
(5) Eli não quer fazer com seus filhos aquilo que tem autoridade para fazer - porque não quer pagar o preço. Vamos admitir. Quando você e eu deixamos de disciplinar nossos filhos não é porque não tomamos a atitude que podemos tomar; não é porque não sabemos o que deveríamos fazer. É porque não estamos dispostos a pagar o preço de fazer a coisa certa - de fazer o que é melhor para nossos filhos e para nós. Talvez Eli receie perder o pequeno relacionamento que tem com seus filhos. Talvez tema perder o respeito por tomar uma atitude pública. Ele pode muito bem estar receoso de ter que voltar a comer o tipo de carne que não gosta. Ele tem medo de disciplinar seus filhos porque precisa demais daquilo que eles lhe dão, e que ele não quer perder.
(6) Eli não lida apropriadamente com seus filhos, mesmo quando é claramente advertido e instruído por Deus por meio de profecias, nem mesmo quando tem pleno conhecimento das conseqüências da falta de arrependimento e obediência com relação a seus filhos. Eli não pode alegar ignorância. Ele sabe que seus filhos são culpados. Ele será repreendido duas vezes por um profeta de Deus (o profeta sem nome do capítulo 2 e Samuel no capítulo 3). Ele não faz a coisa certa nem quando o próprio Deus chama sua atenção por sua desobediência.
(7) Eli honra muito mais a seus filhos do que a Deus. Este é o ponto principal, à vista de Deus. Eli está mais preocupado com seu relacionamento com seus filhos do que com seu relacionamento com Deus. Nosso Senhor Jesus deixou bem clara a questão dos relacionamentos:
"Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem acha a sua vida perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á.” (Mateus 10:34-39)
Nosso texto bate “em nossa porta” em diversos aspectos. Talvez pensemos que a conduta de Eli e seus filhos como sacerdotes não tenha nada a ver conosco, cristãos contemporâneos. Precisamos relembrar que também somos sacerdotes:
“Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” (I Pedro 2:5)
Também devemos relembrar que, embora Eli e seus filhos (e Samuel) ministrem no “templo de Deus” (I Samuel 3:3), o “lugar da morada de Deus”, nós somos “templo de Deus”, Sua “morada” e, quando causamos algum dano à Sua “morada”, esta é uma das coisas mais graves para Deus:
“Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.” (Efésios 2:19-22)
“Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.” (I Co. 3:16-17)
Não é de se estranhar que a conduta dos cristãos de Corinto (ver I Co. 5 e 6) e, especialmente sua conduta na igreja (ver I Co. 11:17 e ss), seja tão grave para Deus.
Nós, como Eli, precisamos educar nossos filhos na “disciplina e instrução do Senhor” (Ef. 6:4). Não devemos apenas instruir e admoestar nossos filhos, precisamos corrigi-los. Isto inclui o uso da “vara” de Provérbios. Esta não é uma licença para excessos e abusos, e os abusos não são desculpas para deixar de castigar um filho desobediente, quando a vara é um dos meios mais eficazes de correção. Muitos pais são controlados por seus filhos ao invés de mantê-los sob controle. E, mesmo quando nossos filhos estiverem crescidos, ainda seremos responsáveis por tratar biblicamente de seus pecados.
Para nós, pais, o ponto de partida é abrir mão de nossos filhos. Nosso Senhor diz que devemos tomar nossa cruz, que devemos morrer para nós mesmos, que devemos perder nossa vida para ganhá-la. Precisamos fazer o mesmo com nossos filhos. Estou começando a entender porque o grande teste de fé de Abraão foi se dispor a sacrificar seu filho (Gênesis 22). Vejo porque Jacó, que não queria perder seu filho José, e que se recusou a perder seu filho Benjamim, teve que abrir mão deles para poder ser “salvo” da fome (ver Gn. 37-45). Devemos fazer o mesmo. Não devemos achar que nossos filhos são a nossa vida, mas nosso Deus e, especialmente, nosso Salvador, Jesus Cristo. Em comparação com nosso amor por Deus, devemos “detestar” nossos filhos. Só assim ficaremos livres para tratá-los de forma que seja para o seu bem e para o nosso, e para a glória de Deus.
Pode acontecer dos filhos terem que disciplinar seu pai ou sua mãe. Como igreja, temos a dolorosa experiência de exercer a disciplina sobre o pecador renitente (ver Mateus 18:15-20). Quando aquele que está sob disciplina é um pai (ou mãe), há implicações e obrigações para os filhos, especialmente para os filhos mais velhos. Um filho ter que corrigir o pai não é nem um pouco mais fácil do que um pai ter que corrigir o filho. Mas, quando temos conhecimento do pecado - e das Escrituras que prescrevem nossa atitude diante dele - somos forçados a agir. Se nos recusarmos, como Eli, então nossa falha também será pecado.
A disciplina de que falamos se aplica à “família” maior, a igreja. Quando um “irmão” peca (ver Mateus 18:15), é nossa obrigação repreendê-lo, com vistas a seu arrependimento. Muitos cristãos preferem, como Eli, fechar os olhos e esperar que o problema se vá. Ele não irá; só ficará maior. Nossa culpa só aumenta com o tempo que deixamos passar sem agir em obediência à Palavra de Deus.
Que Deus possa nos conceder a graça de aprendermos de Eli e seus filhos, em vez de aprendermos com eles. Graças a Deus que Aquele que nos ordena a instruir e corrigir nossos filhos tem nos dado o exemplo pela maneira que nos trata como Seus filhos. Agradeçamos a Deus que Aquele que requer de nós que eduquemos nossos filhos de maneira piedosa é Aquele que nos dá a graça para fazê-lo. A Deus seja a glória!
Talvez você já tenha ouvido a história de um homem que passou seu primeiro dia na prisão. Ao anoitecer, os internos se reuniram no pátio. Enquanto um homem gritava um número, o restante caía na risada. Outro número era chamado, e mais risadas ainda. E assim foi a noite. Quando o homem retornou à sua cela, virou-se para seu companheiro e perguntou: “O que foi que aconteceu lá fora?” “Oh”, respondeu o outro “é assim que contamos piadas por aqui. Veja, nós já conhecemos todas as piadas, e já as ouvimos centenas de vezes. Assim, em vez de perder tempo contando-as de novo, nós colocamos números nelas. Quando alguém grita um número, todo mundo sabe qual é a piada, e todo mundo ri”.
Na noite seguinte, aconteceu a mesma coisa. Depois que alguns números foram chamados e todo mundo riu, o neófito pensou que poderia experimentar a brincadeira. Num momento de silêncio, ele gritou um número. Ninguém riu. O novo interno ficou confuso, mas ficou em silêncio até retornar à sua cela. “O que aconteceu?”, perguntou a seu companheiro de cela. “Por que ninguém riu?” “Bem!”, disse o outro, “Sabe como é... algumas pessoas podem dizer, outras não.”
Quando chegamos à história do chamado de Samuel em I Samuel 3, sinto-me quase como se pudesse gritar um número:
Um - Noé e a arca
Dois - Moisés no cestinho no Rio Nilo
Três - Davi e Golias
Quatro - Jonas e o grande peixe
Cinco - a travessia do Mar Vermelho
Seis - Daniel na cova dos leões
Sete - o chamado de Samuel
Todos nós pensamos que conhecemos muito bem a história do chamado de Samuel. Já a ouvimos, ou contamos, muitas vezes. Tudo o que preciso fazer é gritar um número, e esta lição estará pronta. Talvez não devamos ser tão apressados, pois podemos apenas pensar que a conhecemos muito bem. Nossa lição focaliza algumas dimensões um tanto incomuns deste acontecimento, as quais podem ser a chave para o entendimento do significado e da mensagem do texto.
Vemos em I Samuel 3 o relato da ascensão de Samuel à posição de profeta, um fato reconhecido e aceito por todos os israelitas. No capítulo 4, chegamos à narrativa da derrota de Israel e da morte de Eli, seus dois filhos e sua nora. Nos capítulos 2 e 3, Deus anuncia por meio de profecia o juízo sobre Eli e sua casa. Este juízo ocorre no capítulo 4. No capítulo 3, vemos as mãos de Deus em ação, preparando Samuel para um importante papel na liderança de Israel, e no capítulo 4, vemos o afastamento de Eli e seus filhos, a fim de que Samuel assuma a liderança para a qual Deus o preparou.
“O jovem Samuel servia ao SENHOR, perante Eli. Naqueles dias, a palavra do SENHOR era mui rara; as visões não eram freqüentes. Certo dia, estando deitado no lugar costumado o sacerdote Eli, cujos olhos já começavam a escurecer-se, a ponto de não poder ver, e tendo-se deitado também Samuel, no templo do SENHOR, em que estava a arca, antes que a lâmpada de Deus se apagasse, o SENHOR chamou o menino: Samuel, Samuel! Este respondeu: Eis-me aqui! Correu a Eli e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Mas ele disse: Não te chamei; torna a deitar-te. Ele se foi e se deitou. Tornou o SENHOR a chamar: Samuel! Este se levantou, foi a Eli e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Mas ele disse: Não te chamei, meu filho, torna a deitar-te. Porém Samuel ainda não conhecia o SENHOR, e ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do SENHOR. O SENHOR, pois, tornou a chamar a Samuel, terceira vez, e ele se levantou, e foi a Eli, e disse: Eis-me aqui, pois tu me chamaste. Então, entendeu Eli que era o SENHOR quem chamava o jovem. Por isso, Eli disse a Samuel: Vai deitar-te; se alguém te chamar, dirás: Fala, SENHOR, porque o teu servo ouve. E foi Samuel para o seu lugar e se deitou. Então, veio o SENHOR, e ali esteve, e chamou como das outras vezes: Samuel, Samuel! Este respondeu: Fala, porque o teu servo ouve. Disse o SENHOR a Samuel: Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos. Naquele dia, suscitarei contra Eli tudo quanto tenho falado com respeito à sua casa; começarei e o cumprirei. Porque já lhe disse que julgarei a sua casa para sempre, pela iniqüidade que ele bem conhecia, porque seus filhos se fizeram execráveis, e ele os não repreendeu. Portanto, jurei à casa de Eli que nunca lhe será expiada a iniqüidade, nem com sacrifício, nem com oferta de manjares.”
O verso um se refere a Samuel como “jovem”, um termo de uso bastante flexível, podendo se referir a um recém nascido ou a um garoto. Aqui em nosso texto, entendo que se refira a Samuel como um garoto de uns 12 anos de idade. Parece que muitos anos se passaram desde o final do capítulo 2 e que o capítulo 3 encontra Samuel em sua adolescência.
O escritor nos informa que “Naqueles dias, a palavra do SENHOR era mui rara; as visões não eram freqüentes” (verso 1). Naquela época, os homens não escutavam a Deus e Deus não falava com muita freqüência. Este “silêncio” quase sempre era uma forma de juízo divino e, se não fosse quebrado, significava a ruína de Israel (ver I Sam. 28; Sl. 74:9; Is. 29:9-14; Mq. 3:6-7; também Pv. 29:18). Está escrito que a profecia era rara para que vejamos o chamado de Samuel como o fim do silêncio de Deus (ver I Sam. 3:19-21).
Os detalhes fornecidos nos versos 2, 3 e 7 nos ajudam a entender o contexto dos acontecimentos do capítulo 3. Samuel está deitado no lugar de costume no tabernáculo, não muito longe da Arca da Aliança, que fica dentro do Santo dos Santos. Eli dorme em outro lugar, não muito distante, para que Samuel possa ouvi-lo quando ele chamar. Como o autor nos informa, os olhos de Eli estão bem ruins, de modo que sua visão já está bastante afetada (ver também 4:15). Devido à sua idade, peso e dificuldades visuais, Eli precisa do auxílio de um jovem como Samuel. Samuel pode levar-lhe água ou prestar-lhe outros serviços. Nada mais natural para Samuel do que presumir que um chamado tarde da noite venha de seu mestre, Eli.
Pela afirmação do autor no verso 3, sabemos que o chamado de Samuel acontece de madrugada, pois ele nos diz que “antes que a lâmpada de Deus se apagasse.” A lâmpada é o candelabro de ouro, com suas sete lâmpadas que devem “ficar continuamente acesas” (Ex. 27:20-21). Não quer dizer que elas fiquem acesas 24 horas por dia, mas que de noite estão sempre acesas. As palavras de II Crônicas 13:11 deixam isto bem claro:
“Cada dia, de manhã e à tarde, oferecem holocaustos e queimam incenso aromático, dispondo os pães da proposição sobre a mesa puríssima e o candeeiro de ouro e as suas lâmpadas para se acenderem cada tarde, porque nós guardamos o preceito do SENHOR, nosso Deus; porém vós o deixastes.”
De dia não é necessário que a lâmpada fique acesa; no entanto, o óleo é preparado durante o dia para que as lâmpadas sejam acesas antes de escurecer. Elas ficarão acesas à noite toda e serão apagadas ao amanhecer. Uma vez que a lâmpada de Deus não foi apagada, sabemos que Deus chama Samuel quando ainda está escuro, de madrugada.
Como os filhos de Eli, Samuel não conhece o Senhor (compare I Sam. 2:12 com 3:7). A diferença entre eles é que Samuel ainda não conhece o Senhor. É óbvio que os filhos de Eli não conheciam a Deus, e nunca O conheceriam. É importante notar, no entanto, que Samuel ainda não é salvo na época de seu chamado. Ele, como Saulo (Paulo) no Novo Testamento (ver Atos 9), é salvo e chamado durante seu encontro com Deus.
Nas duas primeiras vezes em que é chamado por Deus, o jovem Samuel presume que esteja ouvindo a voz de Eli, seu mestre. Faz sentido, principalmente se Eli de vez em quando pedir a ajuda de Samuel durante a noite. Somente no terceiro chamado Eli, finalmente, compreende a situação e percebe que Deus está chamando Samuel para lhe revelar Sua Palavra. Quando Deus o chama novamente, Samuel responde de acordo com as instruções de Eli. Uma parte dessa primeira revelação (se não toda ela) está registrada nos versos 11-14.
Deus anuncia a Samuel que o que Ele está prestes a fazer fará tinir os ouvidos daqueles que ouvirem as novas, ambos os ouvidos! Isto não é nenhum exagero. Quando Eli ouve, ele desmaia, resultando na sua morte (ver 4:18). A mensagem dirigida a Eli parece ser pessoal. É mais ou menos como a profecia revelada por Deus em 2:27-36, exceto que este profeta é identificado. Na verdade, o profeta será o substituto de Eli na função de profeta, sacerdote e juiz. A profecia do capítulo 2 é mais distante, devendo ter sido entregue muitos anos antes da derrota de Israel descrita no capítulo 4. A profecia dada por Samuel parece falar da derrota de Israel e da morte dos filhos de Eli como um acontecimento iminente.
A mensagem entregue a Samuel se concentra mais no pecado de Eli do que nos pecados de seus filhos. Mais especificamente, Deus revela que está julgando Eli e sua casa porque Eli conhece os pecados de seus filhos e nada faz para impedi-los. Em termos contemporâneos, Eli é um “facilitador”. Ele facilita o comportamento pecaminoso de seus filhos em vez de resistir e se opor a ele.
Fico desapontado com a tradução do verso 13 da versão NASB:
“Pois lhe digo que estou prestes a julgar sua casa pela iniqüidade que ele bem sabe, pois seus filhos trouxeram maldição sobre si mesmos e ele não os repreendeu.”
Parece claro que Eli realmente admoesta seus filhos, conforme lemos em 2:22-25. Embora a palavra “repreensão” esteja ausente, este é o sentido de suas palavras. Não creio que Deus julgue Eli por deixar de repreender seus filhos, mas por deixar de ir além de uma simples repreensão verbal quando se recusam a escutá-lo.
O contexto certamente levanta questões quanto à palavra “repreender” em 3:13, e um estudo de concordância mostra que estas questões merecem consideração. O termo usado é digno de nota. Em nenhum outro lugar do Velho Testamento (na versão NASB) é traduzido por “repreender” e aqui não deveria ter sido interpretado assim. Curiosamente, é a mesma palavra encontrada no verso 2 do mesmo capítulo (3) com referência à deficiência visual de Eli. É usado com relação à visão de Moisés, que é boa (Dt. 34:7), e à visão enfraquecida de Isaque (Gn. 27:1) e de Jó (17:7). O termo tem o sentido normal de enfraquecimento, escurecimento ou debilidade. É o termo usado em Isaías 42:3 para o pavio queimado, que o Senhor não extinguirá, e para o espírito do Messias, que não será abatido.
Como, então, os tradutores chegaram ao termo “repreender”? Receio que tenham sido influenciados demais pela tradução da LXX (a tradução grega do Antigo Testamento Hebraico). Os tradutores da Septuaginta (LXX) optaram por traduzir o termo hebraico de nosso texto com a palavra grega noutheo, a palavra que Jay Adams emprega para caracterizar seu método de aconselhamento, que ele chama de aconselhamento nouthético. Noutheo significa admoestação ou repreensão. Este, no entanto, não parece ser o sentido principal do termo hebraico ou do significado exigido pelo contexto.
Creio que as melhores traduções sejam as da Versão King James, Nova Versão King James, NVI (principalmente), Versão Padrão Americana, Versão Revista, Nova Versão Revista e outras; todas as que empregam o termo “refrear”. Em nosso texto, é como se o autor fizesse um jogo de palavras. Os olhos de Eli estão obscurecidos; mal podem enxergar. Ele não vê com clareza a conduta de seus filhos. Usando a analogia da luz, os pecados de seus filhos são como um farol alto. Talvez ele não possa apagar a “luz” de seus pecados, mas ele pode diminuir seu efeito. Ele pode fazer algumas restrições como, por exemplo, tirá-los do sacerdócio. Ele pode criar-lhes dificuldades para pecar. Em vez disso, Eli facilita seus pecados, e é por isto que Deus o trata, e a toda a sua casa, com tanta severidade.
O verso 14 demonstra que o pecado da casa de Eli está agora além do arrependimento; o juízo de Deus é iminente. Não há nenhum sacrifício ou expiação que endireite a situação, só o juízo. Em termos simples, Eli e seus filhos fizeram “um caminho sem volta”. Eles se recusam a se arrepender e o juízo está próximo. E isto porque os pecados de Eli e seus filhos são cometidos com “arrogância”; pecados da soberba.
“Ficou Samuel deitado até pela manhã e, então, abriu as portas da Casa do SENHOR; porém temia relatar a visão a Eli. Chamou Eli a Samuel e disse: Samuel, meu filho! Ele respondeu: Eis-me aqui! Então, ele disse: Que é que o SENHOR te falou? Peço-te que mo não encubras; assim Deus te faça o que bem lhe aprouver se me encobrires alguma coisa de tudo o que te falou. Então, Samuel lhe referiu tudo e nada lhe encobriu. E disse Eli: É o SENHOR; faça o que bem lhe aprouver.”
Quando amanhece, Samuel parece evitar Eli. Ele cuida das coisas rotineiras como sempre faz, como se nada tivesse acontecido. Eli sabe que tem alguma coisa errada. Sabe que Deus chamou Samuel três vezes durante a noite. Sabe que Deus deve ter-lhe revelado alguma coisa. Ele não sabe o que é, embora certamente tenha seus temores. A última mensagem recebida de um profeta fora um prenúncio. Portanto, ele pressiona Samuel para que lhe diga tudo o que Deus lhe disse. Eli não deixa que Samuel se retraia. Por isso, relutantemente, Samuel lhe conta tudo.
O que é mais perturbador, pelo menos para mim, é a reação de Eli à profecia. Ele é informado de que o juízo está próximo, e o tempo pelo menos, não pode ser parado. O juízo de Deus não pode ser evitado, mas Eli pode, pelo menos, se arrepender de seus pecados de negligência. Em vez disto, ele diz palavras que têm um tom religioso e parecem ser uma evidência de sua submissão à soberana vontade de Deus, mas que, na verdade, são expressão de seu desejo de continuar em pecado. O que lemos não é uma expressão de fé na soberania de Deus, mas uma expressão de fatalismo dito em termos religiosos.
“Crescia Samuel, e o SENHOR era com ele, e nenhuma de todas as suas palavras deixou cair em terra. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, conheceu que Samuel estava confirmado como profeta do SENHOR. Continuou o SENHOR a aparecer em Siló, enquanto por sua palavra o SENHOR se manifestava ali a Samuel.”
A maneira de um verdadeiro profeta ser reconhecido está descrita em Dt. 13:1-5 e 18:14-22. Um verdadeiro profeta fala de forma que exorte os homens a seguirem a Deus, a obedecê-lO. Além disso, um verdadeiro profeta é alguém cujas palavras acontecem. Nosso autor diz, literalmente, que Deus não deixou que nenhuma das palavras de Samuel “caísse em terra” (verso 19). Tudo o que Samuel diz realmente acontece. E todos os israelitas percebem que a mão de Deus está sobre ele e que ele fala a palavra do Senhor. Desde Dã, no extremo norte do país, até Berseba, no extremo sul, todo o Israel reconhece Samuel como profeta de Deus. O silêncio foi quebrado.
“Veio a palavra de Samuel a todo o Israel. Israel saiu à peleja contra os filisteus e se acampou junto a Ebenézer; e os filisteus se acamparam junto a Afeca. Dispuseram-se os filisteus em ordem de batalha, para sair de encontro a Israel; e, travada a peleja, Israel foi derrotado pelos filisteus; e estes mataram, no campo aberto, cerca de quatro mil homens. Voltando o povo ao arraial, disseram os anciãos de Israel: Por que nos feriu o SENHOR, hoje, diante dos filisteus? Tragamos de Siló a arca da Aliança do SENHOR, para que venha no meio de nós e nos livre das mãos de nossos inimigos. Mandou, pois, o povo trazer de Siló a arca do SENHOR dos Exércitos, entronizado entre os querubins; os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, estavam ali com a arca da Aliança de Deus. Sucedeu que, vindo a arca da Aliança do SENHOR ao arraial, rompeu todo o Israel em grandes brados, e ressoou a terra. Ouvindo os filisteus a voz do júbilo, disseram: Que voz de grande júbilo é esta no arraial dos hebreus? Então, souberam que a arca do SENHOR era vinda ao arraial. E se atemorizaram os filisteus e disseram: Os deuses vieram ao arraial. E diziam mais: Ai de nós! Que tal jamais sucedeu antes. Ai de nós! Quem nos livrará das mãos destes grandiosos deuses? São os deuses que feriram aos egípcios com toda sorte de pragas no deserto. Sede fortes, ó filisteus! Portai-vos varonilmente, para que não venhais a ser escravos dos hebreus, como eles serviram a vós outros! Portai-vos varonilmente e pelejai! Então, pelejaram os filisteus; Israel foi derrotado, e cada um fugiu para a sua tenda; foi grande a derrota, pois foram mortos de Israel trinta mil homens de pé. Foi tomada a arca de Deus, e mortos os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias.”
Os israelitas são dominados pelos filisteus há tanto tempo que os filisteus os consideram como seus escravos (4:9). Por alguma razão, irrompe uma batalha entre eles, e os israelitas são duramente abatidos. Quando a poeira se assenta, sabe-se que 4.000 israelitas tinham morrido (verso 2). Quando os israelitas retornam ao arraial, não conseguem entender como Deus permitiu que sofressem tal derrota.
Sem jejum e oração, sem consultar a Deus, os israelitas decidem fazer o que Dale Ralph Davis chama de “Teologia do Pé de Coelho”. A Arca não é vista como símbolo da presença de Deus, mas como uma lâmpada mágica, que eles só precisam esfregar direito para invocar o auxílio de Deus. A Arca é um bom amuleto, para que, onde quer que eles a levem, sejam abençoados. “É claro”, eles pensam, “nós não levamos a Arca conosco! Amanhã a levaremos para a batalha e, com certeza, venceremos. Certamente Deus será conosco, pois Sua Arca está conosco.”
O tiro acaba saindo pela culatra. A princípio, parece que não, mas em retrospectiva é um desastre gigantesco do ponto de vista daqueles que achavam que a Arca lhes asseguraria a vitória. Quando a Arca é trazida da tenda para diante dos soldados, uma grande algazarra ecoa do arraial israelita. É como uma imensa competição entre torcidas antes de um jogo de futebol americano. Os guerreiros israelitas estão realmente empolgados. Eles não podem perder. Deus estará com eles.
Os soldados filisteus ouvem o barulho que vem do arraial israelita e se perguntam o que teria causado tal grito de triunfo. Aí, então, ficam sabendo que a Arca foi trazida ao arraial. Eles, como os israelitas, acham que a Arca seja capaz de alguma magia. Os filisteus relembram a derrota dos egípcios, quando Deus liderou os israelitas contra eles. Eles se recordam das vitórias dadas por Deus aos israelitas onde, sempre que lutavam contra seus inimigos, levavam a Arca junto com eles. Agora eles temem que a presença da Arca à frente do exército israelita dê a vitória a Israel. Os filisteus concluem que podem até morrer, mas pelo menos morrerão como homens. E assim, em vez de se darem por vencidos, eles têm motivos para lutar até a morte, e para morrer como heróis. O resultado é que os filisteus ficam muitos mais motivados a lutar do que os israelitas e, uma vez mais, eles os derrotam - só que, desta vez, 30.000 israelitas são mortos. Entre os mortos estão Hofni e Finéias, os dois filhos de Eli, que são assassinados enquanto a Arca de Deus é capturada como troféu de guerra.
Os israelitas tolamente supõem que levar a Arca de Deus para a batalha seja sua garantia de sucesso. Nos desígnios de Deus, levar a Arca com eles é um meio ordenado por Ele para cumprimento das palavras ditas pelo profeta sem nome. Hofni e Finéias acompanham a Arca na guerra e, quando os israelitas são derrotados e a Arca é tomada, os dois filhos de Eli morrem no mesmo dia (ver 2:34).
Em parte, a Palavra do Senhor é cumprida; no entanto, há mais juízo divino chegando neste dia de infâmia. Eli está sentado próximo à estrada com o coração trêmulo enquanto espera ansiosamente notícias da batalha. Ele deve sentir que este é o dia do juízo. A Arca de Deus saiu de Siló, assim como seus filhos, e Eli não está nenhum pouco confortável. Um certo benjamita escapa da morte e foge da cena da batalha para Siló, com as roupas rasgadas e pó na cabeça. Este é um sinal de pesar e derrota que Eli não pode ver, pois sua visão já quase se foi. O resto da cidade começa a gritar enquanto a notícia da derrota circula rapidamente.
Mesmo sem poder ver, Eli pode ouvir, e o que ele ouve o deixa assustado. É como se seus ouvidos estivessem a ponto de tinir (ver 3:11). Ele pergunta o que significa aquele alvoroço, e o homem que escapou se apressa em lhe dar um resumo das notícias. Não há “boas notícias” e “más notícias” são só “más notícias” - Israel foi derrotado pelos filisteus, os filhos de Eli foram mortos e a Arca de Deus foi tomada. As notícias são maiores do que o corpo de 98 anos de Eli pode suportar. Ele sofre um colapso, caindo da cadeira de tal forma que quebra o pescoço. Eli está morto, junto com seus filhos, e tudo no mesmo dia. Seus quarenta anos de serviço como juiz em Israel terminaram.
A morte ainda não deixou a casa de Eli. A esposa de seu filho, Finéias, está grávida, e as notícias da trágica derrota de Israel, a perda da Arca e a morte de Eli e seu marido fazem com que ela entre em trabalho de parto. Ao dar à luz, as coisas não vão bem. Embora as mulheres que estão com ela tentem confortá-la, ela recusa seu auxílio. Quando fica sabendo que seu filho será um menino, ela o chama de Icabode, nome que significa “sem glória”, pois a Arca de Deus foi tomada e seu marido e seu sogro foram mortos. A nora de Eli parece ser mais perspicaz do que seu marido. Para ela, a captura de Arca significa a retirada da glória de Deus.
Na verdade, acho que ela estava errada. Pelo que entendo do Antigo Testamento, a glória de Deus deixara o tabernáculo muito tempo antes. Considere estas palavras de Êxodo, que descrevem a chegada da glória de Deus ao tabernáculo:
“Então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo. Quando a nuvem se levantava de sobre o tabernáculo, os filhos de Israel caminhavam avante, em todas as suas jornadas; se a nuvem, porém, não se levantava, não caminhavam, até ao dia em que ela se levantava. De dia, a nuvem do SENHOR repousava sobre o tabernáculo, e, de noite, havia fogo nela, à vista de toda a casa de Israel, em todas as suas jornadas.” (Êxodo 40:34-38)
Deus prometeu que se encontraria com os sacerdotes à entrada do tabernáculo:
“Este será o holocausto contínuo por vossas gerações, à porta da tenda da congregação, perante o SENHOR, onde vos encontrarei, para falar contigo ali. Ali, virei aos filhos de Israel, para que, por minha glória, sejam santificados, e consagrarei a tenda da congregação e o altar; também santificarei Arão e seus filhos, para que me oficiem como sacerdotes. E habitarei no meio dos filhos de Israel e serei o seu Deus. E saberão que eu sou o SENHOR, seu Deus, que os tirou da terra do Egito, para habitar no meio deles; eu sou o SENHOR, seu Deus.” (Êxodo 29:42-46)
Em algum lugar do passado, a glória de Deus deixou o tabernáculo. Esta partida parece não ser tão clara e espetacular quanto foi sua chegada, como descrito acima. Samuel vive no tabernáculo. Ele dorme a poucos metros da Arca de Deus (3:3), e mesmo assim ainda não conhece o Senhor e parece não ter nenhuma percepção especial de Sua presença ali. A aparição de Deus a Samuel é descrita como algo especial, algo excepcional. Deus vai até lá e fica chamando Samuel (3:10) de um jeito que realmente não é comum. Samuel não reconhece que é o Senhor; Eli tem que dizer a ele. Mesmo Eli não é rápido para compreender a aparição de Deus.
A Arca não é a manifestação de Deus a Israel ali no tabernáculo. Não é nenhum ídolo. É apenas um símbolo da presença de Deus com o Seu povo. Embora este símbolo fique sob a guarda dos sacerdotes em Siló, a glória de Deus há muito tempo já não está ali. A captura de Arca apenas simboliza aquilo que já era uma realidade, que era realidade há muito tempo. É certo que a glória deixou Siló, mas a glória de Deus jamais será encoberta por pecadores, como as próximas lições desta série irão nos mostrar.
Ao chegarmos ao trágico fim de uma era num passado distante de Israel (os 40 anos de serviço de Eli como juiz e sacerdote), vamos fazer uma pausa para refletir sobre as lições que este texto tem para nós, cristãos atuais.
Primeiro, vamos considerar o que o texto nos ensina sobre Deus. Como Deus é gracioso com Seu povo, Israel, sobretudo quando são pecadores e indignos. Com bondade, Deus repetidamente alerta Eli sobre o juízo que virá sobre sua casa. Os anos que se passam entre a primeira advertência e o cumprimento do juízo prometido por Deus são um tempo em que Eli poderia se arrepender e agir acertadamente com relação aos pecados de seus filhos. Deus é gracioso quando quebra o silêncio e, uma vez mais, revela-Se e a Sua Palavra à nação por meio de um profeta, Samuel.
Além de gracioso, Deus também é soberano (a graça imerecida deve, necessariamente, ser soberanamente concedida). Samuel não conhece a Deus, ele nem mesmo reconhece Sua voz. Samuel não está buscando a Deus e, mesmo assim, Deus aparece a ele, dando-Se a conhecer e chamando-o para ser profeta. Deus o confirma diante da nação, a fim de que Israel saiba que agora há um verdadeiro profeta de Deus. Deus soberanamente prepara o caminho para a saída de Eli e seus filhos, levantando o jovem Samuel, chamando-o e capacitando-o para ser profeta.
Deus odeia o pecado e julga os pecadores que não se arrependem. Estes dias são negros para a nação de Israel. O sacerdócio está corrompido. Aqueles que servem a Deus e a nação estão abusando de seu ofício e abusando das pessoas. Os sacerdotes são ladrões e roubadores. São corruptos e imorais. A Palavra de Deus mostra claramente a santidade de seu ofício e ministério e revela a maneira como os sacerdotes deveriam refletir e respeitar a santidade de Deus. Os filhos de Eli sacodem os punhos na face de Deus, mas finalmente chega o dia de seu juízo, exatamente como Deus disse. O dia do juízo de Deus pode demorar mais do que esperamos, mas certamente virá.
Deus raramente trabalha do modo que esperamos ou predizemos, para que nos maravilhemos diante da Sua sabedoria e poder em realizar Sua vontade e Sua Palavra. Quem teria pensado que o juízo de Deus seria trazido por meio dos inimigos de Deus e de Seu povo, os filisteus? Ao levar presunçosamente a Arca para a batalha, os israelitas mostram sua falta de reverência pela santidade de Deus e, ao levar a Arca para a guerra, a morte dos filhos de Eli no mesmo dia é realizada. Deus trabalha de modos estranhos e maravilhosos.
Segundo, vamos considerar o que esta passagem nos ensina sobre os homens. Da mesma forma que Deus não muda e, por isso, Ele é o mesmo “ontem, hoje e sempre”, os homens também não mudam. Nós não somos chamados para sermos profetas como Samuel, mas nosso chamado não é muito diferente do dele. Da mesma forma que ele não buscava a Deus e Deus o encontrou, assim é com os homens perdidos que não buscam a Deus hoje (ver Romanos 3:10-11). Os homens são salvos, não porque busquem a Deus, mas porque Deus busca e salva os pecadores perdidos. É Ele quem nos encontra, não nós que O encontramos. É Sua graça soberana que nos atrai a Ele. A Salvação, louvado seja Deus, é do Senhor, e Ele, somente Ele, é digno do nosso louvor.
Meu ponto principal é que Deus chama os homens hoje da mesma forma que chamou Samuel há tanto tempo atrás - e, essencialmente, pelas mesmas razões. Ele nos revelou Sua Palavra, não por meio de uma aparição pessoal ou visão, mas pela Sua Santa Palavra, a Bíblia. Nosso propósito, como o de Samuel, é levar a Palavra de Deus aos homens. Todos os cristãos são “chamados” para crer em Cristo e também para proclamar a Palavra de Cristo aos homens.
Não somos como os israelitas da época de Samuel, que dizemos que a “a palavra do Senhor é rara”. A verdade é que Deus nos últimos tempos nos falou plenamente na pessoa de Seu Filho e nas Escrituras que temos em mãos (ver Hebreus 1:1-4). O problema hoje não é que Deus não fala, mas que os homens não escutam. Não é à toa que encontramos repetidamente esta expressão no Novo Testamento “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (ver Mateus 11:15; 13:9, 43; Apocalipse 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22). Que cada um de nós possa dizer com sinceridade “Senhor, fala, que o teu servo ouve”. Este é o espírito daquele que “ouve” a Palavra do Senhor.
Enquanto medito em nosso texto, vejo três posturas que são típicas dos homens diante de Deus nos dias de hoje. A primeira é a dos israelitas. Eles querem Deus em seu meio, para “estar lá por eles” na hora da necessidade, para fazer as coisas que querem que Ele faça. Eles levam a Arca de Deus para a batalha, esperando que Ele lhes dê a vitória. Em vez de se considerarem como servos de Deus, eles consideram que Deus seja seu servo. O “deus” deles é para ser usado, não um Deus para ser honrado, glorificado, louvado, adorado e obedecido. Esta é a “teologia do pé de coelho” que Davis fala que é tão popular em nossos dias. Se fizermos tudo direitinho, dermos todos os passos certos, então Deus terá que fazer o que pedimos. Só que não é assim. Deus não está lá para fazer todas as nossas vontades. E quem tolamente supõe que esteja está com sérios problemas.
A segunda postura é a de Eli. Sua atitude é fatalista, resignada. Pelo menos em duas ocasiões Deus fala com Eli mediante um profeta, para adverti-lo do juízo que trará sobre ele e sua casa por ele não cuidar dos pecados de seus filhos. Eli não faz nada além de admoestar seus filhos. Mesmo agora, quando a morte de seus filhos é iminente, ele não faz absolutamente nada. Sua atitude tem um tom de religiosidade vazia “É o SENHOR; faça o que bem lhe aprouver” (3:18). Esta é simplesmente uma versão religiosa de “o que será, será”. Quando Davi é repreendido por seu pecado com Bate-Seba, ele é informado de que a criança morrerá (II Sam. 12:14). Isto não o impede de fazer alguma coisa sobre o que aconteceu. Ele suplica ao Senhor, prostrando-se em terra durante toda a noite, orando para que Deus poupe a criança (II Sam. 12:16-17). Eli parece simplesmente dar de ombros e dizer “É a vontade de Deus”.
Lamentavelmente, este fatalismo também é encontrado nos cristãos atuais. Em vez de encontrar na soberania de Deus incentivo para se esforçar em agradá-Lo, algumas pessoas usam o fatalismo como desculpa para não fazer nada. Quando preguei esta lição, defini o fatalismo como sendo “um Calvinismo cansado”. Depois mudei de idéia e decidi que fatalismo é um “Calvinismo aposentado” (NT: o autor faz um jogo com as palavras tired (cansado) e re-tired (aposentado). Um amigo e companheiro de Conselho, Don Grimm, chamou minha atenção para uma diferença crucial entre um verdadeiro Calvinista (aquele que crê que Deus esteja no controle e encontra nisto a base apropriada para todos os seus esforços religiosos) e um fatalista. Os caldeus do passado eram fatalistas. Eles estudavam os céus, crendo que a relação entre os corpos celestiais determinava o que aconteceria na terra. Os fatalistas não vêem a finalidade dos acontecimentos terrenos como vindo de um Deus soberano, pessoal, que deseja se relacionar com aqueles que confiam Nele. É o relacionamento pessoal de alguém com Deus, mediante a fé em Jesus Cristo, que o faz encontrar em Sua soberania a razão para lutar, em vez de uma desculpa para se sentar. A fé de Eli tinha se deteriorado a pouco mais do que o pensamento de um fatalista.
Finalmente, há a postura de Samuel. Samuel nada faz para que Deus apareça ou revele Sua palavra em profecia. Ele simplesmente está cuidando de seus afazeres diários. Não há nada de romântico ou “espiritual” em tirar o pó e limpar a mobília do tabernáculo, lavar o chão ou servir um homem quase cego e quase morto (Eli). No entanto, no decurso de suas tarefas, Deus vem a Samuel e Se revela a ele. Muitas pessoas querem fazer algo espetacular (como levar uma Arca para a guerra) para obter as bênçãos e o poder de Deus. Samuel nos ensina que esta não é a regra. Vamos cuidar de nossas vidas, fazendo fielmente o trabalho que Deus nos deu, deixando as intervenções espetaculares e os grandes sucessos para Deus. Quando for o tempo Dele as coisas acontecerão, não por aquilo que fazemos, mas porque Deus sempre mantém Suas promessas.
“Descobertas Arqueológicas”
Há alguns anos atrás perguntaram a um programador de computadores amigo meu, como ia seu emprego. Radiante, ele respondeu que seu emprego era o mais divertido que já tivera. A coisa mais espantosa para ele era que alguém o remunerasse para ter tanta diversão. Sinto-me da mesma maneira ao preparar esta lição. Devo confessar que meu trabalho nem sempre é assim; algumas partes são realmente muito desagradáveis. No entanto, ensinar as Escrituras é uma das partes boas, e pregar e ensinar sobre este texto tem sido realmente uma alegria.
Pode parecer aos israelitas e filisteus que Deus seja refém dos inimigos de Israel. Israel foi derrotado na primeira batalha, sofrendo uma perda de aproximadamente 4.000 vidas (I Samuel 4:12). Os israelitas se perguntam como seu Deus pôde permitir tal derrota, concluindo que foi por não terem levado a Arca da Aliança para a batalha junto com eles. Como um enorme amuleto da sorte, eles crêem que a presença da Arca fará a diferença. Cheios de confiança, eles iniciam o combate. Cheios de medo, os filisteus se levantam para o desafio, temendo que isto signifique sua morte ou derrota. Em vez disto, os israelitas sofrem uma derrota ainda maior. Nosso texto nos conta que 30.000 soldados são mortos, junto com os dois sacerdotes, Hofni e Finéias. Quando Eli fica sabendo que seus filhos estão mortos e que a Arca foi capturada, ele cai da cadeira, quebrando o pescoço e morrendo na queda. Sua morte é seguida pela morte de sua nora que, ao dar à luz a seu filho, o chama de Icabode (foi-se a glória), em virtude da Arca ter sido capturada.
O texto desta mensagem prossegue a partir deste ponto. O texto permite que sejamos uma mosquinha no templo de Dagom, um dos deuses filisteus. No capítulo 5, Deus humilha Dagom (versos 1-5) e depois seus adoradores (versos 6-12). No capítulo 6, os filisteus devolvem a Arca para Israel, usando um artifício para descobrir se foi Deus ou o acaso que lhes trouxe tantos problemas. A irreverência e a desobediência com relação à Arca trazem o juízo divino sobre os israelitas, e sua primeira reação a este juízo é parecida com a dos filisteus. O capítulo 7 começa com a Arca sendo guardada, a fim de que todos saibam que o reavivamento espiritual de Israel e suas vitórias militares não são conseqüências de nenhum uso mágico da Arca, mas do arrependimento e da fé de Israel em Deus.
Somente do ponto de vista literário, a narrativa de I Samuel 5:7 já é fascinante. Além disto, as verdades teológicas e lições práticas são tantas, que faremos muito bem se prestarmos bastante atenção a este texto. Vamos deixar que o Espírito de Deus nos conduza à verdade, para o nosso bem e para a Sua glória.
Os filisteus tomaram a arca de Deus e a levaram de Ebenézer a Asdode. Tomaram os filisteus a arca de Deus e a meteram na casa de Dagom, junto a este. Levantando-se, porém, de madrugada os de Asdode, no dia seguinte, eis que estava caído Dagom com o rosto em terra, diante da arca do SENHOR; tomaram-no e tornaram a pô-lo no seu lugar. Levantando-se de madrugada no dia seguinte, pela manhã, eis que Dagom jazia caído de bruços diante da arca do SENHOR; a cabeça de Dagom e as duas mãos estavam cortadas sobre o limiar; dele ficara apenas o tronco. Por isso, os sacerdotes de Dagom e todos os que entram no seu templo não lhe pisam o limiar em Asdode, até ao dia de hoje. Porém a mão do SENHOR castigou duramente os de Asdode, e os assolou, e os feriu de tumores, tanto em Asdode como no seu território. Vendo os homens de Asdode que assim era, disseram: Não fique conosco a arca do Deus de Israel; pois a sua mão é dura sobre nós e sobre Dagom, nosso deus. Pelo que enviaram mensageiros, e congregaram a si todos os príncipes dos filisteus, e disseram: Que faremos da arca do Deus de Israel? Responderam: Seja levada a arca do Deus de Israel até Gate e, depois, de cidade em cidade. E a levaram até Gate. Depois de a terem levado, a mão do SENHOR foi contra aquela cidade, com mui grande terror; pois feriu os homens daquela cidade, desde o pequeno até ao grande; e lhes nasceram tumores. Então, enviaram a arca de Deus a Ecrom. Sucedeu, porém, que, em lá chegando, os ecronitas exclamaram, dizendo: Transportaram até nós a arca do Deus de Israel, para nos matarem, a nós e ao nosso povo. Então, enviaram mensageiros, e congregaram a todos os príncipes dos filisteus, e disseram: Devolvei a arca do Deus de Israel, e torne para o seu lugar, para que não mate nem a nós nem ao nosso povo. Porque havia terror de morte em toda a cidade, e a mão de Deus castigara duramente ali. Os homens que não morriam eram atingidos com os tumores; e o clamor da cidade subiu até ao céu.
Do ponto de vista meramente humano, parece que Deus seja refém dos filisteus. Da perspectiva dos israelitas, o sofrimento de Eli, a morte de sua nora e de outros israelitas ante a captura da Arca são compreensíveis. Mas o Deus de Israel não é um ídolo; Ele não precisa de homens para carregá-Lo. É Ele quem carrega Israel:
Com quem comparareis a Deus? Ou que coisa semelhante confrontareis com ele? O artífice funde a imagem, e o ourives a cobre de ouro e cadeias de prata forja para ela. O sacerdote idólatra escolhe madeira que não se corrompe e busca um artífice perito para assentar uma imagem esculpida que não oscile. Acaso, não sabeis? Porventura, não ouvis? Não vos tem sido anunciado desde o princípio? Ou não atentastes para os fundamentos da terra? Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra, cujos moradores são como gafanhotos; é ele quem estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para neles habitar; é ele quem reduz a nada os príncipes e torna em nulidade os juízes da terra. Mal foram plantados e semeados, mal se arraigou na terra o seu tronco, já se secam, quando um sopro passa por eles, e uma tempestade os leva como palha. A quem, pois, me comparareis para que eu lhe seja igual? — diz o Santo. Levantai ao alto os olhos e vede. Quem criou estas coisas? Aquele que faz sair o seu exército de estrelas, todas bem contadas, as quais ele chama pelo nome; por ser ele grande em força e forte em poder, nem uma só vem a faltar. (Isaías 40:18-26)
Bel se encurva, Nebo se abaixa; os ídolos são postos sobre os animais, sobre as bestas; as cargas que costumáveis levar são canseira para as bestas já cansadas. Esses deuses juntamente se abaixam e se encurvam, não podem salvar a carga; eles mesmos entram em cativeiro. Ouvi-me, ó casa de Jacó e todo o restante da casa de Israel; vós, a quem desde o nascimento carrego e levo nos braços desde o ventre materno. Até a vossa velhice, eu serei o mesmo e, ainda até às cãs, eu vos carregarei; já o tenho feito; levar-vos-ei, pois, carregar-vos-ei e vos salvarei. A quem me comparareis para que eu lhe seja igual? E que coisa semelhante confrontareis comigo? (Isaías 46: 1-5)
Até posso imaginar a alegria e a breve exultação dos filisteus por sua aparente vitória, ao levarem a Arca de Deus de Ebenézer para Asdode, uma de suas principais cidades ao norte. Para eles, derrotar os israelitas e capturar a Arca era como derrotar a Deus. Provavelmente, foi com grande cerimônia que eles levaram a Arca de Deus para a casa de um de seus principais deuses, Dagom. Eis ali, posta diante de Dagom em posição simbólica de submissão, a Arca de Deus. Agora Dagom prevalece sobre Deus da mesma forma que os filisteus prevaleceram sobre Israel - ou assim eles pensam. Eles vão cair do cavalo.
Que susto eles levam no início da manhã seguinte quando chegam para louvar e adorar seu deus, Dagom, pela vitória sobre Israel. Ali, em seu próprio templo, seu ídolo jaz prostrado no pó diante da Arca de Deus. Imagine só as desculpas e explicações dadas por eles em defesa de seu deus. Vai ver não estava na posição correta. Teria sido um terremoto? Seja qual for a razão, quando os sacerdotes filisteus deixam o templo naquele dia, seu deus está bem ancorado em sua casa. Não haverá mais nenhuma queda, com certeza.
Será que um grupo maior do que o de costume vai à casa de Dagom no dia seguinte? Será que os filisteus querem se convencer de que a manhã do dia anterior foi algum tipo de acaso? Será que não foram as forças da natureza (como dizem os inspetores de seguro)? Quando chegam no início da manhã seguinte, as coisas estão ainda piores do que no dia anterior. Dagom uma vez mais está caído diante de Deus, só que, desta vez, suas mãos e sua cabeça são separadas quando o ídolo bate no limiar da porta. Será que os filisteus ainda pensam que o Deus de Israel esteja em suas mãos? As mãos de seu deus estão no pó, assim como sua cabeça. A Arca de Deus pode estar nas mãos dos filisteus, mas o deus dos filisteus está nas mãos do único e verdadeiro Deus, o Deus de Israel.
Será que Dagom está nas mãos de um Deus irado? Creio que sim. A coisa mais espantosa nos versos 1-5 não é a prostração de Dagom diante da Arca de Deus, mas a reação dos sacerdotes filisteus a este segundo ato simbólico. A Arca não é um ídolo; a Arca não é o Deus de Israel. A Arca é um símbolo da presença de Deus em meio a Seu povo. Ela representa um papel importante no culto de Israel, mas não é um ídolo. Dagom é um ídolo que os homens esculpiram para ser seu deus. Este ídolo filisteu caiu duas vezes diante da Arca de Deus e se quebrou com o impacto, exigindo reparos. O deus dos filisteus cai diante da Arca de Deus e depois tem que ser devolvido à oficina para conserto. O que será que isto diz aos filisteus?
Será que um verdadeiro Deus tem que ser erguido do solo? Será que um verdadeiro Deus se quebra? Será que um verdadeiro Deus tem que ser colado novamente? Se estes sacerdotes pagãos pensarem direito, vão ver que a imagem de Dagom pertence ao ferro-velho ou ao depósito de lixo da cidade. Que tipo de deus tem que ser erguido e levado para o conserto porque está quebrado? Mesmo assim, estes sacerdotes não se humilham e confessam que o Deus de Israel é o único e verdadeiro Deus. Eles não deixam de adorar um pedaço de madeira, pedra ou metal. Pelo contrário, eles declaram que o limiar onde o ídolo se quebrou é santo. Daí em diante, o limiar se transforma num objeto sagrado. A destruição de seu deus no limiar da porta deveria ter lhes ensinado uma lição, mas eles não a aprenderam. Não é de admirar que algumas lições ainda mais difíceis estejam por vir.
De certa forma, o autor já nos preparou para o que lemos nos versos 6-12 do capítulo 5:
Ouvindo os filisteus a voz do júbilo, disseram: Que voz de grande júbilo é esta no arraial dos hebreus? Então, souberam que a arca do SENHOR era vinda ao arraial. E se atemorizaram os filisteus e disseram: Os deuses vieram ao arraial. E diziam mais: Ai de nós! Que tal jamais sucedeu antes. Ai de nós! Quem nos livrará das mãos destes grandiosos deuses? São os deuses que feriram aos egípcios com toda sorte de pragas no deserto. Sede fortes, ó filisteus! Portai-vos varonilmente, para que não venhais a ser escravos dos hebreus, como eles serviram a vós outros! Portai-vos varonilmente e pelejai! (I Samuel 4:6-9)
Aqui no capítulo 4, uma vez mais os filisteus estão prestes a travar combate com os israelitas, quando ficam sabendo que estes trouxeram a Arca de Deus para levá-la ao campo de batalha. Ao ouvirem que a Arca está com os israelitas, os filisteus ficam muito assustados. Eles relembram o papel que a Arca desempenhou no passado de Israel, especialmente em relação à libertação do cativeiro egípcio na época do êxodo. Uma coisa é falarem sobre a derrota de faraó e seu exército, pois estão prestes a guerrear com os israelitas. Outra é falarem sobre como Deus feriu os egípcios com toda sorte de pragas no deserto. O que as pragas têm a ver com lutar com os israelitas? Os filisteus vêem a ligação, e o autor se certifica de que também a vejamos. O resultado final é que, aquilo que os filisteus temem no capítulo 4, recai sobre eles no capítulo 5.
Na casa de Dagom, Deus mostra aos filisteus que seu ídolo não tem nenhum poder em Suas mãos. Agora Deus começa a agir nos próprios filisteus. Eles pensam que venceram a Deus? As mãos de Dagom foram quebradas. A mão de Deus o fez. Agora, a mão de Deus pesa sobre os filisteus do lugar onde a Arca está - Asdode e seus arredores. É impossível ser categórico quanto à natureza exata da praga que Deus lança sobre os filisteus. Algumas traduções sugerem que o mal trazido sobre os habitantes de Asdode (e depois sobre os habitantes dos outros lugares para onde a Arca é enviada) seja hemorróida. Outros pensam que Deus tenha ferido os filisteus com alguma espécie de tumor. Não sabemos ao certo, e provavelmente não saberemos até a vinda do Senhor. Embora haja certa justiça poética em pensar nos filisteus sofrendo de hemorróidas, o mal parece ser bem mais grave que este. Parece que as pessoas não estão apenas sofrendo dor e irritação, mas estão morrendo como moscas. Alguns concluem que, uma vez que há tumores e muitas mortes de alguma forma relacionadas a roedores, esta deve ser uma manifestação de peste bubônica. Talvez tenham razão.
Seja qual for a praga, os filisteus a detestam e estão ansiosos por se livrarem dela. Seus líderes sabem que a praga nos habitantes de Asdode é devido à presença da Arca de Deus em seu meio. Eles sabem que é a mão de Deus pesando sobre eles. Deus os está julgando, e a seu deus, Dagom. Assim, eles concluem que a única maneira de se livrarem da praga é se livrando da Arca. Eles chegam a um consenso político: mandar a Arca para Gate, a próxima cidade grande dos filisteus. A conseqüência implícita é a cessação da praga em Asdode. O texto é claro em dizer que o envio da Arca para Gate é seguido pela erupção da praga na cidade e seus arredores. A praga segue a Arca.
Aí, então, eles resolvem mandar a Arca embora, desta vez para a cidade de Ecrom. O povo daquela cidade não é bobo. Nenhuma loja da Madison Avenue pode convencê-los de que o que eles precisam é da Arca do Deus de Israel - escoltada por uma praga mortal. Quando ficam sabendo que a Arca está a caminho, eles se recusam a aceitá-la. Isto me lembra uma das minhas amiguinhas que ama jogar Old Maid (jogo de carta equivalente ao Mico). Não posso lhe descrever o olhar angustiado que ela parece incapaz de disfarçar quando pega a Old Maid. O povo de Ecrom se sente muito mais angustiado por ter sido escolhido para receber a Arca de Deus. É óbvio que, se nenhuma cidade filistéia ficar com a Arca, ela terá que ser devolvida para o lugar de onde veio. Sem nenhum confronto militar, sem nenhuma negociação internacional, Israel recupera a Arca perdida sete meses antes.
Uma vez mais fica claro que os filisteus reconhecem que a praga que aflige várias cidades filistéias se deve à presença da Arca de Deus em seu meio. Eles sabem que a Arca significa problema, e que este problema é o julgamento de Deus sobre eles e seu deus Dagom. O que eles não fazem é rejeitar sua idolatria pagã e seu deus impotente. Nem confiar no Deus de Israel e O adorar. Eles simplesmente querem Deus fora de sua cidade.
Isto me lembra a reação do povo que vivia na cidade dos Gerasenos, descrita em Marcos 5. Quando Jesus cruza o Mar da Galiléia e expulsa o demônio de um temível e poderoso endemoninhado, de nome Legião, o povo daquele lugar fica aterrorizado. Eles pedem que Jesus deixe a cidade assim que possível. Eles não querem Alguém bom e poderoso entre eles. Ele é ameaçador demais. A Arca de Deus também é santa e perigosa demais, e eles só querem se livrar dela.
Sete meses esteve a arca do SENHOR na terra dos filisteus. Estes chamaram os sacerdotes e os adivinhadores e lhes disseram: Que faremos da arca do SENHOR? Fazei-nos saber como a devolveremos para o seu lugar. Responderam eles: Quando enviardes a arca do Deus de Israel, não a envieis vazia, porém enviá-la-eis a seu Deus com uma oferta pela culpa; então, sereis curados e sabereis por que a sua mão se não tira de vós. Então, disseram: Qual será a oferta pela culpa que lhe havemos de apresentar? Responderam: Segundo o número dos príncipes dos filisteus, cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro, porquanto a praga é uma e a mesma sobre todos vós e sobre todos os vossos príncipes. Fazei umas imitações dos vossos tumores e dos vossos ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória ao Deus de Israel; porventura, aliviará a sua mão de cima de vós, e do vosso deus, e da vossa terra. Por que, pois, endureceríeis o coração, como os egípcios e Faraó endureceram o coração? Porventura, depois de os haverem tratado tão mal, não os deixaram ir, e eles não se foram? Agora, pois, fazei um carro novo, tomai duas vacas com crias, sobre as quais não se pôs ainda jugo, e atai-as ao carro; seus bezerros, levá-los-eis para casa. Então, tomai a arca do SENHOR, e ponde-a sobre o carro, e metei num cofre, ao seu lado, as figuras de ouro que lhe haveis de entregar como oferta pela culpa; e deixai-a ir. Reparai: se subir pelo caminho rumo do seu território a Bete-Semes, foi ele que nos fez este grande mal; e, se não, saberemos que não foi a sua mão que nos feriu; foi casual o que nos sucedeu. Assim fizeram aqueles homens, e tomaram duas vacas com crias, e as ataram ao carro, e os seus bezerros encerraram em casa. Puseram a arca do SENHOR sobre o carro, como também o cofre com os ratos de ouro e com as imitações dos tumores. As vacas se encaminharam diretamente para Bete-Semes e, andando e berrando, seguiam sempre por esse mesmo caminho, sem se desviarem nem para a direita nem para a esquerda; os príncipes dos filisteus foram atrás delas, até ao território de Bete-Semes. Andavam os de Bete-Semes fazendo a sega do trigo no vale e, levantando os olhos, viram a arca; e, vendo-a, se alegraram. O carro veio ao campo de Josué, o bete-semita, e parou ali, onde havia uma grande pedra; fenderam a madeira do carro e ofereceram as vacas ao SENHOR, em holocausto. Os levitas desceram a arca do SENHOR, como também o cofre que estava junto a ela, em que estavam as obras de ouro, e os puseram sobre a grande pedra. No mesmo dia, os homens de Bete-Semes ofereceram holocaustos e imolaram sacrifícios ao SENHOR. Viram aquilo os cinco príncipes dos filisteus e voltaram para Ecrom no mesmo dia. São estes, pois, os tumores de ouro que enviaram os filisteus ao SENHOR como oferta pela culpa: por Asdode, um; por Gaza, outro; por Asquelom, outro; por Gate, outro; por Ecrom, outro; como também os ratos de ouro, segundo o número de todas as cidades dos filisteus, pertencentes aos cinco príncipes, desde as cidades fortes até às aldeias campestres. A grande pedra, sobre a qual puseram a arca do SENHOR, está até ao dia de hoje no campo de Josué, o bete-semita. Feriu o SENHOR os homens de Bete-Semes, porque olharam para dentro da arca do SENHOR, sim, feriu deles setenta homens; então, o povo chorou, porquanto o SENHOR fizera tão grande morticínio entre eles. Então, disseram os homens de Bete-Semes: Quem poderia estar perante o SENHOR, este Deus santo? E para quem subirá desde nós? Enviaram, pois, mensageiros aos habitantes de Quiriate-Jearim, dizendo: Os filisteus devolveram a arca do SENHOR; descei, pois, e fazei-a subir para vós outros. Então, vieram os homens de Quiriate-Jearim e levaram a arca do SENHOR à casa de Abinadabe, no outeiro; e consagraram Eleazar, seu filho, para que guardasse a arca do SENHOR. Sucedeu que, desde aquele dia, a arca ficou em Quiriate-Jearim, e tantos dias se passaram, que chegaram a vinte anos; e toda a casa de Israel dirigia lamentações ao SENHOR.
Durante sete meses a Arca de Deus fica num aparente cativeiro. Durante sete meses os filisteus são afligidos pelo peso da mão de Deus. A única opção que resta agora é clara: a Arca deve ser devolvida a Israel. A única pergunta é Como? No capítulo 5, onde a Arca é considerada um problema político, o assunto é discutido pelos príncipes filisteus e ela é enviada de cidade em cidade, até que ninguém mais a queira. Agora, a Arca é um problema religioso, e os sacerdotes filisteus são questionados sobre a maneira de devolvê-la sem enfurecer ainda mais o Deus de Israel.
Os sacerdotes filisteus dão a seus príncipes instruções muito específicas quanto ao regresso da Arca. Estas instruções não são baseadas no conhecimento de Deus ou de Sua lei, mas fruto de sua própria teologia pagã. Eles recomendam que a Arca não seja enviada vazia. Ela deve ser acompanhada por uma oferta pela culpa. É interessante que a idéia de culpa seja levantada. Isto não parece ser devido a uma consciência pessoal ou coletiva de pecado. Antes parece se basear na suposição de que as pragas sejam uma manifestação do orgulho nacionalista de Deus e resultado de sua ira, devido à captura da Arca. O Deus de Israel precisa ser acalmado, mas, como? Os sacerdotes filisteus só conseguem pensar numa coisa: uma solução idólatra. Eles aconselham os príncipes a acalmar a Deus fazendo uma oferta pela culpa de ouro. Não é uma simples oferta de ouro como se fosse um suborno, mas cinco imagens de hemorróidas (ou tumores) e cinco de camundongos (ou ratos). Eles garantem que isto acalmará a Deus, resultando na cura dos filisteus. Se isto detiver a praga, eles terão certeza de que encontraram a explicação para a ira de Deus e seu sofrimento.
Em alguns aspectos, o conhecimento dos filisteus sobre a história de Israel e seu Deus é surpreendente. Eles estão bem informados a respeito do êxodo. Eles sabem que faraó e os egípcios endureceram o coração contra Deus, mesmo Ele tendo lançado diversas pragas sobre eles. Os filisteus não desejam cometer o mesmo erro. Por isso, sugerem que a Arca volte para Israel, junto com uma oferta pela culpa. Os egípcios erraram em não deixar que os israelitas fossem embora. Eles não errarão em não deixar que a Arca se vá.
Embora estejam ansiosos para se livrarem da Arca, ainda querem ser cautelosos. Eles estão dispostos a admitir que a Arca de Deus seja a causa de seu sofrimento. Eles deixarão a Arca ir como os egípcios deixaram Israel ir, mas não a enviarão sozinha. Eles bolam um plano que só funcionará se a Arca for a causa de seu sofrimento, e se Deus puder mudar o curso da natureza. Os sacerdotes aconselham os príncipes a colocarem a Arca, junto com a oferta, num carro de boi novo. O carro deve ser puxado por duas vacas leiteiras, que ainda amamentem seus bezerros. Os bezerros devem ficar presos longe de suas mães. As vacas devem, então, ser atreladas ao carro e deixadas livres para partir. Se elas seguirem o curso da natureza, voltarão para seus bezerros. Se as pragas forem de Deus, que deseja o regresso da Arca, então as vacas deixarão seus bezerros para trás, levando a Arca diretamente para Israel. Se as vacas levarem o carro e a Arca de volta aos israelitas, eles podem presumir que todos os seus problemas vêm de Deus e que fizeram a escolha certa deixando a Arca ir embora. Se não, poderão ficar com a Arca, certos de que todas as pragas são mera coincidência.
As vacas são atreladas ao carro e os bezerros presos longe de suas mães. A Arca e a oferta pela culpa são colocadas no carro e as vacas são liberadas. Elas vão direto pela estrada que leva a Bete-Semes em Israel, mugindo, sem se desviar para a direta ou para a esquerda. Os príncipes filisteus seguem à distância, até observarem o carro e sua carga irem direto para o território de Israel.
Antes de voltar nossa atenção à reação dos israelitas ao regresso da Arca, vamos fazer uma pausa para meditar sobre a oferta pela culpa que os filisteus fazem ao Deus de Israel. Como mencionado anteriormente, esta oferta é fruto da religião pagã dos filisteus e não uma prática da fé judaica, conforme prescrito na lei de Moisés. Na lei de Moisés, a oferta pela culpa era um sacrifício de sangue. Não há nenhum sangue envolvido na oferta dos filisteus. A razão para a oferta pela culpa é o pecado daquele que oferece o sacrifício a Deus. Não há nenhum reconhecimento de pecado pelos filisteus, só a idolatria dos instrumentos do juízo divino: ratos (camundongos) e hemorróidas (ou tumores). Os filisteus não percebem que sua oferta é uma ofensa ao Deus de Israel e não uma oferta que aplaque Sua ira. Há certa sabedoria humana nesta oferta pela culpa. Afinal, os ratos não são parte da praga e os tumores instrumentos da ira de Deus? Há cinco príncipes e cinco cidades principais, portanto, por que não cinco tumores de ouro e cinco roedores de ouro? Embora sua oferta seja lógica, ela não é bíblica. A suspensão da praga e a cura dos filisteus não são conseqüências de sua oferta pela culpa, mas dádivas da graça de Deus.
Os israelitas de Bete-Semes que testemunham o regresso da Arca ficam pasmos quando percebem que ela voltou a Israel. Aqueles que fazem a sega nos campos são os primeiros a vê-la, e os israelitas desse lugar, rápida e alegremente, oferecem sacrifício a Deus, usando a madeira do carro de boi para alimentar o fogo e as vacas para o sacrifício. É uma ocasião alegre e festiva, mas rapidamente o espírito dos adoradores israelitas se abate quando a praga irrompe entre os moradores da cidade. Algumas pessoas, com desobediência e irreverência, olham para dentro da Arca e boa parte dos habitantes do lugar é ferida de morte.
Os sobreviventes deste massacre ficam assustados e aterrorizados. Não sabem o que fazer. Por que Deus feriu de morte tantos adoradores israelitas? Se as pessoas morrem por razões como esta, como a Arca pode ficar entre eles? Quem é capaz de permanecer na presença do Deus Santo? E, para quem enviarão a Arca? Até parece um ardil 22. Os israelitas se encontram numa situação bastante parecida com a que foi enfrentada pelos filisteus, exceto pelo fato da Arca pertencer a Israel, não aos filisteus.
Os filisteus são alvo de uma praga enviada por Deus porque a Arca está entre eles. Por isso, procuram enviá-la de uma cidade para outra. Agora, de volta à Israel, os israelitas são alvo de um terrível mal enviado por Deus. Da mesma forma que os filisteus, os israelitas de Bete-Semes procuram enviar a Arca para outro lugar, para que o peso da mão de Deus seja retirado deles. A cidade de Quiriate-Jearim é a escolhida. Os homens daquela cidade chegam e levam a Arca de Deus para lá, colocando-a na casa de Abinadabe, aos cuidados de Eleazar, seu filho, que é especialmente consagrado para isso. Ali, a Arca de Deus ficará aproximadamente 20 anos, até que seja resgatada por Davi. Pelos próximos 20 anos, não haverá nenhum pé de coelho em que os israelitas possam depositar sua confiança. Eles terão que confiar no próprio Deus, assistido por Samuel, seu profeta, sacerdote e juiz.
Está escrito que todo o Israel se lamenta para o Senhor durante esses anos. Exatamente o quê isso significa? Será que este é o tipo de lamentação que o Senhor chama de bem-aventurança no Sermão do Monte? Lamentar é demonstrar pesar pela maneira como as coisas estão. Parece que todo o Israel lamenta o fato de, apesar de seu regresso a Israel, a Arca não ter nenhuma funcionalidade. Ela está, como se diz, fora de serviço. É mais ou menos como determinado dispositivo com uma função muito importante que está quebrado, que não pode ser utilizado. Parece uma grande tragédia; no entanto, o resto dos versículos do capítulo 7 parece indicar o contrário. Embora a Arca esteja fora de serviço e não possa ser levada para a guerra, o povo de Israel se arrepende de seus pecados, abandona seus ídolos, confia em Deus e encontra a vitória.
Falou Samuel a toda a casa de Israel, dizendo: Se é de todo o vosso coração que voltais ao SENHOR, tirai dentre vós os deuses estranhos e os astarotes, e preparai o coração ao SENHOR, e servi a ele só, e ele vos livrará das mãos dos filisteus. Então, os filhos de Israel tiraram dentre si os baalins e os astarotes e serviram só ao SENHOR. Disse mais Samuel: Congregai todo o Israel em Mispa, e orarei por vós ao SENHOR. Congregaram-se em Mispa, tiraram água e a derramaram perante o SENHOR; jejuaram aquele dia e ali disseram: Pecamos contra o SENHOR. E Samuel julgou os filhos de Israel em Mispa. Quando, pois, os filisteus ouviram que os filhos de Israel estavam congregados em Mispa, subiram os príncipes dos filisteus contra Israel; o que ouvindo os filhos de Israel, tiveram medo dos filisteus. Então, disseram os filhos de Israel a Samuel: Não cesses de clamar ao SENHOR, nosso Deus, por nós, para que nos livre da mão dos filisteus. Tomou, pois, Samuel um cordeiro que ainda mamava e o sacrificou em holocausto ao SENHOR; clamou Samuel ao SENHOR por Israel, e o SENHOR lhe respondeu. Enquanto Samuel oferecia o holocausto, os filisteus chegaram à peleja contra Israel; mas trovejou o SENHOR aquele dia com grande estampido sobre os filisteus e os aterrou de tal modo, que foram derrotados diante dos filhos de Israel. Saindo de Mispa os homens de Israel, perseguiram os filisteus e os derrotaram até abaixo de Bete-Car. Tomou, então, Samuel uma pedra, e a pôs entre Mispa e Sem, e lhe chamou Ebenézer, e disse: Até aqui nos ajudou o SENHOR. Assim, os filisteus foram abatidos e nunca mais vieram ao território de Israel, porquanto foi a mão do SENHOR contra eles todos os dias de Samuel. As cidades que os filisteus haviam tomado a Israel foram-lhe restituídas, desde Ecrom até Gate; e até os territórios delas arrebatou Israel das mãos dos filisteus. E houve paz entre Israel e os amorreus. E julgou Samuel todos os dias de sua vida a Israel. De ano em ano, fazia uma volta, passando por Betel, Gilgal e Mispa; e julgava a Israel em todos esses lugares. Porém voltava a Ramá, porque sua casa estava ali, onde julgava a Israel e onde edificou um altar ao SENHOR.
Estranhamente, Samuel está ausente da narrativa dos capítulos 4 a 6. Seu nome não é mencionado desde o capítulo 4, verso 2, até o capítulo 7, verso 2. Parece que ele não está com a Arca quando ela é levada para a batalha contra os filisteus no capítulo 4. Ele não faz parte da humilhação dos filisteus nos capítulos 5 e 6. Mas ele é uma parte muito importante do reavivamento de Israel descrito no capítulo 7. As mesmas coisas que não acontecem em Israel quando a Arca está em Siló são as que acontecem sem o envolvimento da Arca no capítulo 7. A Arca não é o instrumento pelo qual Deus trabalha (como os israelitas erroneamente supunham); Ele trabalha por meio de Sua Palavra e da oração feita pelo profeta Samuel.
Deus leva embora a tábua de salvação de Israel, a Arca, e agora eles têm que procurar segurança em outro lugar. Samuel lhes diz onde procurar. Ele conclama a nação a se voltar para o Senhor de todo o coração. Eles irão demonstrar seu arrependimento abandonando todos os seus ídolos pagãos. (Por isso, vemos que a Arca realmente é um entre muitos ídolos para os israelitas - talvez o maior deles, mas apenas um ídolo). Eles se propõem a servir somente a Deus e esperar somente Nele pela libertação dos filisteus. Samuel, então, reúne todo Israel em Mispa, não muito longe de sua casa em Ramá, prometendo orar ao Senhor em favor da nação. O povo tira água e a derrama perante o Senhor. Uma vez que está escrito que eles também jejuam nesse dia, parece que a nação se abstém de comida ou água como sinal de seu arrependimento e sinceridade em buscar a Deus. Quando confessam seus pecados, Samuel ora por eles.
Aparentemente, Mispa era um lugar de adoração com vista para a área ao seu redor. Militarmente falando, era um local ideal para se defender na guerra. Os filisteus ainda não aprenderam a lição dada por Deus. Eles presumem que Israel tenha se reunido em Mispa para guerrear. Eles já tinham se saído vitoriosos sobre os israelitas antes e, por isso, presumem que serão bem sucedidos novamente. Os israelitas ficam amedrontados quando ouvem que os filisteus estão chegando. Eles não têm a Arca para levar com eles para a batalha (além disso, ela não funcionou da última vez que a usaram); portanto, tudo o que podem fazer é se lançar sobre o Senhor e confiar Nele. Eles terão que apelar para Ele na base da graça, não da mágica. Eles suplicam a Samuel, implorando que ele ore ao Senhor em seu favor, pedindo-Lhe que os livre dos filisteus que se aproximam.
Samuel oferece um holocausto completo ao Senhor em favor dos israelitas. Ele clama ao Senhor, suplicando-Lhe que os livre, e Deus atende sua oração. Samuel ainda está oferecendo o sacrifício, quando chegam os guerreiros filisteus. Os israelitas estão totalmente despreparados para este ataque, mas o Senhor parece produzir uma grande tempestade (ou, pelo menos, sons de trovão), que causa uma tremenda confusão entre os guerreiros filisteus e permite que os israelitas prevaleçam sobre eles. De Mispa, os israelitas perseguem os filisteus até Bete-Car, uma cidade cuja localização é desconhecida. Samuel, então, coloca uma pedra entre Mispa e Sem, chamando-a de Ebenézer, que significa pedra ou rocha de auxílio, um memorial de que esta batalha foi vencida com o auxílio do Senhor.
O resultado é o fim do domínio filisteu sobre Israel. Daí em diante, eles não invadem Israel novamente nos dias de Samuel, pois a mão do Senhor é com ele e contra eles. As cidades tomadas pelos filisteus são devolvidas a Israel. Também é estabelecida a paz entre os israelitas e os amorreus. O autor relaciona todas estas coisas diretamente ao governo de Samuel. Ele é sacerdote, profeta e juiz sobre todo Israel. Ele é uma espécie de juiz itinerante, que circula de Betel a Gilgal e a Mispa, julgando Israel em cada um destes lugares. Quando faz seu circuito, ele sempre retorna à sua casa em Ramá. Ali ele também julga Israel e constrói um altar ao Senhor.
A primeira coisa que me chama a atenção neste texto são as reversões. Israel não está servindo só a Deus, de todo o coração. Toda sorte de pecados está sendo praticada no mesmo lugar onde a Arca é mantida. Os sacerdotes são corruptos, vis e impenitentes. Israel sai para guerrear com os filisteus, levando a Arca para garantir a vitória, sendo miseravelmente derrotado e a Arca capturada e levada para Asdode em território filisteu. Ainda assim, no final da história, a Arca está de volta. Israel se arrepende de seus pecados, abandona seus ídolos e confia somente em Deus. Quando os filisteus atacam os israelitas que estão prestando culto a Deus, Deus os derrota, e o período de domínio filisteu termina. É importante ver claramente como ocorre esta reversão. O regresso da Arca, o arrependimento e reavivamento de Israel, e a vitória militar decisiva sobre os filisteus ocorrem em conseqüência da graça e do poder de Deus, não pelos méritos espirituais de Israel ou pelo uso mágico da Arca.
A segunda reversão é um pouco mais sutil, mas bastante perceptível quando refletimos sobre ela. Há uma clara mudança na intenção e na disposição de nosso texto do capítulo 5 ao capítulo 7. Pareceu-me por uns instantes perceber minha própria mudança de disposição enquanto trabalhava nele. No início da lição, no capítulo 5, estava bastante descontraído, gracejando enquanto lia a narrativa inspirada do autor sobre a humilhação de Deus à Dagom e seus adoradores filisteus. Há séculos é provável que os judeus que leiam esta narrativa da permanência da Arca por 7 meses em território filisteu morram de rir. Um judeu devoto, ao ler este relato, poderia pensar: Como os filisteus foram loucos. Como podem ser tão lerdos para entender que é a mão de Deus pesando sobre eles? Como podem ser tão loucos a ponto de tentar aplacar a ira de Deus justamente com uma oferta pela culpa de ratos e hemorróidas de ouro? E ainda imaginar a doidice de enviar a Arca de volta a Israel num carro de boi?
Se os filisteus são tão doidos, e isto poderia ser uma fonte de diversão para um judeu devoto, fico me perguntando como o olhar desse mesmo judeu deve mudar quando vê os israelitas começando a morrer aos montes, essencialmente pela mesma razão: irreverência pelas coisas santas de Deus e por desobediência às leis que proíbem exatamente as coisas que estão fazendo (tais como olhar para a Arca ou para dentro dela). Se ver os filisteus arrastando a Arca de uma cidade para outra diverte os leitores judeus, como será que eles reagem ao verem os israelitas de Bete-Semes tentando despachar a Arca para Quiriate-Jearim?
O fato é que o erro dos israelitas da época de Samuel é muito parecido com o erro dos filisteus. Tanto israelitas quanto filisteus tendem a ver a Arca com muita leviandade. Eles não têm nenhum respeito pela santidade de Deus e pelos objetos sagrados. Tanto uns quanto outros tendem a considerar a Arca como um ídolo. Eles procuram controlar a Deus, em vez que confiar Nele e obedecer a Seus mandamentos.
O erro de israelitas e filisteus parece muito antigo e longínquo. Como podemos, esclarecidos como somos, repetir os mesmos pecados? A resposta, em resumo, é Fácil. Vamos observar primeiramente os pecados dos israelitas. Deixe-me fazer algumas afirmações, pautadas na cultura dos tempos antigos que estamos considerando, e então pensar um pouco em suas versões atuais e em seus erros.
(1) O jeito de conquistar filisteus pagãos para a verdadeira fé israelita é convidá-los para o culto, minimizando qualquer elemento negativo e ofensivo (sem importar o quanto seja vital para a fé) e esforçando-se para que se sintam confortáveis e bem-vindos.
(2) Enquanto formos sinceros em nossa adoração, Deus não se importará com a forma que ela tome. Se nosso culto a Deus é diferente do culto prestado por Israel, é apenas porque Deus trabalha criando novas e excitantes formas de adorá-Lo.
(3) Sei que Deus disse em Sua Lei que as coisas sagradas do Tabernáculo deveriam ser manuseadas de certa forma e que somente pessoas escolhidas poderiam realizar determinadas funções, mas isto é politicamente incorreto. Todo mundo deveria ser igual, no sentido de que nenhuma função pode excluir alguns e incluir outros. Portanto, esqueça esse negócio de que só os levitas podem transportar a Arca, e deixe que qualquer um que se sinta em condições assuma o papel de levita no culto.
(4) Existe um jeito mágico de manipular a Deus, mantendo-O sob controle, a fim de que satisfaça nossas concupiscências e conceda nossos desejos pecaminosos. Este jeito é levar o símbolo da presença de Deus junto conosco, esperando que ele garanta nosso sucesso... Outro jeito, visto ao longo da história de Israel, é ver as leis e promessas de Deus como uma espécie de fórmula mágica: Se eu fizer isto, isto e isto, Deus vai fazer aquilo... Este é o tipo de pensamento deus constrangido e Deus não pode ser constrangido, embora certamente Ele possa e constrangerá aqueles que tentem fazê-lo.
Os filisteus erram em muitas coisas e devemos fazer uma pausa para considerar a natureza de seus erros. A coisa que mais me fascina é seu uso e abuso de métodos científicos. Nosso texto se empenha em nos informar sobre as coisas que fazem para testar suas experiências, a fim de terem certeza de que realmente é a mão de Deus que pesa sobre eles, causando a praga. Eles tentam manter a mente aberta quando Deus esparrama Dagom no chão, partindo-o em pedaços na segunda vez. Eles também querem ter certeza de que as pragas vêm da mão de Deus. Assim, há um meio cuidadosamente planejado para a Arca ser liberada de volta a Israel. Estas são antigas manifestações daquilo que chamamos de método científico.
Infelizmente, os filisteus parecem ser científicos, mas não querem ir aonde as evidências apontam. Mesmo quando tudo aponta para o Deus vivo e todo-poderoso de Israel, que está empenhado em cuidar de Seu povo, eles ainda preferem mandar Deus embora da cidade, continuando a servir a seu deus inanimado e despedaçado, Dagom. Eles o escoram, juntam seus pedaços e até santificam o limiar onde caiu, mas não abandonarão um ídolo morto para adorar e servir ao Deus vivo.
Às vezes ouço cristãos sendo criticados por não serem científicos, e também ouço cristãos criticando o método científico. Na verdade, quando aplicados cientificamente, esses métodos mostram as verdades abraçadas pelos cristãos. Será que é científico os filisteus realizarem todos estes testes e depois voltarem a seus ídolos inanimados? Seria bem mais científico se eles abandonassem seus ídolos e confiassem no Deus de Israel. Os cristãos são criticados por não serem científicos? A incredulidade é muito mais irracional, e nada científica.
Com isto desejo mostrar como Deus trabalha na vida de Seu povo, tirando-o da imoralidade e idolatria e trazendo-o ao arrependimento e restauração. Nosso texto mostra claramente uma série de acontecimentos e mudanças que levam à renovação espiritual de Israel. Primeiramente Deus produz nos israelitas um profundo senso de Sua santidade e o temor correspondente (reverência) por Si mesmo. A imoralidade e a violência tomam conta dos sacrifícios e dos objetos sagrados de Israel (como a Arca). A Arca é levada para a guerra como se fosse um pé de coelho. Depois que muitas pessoas são levadas à morte simplesmente por olharem para a Arca (ou para dentro dela), os israelitas começam a se perguntar quem é capaz de permanecer na presença do Senhor (6:20). Agora, o povo de Deus está começando a compreender quão superior e quão diferente é o único e verdadeiro Deus. Este é o ponto de partida para a renovação espiritual de Israel. Estou convicto de que é aqui que começa o verdadeiro reavivamento, com um profundo senso da santidade de Deus e o senso correspondente da magnitude de nosso pecado e da nossa indignidade diante de Deus. Os israelitas vêem sua idolatria e se arrependem, abandonando seus ídolos e voltando-se somente para Deus. É isto que os homens precisam fazer hoje. Deus providenciou um único meio pelo qual os pecadores podem ser perdoados e tornados justos, e esse meio é pela fé na pessoa e na obra de Jesus Cristo. Quando os israelitas buscaram primeiramente a Deus, Deus lhes deu a vitória sobre seus inimigos. Hoje também é assim. Um profundo senso da santidade de Deus, seguido pela confissão de nossos pecados e pelo abandono de qualquer coisa em que confiemos que não seja em Deus e na Sua providência - esta é a maneira como Deus tira os pecadores da irreverência, do pecado e do juízo, e os leva para a retidão, perdão, paz e acesso à Sua presença santa.
Ao ler o capítulo 8 de I Samuel, lembro-me de uma divertida série de acontecimentos na vida de Jacó, descrita em Gênesis 30 e 31. Jacó foge para Padã-Harã, em parte para procurar uma esposa entre seus parentes, e em parte para fugir da raiva de seu irmão, Esaú. Ele não tem dinheiro para pagar o dote por uma esposa, por isso, acaba trabalhando para Labão, seu sogro, durante 14 anos, em pagamento do dote de suas duas esposas, Lia e Raquel. Depois de cumprir 14 anos de serviço, eles negociam um novo “acordo”, estipulando um salário pelos próximos serviços de Jacó. Eles combinam que este salário será composto de todas as cabras listradas, malhadas e salpicadas, e de todos os cordeiros negros. O acordo terá início com um rebanho de tais animais retirado do gado de Labão.
Jacó não se contenta com os poucos exemplares que nascerão dessas cabras ou cordeiros; assim, ele inicia uma manobra que tornará suas chances mais favoráveis. O processo todo se baseia na premissa de que a cor dos descendentes do rebanho de Labão possa ser influenciada pelo ambiente onde forem concebidos e criados. Assim, ele se ocupa descascando varas. Removendo a casca em linhas abertas, a brancura das varas é exposta. As varas descascadas são depois colocadas nos lugares onde os rebanhos pastam, bebem e procriam.
Parece realmente funcionar! Os rebanhos de Jacó estão crescendo, enquanto os de Labão não. Jacó trabalha cada vez mais em seu projeto, sempre com sucesso. Ele parece sinceramente crer que Deus esteja abençoando seus esforços “de descascar varas”. Labão e seus filhos percebem, e não gostam nada disso. Jacó ouve os comentários e vê a raiva dos filhos de Labão. Deus lhe diz para deixar Padã-Harã e voltar à terra de seus pais. Ao tentar convencer suas esposas de que devem deixar o lugar, Jacó lhes conta o sonho que teve. No sonho, ele vê um rebanho de cabras na época do acasalamento e percebe que os machos são listrados, malhados e salpicados. O anjo de Deus chama sua atenção, dizendo-lhe que foi Ele quem o fez ser bem sucedido com seus rebanhos.
Fico me perguntando quanto tempo leva para isto ficar claro para Jacó. A prosperidade de seus rebanhos nada tem a ver com as varas que ele descascou e cuidadosamente colocou para que os animais concebessem e procriassem. As crias dos rebanhos de Labão são listradas, malhadas e salpicadas porque Deus fez com que os machos listrados, malhados e salpicados acasalassem. A prosperidade de Jacó não é fruto de suas mãos; na verdade, todo o seu descascamento de varas foi pura perda de tempo. Jacó prospera porque Deus o faz prosperar, e Ele o faz induzindo os machos listrados, malhados e salpicados a acasalar mais do que os outros.
Não é de admirar que Deus mude o nome de Jacó para Israel. Este homem, Jacó, está prestes a se tornar um dos pais da nação de Israel. Mais do que isto, Israel, xará de Jacó, demonstrará ser exatamente como seu antepassado. Eles também tentarão experimentar diversas formas de “descascamento de varas”, na tentativa de manipular as bênçãos de Deus e ser bem sucedidos.
Nos primeiros capítulos de I Samuel, os israelitas acham que podem empregar a Arca de Deus como “descascador de varas”. Depois de serem derrotados pelos filisteus, eles tomam a Arca e a levam junto com eles para a batalha, certos de que ela lhes dará a vitória. Como sabemos isto não acontece. Agora, no capítulo 8, não é na Arca, mas num rei que os israelitas depositarão sua confiança e esperança. Seu desejo por um rei nada mais é do que outro capítulo de uma longa história de “descascamento de varas”. Vamos prestar atenção às mudanças importantes que este capítulo traz à história de Israel, ansiosos para entender as lições que eles demoraram tanto para aprender.
Antes de iniciarmos nossa exposição de I Samuel 8, algumas observações muito importantes devem ser feitas, tendo em vista que afetam consideravelmente a maneira de entendermos e aplicarmos nosso texto.
Primeiro, Deus Se faz rei de Israel no Êxodo. Quando Deus liberta os israelitas do cativeiro egípcio e lhes dá a Sua lei, Ele estabelece a Si mesmo como rei de Israel. A disputa com faraó, na realidade, é entre um Rei e outro. Só depois de atravessarem o Mar Vermelho é que os israelitas percebem o fato, expressando-o num hino de louvor:
“Sobre eles cai espanto e pavor; pela grandeza do teu braço, emudecem como pedra; até que passe o teu povo, ó SENHOR, até que passe o povo que adquiriste. Tu o introduzirás e o plantarás no monte da tua herança, no lugar que aparelhaste, ó SENHOR, para a tua habitação, no santuário, ó Senhor, que as tuas mãos estabeleceram. O SENHOR reinará por todo o sempre.” (Êxodo 15:16-18, ênfase minha)
Deus é o Único que promete “ir adiante” (e depois) de Seu povo, como faria um rei (ver Êxodo 23:23; Isaías 45:2, 52:12). Estudiosos do Velho Testamento observaram que a outorga da Lei, firmando o pacto entre Deus e Israel de Êxodo a Deuteronômio, segue a mesma forma dos tratados ou pactos feitos entre os reis daquela época e seus súditos. O povo daquele tempo reconheceria imediatamente a implicação - que Deus estava firmando as bases da aliança para o Seu governo como rei de Israel. Isto é claramente indicado em outros lugares.
“Esta é a bênção que Moisés, homem de Deus, deu aos filhos de Israel, antes da sua morte. Disse, pois: O SENHOR veio do Sinai e lhes alvoreceu de Seir, resplandeceu desde o monte Parã; e veio das miríades de santos; à sua direita, havia para eles o fogo da lei. Na verdade, amas os povos; todos os teus santos estão na tua mão; eles se colocam a teus pés e aprendem das tuas palavras. Moisés nos prescreveu a lei por herança da congregação de Jacó. E o SENHOR se tornou rei ao seu povo amado, quando se congregaram os cabeças do povo com as tribos de Israel.” (Deuteronômio 33:1-5, ênfase minha; Êxodo 19:3-6; Levítico 20:26; 25:23)
No Salmo 74, Asafe considera os feitos de Deus durante o êxodo como evidências de que Ele é o Rei de Israel:
“Ora, Deus, meu Rei, é desde a antiguidade; ele é quem opera feitos salvadores no meio da terra. Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste as cabeças do crocodilo e o deste por alimento às alimárias do deserto. Tu abriste fontes e ribeiros; secaste rios caudalosos.” (Salmo 74:12-15, ver também Salmo 47:2-3)
Segundo, depois de libertar os israelitas do cativeiro egípcio, Deus os prepara para o fato de que terão um rei. Em Gênesis 49:8-12, fica claro que um descendente de Judá governará sobre Israel. Na profecia de Balaão em Números 24:15-19, uma predição semelhante fala de um dos descendentes de Jacó governando e derrotando os inimigos do povo de Deus. Em Deuteronômio 17:14-20 Deus indica que haverá uma época em que Israel pedirá um rei. Mais tarde, mais coisas serão ditas a respeito desta profecia, no entanto, deve ser salientado que aqui, em I Samuel 8, é seu cumprimento literal.
Terceiro, esta é a primeira das três vezes em I Samuel que Deus fala aos israelitas por meio de Samuel sobre o perigo de exigirem um rei (ver também 10:17-19; 12:6-18). O capítulo 8 é a primeira narrativa da exigência de um rei feita por Israel, das respostas de Samuel e de Deus, e da advertência de Samuel ao povo. Contudo, vamos nos lembrar de que este assunto será retomado nos capítulos 10 e 12. Para entendermos I Samuel 8, precisamos estudá-lo à luz dos capítulos 10 e 12.
Quarto, a ênfase do capítulo 8 não está no perigo da rejeição de Israel a Deus e sua idolatria (embora isto seja mostrado); a ênfase recai sobre os altos custos de um rei (versos 10-18). O “princípio da proporcionalidade” é sempre uma dica importante para o significado e interpretação de um texto. Em nosso capítulo, sabemos que a exigência de Israel por um rei é idolatria, idolatria do mesmo tipo que Israel vem praticando desde o êxodo (8:7-9). Sabemos que quando Samuel fala ao povo, ele lhes diz “todas as palavras de Deus” (verso 10), mas o que está escrito e preservado para nós é o conteúdo dos versos 10-18, que é uma descrição detalhada dos custos de um reino. O custo de um reino é a ênfase das palavras de Samuel neste capítulo.
Quinto, a exigência por um rei não vem apenas dos anciãos de Israel (verso 4), mas de todo o povo (ver versos 7, 10, 19, 21-22). À primeira vista, parece que apenas os anciãos estejam exigindo um rei. À medida que o capítulo se desenrola, fica bem claro que todo o povo de Israel está por trás do movimento. Para mim, isto indica que Israel está funcionando mais ou menos como uma democracia. Seus anciãos são mais representantes do que líderes do povo.
Sexto, repare que, conforme passamos do capítulo 7 para o capítulo 8, passamos do início do “governo” de Samuel como juiz no capítulo 7 para um aparente “final” de seu governo no capítulo 8. Grande parte de seu ministério é ignorada em I Samuel. Talvez seja porque o autor quer que vejamos mais claramente o contraste entre a maneira como seu “governo” começou e a maneira como o povo quer que termine. Samuel, na verdade, é o último de uma geração em extinção - os juízes. No entanto, vamos relembrar o que o autor do livro de Juízes diz no início de sua obra:
“Suscitou o SENHOR juízes, que os livraram da mão dos que os pilharam. Contudo, não obedeceram aos seus juízes; antes, se prostituíram após outros deuses e os adoraram. Depressa se desviaram do caminho por onde andaram seus pais na obediência dos mandamentos do SENHOR; e não fizeram como eles. Quando o SENHOR lhes suscitava juízes, o SENHOR era com o juiz e os livrava da mão dos seus inimigos, todos os dias daquele juiz; porquanto o SENHOR se compadecia deles ante os seus gemidos, por causa dos que os apertavam e oprimiam. Sucedia, porém, que, falecendo o juiz, reincidiam e se tornavam piores do que seus pais, seguindo após outros deuses, servindo-os e adorando-os eles; nada deixavam das suas obras, nem da obstinação dos seus caminhos.” (Juízes 2:16-19, ênfase minha)
O que me fascina é que “nos bons tempos” dos juízes, o povo de Deus seguia o Senhor durante toda a vida do juiz. Só depois que o juiz morresse é que Israel se afastava de Deus e se corrompia. Mas no caso de Samuel, ele ainda não está morto. Simplesmente está velho e parcialmente aposentado. E eles já estão ansiosos para se verem livres dele. É impressionante.
Sétimo, de forma alguma nosso texto sugere que Samuel seja outro Eli, um líder fraco e patético. Em toda a história de Israel não houve nenhum juiz mais importante do que Samuel. Com freqüência, ele fala da parte de Deus ao povo. Não há registro de nenhuma profecia de Eli. Na verdade, ele recebe suas revelações em segunda-mão (ver 2:27-36; 3:1-18). Samuel é um grande homem de oração (ver 7:5; 8:6, 21; 15:11). Não lemos orações de Eli. Samuel é um líder decisivo, que age quando Saul não o faz (I Samuel 15:32-33). Eli não poderia ser chamado de decisivo, e alguns talvez nem mesmo o chamem de líder. Samuel é de grande valia na derrota militar dos filisteus (7:13), mas Eli é associado a um período de derrota militar (compare 4:9 e 7:13-14). Samuel é um homem de grande integridade pessoal (ver 12:1-5), enquanto o mesmo não pode ser dito de Eli, que parece ter engordado com a carne mal-adquirida de seus filhos (ver 2:29). A morte de Samuel é ocasião de luto nacional (25:1; 28:3), mas não é assim com a morte de Eli (4:12-22). Vamos deixar que as próprias Escrituras façam um resumo da vida de Samuel:
“Nunca, pois, se celebrou tal Páscoa em Israel, desde os dias do profeta Samuel; e nenhum dos reis de Israel celebrou tal Páscoa, como a que celebrou Josias com os sacerdotes e levitas, e todo o Judá e Israel, que se acharam ali, e os habitantes de Jerusalém.” (II Crônicos 35:18)
“Moisés e Arão, entre os seus sacerdotes, e, Samuel, entre os que lhe invocam o nome, clamavam ao SENHOR, e ele os ouvia.” (Salmo 99:6)
“Disse-me, porém, o SENHOR: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu coração não se inclinaria para este povo; lança-os de diante de mim, e saiam.” (Jeremias 15:1)
“E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas,” (Hebreus 11:32)
O fato puro e simples é que Samuel é o maior juiz de todos os tempos. Durante o período de seu serviço, Israel alcança um de seus “pontos espirituais mais altos”.
Oitavo, os motivos dos israelitas quererem um rei nos versos 1-4 não nos contam toda a história, que é revelada conforme os acontecimentos dos capítulos seguintes vão sendo descritos. Não é somente a idade de Samuel e a corrupção de seus filhos que fazem os israelitas exigirem um rei. De acordo com o capítulo 12, ficamos sabendo que a ameaça militar feita por Naás, o rei de Amom, talvez seja a razão principal para eles desejarem um rei. A Arca de Deus está fora de serviço, Samuel em breve também estará, e os israelitas querem um rei em quem possam depositar sua confiança.
“Tendo Samuel envelhecido, constituiu seus filhos por juízes sobre Israel. O primogênito chamava-se Joel, e o segundo, Abias; e foram juízes em Berseba. Porém seus filhos não andaram pelos caminhos dele; antes, se inclinaram à avareza, e aceitaram subornos, e perverteram o direito. Então, os anciãos todos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Vê, já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações.”
A maior parte da vida e do ministério de Samuel é ignorada até o capítulo 8, onde o encontramos já avançado em idade, talvez ansiando por sua aposentadoria. Seus dois filhos são constituídos por ele como juízes “sobre Israel”, estabelecidos na cidade fronteira de Berseba. Não creio que Samuel tenha nomeado seus filhos como seus substitutos, nem que ele o faça. Samuel não é apenas sacerdote e juiz, ele é também profeta. Não temos nenhuma indicação de que Deus, por isso, tenha capacitado seus filhos; assim, como um ou ambos poderia ocupar o lugar de seu pai? Como os outros anciãos e líderes da nação, eles podem ser juízes. No entanto, a esfera de seu ministério e autoridade é limitada e, quando fica patente que eles são corruptos, a inferência talvez seja de que Samuel resolva a questão. Nada mais é dito sobre sua corrupção ou ministério. No capítulo 12, Samuel fala de seus filhos como estando junto ao povo (verso 2). Ele afirma não ter cometido nenhuma injustiça e não ser culpado de corrupção, um fato que o povo confirma. Como ele poderia falar deste modo se não tivesse tratado da corrupção de seus próprios filhos? Seus dois filhos não são piedosos como o pai; eles não “andam nos seus caminhos”.
No entanto, as coisas não são como parecem ou como os anciãos as apresentam. Eles parecem sugerir que Samuel esteja “praticamente morto”, que sua liderança esteja no fim. Não é bem isto que nosso texto mostra. Ele ainda tem muitos anos de ministério pela frente. Creio que podemos dizer com segurança que os anos em que Samuel conduz a nação depois do capítulo 8 sejam mais importantes do que anos anteriores (os anos que o autor preferiu não incluir nesta narrativa). Além do mais, a ameaça que seus filhos representam é exagerada. Seus filhos não são seus substitutos, e eles não têm um papel importante a desempenhar no futuro da nação. Não creio que os anciãos ou o povo estejam tão preocupados com os líderes que vêem diante deles quanto com os líderes desconhecidos que não podem ver. Quem irá conduzir o povo depois de Samuel? Eles querem um homem em seu lugar. Por isso, eles exigem - não pedem - um rei como o de outras nações.
De qualquer forma, a solução proposta pelos anciãos é absurda. Pense na loucura de sua lógica, que é mais ou menos esta:
“Samuel, você está ficando velho e seus filhos (que, com certeza, ficarão em seu lugar) são corruptos. Não podemos ter um futuro brilhante se nossos líderes forem corruptos. Vamos estabelecer uma ordem inteiramente nova e ter um rei, como as outras nações. Deixe que ele nos julgue. E que haja uma dinastia, a fim de que seus filhos governem em seu lugar após sua morte.”
O papel de Samuel como juiz não é uma dinastia. Deus levantou os juízes; Ele não criou uma dinastia de juízes, cujos filhos os substituam. Se os filhos de Samuel são corruptos, eles podem ser afastados, como de fato o são. No entanto, propor uma dinastia é pedir um sistema onde os filhos do rei governem em seu lugar, quer sejam ímpios ou justos. A emenda é pior do que o soneto!
Parece que os anciãos e a nação não estejam buscando uma mudança radical, mas apenas recomendando uma limpeza do sistema atual, um “ajuste” administrativo. Eles querem justiça. Querem um juiz que decida suas questões legais. Querem simplesmente um rei como juiz em vez de um juiz como Samuel. Parece bom, mas, de forma alguma, é uma simples mudança. Eles querem uma reforma total do sistema de justiça de Israel. Querem se livrar do sistema de juízes e ser governados e julgados da mesma maneira que as nações ao seu redor. Não querem ser uma nação distinta, separada das outras nações. Eles não estão simplesmente tentando demitir Samuel como seu juiz; estão procurando demitir Deus como seu rei. Deus deixa isto bem claro nos versos seguintes.
“Porém esta palavra não agradou a Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei, para que nos governe. Então, Samuel orou ao SENHOR. Disse o SENHOR a Samuel: Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele. Segundo todas as obras que fez desde o dia em que o tirei do Egito até hoje, pois a mim me deixou, e a outros deuses serviu, assim também o faz a ti. Agora, pois, atende à sua voz, porém adverte-o solenemente e explica-lhe qual será o direito do rei que houver de reinar sobre ele.”
Samuel não fica nada satisfeito com a proposta dos anciãos. Embora seja verdade que eles estejam procurando substituí-lo, não creio que seu desagrado seja porque leve isto de forma pessoal e esteja na defensiva. Literalmente, o texto nos diz que isto é “mal à vista de Samuel”. Em termos bem simples, Samuel sabe que o pedido é errado e que é pecado.
Além do mais, sua resposta confirma seu caráter piedoso. Ele não explode, despejando raiva e indignação sobre os anciãos. Ele se achega a Deus em oração, como sempre faz. A resposta de Deus à oração de Samuel confirma sua avaliação da situação, com um novo ângulo. Samuel está sendo rejeitado pelo povo; há poucas dúvidas de que isto seja verdade. Como um homem piedoso, talvez ele se torture achando que seja devido a alguma falha de sua parte. Deus lhe diz que, no fim das contas, é Ele e não Samuel quem está sendo rejeitado. A rejeição de Deus por Israel certamente não é culpa de Deus; por que, então, Samuel deveria se torturar com sua própria rejeição? Se Samuel está sendo rejeitado pelas mesmas razões que Deus está, ele deveria, então, tomar isto como elogio.
Conforme observado anteriormente, Deus se faz Rei de Israel na época do êxodo. Agora, Deus relembra Samuel de que a rejeição atual de Israel não é algo novo, mas apenas outro episódio de uma série sucessiva que teve início no êxodo (verso 8). Esta rejeição de Deus por um rei “como o de outras nações” nada mais é do que idolatria. O que realmente eles querem é um rei que seja seu ”deus”, uma questão que será retomada com mais inteireza posteriormente. Após mostrar a origem do problema, Deus diz a Samuel para atender o povo e ceder à sua pressão (verso 9a.). Embora Samuel deva conceder ao povo o seu pedido, ele também deve lhes mostrar o “direito” do rei que “reinará sobre eles” (verso 9b).
“Referiu Samuel todas as palavras do SENHOR ao povo, que lhe pedia um rei, e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles; e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinqüenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros. Tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor das vossas lavouras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores. As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores. Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos. Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o SENHOR não vos ouvirá naquele dia.” (ênfases minhas)
As palavras registradas nos versos 10-18 não são a soma de tudo o que Samuel diz ao povo nesta ocasião. Elas são o que autor desejou enfatizar para nós, leitores. O verso 10 indica que Samuel “falou todas as palavras do Senhor ao povo que lhe pedira um rei”. Samuel, portanto, diz ao povo aquilo que Deus lhe diz nos versos 7-9, e talvez ainda outras palavras ditas por Deus e que não foram registradas no texto. Mas o autor quer que nos concentremos nas palavras dos versos 10-18. Elas parecem ser a essência do texto - ou, pelo menos, uma parte significativa da mensagem de Samuel aos israelitas que exigem um rei.
Nosso Senhor tinha muitos supostos “voluntários” que se ofereciam para ser Seus seguidores. A resposta de nosso Senhor a tais pessoas era um alerta. Ele os advertia a “pensarem nas conseqüências” (ver Lucas 9:57-62; 14:15-35). Samuel faz a mesma coisa em nosso texto: ele recomenda aos israelitas que “pensem nas conseqüências” de ter um rei. A essência das palavras de Samuel pode ser resumida numa única frase: “Ele tomará...”
Israel está exigindo um tipo de governo muito dispendioso. Samuel procura mostrar em detalhes o custo de um reino, e que é incrivelmente caro. Para que avaliemos os altos custos de se ter um rei, primeiro precisamos refrescar nossa memória quanto ao funcionamento das coisas no governo dos juízes. No livro de Juízes vemos que não há rei, nem palácio, nem exército permanente. Quando Israel é atacado, um exército voluntário é convocado. Este exército, em parte, é formado pelas famílias daqueles que vão à luta (ver I Samuel 17:17-22). Não há conselho “administrativo”, consultores, empregados e quadro de funcionários para dar suporte e facilitar o governo do rei. Em resumo, o sistema é informal, ad hoc, e muito barato. Com Deus como seu rei, o sistema funciona, conforme vemos no livro de Juízes e em I Samuel 7, por exemplo.
Em contraste com um sistema de “baixo orçamento” para governar a nação, o que os israelitas estão exigindo é caro demais. Ter um rei que vá adiante deles e os lidere na guerra é ter um exército permanente. Uma vez que Israel seja governado por um rei, a vida no campo jamais será a mesma. O rei empregará seus filhos no serviço militar para conduzir seus carros ou como cavaleiros, ou como infantaria. Alguns serão separados como oficiais. Um exército permanente também deve ter suprimentos. Os filhos dos israelitas serão usados para plantar e ceifar as colheitas e construir e manter o equipamento militar (sem mencionar todos os suprimentos não militares exigidos). Não serão somente os jovens que o rei empregará em seu serviço. As filhas dos israelitas, que antes se sentavam à mesa e serviam seus pais, agora servirão à mesa do rei. Elas serão perfumistas, cozinheiras e padeiras.
O alto custo de um rei inclui a perda dos filhos e filhas para o serviço do rei. Mas o preço é ainda maior. O rei consumirá uma enorme quantidade de alimentos, alimentos da melhor qualidade. Isto exigirá que ele tribute tudo o que é cultivado em Israel. O melhor de seus grãos irá para o rei, junto com o melhor de suas vinhas e lavouras. Boa parte das coisas que uma família rural israelita antes apreciava agora irá ser consumida pelos servos do rei. Os servos do rei precisam viver, e o povo também pagará por esta despesa. Um décimo de suas sementes e de suas videiras será dado aos servos do rei para plantarem em seus campos (ou na terra que o rei tomar do povo).
O rei precisará de empregados para servi-lo; portanto, tomará o que Israel tem de melhor a oferecer em matéria de servos e servas. Certamente ele precisará de gado, e jumentos para arar os campos, e tudo será suprido pelo povo. Em resumo, quando o rei for concedido ao povo, será para dominá-lo, e ele dominará. Esta gente que antes conhecia a liberdade, agora será escrava do rei. E quando, finalmente, perceberem o que fizeram a si mesmos, será tarde demais para mudar o curso da história. Um dia os israelitas clamarão a Deus por causa da opressão de seu próprio rei, mas Deus não ouvirá seu lamento, pois eles estão indo para o cativeiro com os olhos bem abertos.
“Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras. Ouvindo, pois, Samuel todas as palavras do povo, as repetiu perante o SENHOR. Então, o SENHOR disse a Samuel: Atende à sua voz e estabelece-lhe um rei. Samuel disse aos filhos de Israel: Volte cada um para sua cidade.”
A nação de Israel quer um rei; Samuel os adverte de que isto lhes trará um enorme sistema político com um preço exorbitante. Mas isto não interessa. O povo está determinado a ter seu rei. O povo (não só os anciãos) se recusa a dar ouvidos a Samuel ou às suas advertências. Eles insistem em ter seu rei, mas agora são mais honestos quanto ao que esperam dele. Eles querem um rei que os governe e que vá adiante deles na guerra. Na verdade, eles querem um rei que tome suas decisões e lute por eles.
Samuel ouve tudo o que o povo diz e vai a Deus repetir todas as suas palavras (verso 21). Esta afirmação é muito interessante. Não ficamos surpresos quando lemos que Samuel diz ao povo o que o Senhor lhe disse (verso 10). Mas, por que Samuel sente a necessidade de dizer a Deus tudo o que o povo lhe disse? Será que Deus não ouve o que o povo está dizendo? É claro que ouve. Por que precisamos orar, se Deus já conhece todas as nossas necessidades? (ver Mateus 6:32) Não é que Deus precise nos ouvir para ser informado; é que nós precisamos de Deus. Precisamos partilhar nossos fardos com Ele. Samuel diz a Deus tudo o que o povo diz, não porque Deus precise ser informado, mas porque Samuel precisa da intimidade com Deus.
Em resposta à oração de Samuel, Deus, uma vez mais, o instrui a dar ao povo o que eles querem. Por isso, sem saber quem será este rei, Samuel despacha os israelitas para suas casas até que Deus mostre a identidade de seu novo rei (verso 22).
Já enfatizei bastante o mal e a tolice de Israel exigir um rei. Algumas pessoas podem querer protestar, mencionando o texto de Deuteronômio 17. Deus não disse que seria certo Israel ter um rei? Se já havia sido profetizado que os israelitas exigiriam um rei, por que Deus, então, é tão severo quando o fazem? Vamos dar uma olhada no texto de Deuteronômio:
“Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles. Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.”
Este texto é uma profecia, e podemos ver que ela é rigorosamente cumprida quando os israelitas exigem um rei, exatamente como o de outras nações. O fato de alguma coisa ser profetizada não é prova de que aquilo que é predito seja bom ou justo. A traição de Judas foi predita, assim como a rejeição de Israel ao Messias. Isto não significa que Judas, ou os incrédulos israelitas, estivessem certos ao fazer o que fizeram. Significa apenas que Deus quer que conheçamos uma parte de Seu plano eterno.
Sugiro que, ainda que Deus prenuncie em Deuteronômio os acontecimentos descritos em I Samuel 8, há muito mais do que uma simples profecia ali. Se Deuteronômio 17:4 é uma profecia sobre a exigência de Israel por um rei, os outros versículos do capítulo são as instruções de Deus para evitar que este rei seja como o de outras nações. As instruções que Deus estabelece por meio de Moisés são o que torna Seu rei distinto das outras nações.
O rei deve ser israelita. Ele não deve ser escolhido por voto popular, mas divinamente designado e empossado. O rei de Deus não deve multiplicar para si cavalos ou esposas. Isto é o que os reis pagãos fazem, pois lhes dá poder político e militar. O rei de Deus não deve confiar em seus próprios recursos, em sua própria força, mas em Deus. Creio que seja por esta razão que a contagem das tropas israelitas por Davi seja algo tão ruim e que resulte num castigo tão severo (ver I Crônicas 21). Davi parece estar cheio de si e a contagem das tropas lhe dá sensação de poder. Por isso, Deus o trata, e ao povo, com tanta severidade. O rei não deve ter o desejo de acumular fortuna ou riquezas, pois isto também é poder. O rei deve confiar em Deus e obedecê-Lo e desafiar a nação de Israel a fazer o mesmo.
Davi é este tipo de rei quando enfrenta Golias, mas os anos de poder e prosperidade colocam sua vida à prova. Afinal, mesmo os melhores reis de Israel estão bem longe dos padrões estabelecidos por Deus em Deuteronômio 17. As falhas de Davi e Salomão nestas áreas são bastante óbvias. Enfim, só existe uma pessoa com todas estas qualificações, nosso Senhor Jesus Cristo. Ele foi rico, mas Se fez pobre por amor de nós. Ele não teve, nem empregou poderes terrenos para estabelecer Seu reino. Ele certamente não multiplicou poderes militares ou esposas. E é por isso que Cristo e somente Cristo pode ser o Rei de Deus, para reinar sobre a terra para todo o sempre.
“Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor. Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos. E os quatro seres viventes respondiam: Amém! Também os anciãos prostraram-se e adoraram.” (Apocalipse 5:11-14)
A principal lição que este texto nos ensina é aquilo que podemos chamar de “economia do pecado”. Se estou certo em minha avaliação, a ênfase principal do texto recai sobre o custo exorbitante de uma monarquia, sobretudo se comparado ao custo mínimo do governo dos juízes. Os israelitas estão errados em exigir um rei, pois o que eles realmente querem é substituir Deus por um ídolo humano. No entanto, deixando de lado os problemas bíblicos e morais associados à sua exigência, existe também um problema econômico muito claro. Em termos bem simples, ser governado por um rei não vale seu preço.
Recentemente, fui com minha esposa Jeanette a uma comemoração estadual em Des Moines, Iowa. Fomos com nossos amigos Brenda e Smith, que me lembrou de uma afirmação que fiz há alguns anos atrás em Six Flags (um parque de diversões perto de Dallas, Texas). Enquanto pensava na longa espera e no preço pago pelas entradas, observei: “Este passeio é exatamente como o pecado... o preço é alto e o passeio é curto!” É exatamente desse jeito que Samuel quer que os israelitas pensem a respeito de ter um rei. O preço vai ser muito alto.
Os israelitas não vêem desse modo, pois estão mais do que dispostos a pagar o preço detalhado por Samuel. Creio que possa entender por que. O preço da sujeição a seus inimigos é muito alto, como vemos em Juízes 6:
“Fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o SENHOR; por isso, o SENHOR os entregou nas mãos dos midianitas por sete anos. Prevalecendo o domínio dos midianitas sobre Israel, fizeram estes para si, por causa dos midianitas, as covas que estão nos montes, e as cavernas, e as fortificações. Porque, cada vez que Israel semeava, os midianitas e os amalequitas, como também os povos do Oriente, subiam contra ele. E contra ele se acampavam, destruindo os produtos da terra até à vizinhança de Gaza, e não deixavam em Israel sustento algum, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos. Pois subiam com os seus gados e tendas e vinham como gafanhotos, em tanta multidão, que não se podiam contar, nem a eles nem aos seus camelos; e entravam na terra para a destruir. Assim, Israel ficou muito debilitado com a presença dos midianitas; então, os filhos de Israel clamavam ao SENHOR.” (Juízes 6:1-6)
Para os israelitas, o preço que irão pagar por seu rei é considerado bem menor do que aquele que irão pagar pela sujeição a outras nações. O que eles não entendem é que Deus os protegerá sem custo algum se simplesmente se arrependerem de seus pecados, clamarem por libertação e O servirem de todo o coração. Receio que este seja o preço que eles consideram alto demais. Eles não querem abandonar seus ídolos pagãos. Não querem servir somente a Deus. Não querem que Deus seja seu rei. Por isso, procuram substituir tanto a Deus, quanto a Samuel, tendo um rei como as outras nações.
Ao discutir este texto, um amigo meu observou o seguinte: “Se for pagar por um deus, 10% não é muito caro”. Ele tem razão. Se você conseguisse um ”Deus” de verdade sem pagar caro por ele, seria vantajoso. Mas o fato é que, ao pagar caro por um rei, Israel recebe muito pouco em troca. Os israelitas pensam que seu rei tomará (julgará) suas decisões por eles, dizendo-lhes o que fazer, e que lutará suas batalhas. Uma recapitulação de Deuteronômio 28-32 deveria relembrar aos israelitas de que não é seu rei quem lhes dá paz e prosperidade; é seu Deus. Não é seu rei que é digno de sua fé, confiança e obediência (somente); é Deus. Eles esperam que um rei faça por eles o que só Deus pode fazer, com ou sem rei. Eles estão dispostos a pagar caro por algo que não vale a pena.
O pecado também é assim, e Satanás sempre procura nos convencer a pecar de um jeito que faria um vendedor trapaceiro de carros usados chorar de inveja. Ele procura supervalorizar nossa avaliação dos benefícios do pecado, ao mesmo tempo em que se esforça para nos convencer de que o preço é irrisório. No Jardim do Éden, Satanás fez Eva acreditar que realmente podia ser como Deus, e que comer o fruto proibido não resultaria realmente na morte. Quando pecamos, estamos acreditando na mentira de Satanás. Achamos que podemos “usar” o pecado enquanto tivermos controle sobre ele. A realidade é que o pecado rapidamente ganha o controle sobre nós e nos tornamos seus escravos. Não importa o quanto sejamos tentados e contemplemos o caminho do pecado, vamos nos lembrar do que a Bíblia nos ensina sobre sua economia: o preço é muito caro e o percurso é muito curto. O pecado não compensa.
Por que, então, mesmo depois que Samuel adverte os israelitas sobre os custos da monarquia, eles não lhe dão ouvidos e exigem seu rei? Por que os homens estão dispostos a pagar tanto por tão pouco? Creio que saiba a resposta, e que ela esteja claramente implícita em nosso texto. Os homens detestam a graça. A graça é detestável e repugnante porque é caridade. A graça não massageia nosso ego; ela produz humildade. Quando pagamos por alguma coisa (com trabalho ou dinheiro), achamos que somos donos dela. Achamos que quando pagamos, estamos no controle. Quando recebemos a graça, não estamos no controle. Deus está no controle. A graça é concedida soberanamente, por isso, não podemos ditar como e quando ela nos será concedida por Deus; não podemos controlar seus benefícios. Mas as boas e velhas obras forçam Deus a nos abençoar (como erroneamente supomos). Quando fazemos as coisas certas, Deus deve responder da forma que esperamos. Estamos no controle. Deus se torna nosso servo. Por isso, os homens preferem pagar - e pagar muito - para manter seu orgulho e sensação de controle. Esta é a razão pela qual os homens preferem os ídolos a Deus, mesmo que tenham que carregá-los. Eles crêem que servir aos ídolos faz com estejam no controle do seu “deus”. Que tolice!
Acho muito interessante que os israelitas queiram um homem como seu deus. Jamais funcionará, e o preço dessa tentativa será bem alto. O jeito de Deus é fazer-Se homem, Deus-Homem, para salvar o homem de seus pecados e governar sobre a terra como Rei, o Messias Prometido. Este Rei prometido que foi anunciado para ser Deus e homem não é nenhum outro senão o Senhor Jesus Cristo.
Ainda precisamos aprender uma última lição deste texto: Às vezes Deus nos dá aquilo que queremos e até mesmo exigimos, mesmo que isto venha a ser doloroso para nós. Lembro-me de uma passagem em Salmos que fala da queixa dos israelitas por não terem carne, fazendo com que Deus os deixe de barriga cheia. É esta:
“E ele satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar a sua alma.” (ARA)
“Deu-lhes o que pediram, mas mandou sobre eles uma doença terrível.” (NVI)
Existe uma persistência na oração e na súplica que não é evidência de fé, mas evidência de torpe ganância. Existe uma perseverança na oração que, de forma alguma, é santa. É possível que, se persistirmos em pedir aquilo que não é bom, Deus nos atenda. Será doloroso se isto acontecer, mas ao nos dar aquilo que tanto desejamos, Deus nos disciplina para que aprendamos a deixar estas coisas em Suas mãos. Em termos bíblicos, devemos nos concentrar em buscar primeiro a Deus, e confiar Nele para que todas as coisas nos sejam acrescentadas (Mateus 6:33). Vamos ter cuidado para que nossas petições a Deus não sejam exigências. Aprendamos com os israelitas do passado para que não andemos nos caminhos que eles andaram.
Há mais de quarenta anos atrás, meus pais moravam num pequeno povoado que tinha vista para Puget Sound, no Estado de Washington (a vista era tão espetacular que meu pai construiu uma ala da casa no alto da colina, de frente para a paisagem e para a estrada). Um domingo à tarde, enquanto meus pais estavam tirando uma soneca, minha irmã e eu brincávamos junto à estrada, quando um carro parou ao nosso lado e o motorista perguntou se tínhamos visto um porco. Ele nos contou que o porco dera um jeito de escapar de seu cercado e estava andando à solta em algum lugar das proximidades. Decidindo que a caça ao porco seria uma grande atividade para a tarde, minha irmã e eu entramos no carro para ajudar a procurar o porco.
O motorista nos avisou que a serra no assoalho traseiro acabara de ser afiada, mas o aviso veio tarde demais. Minha irmã já passara a perna nos dentes afiados, produzindo vários cortes profundos. O motorista entrou em pânico, enrolando um trapo nada esterilizado em seu tornozelo para diminuir o sangramento. O hospital mais próximo ficava a 8 ou 10 milhas de distância, e ele nos levou para lá tão rápido quanto pôde. Foi do hospital que liguei para meus pais, que ainda dormiam. Pensando que Ruth e eu estávamos ali fora, eles levaram um choque ao saber que eu estava ligando do hospital e que minha irmã tinha um grande número de pontos na perna.
Essa foi uma caçada ao porco que saiu às avessas. Aquilo que parecia ser uma aventura excitante revelou-se não apenas uma aventura mal sucedida, mas extremamente dolorosa e dispendiosa. Nosso texto nos fala de uma caçada que acabou saindo exatamente o contrário. Ela começa com várias jumentas vagando perdidas, com Saul e seu servo em seu encalço. De fato, eles jamais encontraram os animais perdidos, mas, como veremos, a jornada em busca destes animais errantes bem valeu o esforço. Aquilo que talvez tenha começado como uma tarefa quase irritante termina com uma revelação que deve ter feito a cabeça de Saul girar de surpresa e excitação.
O estado de ânimo da maioria dos Israelitas é de grande expectativa. Os anciões da nação, fortemente apoiados pelo povo, tinham vindo a Samuel para exigir um rei que os governasse, como em todas as nações ao seu redor. Samuel não se agrada. Ele sente que isto não foi movido por fé e obediência a Deus, e Deus confirma suas suspeitas enquanto o conforta da afronta feita pela exigência dos anciões. Como no passado, os Israelitas ainda se voltam para os ídolos. O povo não está rejeitando Samuel como juiz; eles estão rejeitando a Deus como seu rei. A despeito de seu pecado em pedir um rei, Deus instrui Samuel a avisar o povo sobre os altos custos de um rei, informando-os a seguir que eles realmente terão um rei (8:22).
Esquecidos dos avisos e da seriedade de seu pecado, os Israelitas ficam empolgados com seu futuro rei. Como Deus já instruíra em Deuteronômio 17:15, o rei deve ser alguém de Sua escolha. Certamente isto significa que Samuel será aquele que nomeará o escolhido de Deus. Todos os olhos estão sobre Samuel. Cada homem que cruza o caminho deste juiz e profeta é visto como candidato a rei. Não é de estranhar que o tio de Saul esteja tão interessado naquilo que Samuel tem a lhe dizer (10:14-16).
Ninguém jamais teria imaginado como Deus faria conhecida Sua escolha. Os capítulos 9 a 11 de I Samuel nos dizem. Os acontecimentos destes três capítulos têm um propósito muito importante, pois demonstram enfaticamente que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, e que Deus o capacitou totalmente para desempenhar esta tarefa. Os acontecimentos do capítulo 9 deixam claro a Samuel que Saul é o escolhido de Deus. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que devem convencer Saul de que ele é escolhido de Deus. E os capítulos 10 e 11 registram o sorteio, a designação de Saul, e a grande vitória militar sobre Naás e os amonitas, que convencem os Israelitas de que Saul é seu rei. Estas três passagens da transmissão de cargo podem ser ilustradas desta maneira:
9:1 9:17
Para o benefício de Samuel
9:1 9:18 10:9
Para o benefício de Saul
9:1 10:10 11:13
Para o benefício de Israel
Havia um homem de Benjamim, cujo nome era Quis, filho de Abiel, filho de Zeror, filho de Becorate, filho de Afias, benjamita, homem de bens. Tinha ele um filho cujo nome era Saul, moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo. Extraviaram-se as jumentas de Quis, pai de Saul. Disse Quis a Saul, seu filho: Toma agora contigo um dos moços, dispõe-te e vai procurar as jumentas. Então, atravessando a região montanhosa de Efraim e a terra de Salisa, não as acharam; depois, passaram à terra de Saalim; porém elas não estavam ali; passaram ainda à terra de Benjamim; todavia, não as acharam. Vindo eles, então, à terra de Zufe, Saul disse para o seu moço, com quem ele ia: Vem, e voltemos; não suceda que meu pai deixe de preocupar-se com as jumentas e se aflija por causa de nós. Porém ele lhe disse: Nesta cidade há um homem de Deus, e é muito estimado; tudo quanto ele diz sucede; vamo-nos, agora, lá; mostrar-nos-á, porventura, o caminho que devemos seguir. Então, Saul disse ao seu moço: Eis, porém, se lá formos, que levaremos, então, àquele homem? Porque o pão de nossos alforjes se acabou, e presente não temos que levar ao homem de Deus. Que temos? O moço tornou a responder a Saul e disse: Eis que tenho ainda em mãos um quarto de siclo de prata, o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho. (Antigamente, em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia: Vinde, vamos ter com o vidente; porque ao profeta de hoje, antigamente, se chamava vidente.) Então, disse Saul ao moço: Dizes bem; anda, pois, vamos. E foram-se à cidade onde estava o homem de Deus. Subindo eles pela encosta da cidade, encontraram umas moças que saíam a tirar água e lhes perguntaram: Está aqui o vidente? Elas responderam: Está. Eis aí o tens diante de ti; apressa-te, pois, porque, hoje, veio à cidade; porquanto o povo oferece, hoje, sacrifício no alto. Entrando vós na cidade, logo o achareis, antes que suba ao alto para comer; porque o povo não comerá enquanto ele não chegar, porque ele tem de abençoar o sacrifício, e só depois comem os convidados; subi, pois, agora, que, hoje, o achareis. Subiram, pois, à cidade; ao entrarem, eis que Samuel lhes saiu ao encontro, para subir ao alto. Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim. Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo.
Ainda que os acontecimentos deste texto sejam para o benefício de Saul e de todo Israel, seu benefício primário é para Samuel. Afinal de contas, por instrução de Deus, Samuel prometeu um rei a Israel, e agora ele deve compreender exatamente quem pode ser esse rei. Os acontecimentos de nosso texto levam Saul ao contato com Samuel de um jeito que faz este profeta ter certeza de que ele é o escolhido de Deus.
Quis, o pai de Saul, é um homem de certa reputação da tribo de Benjamim. Nosso texto nos informa que ele é um homem de bens (9:1). Esta expressão pode ser entendida como se referindo à coragem de um homem, seu sucesso e suas habilidades militares, ou mesmo à sua riqueza. Por uma razão ou outra, ele é um homem de renome. Saul vem de uma boa descendência. E ainda que Saul não tenha estabelecido sua própria reputação, ele tem todos os atributos físicos que o tornarão extremamente útil ao povo. Em resumo, ele é aquilo que nossas adolescentes chamariam de um gato. É alto (mais alto quer qualquer outro Israelita), moreno (como as pessoas daquela parte do mundo - e, uma vez que ele trabalha no campo, deveria ter um bronzeado espantoso), e lindo. No entanto, será necessário muito mais do que isto para que Saul cumpra seu chamado como rei.
E assim é que alguns animais do rebanho de Quis se perdem. Não sabemos como as jumentas se soltaram, mas, de alguma forma elas fugiram de sua fazenda. Quis manda seu filho, Saul, atrás dos animais perdidos, instruindo-o a levar consigo um dos servos para ajudar. Os dois partem para uma busca mal sucedida, até que as jumentas perdidas se transformam numa preocupação, mas algo que, de certa forma, acaba sendo proveitoso. Nos três dias seguintes eles cobrem uma grande área, mas não encontram as jumentas. Saul está prestes a jogar a toalha e desistir de tudo. Com toda a certeza seu pai começará a se preocupar mais com eles do que com as jumentas.
O jovem servo de Saul não tem tanta certeza. Ele sabe que chegaram muito próximo do lugar onde vive o homem de Deus. Parece que nem o servo, nem Saul conhecem este homem de Deus pelo nome, e que o servo sabe muito mais sobre ele do que Saul. Este homem de Deus é um vidente, nome antigamente usado para designar um profeta. O servo conhece Samuel por sua reputação, não pelo nome. Ele é um homem muito estimado, cujas palavras se cumprem - um verdadeiro profeta. Talvez possam lhe perguntar sobre sua jornada e descobrir o paradeiro das jumentas.
Saul parece gostar da idéia, mas levanta um problema muito prático - eles não têm nada para oferecer ao vidente. Suas reservas estão completamente vazias. Eles consumiram todos os seus suprimentos e sequer têm pão para comer. Como podem solicitar seus serviços sem nada lhe oferecer em troca? O servo também tem solução para este problema. Ele tem uma moeda que prata que será suficiente. Com este incentivo, Saul consente em pedir ajuda ao homem de Deus, ao que parece, completamente esquecido de quem ele é ou a que isto pode levar.
Quando Saul e o servo alcançam as imediações da cidade, encontram algumas jovens indo buscar água, e indagam se o vidente está lá. Elas dizem que o homem realmente está lá e que, se eles se apressarem, podem pegá-lo enquanto ainda está disponível. Ele está para abençoar o sacrifício e então celebrar a refeição com alguns convidados. Logo que tudo comece, Saul e seu servo terão que esperar algum tempo, uma vez que não são convidados e não ousariam interromper o sacrifício e a celebração. Este é o momento certo, mas precisam se apressar.
Saul e seu servo continuam subindo em direção à cidade. Quando se aproximam, Samuel os vê chegando. É neste ponto que encontramos outro parêntese, descrito nos versos 15 e 16. Do ponto de vista meramente humano, a chegada de Saul é improvável (eles vagueavam por lá, mal sucedidos em encontrar os animais perdidos, e agora estão sem comida e ansiosos por voltar prá casa). Do ponto de vista das jovens, eles estavam com sorte. Do ponto de vista divino eles eram esperados, como veremos a seguir. Um dia antes Deus falou com Samuel, indicando que ele encontraria o novo rei no dia seguinte. Será alguém da tribo de Benjamim e deve ser ungido por Samuel. Este rei é um gracioso presente de um Deus misericordioso, que ouviu o clamor de Seu povo e está levantando este homem para livrar Israel das mãos dos filisteus. Quando Samuel levanta os olhos e vê Saul e seu servo chegando à cidade, Deus lhe diz que este é o homem. Dessa forma Samuel sabe que aquele que vem em sua direção é o escolhido de Deus como rei de Israel.
Quando Samuel viu a Saul, o SENHOR lhe disse: Eis o homem de quem eu já te falara. Este dominará sobre o meu povo. Saul se chegou a Samuel no meio da porta e disse: Mostra-me, peço-te, onde é aqui a casa do vidente. Samuel respondeu a Saul e disse: Eu sou o vidente; sobe adiante de mim ao alto; hoje, comereis comigo. Pela manhã, te despedirei e tudo quanto está no teu coração to declararei. Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? Então, respondeu Saul e disse: Porventura, não sou benjamita, da menor das tribos de Israel? E a minha família, a menor de todas as famílias da tribo de Benjamim? Por que, pois, me falas com tais palavras? Samuel, tomando a Saul e ao seu moço, levou-os à sala de jantar e lhes deu o lugar de honra entre os convidados, que eram cerca de trinta pessoas. Então, disse Samuel ao cozinheiro: Traze a porção que te dei, de que te disse: Põe-na à parte contigo. Tomou, pois, o cozinheiro a coxa com o que havia nela e a pôs diante de Saul. Disse Samuel: Eis que isto é o que foi reservado; toma-o e come, pois se guardou para ti para esta ocasião, ao dizer eu: Convidei o povo. Assim, comeu Saul com Samuel naquele dia. Tendo descido do alto para a cidade, falou Samuel com Saul sobre o eirado. Levantaram-se de madrugada; e, quase ao subir da alva, chamou Samuel a Saul ao eirado, dizendo: Levanta-te; eu irei contigo para te encaminhar. Levantou-se Saul, e saíram ambos, ele e Samuel. Desciam eles para a extremidade da cidade, quando Samuel disse a Saul: Dize ao moço que passe adiante de nós, e tu, tendo ele passado, espera, que te farei saber a palavra de Deus. Tomou Samuel um vaso de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Não te ungiu, porventura, o SENHOR por príncipe sobre a sua herança, o povo de Israel? Quando te apartares, hoje, de mim, acharás dois homens junto ao sepulcro de Raquel, no território de Benjamim, em Zelza, os quais te dirão: Acharam-se as jumentas que foste procurar, e eis que teu pai já não pensa no caso delas e se aflige por causa de vós, dizendo: Que farei eu por meu filho? Quando dali passares adiante e chegares ao carvalho de Tabor, ali te encontrarão três homens, que vão subindo a Deus a Betel: um levando três cabritos; outro, três bolos de pão, e o outro, um odre de vinho. Eles te saudarão e te darão dois pães, que receberás da sua mão. Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.
Enquanto Samuel sabe que Saul é o escolhido de Deus como rei de Israel, Saul não tem este conhecimento. A próxima seção é amplamente dedicada ao processo usado por Deus para informar e transformar Saul como novo rei. Fica evidente pelo nosso texto que Saul não conhece Samuel. Quando chega à entrada da cidade, Saul se volta para a primeira pessoa que vê e pergunta o caminho para a casa do vidente. Samuel é aquele a quem Saul faz a pergunta. Ele o informa que é o vidente. Antes mesmo de Saul poder deixar escapar sua pergunta, Samuel lhe diz palavras que ele nunca pensou que ouviria. Samuel o instrui a subir à sua frente ao alto, onde o sacrifício e a refeição cerimonial estão prestes a serem realizados. Saul deve comer com Samuel nesse dia, e depois passar a noite. Na manhã seguinte Samuel lhe dirá tudo quanto está no seu coração e depois o despedirá. Tendo dito isto, Samuel prossegue dizendo algo que deve deixar Saul espantado: Quanto às jumentas que há três dias se te perderam, não se preocupe o teu coração com elas, porque já se encontraram. E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? (9:20)
Saul nem mesmo tem que fazer a pergunta, pois Samuel já sabe o que ele quer saber. Sem Saul nem mesmo perguntar, Samuel lhe diz o que está faltando, há quanto tempo estão procurando, e o que foi encontrado. Se isto surpreende Saul, mais surpresas ainda estão por vir. Samuel disse a Saul que lhe contaria tudo quanto estava em seu coração... no dia seguinte (verso 19). Se esta questão das jumentas perdidas não é o que está em seu coração, então, o que é? Creio que são as coisas ditas a seguir por Samuel a Saul, no verso 20: E para quem está reservado tudo o que é precioso em Israel? Não é para ti e para toda a casa de teu pai? As palavras que Saul diz em resposta a Samuel, registradas no verso 21, são a essência daquilo que Saul terá em seu coração a partir de agora, uma vez que a questão das jumentas já foi resolvida. O que significam as palavras de Samuel? E por que Samuel as diz a Saul? Como pode ser isto, se ele nem mesmo é de uma tribo ou família importante? Creio que isto seja o que Samuel coloca na cabeça de Saul, e que ele explicará mais detalhadamente na manhã seguinte. E assim será.
Samuel, Saul e seu servo seguem seu caminho para o alto, onde Samuel lhes dá o lugar de honra à cabeceira da mesa dos convidados. Samuel é um homem de fé. Quando Deus o informa que o rei virá no dia seguinte (9:16), ele deixa reservado para Saul o lugar do convidado de honra na refeição cerimonial (9:23-24). Ele separou uma porção escolhida, dizendo ao cozinheiro para servi-la quando instruído a fazê-lo (tão logo surgisse o rei prometido). Quando Saul e seu servo se assentam, Samuel instrui o cozinheiro a trazer a porção que estava reservada, à espera de sua chegada. O homem que parece ser um visitante inesperado é, na realidade, esperado, e nenhum outro senão o convidado de honra.
Há mais uma conversa entre Samuel e Saul sobre o eirado antes que Saul se prepare para a noite. Logo cedo na manhã seguinte, Samuel desperta Saul para despachá-lo em particular antes que o povo esteja circulando e observando com grande curiosidade e interesse. Quando eles estão deixando a cidade, Samuel instrui Saul a enviar seu servo adiante para que possa lhe falar em particular. Quando ele faz isto, Samuel toma seu vaso de azeite e unge sua cabeça, beijando-o, e informando que Deus de fato o escolheu para governar sobre todo Israel.
Sem dúvida, esta é uma bomba para Saul. Pelos acontecimentos dos dias anteriores e pelas misteriosas afirmações que Samuel lhe fez, era evidente que ele só poderia estar falando de Saul como o futuro rei. Mas agora não há lugar para mal-entendidos. As palavras e as ações de Samuel (a unção) deixam muito claro que Saul foi designado e ungido para ser o rei. Mas Saul é um homem que precisa de algum convencimento (ver 10:22). Então Samuel profetiza a respeito dos acontecimentos que ocorrerão nas próximas horas. Primeiro, na estrada para o túmulo de Raquel, eles encontrarão dois homens que os informarão sobre aquilo que Samuel já lhes dissera, ou seja, que as jumentas perdidas foram encontradas, e que o pai de Saul estava agora preocupado com seu filho.
Mais adiante, quando alcançarem o carvalho de Tabor, irão encontrar três homens subindo para adorar a Deus em Betel. Um dos homens terá três cabritos, o outro três pedaços de pão, e o terceiro um odre de vinho. Estes três não somente saudarão a Saul e seu servo, eles lhes darão dois pedaços de pão, que eles devem pegar. Este pão servirá como mantimento pelo restante do caminho prá casa.
Os versos 14 a 16 do capítulo 10 são parte da confirmação particular de Deus a Saul de sua escolha como rei de Israel. O escritor descreve os acontecimentos seguintes ao encontro de Saul com Samuel em ordem cronológica; assim, a chegada de Saul em sua casa, e seu diálogo com o tio, vêm depois dele se tornar profeta por algum tempo (versos 10-13). Mas, para seguir com o argumento, a conversa com o tio é parte da confirmação particular de Saul.
Quando Saul chega em casa, seu tio lá está para saudá-lo e questioná-lo sobre o que ele fez nos últimos dias. Saul dá apenas um resumo dos fatos, para que a questão da sua unção não seja levantada ou discutida. Talvez o silêncio de Saul tenha apenas estimulado seu tio, pois, certamente ele está interessado no que aconteceu, especialmente por saber que Saul se encontrou com Samuel. Saul está disposto a lhe dizer somente a parte referente às jumentas; assim, terá que ser Samuel aquele que apresentará publicamente Saul como rei de Israel, o que acontece na próxima seção.
Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas? E, tendo profetizado, seguiu para o alto. Perguntou o tio de Saul, a ele e ao seu moço: Aonde fostes? Respondeu ele: A buscar as jumentas e, vendo que não apareciam, fomos a Samuel. Então, disse o tio de Saul: Conta-me, peço-te, que é o que vos disse Samuel? Respondeu Saul a seu tio: Informou-nos de que as jumentas foram encontradas. Porém, com respeito ao reino, de que Samuel falara, não lho declarou. Convocou Samuel o povo ao SENHOR, em Mispa, e disse aos filhos de Israel: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Fiz subir a Israel do Egito e livrei-vos das mãos dos egípcios e das mãos de todos os reinos que vos oprimiam. Mas vós rejeitastes, hoje, a vosso Deus, que vos livrou de todos os vossos males e trabalhos, e lhe dissestes: Não! Mas constitui um rei sobre nós. Agora, pois, ponde-vos perante o SENHOR, pelas vossas tribos e pelos vossos grupos de milhares. Tendo Samuel feito chegar todas as tribos, foi indicada por sorte a de Benjamim. Tendo feito chegar a tribo de Benjamim pelas suas famílias, foi indicada a família de Matri; e dela foi indicado Saul, filho de Quis. Mas, quando o procuraram, não podia ser encontrado. Então, tornaram a perguntar ao SENHOR se aquele homem viera ali. Respondeu o SENHOR: Está aí escondido entre a bagagem. Correram e o tomaram dali. Estando ele no meio do povo, era o mais alto e sobressaía de todo o povo do ombro para cima. Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa. Também Saul se foi para sua casa, a Gibeá; e foi com ele uma tropa de homens cujo coração Deus tocara. Mas os filhos de Belial disseram: Como poderá este homem salvar-nos? E o desprezaram e não lhe trouxeram presentes. Porém Saul se fez de surdo. Então, subiu Naás, amonita, e sitiou a Jabes-Gileade; e disseram todos os homens de Jabes a Naás: Faze aliança conosco, e te serviremos. Porém Naás, amonita, lhes respondeu: Farei aliança convosco sob a condição de vos serem vazados os olhos direitos, trazendo assim eu vergonha sobre todo o Israel. Então, os anciãos de Jabes lhe disseram: Concede-nos sete dias, para que enviemos mensageiros por todos os limites de Israel e, não havendo ninguém que nos livre, então, nos entregaremos a ti. Chegando os mensageiros a Gibeá de Saul, relataram este caso ao povo. Então, todo o povo chorou em voz alta. Eis que Saul voltava do campo, atrás dos bois, e perguntou: Que tem o povo, que chora? Então, lhe referiram as palavras dos homens de Jabes. E o Espírito de Deus se apossou de Saul, quando ouviu estas palavras, e acendeu-se sobremodo a sua ira. Tomou uma junta de bois, cortou-os em pedaços e os enviou a todos os territórios de Israel por intermédio de mensageiros que dissessem: Assim se fará aos bois de todo aquele que não seguir a Saul e a Samuel. Então, caiu o temor do SENHOR sobre o povo, e saíram como um só homem. Contou-os em Bezeque; dos filhos de Israel, havia trezentos mil; dos homens de Judá, trinta mil. Então, disseram aos mensageiros que tinham vindo: Assim direis aos homens de Jabes-Gileade: Amanhã, quando aquentar o sol, sereis socorridos. Vindo, pois, os mensageiros, e, anunciando-o aos homens de Jabes, estes se alegraram e disseram aos amonitas: Amanhã, nos entregaremos a vós outros; então, nos fareis segundo o que melhor vos parecer. Sucedeu que, ao outro dia, Saul dividiu o povo em três companhias, que, pela vigília da manhã, vieram para o meio do arraial e feriram a Amom, até que se fez sentir o calor do dia. Os sobreviventes se espalharam, e não ficaram dois deles juntos. Então, disse o povo a Samuel: Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Trazei-os para aqui, para que os matemos. Porém Saul disse: Hoje, ninguém será morto, porque, no dia de hoje, o SENHOR salvou a Israel.
Finalmente Saul e seu servo alcançam o monte de Deus, onde a tropa dos filisteus está acampada, e onde ocorre o terceiro sinal. O terceiro sinal é diferente dos dois primeiros em pelo menos duas coisas. Primeiro, é testemunhado publicamente e, pelo menos parcialmente compreendido como algo importante. Já fomos informados sobre a profecia que Samuel deu a Saul a respeito dos dois homens que ele encontraria e depois dos três homens a caminho de Betel, mas não temos um relato completo de como estas coisas ocorrem. Apenas temos a informação geral de que todos esses sinais se deram naquele mesmo dia (10:9). Mas, quando chega a terceira profecia - aquela que fala sobre o Espírito vindo sobre Saul - temos um relato que inclui o impacto que isto tem sobre a nação. Os dois primeiros sinais são quase inteiramente para o benefício exclusivo de Saul. Somente a ele foi dito que estas coisas aconteceriam. Qualquer um que presenciasse o cumprimento destas duas profecias não entenderia que são sinais, pois ignoraria sua predição detalhada. Mas este terceiro sinal é algo que chama a atenção do povo, tanto que se transforma em provérbio.
Segundo, o que acontece a Saul no monte de Deus não é normal, é sobrenatural. O Espírito de Deus desce sobre ele e ele profetiza, junto com aqueles que são conhecidos como profetas. Não há dúvida por parte daqueles que testemunham este acontecimento surpreendente - Saul está entre os profetas. Então, por que isto é importante? É importante porque é uma demonstração pública de que Deus capacitou Saul para julgar a nação. Em Êxodo 18, Jetro, o sogro de Moisés, o aconselha a distribuir o peso do trabalho de julgar a nação. A indicação daqueles 70 juízes é descrita em Números 11, onde todos os 70 profetizam diante dos olhos da nação, demonstrando que o Espírito de Deus está sobre eles, capacitando-os a servirem como juízes. A mesma coisa está acontecendo agora com Saul. O Espírito de Deus veio sobre ele, capacitando-o a julgar a nação como seu rei. Este acontecimento é claramente sobrenatural, e é público. De fato, a mudança de Saul se torna proverbial, para que mesmo aqueles que não testemunhem este sinal possam ouvir falar sobre ele. Esta é a primeira indicação pública de que Saul deve ser o rei de Israel.
A próxima indicação será muito mais notória. Samuel convoca todo o Israel a Mispa (o lugar onde se arrependeram e se voltaram para Deus no início do ministério de Samuel - ver capítulo 7), onde ele se defronta com uma audiência muito ansiosa. Em todo o seu entusiasmo e otimismo pelo que está por vir, Samuel uma vez mais relembra aos Israelitas que sua exigência por um rei é uma manifestação de desobediência e incredulidade. Samuel indica que isto foi (no capítulo 8), e ainda é neste mesmo dia, uma rejeição a Deus. Este Deus, que eles trocaram por um rei humano, é o Único que os livra de todas as suas dificuldades. Não é o seu novo rei quem os livrará delas, pois foi Deus quem sempre os livrou, e quem continuará a livrá-los. A despeito do pecado de Israel, Deus está prestes a lhes dar graciosamente o rei que estão exigindo.
O rei, como visto em Deuteronômio 17:15, deve ser um homem da escolha de Deus, e esta escolha será indicada por sorteio. A primeira restrição é para a linhagem de Benjamim e então, finalmente, para Saul, exatamente aquele que Deus já indicou previamente a Samuel, aquele que Samuel já ungiu como rei. Mas este processo é para o benefício das pessoas da nação, para que sejam convencidos de que Saul é o escolhido de Deus.
Quando Saul é indicado por sorteio, ele não pode ser encontrado em parte alguma. Ninguém parece saber dele ou de seu paradeiro. É por meio de mais uma indagação ao Senhor que Ele indica que Saul está escondido entre a bagagem. O povo corre até lá, encontra Saul e o traz a Samuel. Quando as pessoas olham para Saul, ficam muito impressionadas. Eis um homem que já sabemos que é muito bonito (9:2), e uma vez mais é dito que ele é mais alto que qualquer outro israelita. De fato, Saul é o Golias de Israel, um gigante, e, fora isto, um homem extremamente atraente. De uma perspectiva meramente física, Saul é material de primeira.
Samuel mostra ao povo o que a escolha extremamente agradável de Deus faz. Deus não faz e não dá nenhuma tranqueira. Saul é um magnífico espécimen humano. Ninguém poderia ter pedido melhor. E assim o povo começar a gritar: Viva o rei!’ (verso 24). Neste ponto Samuel esclarece todas as regras que fazem parte do governo real, escrevendo isto num livro que coloca diante de Deus. E então despede o povo para casa.
Da mesma forma, Saul vai para sua casa, acompanhado por um grupo de homens valentes cujos corações Deus tocou. Estes homens parecem ser algo como o serviço secreto de Saul, acompanhando-o aonde quer que vá, protegendo-o de qualquer um que possa querer prejudicá-lo. Estes valentes são mais uma evidência de que Saul, de fato, é o escolhido de Deus como rei de Israel.
No entanto, nem todo o povo entende desta forma, pois nosso texto nos informa que há um grupo - de desordeiros - que não vê Saul como seu libertador. Será que estes homens conhecem o velho Saul tão bem? Eles o desdenham por ter se escondido em meio à bagagem? Ele não é o seu tipo de líder? Realmente não sabemos porque eles olham Saul com desprezo, mas seu pecado mais grave é duvidar e discutir a escolha de Deus. Enquanto todos os outros trazem presentes para Saul, estes desordeiros não. Seu desdém por Saul é óbvio. Todavia, Saul prefere ficar em silêncio e não fazer nada com eles por enquanto. No entanto, eles aparecerão outra vez em nosso texto.
O que os israelitas realmente querem é um rei que os livre de seus inimigos. Eles querem um rei que vá adiante deles na guerra (8:19-20). E, especificamente, eles querem um rei que lide com Naás, o rei dos amonitas (12:12). A prova da realeza de Saul será conclusiva se ele puder liderá-los na guerra com sucesso. O capítulo 11 é justamente sobre tudo isto.
Naás, o rei amonita, sitiou a cidade israelita de Jabes-Gileade. O povo está prestes a desistir e pedir a Naás que declare seus termos de paz. As pessoas de Jabes-Gileade estão dispostas a lhe serem sujeitas; eles parecem realmente não ter escolha. Mas os termos de paz do rei são severos. Ele não apenas quer que a cidade israelita se renda, mas insiste em vazar o olho direito de cada um deles. Isto causará pelo menos duas coisas: 1) humilhará os israelitas; 2) os incapacitará, fazendo com que lutem com grande dificuldade. (Já tentou apontar uma arma ou mirar um arco e flecha sem o olho direito?)
O povo de Jabes pede a Naás sete dias para pedir auxílio a seus irmãos judeus. Se ninguém vier em seu socorro, eles prometem que se sujeitarão a ele. Mensageiros são enviados por todo o Israel, pedindo auxílio. Parece que nada está sendo feito, e que ninguém pretende se envolver. Mas, finalmente, a mensagem chega a Gibeá de Saul, e quando chega, o povo daquela cidade começa a chorar. Saul está vindo do campo e observa o lamento e pergunta o que aconteceu. Quando lhe dizem, fica furioso. Ele mata uma junta de bois (seus bois, ou de algum espectador indiferente?), parte-os em pedaços e envia os pedaços por todo o território de Israel, avisando que, qualquer um que se recuse a se reunir para a guerra, encontrará seus bois mortos da mesma forma. Parece que alguns estavam se desculpando em vir em auxílio de seus irmãos por não poderem se ausentar de suas fazendas naquele momento. As ações de Saul deixam claro que eles não terão nada com que trabalhar em suas fazendas se eles se recusarem a ajudar seus irmãos. Ele ameaça lhes tirar o equivalente a seus tratores.
Um grandioso montante de 300.000 soldados se reúne, 30.000 dos quais são homens de Judá. Uma mensagem é enviada ao povo de Jabes, assegurando-lhes que a ajuda está a caminho. Os homens de Jabes informam a Naás que no dia seguinte irão se entregar. Naás acha que isto significa que eles pretendem se render. O povo de Jabes espera que isto signifique que irão se entregar à luta. E assim, quando os irmãos israelitas atacam os amonitas no dia seguinte, eles realmente se entregam lutando, e o resultado é uma derrota devastadora dos amonitas. Como o texto indica não ficaram dois deles juntos (verso 11).
Saul vira herói num instante. Uma coisa para Saul é estar entre os profetas; ainda outra coisa é ele ser escolhido rei por sorteio. Mas, quando ele é aquele que pode reunir toda a nação e assim derrotar os amonitas, esta é toda a prova que o povo precisa ou quer. E agora, o povo pergunta, Quem são aqueles que diziam: Reinará Saul sobre nós? Deixem que sejam trazidos à frente e tratados por nós!
O momento mais admirável de Saul não é ao reunir a nação para a guerra, nem ao obter a impressionante vitória sobre os amonitas. Seu momento mais admirável é quando trata daqueles de seu próprio povo que falaram contra ele. Saul pode se vingar, e assim fazendo, trazer grande contentamento ao povo, assim como a si mesmo. Mas Saul se recusa a arrefecer o entusiasmo do dia com tal atitude. Foi o Senhor quem salvou a Israel (verso 13), e assim Saul não levantará a mão contra aqueles que desdenharam dele. Israel verdadeiramente tem seu rei, e alguém bom nisso.
Esta última observação provavelmente é a mais inesperada, ou seja, Saul é um bom rei. Infelizmente, antes disso eu só havia considerado Saul em retrospectiva. Não podia olhar para Saul sem primeiro pensar em Davi. E quando pensava em Saul à luz de Davi, Saul sempre ficava em segundo plano, e com boas razões. Além disso, descobri que sou culpado de ver o início de Saul como rei de Israel apenas sob a luz de seus últimos dias, dias que o colocaram sob uma luz bem obscura.
No entanto, se tomarmos este texto como ele se apresenta, precisamos olhar de modo diferente para Saul, à luz dos seguintes fatos: 1) Saul é um gracioso presente de Deus a Seu povo, a despeito de sua exigência pecaminosa em ter um rei. Deus dá Saul a Israel como seu rei por misericórdia e compaixão, pois notou as calamidades e o sofrimento da nação, e mandou Saul livrar o povo, da mesma forma que fez desde o êxodo (9:16; 10:18). 2) Saul não é dado a Israel porque Deus quer que ele fracasse, escolhendo assim a pior espécie humana possível para dar à nação como rei. Deus escolhe um homem fisicamente superior, cuja aparência e estatura parecem se ajustar perfeitamente à tarefa que lhe está sendo dada. 3) Deus sobrenaturalmente capacita Saul, colocando nele Seu Espírito, para habilitá-lo a julgar e a liderar com sabedoria e poder. Qualquer fraqueza que Saul tenha como homem, Deus a trata sobrenaturalmente, para que ele se torne um outro homem (ver 10:6, 9). 4) E, finalmente, Deus identifica Saul de tal forma que ninguém, exceto alguns tolos desordeiros, negam que ele seja o rei indicado.
Deus não está tentando sabotar o reinado de Saul, ainda que certamente Ele saiba que seu reinado fracassará. As falhas de Saul não são devido à sabotagem de Deus, mas ao seu fracasso pessoal em andar nos caminhos de Deus, ao seu fracasso de confiar em Deus e obedecê-Lo. Saul falha em tomar posse dos recursos que Deus graciosamente lhe deu para capacitá-lo a governar com justiça e retidão. Saul não é um rei de segunda classe, dado por um Deus despeitado; ele é um rei de primeira linha, completamente equipado para sua tarefa, e totalmente responsável por suas falhas. Este rei, sem dúvida, não é um Davi, mas também não é um fracassado. Para mim, este é um novo pensamento, mas um pensamento ensinado em nosso texto.
Como Deus é gracioso conosco, apesar de nosso pecado. Deus dá um rei a Israel, mas este rei não é como o rei das outras nações. Este rei é o ser humano mais magnífico disponível, um homem transformado no coração e sobrenaturalmente capacitado pelo Espírito de Deus. Quando Saul anda no Espírito, age como o libertador do povo de Deus. Quando anda no Espírito, reconhece que as vitórias sobre seus inimigos são vitórias de Deus, não suas. Ele é um homem marcado por humildade e graça. Isto mudará, e bem depressa. Mesmo que saibamos que esta mudança ocorrerá, vejamos quão magnífico é este rei, pelo menos por algum tempo.
A vitória militar dos israelitas liderada por Saul (capítulo 11) não é devido a Israel ter um rei, nem a qualquer mérito por parte de Israel, mas unicamente devido à graça e misericórdia de Deus, que ouve o clamor de Seu povo e uma vez mais vem para salvá-lo. Os israelitas depressa abraçam este novo rei. Ele é o tipo de rei que eles querem. Quando Jesus vem como Rei de Israel, Ele não é nenhum Saul. Não tem uma aparência impressionante, que atrai os homens, e não é abraçado entusiasticamente como o Filho de Deus:
Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. (Is. 53:1-3)
Seus seguidores, e mesmo Seus discípulos mais próximos, querem que Jesus seja um rei como Saul, mas Jesus se recusa. Ele não vem para acabar com o governo romano, mas para dar Sua vida em resgate de muitos. Ele vem a um mundo pecaminoso, e suporta a pena de homens vis, para que possam ter seus pecados perdoados e se tornem filhos de Deus. Este é o tipo de rei que muitos rejeitam hoje. Eles gostariam de um rei mais parecido com Saul. Saul é o primeiro rei de Deus, e no início é um bom rei. Mas, na verdade, há somente um único grande rei, e este é Jesus, o Rei dos judeus, que veio à terra como filho do homem (sem deixar Sua divindade), viveu uma vida sem pecado, e foi crucificado por causa do pecado dos homens, e ressurgiu da morte ao terceiro dia. Este é o mesmo Rei que irá voltar, e então, todos O reconhecerão, e todo joelho se sobrará diante Dele. Ele subjugará todos os Seus inimigos e então governará sobre a terra em perfeita justiça. Este é o Rei pelo qual esperamos.
Finalmente, este texto é uma passagem fascinante no que se refere a conhecer a vontade de Deus. Deus revelou através do profeta Samuel que Ele daria um rei a Israel (I Samuel 8). E então, providencialmente (de forma circunstancial) leva Saul e seu servo ao exato lugar onde está Samuel, e à festa onde Saul é um desconhecido (de nome), mas esperado, convidado de honra. Deus revela diretamente a Samuel que o rei chegará no dia seguinte. Quando Samuel vê Saul pela primeira vez, Deus lhe diz que este é o convidado prometido, que deve ser o rei de Israel. E então, por meio de sinais sobrenaturais, por sorteio, e por uma vitória militar espetacular, Ele indica a Saul e a toda a nação de Israel que este homem deve ser seu rei.
Não vemos Saul buscando o reinado, nem mesmo buscando a Deus em oração. Ele está disposto a encontrar Samuel para pedir orientação divina a fim de encontrar suas jumentas, mas isto somente depois que seu servo dá a idéia e se oferece para pagar por isto. Saul é designado como rei de Israel quando cuida dos afazeres diários da vida. Quem pensaria que este homem começaria procurando jumentas e acabaria sendo apontado como o rei de Israel?
Parece também que Samuel obtém a orientação divina ao cuidar do curso normal de sua vida e ministério. Samuel está ministrando como sempre faz, quando Deus lhe diz que o rei chegará no dia seguinte. Samuel compreende a vontade de Deus a respeito do rei de Israel, quando desempenha fielmente seus deveres como profeta e juiz de Israel. Deus tem um jeito de tornar clara Sua vontade para nós, quando nos é necessário conhecê-la. Ele não tenta esconder Sua vontade, e quando é seu intento revelá-la, não podemos evitá-la. A vontade de Deus não é um segredo que precisa de uma técnica especial para ser conhecido.
Quando você se levantar amanhã de manhã, pense neste texto e no que ele implica. Que tarefa irritante estará em seu caminho? Será procurar jumentas perdidas? Provavelmente não, mas haverá algumas tarefas cotidianas e irritantes, que parecem consumir sua vida com pouco significado. Deus tem um modo de usar tais tarefas irritantes como meios para fins muito maiores.
Israel ansiosamente aguarda a chegada de seu rei. Cada ação, cada palavra de Samuel é vista com grande expectativa e interesse. Se estes antigos israelitas aguardavam tão ansiosamente seu primeiro rei, quanto mais ansiosos devemos estar pela vinda do Rei dos reis, nosso Senhor Jesus Cristo? Será que iniciamos cada dia nos perguntando se este é o dia? Estamos cuidando fielmente de nossas obrigações, ansiosos em agradar ao Rei que vem? Vamos começar cada dia com senso de ansiosa antecipação, sabendo que a vinda de nosso Rei pode ser hoje.
Na semana passada, eu e minha esposa Jeanette tivemos uma nova experiência - tornamo-nos avós pela primeira vez! Depois de 25 horas de trabalho de parto (de minha filha), nasceu Taylor Nicole. Há sempre uma sensação de alegria e otimismo no nascimento de uma criança, tal como numa festa de casamento. Mas você e eu sabemos que esta alegria, com o tempo, será vista por outro ângulo. Um pequeno recém-nascido, adorável e indefeso, logo fará dois anos e então será um adolescente! Tempos difíceis virão para seus pais, e todos nós que somos pais sabemos disto. Tempos difíceis virão também para os recém-casados.
Quando penso em nosso texto de I Samuel, lembro-me de um retrato que tirei anos atrás, quando estava no colégio. Nossa família tinha ido acampar... Nosso primeiro e único acampamento. O retrato foi tirado nas montanhas do Parque Nacional Glacier em Montana. Na foto, o céu está azul, com poucas nuvens. Meus pais, minhas duas irmãs e meu irmão caçula estão sentados à frente de nossa barraca, todos com um sorriso no rosto. Que coisa maravilha é acampar! Como podíamos ter perdido tais prazeres até agora? Poucas horas depois, o retrato é completamente diferente - um retrato que só existe na minha cabeça, pois as coisas ficaram caóticas demais para tirar fotos, no meio da noite, em meio a uma tempestade das montanhas, com uma barraca enfiada numa poça d’água de quase cinco cm. (Por que será que ninguém nos falou para armar a barraca num lugar alto com a porta para o lado oposto ao vento?)
As coisas nem sempre terminam do jeito que começam, como vemos com Saul, o novo rei de Israel. Em I Samuel 8, o povo exige um rei para governá-los, como todas as nações. Isto dá a entender que Samuel vai se aposentar e ser substituído. Samuel não gosta daquilo que ouve, e com razão. Ele adverte o povo sobre os altos custos de um rei, e os israelitas dizem que estão dispostos a pagar o preço. Assim, Samuel manda o povo de volta para casa, com a promessa de que terão seu rei. Os capítulos 9 e 10 descrevem os acontecimentos que levam à designação pública de Saul como rei de Israel. O capítulo 11 fala sobre Naás, o amonita, que sitia Jabes-Gileade e exige a rendição desta cidade israelita, anunciando que, quando se renderem, ele vazará o olho direito de cada inimigo derrotado. O povo da cidade pede tempo para buscar ajuda com seus irmãos, algo que Naás parece entender de modo diferente. Quando os mensageiros são enviados de Jabes-Gileade com o pedido de socorro, a notícia sobre estes irmãos israelitas em apuros chega a Gibeá de Saul. Quando Saul volta do campo, fica sabendo da situação e se enfurece pelo Espírito do Senhor. Ele dilacera uma junta de bois, enviando os pedaços por todo o território de Israel, com o aviso de que, qualquer um que não se ajunte para guerrear encontrará seus bois do mesmo jeito. Todo o Israel se ajunta - 330.000 homens. Deus dá uma grande vitória sobre os amonitas, libertando o povo de Jabes-Gileade de sua tirania.
No que diz respeito ao povo, esta é uma prova positiva de que Saul é o tipo de rei que eles querem. Ele é o homem! A grande comemoração que se segue é mais ou menos como a comemoração de um time vencedor do Super Bowl (torneio de boliche). É como um comercial de cerveja, onde um israelita se vira para outro e diz: “Cara, não tem nada melhor do que isto!” É como um candidato presidencial recebendo a notícia de sua eleição na sede de sua campanha eleitoral. Se os israelitas tivessem uma banda, eles tocariam “Os dias felizes voltaram...”
Neste exato momento, Samuel convoca o povo para ir a Gilgal, onde eles “renovarão o reino” (11:14). Saul é constituído rei, sacrifícios são feitos perante o Senhor e os “homens de Israel muito se alegram” (11:15). Mas que negócio é este de “renovar o reino”? Se Saul é o primeiro rei de Israel, então ele é o “novo” rei. Como, então, eles podem “renovar o reino”, proclamando Saul como rei?
Cheguei à conclusão de que Samuel não está falando sobre a ”renovação” do novo reino que acaba de ser inaugurado com a investidura de Saul como rei, mas da “renovação” do reino de Deus, com Deus como Rei, como já fora estabelecido no êxodo. Existem duas razões muito fortes para isto. Primeiro, há toda a mensagem e ênfase do capítulo 12, que iremos considerar por alguns instantes. Segundo, a “renovação” deve acontecer em Gilgal, não em Mispa (ver 7:5 e ss). Gilgal é a cidade que está daquém (a oeste) do Jordão. É o lugar onde os israelitas cruzaram o rio Jordão pela primeira vez e entraram na terra prometida, o lugar onde foi construído o memorial de 12 pedras. É o lugar onde os israelitas (a segunda geração) foram circuncidados e onde Israel renovou sua aliança com Deus (ver Josué 4 e 5). Gilgal é o lugar aonde o “anjo do Senhor” veio relembrar aos israelitas a sua libertação no êxodo, sua aliança com Deus e a razão para guerrear com as nações à sua volta (Juízes 2:1-5). É também uma das cidades do circuito de Samuel (I Samuel 7:16) e o lugar onde ele diz para Saul esperá-lo (I Samuel 10:8); Gilgal é a cidade que tem maior ligação com a aliança entre Deus e Israel.
Então, disse Samuel a todo o Israel: Eis que ouvi a vossa voz em tudo quanto me dissestes e constituí sobre vós um rei. Agora, pois, eis que tendes o rei à vossa frente. Já envelheci e estou cheio de cãs, e meus filhos estão convosco; o meu procedimento esteve diante de vós desde a minha mocidade até ao dia de hoje. Eis-me aqui, testemunhai contra mim perante o SENHOR e perante o seu ungido: de quem tomei o boi? De quem tomei o jumento? A quem defraudei? A quem oprimi? E das mãos de quem aceitei suborno para encobrir com ele os meus olhos? E vo-lo restituirei. Então, responderam: Em nada nos defraudaste, nem nos oprimiste, nem tomaste coisa alguma das mãos de ninguém. E ele lhes disse: O SENHOR é testemunha contra vós outros, e o seu ungido é, hoje, testemunha de que nada tendes achado nas minhas mãos. E o povo confirmou: Deus é testemunha.
Neste parágrafo, Samuel coloca a si mesmo em julgamento diante de Deus e de todo o povo. Creio que seja por causa das acusações que Israel faz ou insinua contra ele no capítulo 8, e que eles consideram ser motivo suficiente para sua substituição por um rei. Em vez de ficar constrangido pelas acusações, Samuel as expõe publicamente, desafiando quem quer que seja a acusá-lo de má conduta, especialmente em relação a seus deveres oficiais.
Várias alegações são feitas no capítulo 8, as quais são consideradas por Samuel em nosso texto. A primeira coisa que Samuel diz ao povo é que ele os ouviu e lhes concedeu o que pediram. Não espere isto de um rei. Samuel não foi insensível aos seus desejos, nem indiferente. Segundo, ele chama a atenção para a sua idade, dizendo-lhes que está “velho e cheio de cãs”. No capítulo 8 eles insinuaram que ele estava velho demais para desempenhar suas tarefas de julgar a nação. Que conclusão absurda! Será que a idade é de alguma forma incompatível com a habilidade de julgar sabiamente? Dê uma olhada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Será que é melhor ter uma corte cheia de jovens recém saídos do colégio ou da Faculdade, ou com pessoas que tenham sido amadurecidas por anos de experiência? Samuel não está velho demais para desempenhar seu chamado como juiz. Ele ainda continuará a servir este povo por algum tempo. Ele não está com o “pé na cova”.
O ministério de Samuel é público, e seus filhos estão lá entre os israelitas. Sua integridade e generosidade devem ser visíveis, assim como seus defeitos. No capítulo 8, os israelitas chamam a atenção para a conduta dos filhos de Samuel. Eles os acusam de não “andar nos caminhos de seu pai” (ver 8:5), e as acusações são verdadeiras (ver 8:1-3). A questão é se Samuel lidou com seus filhos da maneira como deveria. Tudo indica que ele não tem culpa, ao contrário de seu predecessor, Eli.
Se Samuel não tem culpa quanto à sua família, será que ele tem culpa quanto ao seu ministério? Será que Samuel de alguma forma falha em serviço, para que os israelitas peçam sua demissão e substituição por um rei? A resposta é muito clara “não!” Samuel afirma sua inocência e integridade no ministério sob três aspectos. Primeiro, ele não defraudou ninguém. Ele não cometeu nenhuma injustiça para que as pessoas fossem defraudadas devido à distorção ou abuso no processo judicial. Segundo, ao contrário de seus filhos, ele não recebeu suborno para distorcer a justiça em seus julgamentos (ver 8:3). Terceiro, ele garante que não oprimiu ninguém. Ele não abusa de seu poder para oprimir aqueles a quem julga. Ele é “servo”, não “senhor”. Finalmente, Samuel não “tomou o boi ou o jumento de ninguém”. Não creio que ele esteja falando sobre furto. Creio que ele queira dizer que não tomou bois ou jumentos como os reis farão:
“Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.” (I Sam. 8:16)
Como o apóstolo Paulo, Samuel não cobra por seu ministério. Certamente ele vive de sua porção dos sacrifícios, mas não cobra um alto preço por isto. Seus encargos, com toda a certeza, não são tão dispendiosos quanto serão os encargos do rei.
Se Samuel “não é culpado” das acusações feitas pelos israelitas contra ele, então, por inferência, Israel deve ser culpado por fazer acusações infundadas. Os cinco primeiros versos do capítulo 12 demonstram que Samuel é qualificado para julgar Israel e, desta forma, qualificado para julgar o caso de Deus contra eles nos versos seguintes. Samuel é inocente, conseqüentemente, Israel procura injustamente sua destituição. Samuel é inocente, por isso, pode chamar esta nação rebelde a prestar contas de seu pecado contra ele e contra Deus.
“Então, disse Samuel ao povo: Testemunha é o SENHOR, que escolheu a Moisés e a Arão e tirou vossos pais da terra do Egito. Agora, pois, ponde-vos aqui, e pleitearei convosco perante o SENHOR, relativamente a todos os seus atos de justiça que fez a vós outros e a vossos pais. Havendo entrado Jacó no Egito, clamaram vossos pais ao SENHOR, e o SENHOR enviou a Moisés e a Arão, que os tiraram do Egito e os fizeram habitar neste lugar. Porém esqueceram-se do SENHOR, seu Deus; então, os entregou nas mãos de Sísera, comandante do exército de Hazor, e nas mãos dos filisteus, e nas mãos do rei de Moabe, que pelejaram contra eles. E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.”
Aqui vemos outro exemplo de “pensamento histórico” na Bíblia. Samuel leva os israelitas de volta ao início do “reino”, o qual foi estabelecido por Deus no êxodo, e traça brevemente sua história até o presente. Seu objetivo é demonstrar que sua exigência em ter um rei como as demais nações nada mais é senão outro caso de rebelião contra Deus - como a rebelião característica de seus antepassados.
A história de Israel como reino começa no êxodo. A primeira coisa enfatizada por Samuel aos israelitas de seus dias é que, em última análise, não foram Moisés e Arão quem os libertou do cativeiro egípcio - foi Deus (verso 7). Foi Deus quem “designou Moisés”, e foi Deus quem “tirou seus pais da terra do Egito”. Desde o princípio, nunca foram os homens - nem mesmo os grandes homens como Moisés - que libertaram Israel, foi Deus. Deus levanta líderes e Deus liberta Seu povo. Deus usa os homens, é verdade, mas os homens não salvam o povo de Deus.
Com base nesta verdade central – de que foi Deus o libertador de Israel e não os homens - Samuel convoca os israelitas a se colocarem diante do Senhor (verso 7). Os israelitas estão sob julgamento e Samuel é o promotor. A História é a primeira testemunha contra Israel. A história de Israel não é sobre sua retidão e as bênçãos recebidas; a história de Israel é sobre os feitos justos de Deus, realizados em seu benefício, sempre num contexto de pecado de Israel. Foi a justiça de Deus que libertou os antepassados daqueles israelitas que estão diante de Samuel em Gilgal.
Brevemente, Samuel delineia a história de Israel desde o dia do nascimento da nação no êxodo até o presente momento, quando Israel tem o rei exigido. Citando ilustrações dos principais períodos (o êxodo e a peregrinação de Israel no deserto, a posse da terra sob Josué e o período dos juízes, terminando com Samuel), Samuel procura demonstrar um padrão constante no comportamento de Israel, e no trato de Deus com Seu povo. Embora Deus dê graciosamente a Seu povo a libertação de seus inimigos, Israel se esquece de Deus e se volta para outros deuses. Deus entrega a nação a seus vizinhos, que são inimigos de Israel e que oprimem e afligem o povo de Deus. Os israelitas, então, reconhecem seu pecado e clamam a Ele por libertação, o que Ele graciosamente concede. Eles reconhecem sua idolatria e a abandonam, prometendo servir a Deus se Ele os livrar novamente.
“Vendo vós que Naás, rei dos filhos de Amom, vinha contra vós outros, me dissestes: Não! Mas reinará sobre nós um rei; ao passo que o SENHOR, vosso Deus, era o vosso rei. Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais. Ponde-vos também, agora, aqui e vede esta grande coisa que o SENHOR fará diante dos vossos olhos. Não é, agora, o tempo da sega do trigo? Clamarei, pois, ao SENHOR, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade, que tendes praticado perante o SENHOR, pedindo para vós outros um rei. Então, invocou Samuel ao SENHOR, e o SENHOR deu trovões e chuva naquele dia...”
No verso 12, Samuel relaciona a história que acaba de contar com o tempo presente. Como os antigos israelitas, o povo de Deus uma vez mais está sendo oprimido por uma nação vizinha. Desta vez Naás lidera os amonitas. A reação dos israelitas da época de Samuel à ameaça dos amonitas não é como a reação descrita por ele nos versos anteriores. Quando oprimidos por seus inimigos, os israelitas dos tempos passados viam sua situação à luz da Aliança Mosaica, especialmente à luz de Deuteronômio 28-32. Eles compreendiam que a opressão sofrida às mãos de seus inimigos era devido ao seu pecado. Os antigos israelitas se arrependiam de seus pecados e clamavam a Deus por libertação. Não é assim com estes que estão diante de Samuel em Gilgal. Este pessoal não reconhece que a razão de suas tribulações é o pecado. Eles atribuem seus problemas à “má liderança”, especificamente à “má liderança” de Samuel e seus filhos. Sua solução não é se arrepender de seus pecados e clamar a Deus por libertação; sua solução é se livrar de Samuel e conseguir um rei exatamente como o de outras nações.
Quando Samuel fala sobre Naás e os amonitas no verso 12, ele mostra a verdadeira razão dos israelitas quererem um rei. Eles não reconhecem seu pecado, nem confiam em Deus para libertá-los. Não é que Samuel realmente esteja tão velho, velho demais para continuar julgando. Não é que realmente seus filhos sejam corruptos. É que os israelitas estão com medo da ameaça feita pelo inimigo e não reconhecem que a raiz do problema seja seu próprio pecado. Eles jogam a culpa na má liderança, e por isso se sentem justificados em ter um rei que querem de qualquer jeito.
Anos atrás, dei aulas numa prisão de segurança média que possibilitava aos internos obter seu diploma do segundo grau. Um dia, surgiu o assunto da teoria da evolução, e mostrei que creio na criação, não na evolução. Jamais me esquecerei do que disse um dos internos: “Vou lhe dizer por que acredito na evolução”, disse ele com ousadia, “é porque não acredito em Deus”. Receio que os israelitas dos dias de Samuel fossem como este sujeito. Repare no “não” do começo de sua resposta a Samuel no verso 12. Eles não querem a liberdade do jeito de Deus; querem do seu jeito. Eles realmente querem a liberdade, mas de um jeito que exclua a Deus. Não é de admirar que Deus diga a Samuel que o povo não rejeitou a ele e sim a Deus.
A despeito do pecado de Israel em pedir um rei, Deus é gracioso para com Seu povo, mostrando-lhes “uma saída” nos versos 13-15 (ver I Co. 10:13). A primeira coisa que Samuel diz ao povo sobre este rei é que ele é seu rei, não Seu rei. Este rei é aquele que eles escolheram, que eles pediram (verso 13). Deus lhes dá este rei, mas ele é seu rei. Os versos 14 e 15 devem dar muito que pensar aos israelitas. Será que eles consideram que este rei seja seu libertador? Será que eles põem toda a sua confiança neste homem, ou em qualquer outro (simples) homem? Se for assim, as palavras de Samuel devem ser um choque.
Parece que os israelitas dos dias de Samuel têm a mesma visão de liderança que é tão popular hoje em dia, ou seja:
“Tal líder, tal nação”.
Há certa verdade nisto. Reis corruptos geralmente tendem a levar a nação ao pecado. Líderes justos tendem a levar a nação a praticar a justiça. Mas aqui Samuel está dizendo uma coisa bem diferente. Será que os israelitas estão vendo seu rei como um “deus”, alguém que eles pensam que será seu salvador? Será que eles pensam ter o homem certo para lhes garantir a vitória militar sobre seus inimigos, trazendo paz e prosperidade? Samuel parece dizer que a obediência da nação aos mandamentos do Senhor é que é a chave para a paz e prosperidade nacional - não as proezas de seu líder. Se o povo “temer ao SENHOR, e o servir, e lhe atender à voz, e não lhe for rebelde ao mandado, e seguir o SENHOR, seu Deus, tanto eles (literalmente “vocês”) como o seu rei que governa sobre eles, bem será. (verso 14)
O rei não é a chave para o sucesso de Israel. A chave é Israel confiar em Deus e obedecê-Lo. Uma nação ímpia terá um rei ímpio. Uma nação justa terá um rei justo. Absolutamente nada mudou com a designação de um rei sobre Israel. O princípio dominante ainda é a Aliança Mosaica, resumida em Deuteronômio 28-32. Israel será abençoado enquanto confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos e, da mesma forma, será amaldiçoado por se afastar de Deus e de Suas leis. Se a nação confiar em Deus e obedecê-Lo, Israel terá um rei justo e provará as bênçãos prometidas. Se a nação se afastar de Deus, seu rei certamente não a salvará do julgamento divino. As condições de Deus para Suas bênçãos são as mesmas que eles sempre tiveram e ter um rei não mudará nada. Deus não abdicou de ser o rei de Israel. Sua aliança ainda é a constituição do país.
No auge do sucesso de Israel sob a liderança de seu novo rei, Deus põe os pingos nos is. A mesma aliança, a Aliança Mosaica, ainda rege os tratos de Deus com Seu povo. Samuel informa aos israelitas a gravidade de seu pecado em pedir um rei como fizeram. Ainda assim, suas palavras não causam o efeito desejado; por isso, ele ressalta a seriedade de seu pecado à vista de Deus invocando a disciplina divina. De certo modo, mais ou menos como Elias, Samuel anuncia o julgamento divino como indicação da seriedade do pecado de Israel em pedir um rei. Ele deixa claro que o juízo virá em relação à colheita do trigo, que é iminente. Embora não seja época de tempestade ou chuva de granizo, em resposta à oração de Samuel, um grande temporal desaba sobre o país. Esta questão do rei é muito séria para Deus, e agora também para Seu povo.
O temporal faz o povo se lembrar de que Samuel é profeta de Deus, e que rejeitá-lo não é uma boa idéia. O temporal dá grande ênfase às palavras de Samuel, as quais mostram que a exigência por um rei é pecado. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, isto faça Israel se lembrar de uma verdade muito importante: tanto a calamidade quanto a bênção vêm de Deus:
“Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro. Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas.” (Isaías 45:5-7, ênfase minha)
Os israelitas consideram seu rei como seu libertador. Na cabeça deles, este rei é a chave para o sucesso. Eles acreditam que ele os livrará de seus opressores e que levará a nação à prosperidade. Basicamente, Deus faz Israel se lembrar de que Ele é tanto a fonte de seu sofrimento, quanto de suas bênçãos. A calamidade vem sobre a nação por causa do seu pecado. As bênçãos não vêm sobre a nação devido à sua justiça, mas por causa da graça e da misericórdia de Deus. Sua prosperidade não é porque Israel faz o bem, mas porque quando está sofrendo, ele clama a Deus por libertação. A devoção de Israel a Deus e seu serviço a Ele são frutos da graça de Deus, não a fonte de Suas bênçãos. Em nosso texto esta verdade é claramente transmitida.
“... pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao SENHOR, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o SENHOR, mas servi ao SENHOR de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são. Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo. Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o SENHOR, deixando de orar por vós; antes, vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.”
Os israelitas investiram demais no novo rei e as palavras e atitudes de Samuel colocam as coisas no lugar certo. Em conseqüência de sua pregação - e, especialmente, do temporal - o povo “...temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel” (verso 18b). É assim que deve ser. Embora não seja dito expressamente, creio que podemos deduzir que a opinião do povo sobre o rei diminui, enquanto seu conceito sobre Samuel e Deus aumenta. Agora, o povo está começando a compreender a enormidade de seu pecado, especialmente o pecado de exigir um rei. Parece que eles temem mais disciplina. Eles rogam a Samuel que ore por eles. As palavras de Samuel em resposta ao seu pedido são realmente “maravilhosas palavras de vida”. Vamos destacar alguns elementos neste parágrafo.
Primeiro, repare que o povo não olha para o rei para ser liberto, mas para Samuel. Agora os israelitas reconhecem que seu principal problema não é a “liderança” política, mas o pecado. Eles entendem perfeitamente que merecem a ira de Deus. Eles sabem que a libertação de que mais precisam não é a de seus vizinhos, mas da justa ira do Deus que eles rejeitaram. Eles sabem que não são dignos da libertação e sentem a necessidade de um intercessor. Por isso, suplicam a Samuel que ore por eles ao Senhor (verso 19).
Segundo, observe que Samuel estimula o povo de Israel a confiar em Deus em vez de confiar nos homens. Suas palavras são cheias de misericórdia, graça e esperança. Sua mensagem não é a das ”uvas azedas” por ter sido rejeitado pelo povo. Ele lhes diz para não temer. O temor que ele procura afastar não é aquele temor saudável de Deus, mas o temor doentio da desesperança, um temor que poderia levar ao desespero. Os israelitas parecem estar a ponto de concluir que seu fracasso tenha sido tão grande que não haja nenhuma esperança de restauração. Sem diminuir a gravidade do pecado, Samuel lhes dá boas razões para ter fé, esperança e paciência. Eles não devem “se desviar de seguir o SENHOR” (verso 20), mas, com toda certeza, deixar de seguir as “coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco podem livrar” (verso 21). A libertação de Israel de seus pecados, e sua esperança para o futuro, requer que o povo pare de adorar e servir seus ídolos para adorar e servir somente a Deus. Especificamente, a ”coisa vã que não beneficia ou liberta Israel” é um rei em quem confiem e sirvam em lugar de Deus. Ter um rei, em si mesmo, não é errado. O que é errado é confiar em qualquer homem para salvação e libertação da culpa pelo pecado. Somente Deus pode verdadeiramente salvar e libertar.
Terceiro, a salvação de Israel não se fundamenta na sua fidelidade ou nas suas boas obras, mas na graça de Deus. Em lugar algum Samuel incentiva Israel a “se esforçar mais” ou a fazer o bem para receber as bênçãos de Deus. Samuel lhes diz para confiar em Deus, cuja fidelidade é a base para sua esperança e salvação. A obediência de Israel e seu serviço a Deus são considerados como conseqüências da graça de Deus, não a sua causa.
“Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez.” (I Sam; 12:24)
Quando Samuel recapitula a história da nação desde o êxodo até seus dias, ele enfatiza de forma consistente os pecados dos israelitas e a graça e misericórdia de Deus. Jamais Samuel fala da salvação de Deus como resposta às boas obras de Seu povo. Deus vem em socorro de Seu povo pecador porque eles “clamam” (12:8, 10) a Ele por libertação, não porque sejam dignos disso. Deus os salva por Sua graça.
Este é um ponto importante que deve ser muito bem esclarecido e enfatizado à luz da Aliança Mosaica. Samuel deixa claro neste capítulo que ter um rei não muda as bases do trato de Deus com Seu povo. A Aliança Mosaica fala das bênçãos e maldições condicionais de Deus (ver Levítico 26; Deuteronômio 28-32). Nesta aliança, muito menor ênfase é dada às promessas de bênçãos por obediência às leis de Deus do que às promessas de maldição por desobediência. Há uma boa razão para isto, como Paulo mostra em Romanos 3:
“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.”
A Lei de Moisés (portanto, a Aliança Mosaica) jamais foi dada aos homens como meio de salvação. Ela, sem dúvida, foi um recurso de Deus para mostrar a pecaminosidade do homem. A Lei condena todos os homens como pecadores, dignos da ira eterna de Deus. Cumprir a Lei não salva o homem, pois nenhum homem jamais conseguiu cumprir toda a Lei. Quando Samuel fala da Aliança Mosaica aos israelitas, ele o faz para mostrar que o julgamento de Deus (entregando-os à opressão de seus vizinhos) é devido ao seu fracasso em cumprir Sua lei. Mas, quando fala da esperança de Israel, Samuel não incentiva o povo a tentar ganhar as bênçãos de Deus cumprindo Sua Lei. Antes, eles os incentiva a confiar na graça e misericórdia de Deus, que os escolheu como Seu povo e que lhes trará salvação para a Sua glória.
Eis o fundamento para a esperança, confiança e serviço de Deus. A Sua fidelidade:
“Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo.” (12:22)
Antes mesmo que o Senhor desse a Lei aos israelitas, eles já tinham se afastado Dele e de Moisés, como vemos em Êxodo 32. Como Samuel, Moisés intercedeu por eles. Ele não apelou para Deus com base em que povo se esforçasse mais, que guardasse Sua Lei. Ele apelou para Deus com base no Seu caráter e na Sua natureza. Deus escolhera esta nação, e propusera e prometera levá-los à Terra Prometida. Sua reputação e Sua glória estavam em jogo no destino de Israel. Por isso, podemos confiar que Deus termina aquilo que começa - não por causa daquilo que somos - mas por causa de quem Ele é. A Lei pode apenas mostrar que os homens são pecadores, dignos do juízo divino. É a graça que salva e santifica. É a graça que capacita e dá fé e obediência. E é a graça, a graça de Deus, que Samuel proclama a este povo cheio de culpa, garantindo-lhes que a salvação de Deus é certa por causa de quem Ele é.
Esta salvação é pela graça - para aqueles que pela Sua graça “temem o Senhor e O servem de todo coração”, com base em “tudo aquilo que Deus fez por eles” (verso 24). Mas, para aqueles que rejeitam esta graça, o juízo divino é tão certo quanto a salvação:
“Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (verso 24)
Se o povo rejeitar a graça de Deus e seguir seus próprios caminhos, eles serão levados para o cativeiro prometido na Aliança Mosaica (ver Levítico 26:33-39; Deuteronômio 28:63-68).
Se Deus é gracioso e fiel em Sua aliança com Israel, Samuel também é. O povo agora lhe pede para interceder por eles junto a Deus, apesar de terem rejeitado sua liderança sobre eles. Como Deus, Samuel age graciosamente e de acordo com seu caráter. Ele garante ao povo que não pecará contra Deus deixando de orar por eles e de ensiná-los “o caminho bom e direito” (verso 23). Como no Novo Testamento, “orar e ministrar a Palavra” (ver Atos 6:4) são prioridades para os líderes espirituais. Samuel não tem nenhuma intenção de pecar contra Deus abandonando seu ministério.
Nosso texto tem muita coisa a dizer aos homens de nossa época, exatamente como tem dito aos homens de todas as épocas. Uma das coisas que ele nos ensina é a termos cuidado para não secularizar o pecado. Os israelitas dos dias de Samuel não conseguem entender que seus problemas (a opressão que sofrem das nações vizinhas) são de origem divina, e que a disciplina divina é conseqüência (e correção) de seus pecados. Eles vêem sua sujeição aos governos estrangeiros como conseqüência de uma liderança inadequada. Deus mostra que o verdadeiro problema é o pecado. Receio que façamos a mesma coisa. Definimos um problema resultante de pecado em termos seculares e depois buscamos uma solução secular.
A igreja de Jesus Cristo está quase acostumada a definir o pecado em termos seculares e a procurar a solução por meios humanos. Quando a igreja trata de suas finanças, busca os mesmos métodos e os mesmos homens que levantam grandes somas de dinheiro para causas seculares. Quando a igreja trata de sua organização e estrutura, busca os mesmos modelos seculares empregados por grandes corporações. Quando a igreja se propõe a evangelizar, busca a mesma estratégia de marketing usada pela Madison Avenue para vender sabonete e creme de barbear. E quando a igreja procura solucionar problemas particulares e pessoais busca terminologia e metodologia psicológica secular. Quando definimos o “pecado” em termos seculares e buscamos sua solução por meios seculares nos metemos numa grande encrenca.
Que grande comentário temos neste texto sobre o caráter de Deus e de Seu servo, Samuel. Não é de admirar que a rejeição a Samuel seja rejeição a Deus. Nem é de se estranhar que a fidelidade de Deus ao povo de Israel tenha seu paralelo na fidelidade de Samuel em ministrar a este povo. O caráter de Samuel é como o caráter de Deus e sua origem está em Deus. Que Deus gracioso nós temos, que nos disciplina quando pecamos, a fim de que nos voltemos novamente para Ele em fé, obediência, amor e gratidão.
Nosso texto fala sobre liderança e sobre como algumas pessoas idolatram seus líderes. A liderança é de vital importância, seja na vida de uma nação, seja na família ou na igreja. Líderes piedosos são exemplos (ver I Timóteo 3, Tito 1, Efésios 5:22-23). No entanto, os líderes sempre correm certo perigo. Deus é o nosso supremo e derradeiro líder; Ele é tudo. Satanás jamais ficará satisfeito com seu papel. Ele quer mais. Ele quer ser “como Deus”, para estar na posição que somente Deus é digno de estar. Alguns cristãos elevam seus líderes acima dos padrões adequados. Erroneamente podemos “idolatrar” nossos líderes e colocar neles a nossa fé em vez de colocá-la em Deus. Foi isto que os israelitas fizeram com Saul, e é por isso que o pecado de Israel é tratado em termos tão dramáticos. Este é um perigo que está sempre diante de nós. Que jamais demos aos homens aquilo que pertence somente a Deus. Que jamais pensemos que “um homem” possa nos salvar e que o nosso futuro ou o futuro de nossa igreja ou de nosso país dependam de um homem. É deveras importante que nos lembremos disto nas eleições presidenciais. Os homens jamais devem ser idolatrados. Deus é a fonte suprema de nossas provações, tribulações e correção, e Deus é a fonte suprema de nossa salvação e bênção. Na melhor das hipóteses, os homens são apenas instrumentos de Deus.
Nosso texto fica como uma palavra de alerta para aqueles que parecem ser bem sucedidos. Certamente o texto coloca o aparente “sucesso” de Saul dentro da perspectiva correta. O povo fica radiante após a vitória sobre os amonitas, mas tende a considerar seu “sucesso” como conseqüência da liderança de Saul. Na verdade, este livramento, como todos os demais antes dele, é reflexo da graça de Deus, não evidência de uma liderança magnífica. Aqueles que parecem ser bem sucedidos devem tomar cuidado com sua definição de sucesso, assegurando-se de atribuir todo sucesso humano à graça divina, não à habilidade e sabedoria humana.
Nosso texto mostra uma palavra de esperança e encorajamento para aqueles que são arruinados por seus pecados e deixam de viver de acordo com os padrões de Deus. Muitos pensam que fracassaram de forma irreversível, que não haja nenhuma esperança de futuro para eles, e por isso ficam tentados a abandonar sua vida cristã. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23). Pelos padrões de Deus, nenhum homem é bem sucedido, todos falham e merecem a ira eterna de Deus. Nossa esperança de salvação não se baseia em nosso desempenho, mas na graça de Deus. Enfim, não somos nós que escolhemos a Ele, é Ele quem nos escolhe, a fidelidade não é nossa, é Dele. Deus é fiel. Deus é misericordioso. Deus é gracioso. Deus é a nossa salvação. Jesus Cristo não veio ministrar para os justos, mas para salvar pecadores. Que todos aqueles que conhecem suas falhas pensem nesta maravilha.
Este texto fala sobre salvação. Os israelitas dos dias de Samuel confiam em Saul (seu rei) para sua salvação, sua libertação. Eles consideram a salvação em termos militares e monetários, não em termos espirituais. Nosso texto nos diz que nenhum “rei” humano pode salvar ou libertar os homens de seus pecados. O que o “rei” de Israel não pode fazer o “Rei” de Deus já fez - a salvação para os homens pecaminosos que clamam por Sua graça. Todos os “reis” de Israel falharam, mesmos os melhores - Davi, Salomão e outros. Os israelitas são tentados a tomar um homem, nomeá-lo como rei e confiar nele como seu deus. Esse rei não pode salvar. Mas Deus enviou o Seu próprio Filho, Jesus Cristo, para ser o “Rei dos Judeus”, para todos os que crêem Nele. Deus (a segunda pessoa da Trindade) Se fez homem, vindo a primeira vez para viver uma vida perfeita, morrer pelos pecados dos homens e ser ressuscitado dos mortos e ascender aos céus. Este, Jesus Cristo, é o Rei de Deus. Ele veio para salvar os homens de seus pecados e em breve voltará para estabelecer Seu reino. Ele é a nossa esperança! Ele é a nossa salvação! Aquilo que um rei dos homens jamais poderia fazer, o Rei de Deus já realizou.
Você não tem que ser bom o bastante para Deus salvá-lo. Você já é ruim o suficiente para estar qualificado para a Sua graça. Se você ainda não reconheceu seu pecado como seu maior problema, como algo que merece a ira eterna de Deus, eu recomendo que o faça agora. E, quando reconhecer seu pecado, confie Naquele que veio para suportar a penalidade de seu pecado, Jesus Cristo. Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Ele ressuscitou dos mortos e está assentado à destra de Deus nos céus. Em breve Ele virá para abençoar Seus santos e derrotar Seus inimigos. Olhe para este Rei e só para Ele para a salvação de seus pecados, e para a esperança de viver para sempre em Seu reino.
Um grande amigo meu e sua esposa decidiram que era hora de vender seu carro antigo e comprar uma minivan nova. Embora o carro antigo lhes servisse muito bem, precisava cada vez mais de reparos. Craig e Grace conversaram muito sobre as vantagens e desvantagens de comprar um novo carro em vez de um usado, decidindo, finalmente, que um carro novo seria melhor. Mesmo concordando que isto aumentaria um pouco seu orçamento, eles cuidariam bem do carro e ele duraria muito tempo. Com menos de 10.000 milhas, a correia de transmissão da minivan quebrou - aquela por onde passa praticamente tudo, da direção hidráulica ao alternador e à bomba d’água. O carro superaqueceu e, mesmo depois que a correia foi trocada, Craig e Grace ainda passaram maus bocados. Depois, quando estavam caminho de casa após um picnic da igreja, desabou um súbito temporal, atingindo o carro com pedras de granizo. Mais incrível ainda, a caminho do centro da cidade, alguém bateu na traseira do carro. Depois destes desastres, Craig confessou, meio irônico: “Nem mesmo lavamos o carro.”
Algumas coisas começam muito bem - e então, de repente, terminam em desastre. Com certeza, foi o que aconteceu a meu amigo, Craig. Durante algum tempo aquela minivan brilhante, reluzente e mecanicamente perfeita foi muito legal, até que graves problemas começaram a surgir. Quando vejo nosso texto, o reinado de Saul me faz lembrar daquela experiência com o carro novo. Seu reinado começa muito bem, vitorioso. Após sua escolha e indicação, ele lidera os israelitas numa impressionante vitória sobre os amonitas (I Sam. 11). Então, no auge da euforia, o povo é trazido de volta à realidade pela dolorosa reprimenda de Samuel no capítulo 12, ratificada pelo próprio Deus, que provoca uma tempestade devastadora no exato momento em que o trigo está pronto para a colheita. Agora, ainda no capítulo 13 de I Samuel, chegamos a um incidente que custa à descendência de Saul a esperança de governar para sempre em lugar de seu pai.
Se formos realmente honestos conosco e com nosso texto, precisamos admitir que a atitude de Saul não parece tão ruim assim. Aparentemente, parece que Samuel está atrasado e que a sobrevivência de Saul e da nação é incerta, a menos que alguém faça alguma coisa bem depressa, e que Saul, com certeza, parece ser o homem para tal. O que há de tão errado com a atitude de Saul, dada a demora de Samuel e a ameaça dos filisteus? Deus, no entanto, leva as ações e atitudes de Saul muito a sério, e nós também devemos levar. Ao estudarmos este texto, procuraremos entender porque isto é tão ruim aos olhos de Deus e averiguar o que aconteceu com Saul. Vamos ainda procurar aprender e aplicar os princípios e as lições que nosso texto traz aos cristãos, pois o pecado de Saul é importante o suficiente para lhe custar o reino, e a seus descendentes, para sempre.
Os estudiosos da Bíblia apontam vários problemas em relação aos números de nosso texto. Os dois primeiros são encontrados no verso um que, literalmente, diz:
Saul {é} filho de um ano em seu reinado, sim, dois anos ele reinou sobre Israel (Tradução Literal de Young).
Retirando as palavras em itálico (adicionais) da versão NASB, o verso diz:
Saul tinha ... anos quando começou a reinar, e reinou ... dois anos sobre Israel.
Obviamente, temos aqui um problema. Creio que a melhor solução é tirar o máximo sentido das palavras que temos, em vez tentar decidir quais delas aplicar para dar sentido ao texto. A nova versão King James parece fazer isto da melhor forma possível:
Saul reinou um ano, e quando reinara dois anos sobre Israel, Saul escolheu para si 3.000 homens de Israel... (13:1-2a).
Alguns alegam haver um problema numérico no verso 5, onde lemos que 30.000 carros filisteus são despachados para Israel para pelejar contra os israelitas, junto com 6.000 cavaleiros e um exército de soldados a pé como as areias à beira-mar. Eles acham que 30.000 seja um número grande demais, indicando que o termo para 30.000 é muito parecido com o termo para 3.000, sugerindo que 3.000 talvez seja um número mais razoável. Eles também apontam que, tendo em vista haver muito mais carros do que “condutores”, o número deve estar errado. Gosto da maneira como a versão NASB trabalha com isto. Os 6.000 não são “condutores”, mas “cavaleiros”. Embora 30.000 seja um número bastante grande, não é um número impossível, e devemos aceitar o texto como ele se apresenta. O autor está tentando impressionar o leitor com a impossibilidade da situação do ponto de vista dos israelitas. Os números fornecidos são coerentes com o sentido de desesperança que o autor descreve.
Devo confessar que enquanto leio I Samuel fica difícil entender exatamente o que está acontecendo. Os filisteus estão por toda parte em Israel. Sabemos por I Samuel 4:9 que os israelitas são, em certo sentido, escravos dos filisteus. No capítulo 4, os filisteus prevalecem sobre eles na guerra, mesmo os israelitas levando consigo a Arca de Deus. No capítulo 10, quando Saul é informado por Samuel que ele é o escolhido de Deus como rei de Israel, ele profetiza numa cidade israelita - que é também um posto avançado dos filisteus (10:5). Apesar disto, o capítulo 11 fala sobre o ataque dos amonitas e a grande vitória israelita. Como os israelitas podem se reunir para a guerra quando seu território está ocupado pelas tropas filistéias? E como Saul mantém um exército permanente de 3.000 homens sem nenhum protesto dos filisteus?
Creio que estou começando a entender um pouco melhor a situação. Em primeiro lugar, devemos nos lembrar que a nação de Israel é cercada de terra por todos os lados, e que esta terra está dividida entre diversos reinos:
“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)
Os filisteus habitam na Filistia, que fica na costa do Mediterrâneo, ao sul e a oeste de Israel. A batalha que eles travam no capítulo 4 é na fronteira ocidental de Israel, como seria de se esperar. A arca é levada para a Filistia e depois devolvida para a cidade de Bete-Semes, que fica junto à fronteira israelita-filistéia. No entanto, os amonitas estão localizados do outro lado do rio Jordão, a leste de Israel. O ataque à cidade de Jabes-Gileade é a noroeste de Israel, a aproximadamente 20 milhas da fronteira de Amom, e longe da Filistia, que fica do lado oposto de Israel.
Não creio que os filisteus pretendam ou desejem destruir totalmente os israelitas, mas apenas mantê-los sob jugo. Afinal, os israelitas estão prestes a comerciar sua tecnologia, especialmente nas coisas feitas de ferro (ver 13:19-23). Israel também pode servir como escudo entre os filisteus e outras nações mais agressivas. Quando os israelitas se juntam para lutar contra os amonitas, parece que isto é de grande interesse para os filisteus. Se os israelitas forem enfraquecidos pela guerra não serão ameaça para eles. E, se eles vencerem os amonitas, os filisteus terão um domínio ainda maior, pois os israelitas ainda estão sob seu domínio. O fato de Saul manter uma pequena força de homens como exército permanente também não é nenhuma ameaça aos filisteus. O que um mísero exército de 3.000 homens pode fazer a uma nação cujas forças podem ser contadas como as areias à beira-mar? Sendo assim, Israel pode iniciar uma guerra contra os amonitas enquanto continua sob o domínio dos filisteus.
“Um ano reinara Saul em Israel. No segundo ano de seu reinado sobre o povo, escolheu para si três mil homens de Israel; estavam com Saul dois mil em Micmás e na região montanhosa de Betel, e mil estavam com Jônatas em Gibeá de Benjamim; e despediu o resto do povo, cada um para sua casa. Jônatas derrotou a guarnição dos filisteus que estava em Gibeá, o que os filisteus ouviram; pelo que Saul fez tocar a trombeta por toda a terra, dizendo: Ouçam isso os hebreus. Todo o Israel ouviu dizer: Saul derrotou a guarnição dos filisteus, e também Israel se fez odioso aos filisteus. Então, o povo foi convocado para junto de Saul, em Gilgal. Reuniram-se os filisteus para pelejar contra Israel: trinta mil carros, e seis mil cavaleiros, e povo em multidão como a areia que está à beira-mar; e subiram e se acamparam em Micmás, ao oriente de Bete-Áven. Vendo, pois, os homens de Israel que estavam em apuros (porque o povo estava apertado), esconderam-se pelas cavernas, e pelos buracos, e pelos penhascos, e pelos túmulos, e pelas cisternas. Também alguns dos hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e o povo que permaneceu com Saul, estando este ainda em Gilgal, se encheu de temor.”
O reinado de Saul em Israel começa com grande alarde. Sob sua liderança, Deus livra muitos israelitas da rendição humilhante a Naás, líder do exército amonita, que ameaçava os habitantes da cidade de Jabes-Gileade. Para tanto, um exército voluntário de 330.000 israelitas é convocado (11:8). Após a vitória, os voluntários retornam às suas casas e Saul fica com um pequeno exército permanente de 3.000 homens.
Por que Saul mantém um exército tão pequeno? O texto não nos diz, mas parece que podemos deduzir que um exército de 3.000 homens seria tolerado pelos filisteus, enquanto um exército maior, não. Saul mantém estes homens porque é o tanto que ele pode manter sem precipitar a ira e a reação dos filisteus. Saul também não parece disposto a “tumultuar as águas” mantendo muitos soldados na ativa ou tomando qualquer atitude a respeito da guarnição(ões?) dos filisteus acampada em Israel.
Jônatas muda tudo, sem o consentimento ou permissão de seu pai. Saul dividiu suas tropas. Ele mantém 2.000 homens com ele em Micmás e na região montanhosa da Judéia; os 1.000 restantes são colocados sob o comando de Jônatas em Gibeá. Desconhecemos as razões para Jônatas atacar a guarnição dos filisteus; só é dito que ele o faz. Pelo que já conhecemos de Jônatas, parece que suas ações são movidas pela fé. Afinal, Deus deu esta terra aos israelitas e os instruiu a expulsar os povos que habitam nela. A sujeição às nações estrangeiras é descrita em Levítico 26 e Deuteronômio 28 a 32, como castigo divino para a incredulidade e desobediência de Israel. O rei não deve facilitar a sujeição dos israelitas às nações circunvizinhas, mas deve ser usado por Deus para livrá-los de suas algemas (ver 14:47-48). Isto não ocorrerá a menos que os israelitas tomem uma atitude para remover aqueles que ocupam sua terra. Saul parece relutante e indisposto a “mexer no vespeiro”.
Jônatas não parece disposto a aceitar as coisas como estão, por isso lidera seus homens num ataque à guarnição dos filisteus em Geba, situada aproximadamente 6 milhas (?) ao norte de Jerusalém, a meio caminho entre Gibeá ao sul e Micmás ao norte. Esta cidade pode muito bem ser a mesma diante da qual Saul profetiza junto com outros profetas (ver 10:5, 10:13).
A reação dos filisteus a este ataque é previsível, fazendo com que nos perguntemos se Jônatas queria e esperava por isso. Deixe-me tentar descrever a reação dos filisteus em termos atuais. Há alguns anos atrás os Estados Unidos (junto com alguns aliados) atacou e derrotou as forças do Iraque que ocupavam o Kwait. Suponhamos que após esta vitória os Estados Unidos colocassem várias companhias de nossas tropas dentro da fronteira do Iraque, para garantir que não houvesse mais ataques ofensivos. Suponhamos então que Saddam Hussein lançasse um ataque com armas químicas a uma destas companhias americanas dentro do Iraque. Chegam à América notícias sobre centenas, talvez milhares, de mortos, e de muitos outros gravemente feridos. Como americanos, nos sentiríamos justificados em empregar uma ação militar maciça contra o Iraque.
Esta reação é muita parecida com a reação dos filisteus ao ataque de Jônatas contra a guarnição em Geba. Os filisteus derrotaram os israelitas tempos atrás e lhes deram considerável liberdade (até mesmo para iniciar uma guerra contra os amonitas). No entanto, eles ainda têm tropas em Israel, para prevenir qualquer tentativa de libertação da opressão de seu cativeiro. Quando Jônatas ataca esta guarnição, tal ação é vista como um ataque contra a Filistia, e como um terrível insulto. Conforme é dito em nosso texto: “e também Israel se fez odioso aos filisteus” (verso 4). Os filisteus estão vindo e estão doidos! Eles vão fazer Israel pagar por isso - eles pretendem fazer um estrago enorme em Israel. Eles vêm com 30.000 carros, 6.000 cavaleiros, e tantos soldados a pé quanto as areias à beira-mar. Eles se levantam contra Israel, acampando em Micmás, onde Saul recentemente acampara com seus soldados.
Parece que a reação de Saul ao ataque de Jônatas e à chegada dos filisteus é induzida pela necessidade. Em resumo, Saul parece não ter outra opção, a não ser tentar se defender do ataque dos filisteus. Tentando dar a melhor aparência possível à situação, ele faz soar a trombeta que reúne toda a nação uma vez mais para a batalha. A “chamada” de Saul poderia ser: “Saul ataca a guarnição dos filisteus”. De uma perspectiva administrativa, é claro, Jônatas está sob a autoridade de Saul; no entanto, parece que Saul não quer admitir sua passividade, enquanto Jônatas assume o controle da situação.
No capítulo 13, a situação parece ser totalmente diferente daquela descrita no capítulo 11. No capítulo 11, Saul está capacitado pelo Espírito Santo quando fica furioso e conclama energicamente todo o Israel para lutar contra os amonitas. Aqui não é dito que ele esteja capacitado pelo Espírito e, com certeza, não é nenhum pouco enérgico quando conclama a nação para a guerra. Os israelitas são convocados, mas parece que são bem menos que os 330.000 reunidos anteriormente. E aqueles que se apresentam estão hesitantes. Quando o tamanho do exército filisteu é conhecido, os israelitas ficam apavorados. O povo começa a desertar, escondendo-se em cavernas e moitas, penhascos, buracos e cisternas. Tal situação já ocorrera antes (ver Juízes 6:1-6), o que não torna esta situação mais tolerável.
Quando Saul procura juntar seu exército, ele convoca o povo para se reunir em Gilgal, segundo as instruções que Samuel lhe dera quando disse que ele seria rei de Israel.
“Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer.” (I Sam. 10:8)
As instruções de Samuel são muito específicas: Saul deve ir a Gilgal e esperar que ele chegue. Até lá serão 7 dias. Samuel oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas. Aí, então, dirá a Saul o que ele deve fazer.
Durante este período de espera, Saul, em agonia, observa seu exército se encolhendo, quando os soldados vão se evaporando de medo. Todos os dias, à medida que a situação fica cada vez mais perigosa, os soldados fogem, procurando se salvar. Alguns procuram se salvar atravessando o rio Jordão (verso 7). Outros, aparentemente, estão dispostos a se juntar aos filisteus (ver 14:21). Aqueles que ficam com Saul estão tremendo de medo.
“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para o saudar. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou. Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens.” (I Sam. 13:8-15)
Saul consegue esperar durante seis dias e a maior parte do sétimo. Mas, quando o sétimo dia começa a chegar ao fim, ele está tão atormentado que não sabe o que fazer. Até posso imaginar o que se passa em sua cabeça. “Onde será que está esse homem, e o que será que está fazendo? Ele não sabe que estamos em perigo? Será que não compreende a urgência da situação e a necessidade de agir rapidamente? Vou dar a ele mais 30 minutos, depois vou ter que continuar sem ele.”
Como o povo continuasse a debandar, Saul começa a tratar do assunto pessoalmente. Pelo que parece é o próprio Saul quem oferece o holocausto. Ele dá ordens para que lhe sejam trazidos o holocausto e as ofertas pacíficas. Não há menção de algum sacerdote fazendo parte da cerimônia. Saul parece dar muita importância a esta oferta, e acho que sei porque. Em I Samuel 7, todo o Israel se reúne em Mispa para se arrepender e renovar sua aliança com Deus. Os filisteus interpretam mal este ajuntamento, presumindo que haja algum propósito militar por trás. Eles cercam os israelitas e estão prestes a atacar. Quando o ataque está para começar, Samuel está ocupado oferecendo o holocausto:
“Tomou, pois, Samuel um cordeiro que ainda mamava e o sacrificou em holocausto ao SENHOR; clamou Samuel ao SENHOR por Israel, e o SENHOR lhe respondeu. Enquanto Samuel oferecia o holocausto, os filisteus chegaram à peleja contra Israel; mas trovejou o SENHOR aquele dia com grande estampido sobre os filisteus e os aterrou de tal modo, que foram derrotados diante dos filhos de Israel.” (I Sam. 7:9-10)
Como seria fácil ver esta oferta como um meio de livrar Israel. Da mesma forma que os israelitas viram a Arca da Aliança como uma espécie de arma secreta, talvez agora Saul veja o holocausto como um meio para garantir a ação de Deus em favor de Israel. Se for assim, não é de se estranhar que Saul esteja tão ansioso para fazer com que o sacrifício seja oferecido, com ou sem Samuel.
No exato momento em que Saul termina o sacrifício do holocausto, Samuel chega. Parece claro que, se Saul tivesse esperado só mais alguns minutos, Samuel teria chegado na hora e ainda a tempo de oferecer tanto o holocausto quanto as ofertas pacíficas. Saul sai para cumprimentá-lo e sua saudação revela sua culpa. Não é Saul quem fica ali com as mãos na cintura, censurando Samuel por estar tão atrasado, mas é Samuel quem lhe pergunta o que foi que ele fez. A explicação de Saul não convence. Ele diz a Samuel que o povo estava desertando e que o profeta não veio dentro do prazo combinado. Ele mostra que os filisteus estão se reunindo para a guerra em Micmás e que sua atitude foi necessária para não ser atacado em Gilgal. Embora ele realmente não quisesse fazer o que fez, simplesmente tinha que fazê-lo e, assim, se viu forçado a oferecer o holocausto.
Samuel não fica impressionado, como demonstram suas palavras duras e diretas. A atitude de Saul foi uma tolice - pois desobedeceu deliberadamente ordens claras e diretas de Samuel. Também foi tolice porque teve efeito exatamente oposto ao que ele pensou. Com toda certeza Saul deve ter pensado que esperar por Samuel (e por suas instruções) era uma tolice. Ele estava errado. Sua desobediência lhe custará sua dinastia. Mesmo que seu reinado não acabe imediatamente, seus filhos jamais se sentarão em seu trono. Se ao menos Saul tivesse obedecido a ordem de Deus, seu reinado teria durado para sempre. Agora, seu reinado morrerá com ele. Deus já buscou e escolheu um homem cujo coração se ajusta ao Seu para substituí-lo. Tudo isto é conseqüência direta de sua desobediência.
A partida de Samuel é completamente diferente daquela descrita em I Samuel 15:24-31. Aqui, parece que Saul não fica abalado com as palavras de Samuel e, com certeza, não está arrependido. Se Saul fosse um adolescente de nossos dias, sua resposta à bronca de Samuel seria “Qual é.” Saul se ocupa com a contagem de seu parco e desgrenhado exército, agora composto de cerca de 600 homens, e Samuel se levanta e parte para Gibeá.
Este incidente não é o “começo do fim” para Saul; é o fim. Seu reinado durará alguns anos, mas não sobreviverá à sua morte. Dois anos de reinado e a dinastia de Saul está selada. Ao lermos estes versos, a maioria de nós talvez admita que a atitude de Saul é quase compreensível e que a resposta de Deus parece muito dura. Por que todo este estardalhaço sobre este incidente, esta asneira? Vamos considerar primeiro a gravidade da atitude de Saul e depois algumas implicações e aplicações que nosso texto oferece.
Primeiro, precisamos entender esta passagem à luz daquilo que Deus declarou sobre os reis no livro de Deuteronômio:
“Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles. Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:14-20)
Observe especialmente os versos 18 a 20. Quando o rei subir ao trono, deve escrever uma cópia da lei para si mesmo - deve fazer isto na presença dos levitas sacerdotes. Parece que isto implica numa “divisão de poderes” muito clara. O rei tem grande autoridade mas, com relação à lei, ele não apenas está sujeito a ela, como também deve ouvir os levitas sacerdotes quanto ao seu significado. Os livros da lei do Velho Testamento são o manual do rei, e os levitas sacerdotes seus professores ou tutores. Esta lei deve ser seu guia constante, a base de seu governo. Ele deve lê-la e relê-la todos os dias da sua vida. Isto não apenas dá ao rei sabedoria para governar e princípios para seu reino (a constituição do reino), mas também resguarda o rei de se ensoberbecer e se elevar acima de seus irmãos (verso 20). Esta leitura constante da lei prolongará os dias do rei, dele e de seus descendentes (verso 20).
Será que isto não explica a gravidade da resposta de Deus à desobediência de Saul? Saul não deu atenção a estas instruções registradas em Deuteronômio e, muito provavelmente, reiteradas e esclarecidas por Samuel:
“Então, disse Samuel a todo o povo: Vedes a quem o SENHOR escolheu? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então, todo o povo rompeu em gritos, exclamando: Viva o rei! Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro e o pôs perante o SENHOR. Então, despediu Samuel todo o povo, cada um para sua casa.” (I Sam. 10:24-25)
Além destas instruções gerais para Saul como rei de Israel, há ainda as instruções específicas (“a ordem”) de I Samuel 10:8. Saul não tem nenhuma desculpa; seu sacrifício é um ato deliberado de desobediência, pelo qual ele perde seu reinado.
Vamos passar de Saul e sua desobediência às lições que este texto tem para cada um de nós hoje. Resumiremos as lições importantes na forma de princípios:
(1) Como Saul, quando não temos noção da nossa vocação, somos conduzidos pelos problemas. O povo quer um rei para governá-los e, em última instância, isto significa que querem um rei para libertá-los do cativeiro das nações ao seu redor. Samuel faz esforços consideráveis para transmitir a Saul o que Deus lhe designou para fazer, mas não parece ir muito longe antes do sentido de vocação de Saul ficar confuso. Em nosso texto parece faltar a Saul um profundo senso daquilo a que foi chamado a fazer, ou falta o compromisso para fazê-lo - ou talvez ambos. Quando considero os escritos do apóstolo Paulo, vejo um homem com um profundo senso de sua vocação e um grande compromisso para realizá-la (ver Rm. 1:1, I Co. 1:1, Gl. 1:15, II Tm. 4:7-8). Paulo também fala bastante a respeito de nosso chamado, e nos desafia a viver de acordo com ele - tanto com relação ao chamado comum (a que todo cristão é chamado - ver Rm. 1:6-7, 8:28/30, I Co. 1:2/9, Gl. 5:13, Ef. 4:1, I Ts. 4:7, II Ts. 1:11), quanto com relação ao chamado individual (I Co. 7:17). Saul parece não ter muita noção daquilo para o que Deus o chamou. Grande parte de suas escorregadelas vistas nos capítulos de I Samuel parece ser conseqüência de seu fracasso em compreender exatamente aquilo a que foi chamado a fazer.
Todos os cristãos foram “chamados”, e cada um de nós tem um “chamado” específico. Não estou falando de um ”chamado” especial para um “ministério em tempo integral” ou para “o trabalho missionário”. Estou falando de chamado no sentido individual, de acordo com o qual o cristão tem uma noção geral do porque Deus o(a) salvou, e uma noção mais específica de seu trabalho e contribuição no corpo de Cristo. Há cristãos demais que parecem ter perdido a noção de sua vocação e, como Saul, parecem estar se “escondendo na bagagem” da igreja e seu ministério, em vez de fazer sua parte.
2) As ordenanças de Deus servem como testes para nossa fé e obediência. Saul recebeu instruções específicas para ir a Gilgal e esperar por Samuel. Este é o seu teste de fé e obediência. As ordenanças da Bíblia são dadas por boas razões. Uma delas é que são testes específicos para nossa fé. Ouço muitos cristãos reagindo a qualquer tipo de ênfase nas ordens divinas e na nossa necessidade de obediência. “Isso é legalismo”, ouço alguns dizerem. Algumas pessoas podem obedecer a Deus de modo legalista, e esse é o problema. Mas, longe dos crentes julgarem as ordens de Deus tão levianamente. Jesus instruiu Seus discípulos a “ensiná-los a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt. 28:20). Quantas ordens de Cristo você leva à sério hoje?
3) Os privilégios cristãos também são um teste para nossa fé e amor a Deus. No capítulo 10, verso 7, Samuel instrui Saul:
“Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo.” (I Sam. 10:7)
O que, então, impede Saul de enfrentar os filisteus que ocupam Israel e oprimem o povo de Deus? Por que ele não faz o que obviamente precisa ser feito, confiando que, ao fazê-lo, Deus estará com ele? Não só a maioria de nós não consegue obedecer às ordens de Deus, também não conseguimos exercer nossos direitos como deveríamos. Direitos, como a lei, são testes onde muitas vezes somos reprovamos.
4) As emergências não são desculpas para desobedecer às ordens de Deus, mas um teste para nossa fé e obediência. Deus muitas vezes nos testa levando-nos ao limite. É desse jeito que testamos os produtos que fabricamos. A Ford não testa seus carros andando vagarosamente em volta de obstáculos. Eles são colocados na pista de teste, que golpeia a suspensão ininterruptamente e gira e pressiona o motor com superaquecimento, frio intenso, e longas distâncias. Deus também nos testa levando-nos ao limite, levando-nos ao ponto de exaustão.
Quando chegamos ao “limite”, nossa fé em Deus se torna evidente. Quando chegamos ao fim de nossas forças, aí precisamos confiar em Deus. Deus leva Saul “ao limite” retardando a chegada de Samuel até o último minuto, mas Saul não consegue esperar. Ele está convencido de que sua situação é uma “emergência” e, como tal, as regras podem ser descartadas. Nessas horas - quando somos pressionados até o limite - nossa fé e obediência são testadas para ver se guardamos ou não as leis de Deus, se obedecemos ou não a Ele.
O livro de Provérbios fala duas vezes sobre o “leão no caminho” (ver Pv. 22:13, 26:13). Esta é razão que faz o preguiçoso evitar a tarefa que ele realmente não quer fazer. Afinal, quem sairia para cortar a grama se realmente houvesse um leão lá fora? Situações emergenciais, onde o desastre parece iminente e quebrar as regras parece ser a solução, podem ser nada mais do que leões no caminho. Pode ser que estejamos dispostos a fazer exceções às ordens de Deus, mas Deus não. Vamos ter cuidado em não permitir que a crise vire desculpa para nossa desobediência.
Duvido que a desobediência de Saul ao fazer o sacrifício do holocausto seja um acontecimento isolado. Antes, é mais provável que seja o clímax, o ápice, de uma longa história de desobediência. Como demonstramos anteriormente, Saul sabe que seu dever como rei de Israel é lutar contra os filisteus e com as nações circunvizinhas que oprimem o povo de Deus. Dia após dia, mês após mês, Saul parece fechar os olhos ao sofrimento de seu povo e à presença dos filisteus em Israel. A desobediência de Saul com relação aos sacrifícios em Gilgal não é um pecado fortuito - um completo imprevisto. É a conseqüência lógica, quase inevitável de uma vida de desobediência. Esta crise apenas mostra Saul como ele é (ou como não é). Conosco é da mesma forma.
Não posso deixar de notar que não há nenhuma evidência de espiritualidade em Saul antes dele se tornar rei, nem depois. No entanto, Davi é um jovem que aprendeu a confiar em Deus quando ainda jovem pastor, a sós com seu rebanho. Davi aprendeu a confiar em Deus e a adorá-Lo. Ele andava com Deus antes de se tornar rei, e continua andando depois. Saul não tem nenhuma disciplina religiosa em sua vida, e demonstra isto, especialmente em Gilgal, quando se depara com os testes da fé.
5) O julgamento de Deus pode ser pronunciado bem antes de suas conseqüências serem visíveis. Deus pode pronunciar um julgamento muito tempo antes de concretizá-lo. Deus rejeitou Saul como rei. Isto é, o reinado de Saul não continuará (ver 13:14). Depois que isto é dito, Saul ainda reina por muitos anos antes de sua morte. Podemos ter certeza de que o julgamento de Deus é certo, mesmo que seja em alguma época por vir. É assim com Saul e é assim com a ira vindoura de Deus. A condenação de Satanás já havia sido pronunciada e, no entanto, ainda o veremos se opondo ao nosso Senhor e à Sua igreja. Apesar disso, o julgamento de Deus é certo, mesmo que não seja imediato.
6) Deus trabalha por meio de pessoas imperfeitas e que não são ideais. Não me canso de ficar maravilhado diante do tipo de pessoas que Deus usa para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Saul é uma dessas pessoas. A despeito de todas as suas fraquezas e pecados, Deus usa Saul para libertar Israel do cativeiro das nações circunvizinhas (ver 14:47-48). Ao longo da história, Deus escolhe usar as coisas “fracas e tolas” deste mundo, confundindo os sábios e trazendo glória a Si mesmo. Se Deus pode usar um homem como Saul, podemos ter certeza de que Ele pode nos usar também. Como deveríamos ser agradecidos por Deus não se limitar a usar somente pessoas perfeitas. Isto não desculpa nossas imperfeições ou nossos pecados, mas nos dá esperança de que Deus pode e usa pessoas fracas e pecaminosas para realizar Seus propósitos.
Tenho uma foto tirada no ano passado quando participava de uma pescaria com três amigos que retrata muito bem minhas recordações desse passeio. A foto foi tirada de cima prá baixo, quando meu amigo Bart Johnson estava no topo mais alto de uma montanha. A primeira coisa que você vê é a ponta das botas de Bart - depois, seus olhos podem captar um declive acentuado que, na realidade, é a encosta de um rochedo - até o lago embaixo. Não subi até lá com Bart e seu irmão Randall. Mas também estava no topo de uma espécie de rochedo - seguramente aninhado debaixo de uma árvore - e a descida era de apenas uns 20 a 25 pés (6 a 7 metros) até a água. Lançando meu anzol sem entusiasmo, via as trutas observarem minha isca, beliscando de vez em quando - até levei a isca para perto de alguns peixes bem interessantes - do meu cantinho debaixo da árvore.
Meus amigos Bart e Randall não pescaram com segurança e conforto. Quando perguntaram aos guardas florestais sobre a pesca em determinado lago, um deles respondeu: “Oh, eu não tentaria pescar naquele lago. É um lago afastado, e vocês têm que andar 600 metros montanha acima e depois descer outro tanto para chegar até lá.” Isso era tudo o que Bart e Randall precisavam ouvir; eles empacotaram suas coisas e se puseram a caminho. Disseram que a pescaria ali foi tão boa que, quase todas as vezes em que lançaram o anzol, pegaram alguma coisa. Talvez sim, mas vi suas fotos no topo daquele penhasco íngreme e cortante que eles tiveram que subir e descer para voltar. Não fiquei triste por ter ficado no meu refúgio de pesca favorito, poucos metros acima da água.
Ler a narrativa da campanha pessoal de Jônatas contra os filisteus neste texto me faz lembrar da foto de Bart e Randall encarapitados no topo daquele penhasco. Exatamente como fiz na pescaria, Saul descansa tranqüilamente à sombra de uma árvore, enquanto Jônatas e seu escudeiro escalam um sólido rochedo para lutar com a guarnição dos filisteus. Nem a subida, nem as chances impressionantes a favor dos filisteus impedem Jônatas de lutar com estes inimigos de Israel. Mas, como veremos, há muito mais nesta história do que apenas uma escalada perigosa. Conforme estivermos considerando atentamente esta passagem, aprenderemos muito mais sobre Saul e Jônatas - e sobre confiar em Deus.
Israel exige um rei e Deus promete atender seu pedido (I Samuel 8). Mediante uma série de acontecimentos, Deus designa Saul como rei de Israel (capítulos 9 e 10). Quando Naás e os amonitas ameaçam Jabes-Gileade, Saul está possuído pelo Espírito de Deus e abate uma junta de bois, enviando os pedaços por toda a terra, ameaçando fazer o mesmo aos bois de qualquer um que se recuse a defender seus irmãos. Isto resulta numa tropa de 330.000 israelitas para guerrear contra os amonitas e numa grande vitória israelita (capítulo 11). Samuel avisa os israelitas para não ficarem otimistas demais com o novo rei, lembrando-lhes que é Deus, não os homens, quem tem livrado Seu povo ao longo da história de Israel. Se os israelitas se rebelarem contra Deus, não confiando e obedecendo a Ele, eles, junto com seu rei, serão entregues a seus inimigos. Se eles realmente temerem a Deus, então Deus terá misericórdia deles e de seu rei (capítulo 12).
Agora, no capítulo 13, as coisas rapidamente começam a azedar para Israel e para Saul, seu rei. O ataque de Jônatas à sua guarnição deixa os filisteus muito irritados e ocasiona um aumento maciço de suas tropas em Israel. À medida que o capítulo se desenrola, as coisas parecem ir de mal a pior. Saul é obrigado a reunir os israelitas para a guerra depois de ter acabado de mandá-los prá casa. Os voluntários são poucos e esparsos e, quando percebem o tamanho do exército filisteu, começam a desertar, escondendo-se em qualquer lugar. Quando Samuel demora a chegar, Saul assume seu papel, oferecendo o holocausto e pretendendo oferecer as ofertas pacíficas. Samuel chega logo após o holocausto, rejeitando as desculpas esfarrapadas de Saul e censurando-o por sua tolice. Além disso, ele anuncia a Saul que, devido à sua desobediência, seu reino não subsistirá, pois Deus escolheu como rei um homem cujo coração está em sintonia com o Seu (13:1-14).
“Então, se levantou Samuel e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Logo, Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens. Saul, e Jônatas, seu filho, e o povo que se achava com eles ficaram em Geba de Benjamim; porém os filisteus se acamparam em Micmás. Os saqueadores saíram do campo dos filisteus em três tropas; uma delas tomou o caminho de Ofra à terra de Sual; outra tomou o caminho de Bete-Horom; e a terceira, o caminho a cavaleiro do vale de Zeboim, na direção do deserto. Ora, em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada, nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice. Os filisteus cobravam dos israelitas dois terços de um siclo para amolar os fios das relhas e das enxadas e um terço de um siclo para amolar machados e aguilhadas. Sucedeu que, no dia da peleja, não se achou nem espada, nem lança na mão de nenhum do povo que estava com Saul e com Jônatas; porém se acharam com Saul e com Jônatas, seu filho. Saiu a guarnição dos filisteus ao desfiladeiro de Micmás.” (I Sam. 13:15-23)
Voltamos à história com Samuel deixando Saul em Gilgal e subindo para Gibeá e, ao que parece, sem “mostrar-lhe o que deveria fazer” (10:8). Samuel não dá a Saul nenhuma orientação de como ele deve lidar com a invasão em massa dos filisteus, resultante do ataque de Jônatas à sua guarnição em Geba (13:3, ver também 10:5). Preparando-se para a guerra, Saul conta suas tropas, descobrindo que há 600 homens com ele prontos para lutar. Tendo em vista os milhares de soldados das tropas filistéias, as chances se acumulam contra Israel e seu novo rei.
Talvez imaginemos uma espécie de distância entre o exército filisteu, acampado em Micmás, e as forças israelitas sob o comando de Saul e Jônatas, acampadas em Geba (13:16). Mas este não é bem o caso. Enquanto o exército principal dos filisteus parece estar entrincheirado em Micmás, três destacamentos de “saqueadores” são enviados por todo Israel (13:17, 14:15). Um é enviado para o norte em direção a Ofra, outro para oeste em direção a Bete-Horom, e o terceiro para leste em direção ao deserto (os israelitas estão ao sul). Estas tropas de saqueadores, ou destruidores, parecem ser ”forças especiais” cuja função é matar, queimar ou destruir a vida humana, o gado, as construções ou a colheita. Quanto mais longe puderem ir, destruindo tudo pelo caminho, pior será para Israel. Se os filisteus não forem derrotados e expulsos, haverá muitos problemas para a nação.
Brutalmente excedidos em número, os israelitas estão tão apavorados que desertam em bandos. Saul imprudentemente ofereceu o holocausto e foi censurado por Samuel. As tropas de saqueadores estão percorrendo a terra, deixando atrás de si um rastro de destruição. E agora, os poucos remanescentes das tropas israelitas estão mal equipados, se comparados aos filisteus. Para estes, pelo menos, a Idade do Ferro já chegou. Sua tecnologia permite que tenham espadas e lanças de ferro e carruagens com rodas de ferro. Seus agricultores têm ferramentas afiadas e que não se quebram com facilidade. Os israelitas não possuem a tecnologia dos filisteus. Os filisteus vendem implementos agrícolas de ferro aos israelitas, mas não armas de ferro, e nem permitem que eles fabriquem ou possuam tais armas. Isto dá aos filisteus um avanço decisivo (perdão pelo trocadilho) sobre israelitas. O escritor nos fala deste “avanço” e que somente Saul e Jônatas possuem espadas (13:22). As coisas não parecem boas para Israel.
Nas questões agrícolas, os israelitas praticamente dependem dos filisteus. Eles precisam comprar suas ferramentas deles e depois pagar para afiá-las. Todos os dias os israelitas são relembrados de sua sujeição aos filisteus. Militarmente falando, as coisas parecem sem solução. Os filisteus têm um vasto e bem equipado exército e destacamentos de saqueadores que percorrem Israel à vontade, levando morte e destruição. Israel tem um pequeno exército de homens apavorados, muitos dos quais estão desertando, com alguns até mesmo se juntando aos filisteus (ver 14:21). Na melhor das hipóteses, o rei de Israel está desanimado. Com uma tecnologia infinitamente inferior, os israelitas estão num beco sem saída.
Lembro-me da “guerra dos seis dias” entre Israel e seus vizinhos, em junho de 1967. Lembro-me bem desta guerra porque minha esposa e eu estávamos nos preparando para partir para o seminário em Dallas, Texas. Nós nos perguntávamos se o Senhor viria antes de chegarmos lá. Ouvíamos as notícias de que Israel era inferior em homens e em armas e, por isso, vulnerável. Como estavam erradas as estimativas das chances de sucesso de Israel! Como a guerra terminou rapidamente; tudo, creio, devido ao cuidado providencial de Deus para com Seu povo.
“Sucedeu que, um dia, disse Jônatas, filho de Saul, ao seu jovem escudeiro: Vem, passemos à guarnição dos filisteus, que está do outro lado. Porém não o fez saber a seu pai. Saul se encontrava na extremidade de Gibeá, debaixo da romeira em Migrom; e o povo que estava com ele eram cerca de seiscentos homens. Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, filho de Eli, sacerdote do SENHOR em Siló, trazia a estola sacerdotal. O povo não sabia que Jônatas tinha ido. Entre os desfiladeiros pelos quais Jônatas procurava passar à guarnição dos filisteus, deste lado havia uma penha íngreme, e do outro, outra; uma se chamava Bozez; a outra, Sené. Uma delas se erguia ao norte, defronte de Micmás; a outra, ao sul, defronte de Geba. Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos. Então, o seu escudeiro lhe disse: Faze tudo segundo inclinar o teu coração; eis-me aqui contigo, a tua disposição será a minha. Disse, pois, Jônatas: Eis que passaremos àqueles homens e nos daremos a conhecer a eles. Se nos disserem assim: Parai até que cheguemos a vós outros; então, ficaremos onde estamos e não subiremos a eles. Porém se disserem: Subi a nós; então, subiremos, pois o SENHOR no-los entregou nas mãos. Isto nos servirá de sinal. Dando-se, pois, ambos a conhecer à guarnição dos filisteus, disseram estes: Eis que já os hebreus estão saindo dos buracos em que se tinham escondido. Os homens da guarnição responderam a Jônatas e ao seu escudeiro e disseram: Subi a nós, e nós vos daremos uma lição. Disse Jônatas ao escudeiro: Sobe atrás de mim, porque o SENHOR os entregou nas mãos de Israel. Então, trepou Jônatas de gatinhas, e o seu escudeiro, atrás; e os filisteus caíram diante de Jônatas, e o seu escudeiro os matava atrás dele. Sucedeu esta primeira derrota, em que Jônatas e o seu escudeiro mataram perto de vinte homens, em cerca de meia jeira de terra. Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.”
Quando estava no seminário, numa aula do Dr. Bruce Waltke, ele fez uma comparação entre Jacó e Isaque e descreveu Jacó dizendo: “Se Isaque era uma brisa; Jacó era um furacão!” Devo admitir que, quanto mais leio sobre Saul, menos gosto dele. Vamos rever aquilo que dissemos a seu respeito. No capítulo 8, o povo exige um rei. Nos capítulos 9 e 10, Saul é divinamente designado como rei de Israel. Mais, Saul é divinamente capacitado para ser rei de Israel pelo Espírito Santo que desce sobre ele. Estou particularmente interessado na descida do Espírito sobre Saul e nas implicações desse acontecimento conforme dito por Deus por meio de Samuel:
“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles.” (I Sam. 10:5-10)
Os dois primeiros sinais são apenas para Saul, para convencê-lo de que as palavras de Samuel são palavras de Deus. A poderosa descida do Espírito sobre Saul é sinal para ele e para as pessoas que testemunham o fato (10:11-12). As palavras de Samuel para Saul, conforme registrado no verso 7, são muito importantes. Quando estes sinais forem realizados, Samuel diz a Saul que ele deve “fazer o que a ocasião pedir”, confiando que Deus estará com ele em tudo o que fizer. No verso 8, então, Samuel lhe dá instruções específicas a respeito de ir a Gilgal e esperar durante sete dias, quando ele oferecerá o holocausto e as ofertas pacíficas, e “declarará o que ele há de fazer”. Por que dois anos, ou mais, separam a descida do Espírito sobre Saul e sua viagem a Gilgal? Por que não ouvimos falar de nenhuma ação de Saul nesses anos intermediários entre sua capacitação e sua ida a Gilgal?
Temos que admitir que Saul realmente conclama os israelitas a irem à guerra contra os amonitas, para proteger seus irmãos em Jabes-Gileade (capítulo 11). Conforme leio o texto, vejo que esta não é uma decisão tomada conscientemente por Saul, mas uma manifestação imediata do Espírito agindo sobre ele de maneira incomum - Saul não age até que o Espírito aja. Enfim, nem mesmo é Saul quem inicia a guerra contra os amonitas; é o Espírito de Deus.
Anteriormente Deus havia levantado juízes para livrar os israelitas de seus inimigos:
“E clamaram ao SENHOR e disseram: Pecamos, pois deixamos o SENHOR e servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos das mãos de nossos inimigos, e te serviremos. O SENHOR enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança.” (I Sam. 12:10-11)
É evidente que os israelitas querem (exigem) um rei para liderá-los na guerra (ver 8:19-20). Há um acréscimo muito interessante no texto da Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) no capítulo 10, verso 1. Numa nota à margem do verso 1, a Nova Versão King James nos diz o que foi acrescentado:
LXX, Vg. acréscimo - E livrarás Seu povo das mãos de todos os seus inimigos em derredor. E isto te será por sinal de que Deus te ungiu para seres príncipe.
Mais à frente, no capítulo 14, a administração de Saul como rei de Israel é resumida desta maneira:
“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)
Se entendo corretamente o texto, Israel exige um rei que os livre dos inimigos ao seu redor como fizeram os juízes anteriormente. Deus lhes dá Saul como rei, o qual deve livrá-los de seus inimigos, sendo que, tanto ele quanto a nação devem confiar em Deus e obedecer aos Seus mandamentos. O Espírito de Deus desce sobre Saul, como fez com Sansão e tantos outros, para capacitá-lo a conduzir os israelitas vitoriosamente contra seus inimigos. Assim que o Espírito desce sobre ele, Samuel lhe dá instruções, e ele deve agir de forma apropriada, confiando que Deus estará com ele para livrar Israel de seus inimigos.
Parece que Saul não é um homem espiritual. Apesar de Samuel ser conhecido por seu tio (10:14-16) e por seu servo (10:5-10), aparentemente ele é desconhecido para Saul, e isto numa época em que a profecia é muito rara (3:1). O ponto mais distante do circuito das viagens de Samuel (8:16-17) não fica a mais de 15 milhas da cidade de Saul, Gibeá. E sua casa em Ramá fica aproximadamente a 3 milhas de Gibeá, a cidade de Saul. Como pode um homem espiritualmente sensível nada saber a respeito de Samuel?
A situação só piora. Sabemos que, devido a ameaça a Jabes-Gileade, Saul se vê “forçado” a agir e reúne um exército de 330.000 israelitas. Já que os amonitas estão derrotados, por que Saul não vai em frente, expulsando também os filisteus? Afinal, é para isto que ele foi designado. Em vez disto, Saul manda os soldados de volta prá casa, ficando apenas com um exército esquelético, uma pequena força de 3.000 homens, e que está dividido em duas companhias. É como se ele não quisesse enfrentar os filisteus e só quisesse viver de seu status. Não é a iniciativa de Saul, mas a de seu filho, Jônatas, que provoca o confronto com os filisteus, levando-os à derrota.
Não é de se admirar que Samuel faça tanto esforço para relembrar aos israelitas que sempre foi Deus quem os livrou de seus inimigos. Também não é de se admirar que Samuel chame a nação ao arrependimento por colocar mais fé em seu rei do que em seu Deus. O capítulo 13 se concentra na nação de Israel e na ameaça dos filisteus, que não só ocupam Israel, mas que também ameaçam destruí-lo. O capítulo 14 se concentra em Saul e em seu filho Jônatas, de forma a retomar o contraste feito pelo autor entre os dois iniciado no capítulo 13.
Os filisteus, finalmente, estão em vantagem na região montanhosa de Judá e Benjamim, estabelecendo sua base principal em Micmás (13:16), ao que parece, no pico das montanhas que separam as planícies do vale do Jordão e as planícies litorâneas onde vivem. Cerca de 600 soldados ficam com Saul e Jônatas, enquanto o restante deserta escondendo-se dos filisteus ou juntando-se a eles (13:6-7; 14:20-22). Saul e seu “exército” estão acampados em Geba (13:16), e no capítulo 14 em Gibeá, um pouco mais ao sul e mais distante dos filisteus, que ainda estão em Micmás, ao norte.
Que contraste nosso autor faz entre Saul e seu filho, Jônatas. A nação de Israel está em guerra, desesperadamente excedida em número e miseravelmente equipada. E, mesmo assim, Saul se encontra debaixo “da romeira em Migrom” (14:2). Enquanto Saul fica fora do sol e à salvo, fora do alcance dos filisteus, seu filho Jônatas está prestes a enfrentar muitos deles, acompanhado por seu escudeiro. Esta é uma investida particular. Jônatas não pede a permissão de seu pai, nem o informa, e também não deixa que ninguém mais saiba de sua partida. Acho que ele sabe o que seu pai pensará de qualquer atitude agressiva contra os filisteus. Saul não quer ter problemas com eles, e Jônatas não quer mais que Israel seja atormentado por eles.
Eis Saul sentado à sombra de uma árvore (pelo que parece). Saul tem uma das duas únicas espadas de Israel. Junto com ele está Aías, filho de Aitube, irmão de Icabô, filho de Finéias, e neto de Eli (14:3). Aías veste (ou carrega com ele) a estola sacerdotal, um dos meios para discernir a vontade de Deus (ver I Sam. 23:9-12, 30:6-8). Saul não consegue obter instruções de Samuel em Gilgal devido à sua desobediência (13:1-14), e agora ele tem a estola sacerdotal e um sacerdote com ele; contudo, não pergunta a Deus o que deve fazer.
Jônatas, no entanto, tem uma noção definida da vontade de Deus que o faz agir. Primeiro, ele conhece muito bem a vontade de Deus pela história de Israel e pela natureza do próprio Deus. Suas palavras a seu escudeiro são cheias de fé e senso de dever. São palavras que explicam sua confiança e ação e que incentivam a lealdade de seu escudeiro:
“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (14:6)
Os filisteus são “incircuncisos”, eles não possuem um relacionamento pactual com Deus como os israelitas. A aliança feita por Deus com Israel lhes dá a garantia de Sua presença e de Sua proteção contra seus inimigos. Deus os tirou da escravidão do Egito e lhes prometeu dar a terra de Canaã e a liberdade das nações ao seu redor. Com certeza, Israel não tem esta liberdade. As guarnições dos filisteus ocupam a terra e os israelitas não podem sequer cultivá-la sem ter que comprar as ferramentas e obter sua manutenção dos filisteus. Jônatas entende que Deus não pretende que Seu povo seja escravizado pelas nações ao seu redor. Ele entende que agora é responsabilidade do rei liderar o povo na guerra contra os inimigos de Israel e seu Deus. Ele também entende, pela natureza de Deus e pela história de Israel, que a vitória de Israel não depende do “braço da carne”, da quantidade de tropas ou do tipo de armas que possuem. Deus deu a vitória sobre os midianitas quando Gideão liderava 300 homens na batalha (ver Juízes 7). Se é da vontade de Deus que Israel prevaleça sobre seus inimigos, não são necessários 600 homens - podem ser apenas dois.
A questão na cabeça de Jônatas não é se Deus pode entregar os filisteus nas mãos dos israelitas, mas se isto é, ou não, da vontade de Deus. Saul tem o sacerdote e a estola sacerdotal, mas não se importa em perguntar a Deus. Ele prefere sentar-se à sombra de uma árvore! Por isso, Jônatas determina outra maneira de discernir a vontade de Deus com relação à sua intencionada investida contra a guarnição dos filisteus.
Jônatas busca um sinal de Deus que indique se ele e seu escudeiro devem atacar os filisteus. Micmás e Gibeá são dois pontos elevados do local. O acesso a Micmás é através do passo de Micmás, uma passagem muito estreita, aparentemente o curso de uma pequena correnteza. Os filisteus parecem ter uma pequena companhia de soldados em cima do passo, onde podem avistar e parar qualquer um que tente atravessá-lo. O plano de Jônatas é descer a face rochosa de um dos penhascos e tornar sua presença visível aos filisteus no topo do penhasco do outro lado da passagem. Se os filisteus demonstrarem que vão descer para atacá-lo e a seu escudeiro, eles não tentarão subir o penhasco onde eles estão. Se, no entanto, os soldados os desafiarem a subir, este será o sinal de que Deus quer que eles façam a perigosa escalada até o posto de observação dos filisteus e de que Ele dará a vitória a Israel.
Com total apoio de seu escudeiro, estes dois valentes israelitas se tornam visíveis, ao que parece quando descem a face do penhasco até o passo embaixo. Os sentinelas filisteus os avistam e supõem que estejam saindo de seu esconderijo nas rochas. Os filisteus, então, convidam os dois para subir, e Jônatas e seu escudeiro recebem isto como sinal de Deus de que Ele lhes dará a vitória.
Jamais poderia imaginar que os filisteus pudessem dizer tal coisa. Por que não jogam pedras e rochas sobre Jônatas e seu ajudante? Por que não despacham as tropas até o passo para matá-los? Por que, quando eles estão mais vulneráveis, enquanto escalam o penhasco rochoso, os filisteus não se aproveitam de sua vulnerabilidade e os matam com rapidez e facilidade? Acho que a resposta está no texto. Os filisteus convidam os dois para subir para “lhes dizer alguma coisa”. A princípio, pensei que isto fosse um desafio, e acho que poderia ser. Talvez as coisas estejam maçantes e enfadonhas, e os filisteus queiram uma pequena contenda; por isso, pretendem deixá-los vir ao topo, onde podem se engajar com eles.
Agora, estou inclinado a uma explicação diferente. Creio que os filisteus deixam Jônatas e seu escudeiro subirem para que se entreguem e se juntem a eles contra Israel. Os filisteus sabem que têm a vantagem. Sabem que possuem armas superiores e superam em muito os 600 soldados que seguem Saul. Sabem que podem enviar saqueadores por todo o país com pouquíssima resistência por parte dos israelitas. E eles já acrescentaram um certo número de israelitas às suas próprias tropas (14:21). Por que não permitir que estes dois israelitas assustados, que estão rastejando prá fora de seus buracos, se dêem por vencidos e se juntem ao exército vencedor? Com certeza, não é seguro para os filisteus assumirem esta posição, mas este é um sinal convincente, pelo menos na cabeça de Jônatas. E assim eles escalam esse penhasco íngreme e rochoso até os filisteus.
Os filisteus não barganharam pelo que veio a ocorrer. Jônatas começa a usar sua espada com destreza, e aqueles que ele deixa vivos atrás de si são despachados por seu escudeiro. Em pouco tempo e num pequeno espaço, o grupo de sentinelas é morto, tornando possível aos israelitas atravessarem o passo até Micmás e perseguirem os filisteus.
Mas, espere - como diz um comercial de TV de R$ 40,00 - tem mais! Se Deus está com Jônatas em seu ataque ao posto dos filisteus, agora Ele está prestes a mostrar Seu braço poderoso, dando a Israel a vitória sobre a guarnição dos filisteus em Micmás. Amo o jogo de palavras que se encontra nos capítulos 13 e 14:
“E os hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; e, estando Saul ainda em Gilgal, todo o povo veio atrás dele, tremendo...” (I Sam. 13:7)
“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus.” (I Sam. 14:15)
Não era Elvis Presley que cantava: “Estou todo sacudido, uh, uh, uh...”? Bem, Deus “sacudiu” os filisteus. Tudo começa com as tropas israelitas que seguem Saul. Eles percebem como é fraca sua posição contra os filisteus. Eles também devem sentir a fraqueza da liderança de Saul. Eles estão com sérios problemas - como nosso autor nos informa, eles estão “sacudidos” (13:7). Isto impede Deus de dar a vitória a Israel? Claro que não! Deus passa a “sacudir” os filisteus.
Imagine, se puder, a presunçosa sensação de segurança que os filisteus devem sentir enquanto estão ocultos em Micmás. Para chegar até eles, o minúsculo exército israelita precisa atravessar o passo de Micmás, e uns vinte homens podem facilmente rechaçá-los. A segurança dos filisteus está numa estreita passagem, num ponto elevado das montanhas, protegido por rocha maciça, o que funciona muito bem, até ocorrer um terremoto. Agora, este lugar anteriormente seguro se transforma no lugar mais perigoso do mundo. Saul e suas sentinelas observam enquanto o exército filisteu se agita de um lado para o outro, provavelmente em sincronia com o solo, que se encrespa como os vagalhões do mar durante uma tormenta. Todas as coisas que antes pareciam garantir sua vantagem sobre os israelitas se tornam desvantagens. Em pânico e em movimento, eles matam uns aos outros com suas espadas, não os israelitas. Seus carros e cavalos são inúteis, uma vez que os animais aterrorizados se recusam a obedecê-los; fendas escancaram-se no solo e pedras rolam de todos os lados acima do passo. Em todos os lugares prevalece o pânico absoluto, impedindo qualquer ataque e atrapalhando qualquer retirada. Os filisteus se tornam seus próprios e piores inimigos, matando uns aos outros na insanidade daqueles momentos.
Que texto incrível, de onde se extraem muitos princípios e implicações para nós, cristãos da atualidade.
A primeira área de instrução e aplicação que salta desta passagem é a questão da liderança. Nos círculos cristãos atuais, a questão da liderança é a área principal das meditações, escritos e discussões. Infelizmente, muitas coisas ensinadas sobre liderança nos chamados círculos cristãos é simplesmente teoria secular, requentada e sacralizada. Uma vez que há uma infinidade desse material, não precisamos repetir o conceito secular de liderança. Saul e Jônatas proporcionam exemplos de liderança espiritual positiva e negativa. As palavras confiar e obedecer talvez não resumam tudo o que há para ser dito sobre a vida cristã mas, com certeza, descrevem as duas dimensões de maior importância. Saul é um homem quase sem fé. A palavra “medo” parece caracterizá-lo melhor. Ele teme dizer a seu tio que Samuel o ungiu como rei de Israel. Ele se esconde na bagagem quando sabe que será publicamente eleito como rei. Ele tem medo de perder suas tropas e por isso se vê forçado a oferecer o holocausto. E, parece que ele teme tanto enfrentar os filisteus, que faz o mínimo possível para atacá-los ou provocá-los.
O “Saul” que vemos no capítulo 11 é o “novo Saul”, que Deus faz surgir quando o Espírito desce poderosamente sobre ele. Mas este Saul não parece ir além do capítulo 11. É o “velho Saul” que encontramos em outros lugares. É o “velho Saul” que vemos descrito nos capítulos 13 e 14. Quando o “novo Saul” reúne os israelitas para a guerra, 330.000 se apresentam. Quando o “velho Saul” reúne Israel para ir a Gilgal, apenas uma pequena fração deste número se apresenta, e muitos deles desertam de medo. O medo de Saul é contagioso. Uma vez que ele não confia em Deus, nem O obedece, seus seguidores não confiam nele, nem o obedecem.
Como Jônatas é diferente - eis um homem de fé. Ele confia que Deus lhe dará a vitória sobre a guarnição dos filisteus no capítulo 13. Ele está disposto a enfrentar os filisteus no passo de Micmás, mesmo que isto envolva ter que escalar um penhasco íngreme com sua armadura, seguido unicamente por seu servo. Este é um homem que confia em Deus apesar da aparência das circunstâncias. E eis um homem que seu escudeiro está disposto a seguir na batalha, mesmo que isto pareça suicídio. Por que? Creio que é porque Jônatas não é apenas um homem de fé, mas um homem cuja fé é contagiosa. Os que estão com Saul tremem porque ele treme. Os que estão perto de Jônatas confiam em Deus porque ele confia.
Isto leva a uma definição muito simples de liderança espiritual:
Liderança espiritual começa com fé em Deus, a qual compele um homem a agir obedientemente, a despeito dos obstáculos e das circunstâncias adversas, e faz com que outros o sigam em sua obediência.
Enfim, liderança espiritual não é uma questão de aparência, charme ou técnicas de administração e motivação. Liderança espiritual é uma questão de homens e mulheres que confiam em Deus e obedecem à Sua palavra e, desta forma, levam outros a confiarem e a obedecerem com eles. Saul não é um líder espiritual, Jônatas é.
Uma segunda aplicação diz respeito à nossa avaliação do êxito dos líderes. Deixe-me tentar afirmar isto como princípio:
Quando os líderes são bem sucedidos, em última análise, é devido à graça de Deus e, muitas vezes, pode ser conseqüência da fidelidade de outras pessoas cujos ministérios de apoio não sejam tão evidentes.
Considere estes versos que falam sobre o êxito da liderança de Saul:
“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Sam. 14:47-48)
Não desejo tirar todo o crédito de Saul, mas realmente creio que nosso texto deixa bem claro que ele só é bem sucedido devido à graça de Deus, não devido à sua própria habilidade, coragem ou poder. E a vitória de Israel sobre os filisteus não é devido à sua iniciativa, mas devido à iniciativa de seu filho. Quantas vezes são aclamados como grandes líderes os que recebem as glórias pertencentes àqueles que, por detrás dos panos, os tornam grandes? São muitos os que procuram os refletores. Bem-aventurados aqueles que fazem seus superiores parecerem bem, enquanto se afastam dos refletores.
Uma terceira área de aplicação é a relação entre fé e ação. Pelo contraste entre ambos, Jônatas e Saul ilustram a maneira como a fé se comporta. Às vezes, a fé é demonstrada pela nossa espera, não pelo nosso trabalho. A fé espera quando nosso trabalho seria fruto de nossa desobediência. Abraão deveria ter esperado pelo filho prometido ao invés de tê-lo com Agar. Saul deveria ter esperado ao invés de oferecer o holocausto. Quando não existe maneira de agirmos com fé e obediência, devemos esperar que Deus aja de maneira que supra as nossas necessidades.
Em outras ocasiões, somos inclinados a esperar quando a fé deveria ser demonstrada pelas nossas obras. Saul, que não poderia esperar por Samuel (mesmo tendo sido ordenado a isso), está mais do que disposto a esperar para livrar Israel do cativeiro dos filisteus, que não só ocupam sua terra (suas guarnições), mas também oprimem economicamente os israelitas com o monopólio da exploração do ferro. Um agricultor não poderia sequer sustentar-se sem pagar caro por suas ferramentas, e depois pagar muitas outras vezes para mantê-las (afiadas). Saul parece ter intenção de manter seu status junto aos filisteus. Ele pode (e aparentemente o faz) esperar indefinidamente para expulsá-los de Israel. Eis uma ação necessária que requer fé; no entanto, Saul quer esperar. Seus ataques às suas guarnições provocam um confronto militar que resulta na derrota dos filisteus - e na glória de Deus. Quantas vezes esperamos quando deveríamos agir e agimos quando deveríamos esperar. Como saber quando agir? Quando a palavra de Deus nos instrui a isso. Quando esperar? Quando a palavra de Deus nos instrui a tal, e quando agir demonstra nossa falta de fé e nossa desobediência.
Quarto, como muitos outros, o nosso texto nos dá uma perspectiva inteiramente nova das situações que parecem impossíveis. Aqui, como em outros lugares, Deus conduz Seu povo a circunstâncias aparentemente impossíveis. Vemos novamente um princípio muito importante ilustrado em nosso texto:
Deus intencionalmente leva os homens a situações “impossíveis” para deixar perfeitamente claro que não podemos salvar a nós mesmos, e que Ele nos liberta de forma que toda a glória seja dada a Ele.
Em outro lugar na Bíblia lemos:
“Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura.” (Isaías 42:8)
Diversas vezes na Bíblia Deus coloca os homens em situações impossíveis a fim de poder salvá-los de maneira a receber toda a glória por isso. Ele prometeu um filho a Abrão e Sarai, os quais, humanamente falando, estavam “mortos” com relação a poder ter filhos (ver Romanos 4:19), e eles tiveram um filho. Jesus sabia que Lázaro estava doente mas, deliberadamente esperou que ele estivesse morto para ir ao seu túmulo (ver João 11), a fim de poder demonstrar Seu poder sobre a morte ao ressuscitá-lo de entre os mortos.
Deus ama mostrar Sua força através das nossas fraquezas. O capítulo 13 de I Samuel mostra Israel e Saul em toda a sua fraqueza. Os soldados israelitas estão completamente inferiorizados em número e totalmente ultrapassados em suas armas. A despeito do que parece ser uma situação sem esperança, Deus lhes proporciona uma importante vitória sobre os filisteus. E isto acontece porque dois homens (um sem espada) confiam em Deus o suficiente para enfrentar os filisteus. Deus transforma o tremor dos israelitas no tremor de um terremoto, tão poderoso que traz confusão e caos às fileiras filistéias e, a maior parte dos que morrem ao fio da espada, morrem pelas mãos de seus irmãos filisteus.
Muitos cristãos parecem ter fé somente quando a vitória parece ser possível devido a esforços humanos, mas desmoronam quando as circunstâncias parecem impossíveis. Precisamos aprender com Jônatas que a vitória de Deus não depende das nossas forças, e com o apóstolo Paulo que a Sua força é manifestada através das nossas fraquezas (ver I Samuel 14:6; II Coríntios 12:9-10).
A ênfase nos círculos seculares (e, infelizmente, também nos círculos evangélicos) está no “poder do pensamento positivo”. Talvez haja ali um elemento de fé, mas há também um erro muito grave. Deus não é limitado por nossas habilidades, como demonstra a libertação de Saul, Jônatas e Israel dos filisteus. E Deus não é limitado pela nossa imaginação, nem pelos nossos pensamentos.
“mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam.” (I Co. 2:9)
“Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém!” (Ef. 3:20-21)
Deus leva os pecadores ao ponto do desespero e da desesperança (em suas condições, em seu “fanatismo” e em seus pecados) para que deixem de confiar em si mesmos e se voltem para Ele. O que nenhum homem jamais foi capaz de fazer para salvar a si mesmo, Jesus Cristo o fez na cruz do Calvário. Ele viveu uma vida de perfeita obediência a Deus. Ele morreu, não por seus próprios pecados, mas pelos pecados dos homens. Jesus pagou a pena pelos nossos pecados e oferece aos homens pecaminosos e indignos o dom da Sua justiça e da vida eterna. Jesus pagou por tudo. Tudo o que precisamos fazer é admitir nosso pecado, nossa corruptibilidade e nossa total incapacidade de salvar a nós mesmos. O que é impossível aos homens é possível para Deus:
“Mas ele respondeu: Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus.” (Lc. 18:27)
Você já chegou ao seu limite? Já percebeu que receber o favor de Deus e alcançar o céu são coisas humanamente impossíveis? Se já, isto é uma bênção, se confia em Jesus Cristo para sua salvação.
Vamos concluir nosso estudo louvando a Deus junto com o apóstolo Paulo por Sua sabedoria em realizar coisas que achamos impossíveis, por meios que jamais poderíamos imaginar:
“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)
Mark Twain estava na cidade de São Francisco quando o terremoto de 1865 abalou a cidade; ele descreveu seu primeiro terremoto com as seguintes palavras:
“Foi logo depois do almoço, num dia ensolarado de outubro. Eu descia a Rua Três. As únicas coisas em movimento naquele denso e povoado quarteirão eram um homem numa carruagem atrás de mim e um bonde terminando lentamente a travessia da rua. Fora isso, era um sábado calmo e tranqüilo.
Conforme virei a esquina, próximo a uma casa apainelada, havia um grande tumulto e gritaria, e ocorreu-me que ali havia assunto para uma matéria! Sem dúvida havia uma briga naquela casa. Antes que eu pudesse me virar e procurar pela porta, ocorreu um tremendo choque; debaixo de mim o chão parecia ondular suspenso por um violento sacolejo, e havia um barulho ensurdecedor como o de casas em atrito. Caí de encontro à casa e machuquei meu cotovelo. Agora eu sabia o que era... aconteceu um terceiro choque ainda mais forte e, enquanto eu cambaleava na calçada tentando manter o equilíbrio, vi uma coisa espantosa. Toda a frente de um alto edifício de tijolos da Rua Três abriu-se como uma porta e caiu, desmoronando no meio da rua e levantando uma grande nuvem de poeira!
E aí veio a carruagem - o homem foi lançado prá fora e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, o veículo desmanchou-se em mil pedaços ao longo de 300 jardas de rua... O bonde tinha parado, os cavalos estavam empinando e refugando, e os passageiros jorrando de todos os lados... Cada porta de cada casa, tão longe quanto a vista pudesse alcançar, vomitavam uma torrente de seres humanos; e antes mesmo que alguém pudesse piscar, havia uma enorme multidão enfileirando-se numa procissão infindável que descia pelas ruas até onde eu estava. Nunca um lugar tão deserto ficou tão fervilhante de vida com tanta rapidez.
Terremotos são experiências assombrosas. Lembro-me muito bem do terremoto que ocorreu quando eu lecionava para os alunos da 6ª série no Estado de Washington. Duvido que os sobreviventes filisteus da época de Saul tenham se esquecido do terremoto ocasionado por Deus, que os levou à derrota às mãos de Deus e de Seu povo, Israel. A vitória de Israel foi grande, mas não foi o que poderia ter sido. Nosso texto faz o contraste entre a fé e a coragem de Jônatas e a loucura de seu pai, Saul. Vamos prestar bastante atenção à nossa passagem para ver o que é que distingue este filho de seu pai.
Apesar de sua designação como rei de Israel e de sua vitória decisiva sobre os amonitas, Saul parece determinado a não “criar caso” com os filisteus que ocupam Israel. O domínio dos filisteus sobre o povo de Deus é claro em vários aspectos. Suas guarnições estão acampadas em território israelita (ver I Sam. 10:5; 13:3) e os israelitas são rigorosamente limitados na posse e na utilização do ferro. Eles podem ser ferreiros, mas não podem ter armas de ferro (espadas, por exemplo), e pagam caro pelo uso das ferramentas agrícolas (I Sam. 13:19-23). Apesar da opressão dos filisteus, de sua designação como rei e de sua capacitação divina (ver cap. 9 e 10), Saul prefere mandar prá casa os 330.000 soldados que convoca para livrar os cidadãos de Jabes-Gileade. Ele fica apenas com um exército básico de 3.000 homens. Parece que isto é para manter seu status junto aos filisteus.
Jônatas não está disposto a deixar a situação como está. Com seus 1.000 homens ele ataca a guarnição dos filisteus em Geba (13:3), provocando um poderoso contra-ataque filisteu (13:5 e ss). Saul não tem outra escolha, a não ser convocar os israelitas para a guerra, embora apenas um pequeno número se apresente, e muitos desertem quando percebem a situação desesperadora de Israel (humanamente falando). Alguns abandonam Saul para encontrar um lugar onde se esconder dos filisteus, enquanto outros desertam e se juntam a eles (13:6; 14:21-22). Saul reúne as tropas em Gilgal, aparentemente segundo as instruções de Samuel (10:8). Mas, quando parece que Samuel não chegará no prazo determinado, Saul vai em frente e oferece o holocausto. Samuel chega assim que a oferta é feita e repreende Saul por sua desobediência, mostrando que isto lhe custará um reino duradouro (13:11-14).
A guerra entre israelitas e filisteus não vai nada bem. Além dos filisteus sobrepujarem os israelitas em homens e em armas, os poucos soldados israelitas que restam estão apavorados, e Saul parece paralisado. Ao mesmo tempo, os filisteus acampados em Micmás despacham grupos de saqueadores que causam destruição e devastação por onde passam (o que parece ser em qualquer lugar que queiram - ver 13:15-18).
Se Saul não está disposto a tomar a iniciativa de lutar contra os filisteus, Jônatas está. Ele e seu escudeiro se preparam secretamente para lutar com os filisteus. Eles descem um íngreme penhasco e escalam o outro lado, quando a reação dos filisteus à sua presença mostra que Deus dará a vitória a Israel. Quando os dois bravos israelitas alcançam o topo, eles travam batalha com seus inimigos, matando 20 deles num espaço de meio acre (14:1-4). Nesse ponto da batalha, Deus intervém divinamente com um assombroso terremoto, o qual enfraquece e dispersa os filisteus. Voltamos à nossa lição no começo desse terremoto.
“Houve grande espanto no arraial, no campo e em todo o povo; também a mesma guarnição e os saqueadores tremeram, e até a terra se estremeceu; e tudo passou a ser um terror de Deus. Olharam as sentinelas de Saul, em Gibeá de Benjamim, e eis que a multidão se dissolvia, correndo uns para cá, outros para lá. Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. Contaram, e eis que nem Jônatas nem o seu escudeiro estavam ali. Saul disse a Aías: Traze aqui a arca de Deus (porque, naquele dia, ela estava com os filhos de Israel). Enquanto Saul falava ao sacerdote, o alvoroço que havia no arraial dos filisteus crescia mais e mais, pelo que disse Saul ao sacerdote: Desiste de trazer a arca. Então, Saul e todo o povo que estava com ele se ajuntaram e vieram à peleja; e a espada de um era contra o outro, e houve mui grande tumulto. Também com os filisteus dantes havia hebreus, que subiram com eles ao arraial; e também estes se ajuntaram com os israelitas que estavam com Saul e Jônatas. Ouvindo, pois, todos os homens de Israel que se esconderam pela região montanhosa de Efraim que os filisteus fugiram, eles também os perseguiram de perto na peleja. Assim, livrou o SENHOR a Israel naquele dia; e a batalha passou além de Bete-Áven.”
Lembro-me muito bem do dia em que fiz algo errado na aula de ginástica e meu professor da 6ª série, Sr. Johnstone, me pegou e me sacudiu contra a parede. Entendi a mensagem alta e clara. Os filisteus também entendem a mensagem, bem mais alto e bem mais claro. Mesmo um terremoto “normal” (se é que existe tal coisa) teria abalado os filisteus, mas este parece extraordinário. O momento é perfeito, vindo logo após a rápida vitória de Jônatas e seu servo. O terremoto parece restrito aos lugares onde estão os filisteus. Nosso texto não dá nenhuma indicação de que os israelitas sintam ou sejam aterrorizados pelo abalo. Na verdade, por essa narrativa, é possível que os israelitas nem mesmo saibam qual a razão para tal pânico entre os filisteus. É um terremoto de Deus, e seu impacto é assustador.
Desde que nunca sentimos um terremoto como este em Dallas, Texas, talvez seja útil lermos alguns relatos de pessoas que foram aterrorizadas pelos efeitos de um terremoto.
“Na última sexta-feira, 9 de janeiro, a cidade de Santa Bárbara foi acometida por uma sucessão de abalos sísmicos, um dos quais foi o mais forte que sentimos deste lado da costa em muitos anos...
Nesta cidade, a manhã de um dia movimentado foi precedida por um sol ameno; o ar estava tranqüilo e nenhum fenômeno atmosférico incomum indicava a aproximação de qualquer perigo... Por volta das 8h30min, ou às 8h22min, de acordo com aqueles que afirmam ter a “hora exata”, começou o abalo mais forte, que durou de 40 a 60 segundos. Ele foi sentido em toda a cidade e suas vibrações foram tão violentas que todos os habitantes fugiram de suas casas, a maioria dos quais, de joelhos e com os corações palpitantes de terror, fazia preces fervorosas para que o perigo iminente e ameaçador fosse providencialmente afastado.”
Um patrulheiro da Califórnia assim descreve sua experiência:
“Era como se eu estivesse dentro de um misturador de tinta. Sem nenhum aviso, a casa começou a chacoalhar violentamente de um lado para outro. Eu descansava na sala de estar lendo o jornal de domingo quando o terremoto nos atingiu. Meu primeiro pensamento foi que um carro tivesse colidido com a casa ou que um avião tivesse caído. Mas aí continuou e eu soube o que era.
Meu aparelho de som caiu da estante, enquanto eu tentava ficar em pé para sair da casa. Eu só queria sair dali. Mas, quando tentei descer para outro andar, não consegui. Após alguns segundos, os abalos acalmaram um pouco e fui capaz de me levantar e levar minha esposa para fora, para o terreno em frente...”
Um jogador, a caminho do campo de golfe na manhã do terremoto de Santa Bárbara de 1925, o descreve desta forma:
“Fiquei hipnotizado por um rugido, algo que jamais ouvi antes, que possa explicar racionalmente, ou que espere ouvir novamente, aí fui levantado e sacudido violentamente como se algum monstro me tivesse pegado pelos ombros com a única intenção de arrancar minha cabeça. Tudo o que consegui fazer foi ficar em pé. As colinas pareciam subir e descer - não, eu estava perfeitamente bem, sem visões - a ondulação da paisagem sendo claramente visível por todos os lados. Não eram só aquelas sacudidelas sentidas de vez em quando em algumas partes do Estado, mas um balanço longo e prolongado que, creio, poria muitas das nossas montanhas-russas de praia num chinelo.
Dois ou três segundos antes do verdadeiro abalo, o rugido que o precedeu parecia vir de muito longe, mas veio com a rapidez de uma bala.”
O medo paralisante produzido por um terremoto é demonstrado nesta narrativa feita pelo encarregado de uma casa de máquinas no terremoto de Santa Bárbara de 1925:
“Não é preciso dizer que muitos escaparam por um triz de sofrer lesões pessoais e darei aqui apenas dois exemplos dos estranhos efeitos surtidos em dois homens geralmente normais. Um deles é um operador de caldeira que estava na extremidade leste da casa de máquinas. Os tijolos estavam caindo da parede leste, enormes pedaços de pedra eram lançados a uma distância de 12 pés; a parte do teto acima dele desabou e foi parar na locomotiva. Este homem tem uma natureza ousada e destemida, no entanto, ficou tão assustado que suas pernas ficaram bambas; depois de um forte ataque de náuseas ele conseguiu rastejar para fora ileso e sem auxílio...”
Imagine como deve ter sido para um soldado filisteu. O tremor pode ter sido precedido por um estrondo, que alguns descrevem como sendo mais forte que o estrondo de 1.000 canhões. A terra começa a sacudir para cima e para baixo. Num único tremor calcula-se que o solo se mova verticalmente até 2 polegadas, e até 240 vezes por minuto. O solo se encrespa como as ondas do mar, fazendo com que os soldados rodopiem e caiam. E, então, o pior de todos os talvezes, o solo se move horizontalmente, sendo este movimento mais abrangente e devastador.
Pense no que pode ter acontecido nesse dia. Chega aos ouvidos do acampamento principal a notícia de que alguém (Jônatas e seu escudeiro) atacou o posto da guarda e causou muitas baixas. Os “saqueadores”, ou destruidores, enviados para matar e destruir, estão aterrorizados. Eles são as “forças especiais” do dia. O acampamento principal está em alerta total e as tropas são convocadas para formação de batalha. Com suas temíveis espadas desembainhadas e apontadas para frente (algo como baionetas), o exército se dirige para frente de batalha. Naquele instante, o rugido do terremoto assusta as tropas. À medida que avançam, o chão treme e se encrespa debaixo deles. Os homens começam a cair. E então, quando o chão se move horizontalmente, as espadas daqueles que estão atrás traspassam as costas desprotegidas dos homens que estão à sua frente. Os homens à frente, em pânico e talvez pensando que o inimigo esteja atrás, se voltam e atacam as pessoas atrás deles - de modo que muitos jazem mortos, todos pelos “golpes de suas próprias tropas”.
Posso não ter todos os detalhes precisos, mas as conseqüências são parecidas. Os filisteus ficam incapacitados e aterrorizados pelo terremoto. Em pânico absoluto, eles se voltam uns contra os outros e se matam uns aos outros com suas espadas. Todas as baixas são conseqüência de uma luta entre os próprios filisteus, antes que os israelitas entrem em combate com eles. Sem dúvida, isto é um “terror de Deus” (I Sam. 14:15). Deveríamos temer diante desta poderosa intervenção de Deus a favor de Israel. Seus sentinelas observam como Deus traz o caos e a derrota ao poderoso exército filisteu. Eles podem não saber que isto é causado por um terremoto, mas podem ver os soldados se movendo prá lá e prá cá, em ondas. É por causa do movimento do solo? É porque o solo está se abrindo? Nós não sabemos, e duvido que os sentinelas israelitas soubessem. Mas, pelo que vêem e ouvem, sabem que algo extraordinário está acontecendo.
O leitor deve estranhar a reação de Saul. A primeira coisa que ele faz é contar suas tropas, não para se preparar para a batalha, mas para saber quem está faltando. Discordo da maneira que os tradutores da Nova Versão King James interpretam o versículo 17:
“Então, disse Saul ao povo que estava com ele: Ora, contai e vede quem é que saiu dentre nós. E quando eles contaram, surpreendentemente, Jônatas e o seu escudeiro não estavam ali.” (I Sam. 14:17 NVKJ)
A palavra “observar” da Nova Versão Padrão Americana é, de longe, a maneira mais comum para traduzir esta expressão hebraica. O termo pode ser uma expressão de surpresa, que é a maneira como a NVKJ traduz. Vejo-a de modo totalmente contrário. Apesar de ser muito reticente em oferecer minha própria tradução, penso que o contexto geral e o termo hebraico em si confirmem esta tradução:
17 E então Saul disse àqueles que estavam com ele: “Por favor, contem as tropas para que possamos ver quem saiu de entre nós.” E eles contaram e como previsto Jônatas e seu escudeiro saíram. (minha tradução/paráfrase de I Sam. 14:17)
Saul não está surpreso. Quando as tropas são contadas, o resultado é exatamente aquilo que ele teme. Pense nisso. Tudo vai relativamente bem com os filisteus (pelos padrões de Saul), até que Jônatas bagunça tudo atacando sua guarnição em Geba (I Sam. 13:3). Este completo desastre (como Saul o vê), com o levantamento em massa dos filisteus em Micmás, é culpa de Jônatas. Ele não pode deixar isso prá lá. Agora, quando os dois exércitos estão acampados e em guerra um contra o outro, Saul maneja as coisas para evitar mais ação (aí ele se senta sob a romãzeira - 14:2) e, de repente, há a maior confusão entre os filisteus. Alguma coisa tem que causar este tumulto. Saul não pensa primeiro em Deus, mas em seu filho desordeiro, Jônatas. Ao contar as tropas, ele é capaz de descobrir quem não está entre eles, e então deduzir quem causou todo este problema - de novo.
Finalmente, Saul decide consultar a Deus - agora que está “num beco sem saída”, como se diz. Naquela época havia várias maneiras de se discernir a vontade de Deus. Um profeta, obviamente, poderia falar diretamente da parte de Deus, mas Samuel deixou Saul em Gilgal devido à sua desobediência (ver 13:8-14). Há a estola sacerdotal, vestida e usada pelo sacerdote, que está ali com Aías, o sacerdote (14:3), mas Saul não requer seu uso. Em vez disto, ele manda buscar a arca da aliança. De certa maneira, isso envolve a intervenção do sacerdote Aías para que a vontade de Deus seja conhecida. Parece que este processo leva algum tempo. Se este fosse um aparelho elétrico (de válvula, é claro), ele estaria “aquecendo”. Todos sabemos que Saul não é muito paciente (ver cap. 13). O tumulto no acampamento filisteu fica tão grande que até Saul conclui que um ataque contra eles signifique vitória certa para Israel. Assim, ele instrui o sacerdote a reter a mão, para “desligar o aparelho da vontade de Deus”. Saul e seus homens vão então atrás dos apavorados e feridos filisteus, que estão se matando uns aos outros. Conforme os soldados israelitas se aproximam, podem ver com mais clareza a vitória operada por Deus.
Hesitantes, os guerreiros vão para a batalha contra os filisteus. Jônatas e seu escudeiro lideram a investida; Saul segue um tanto relutante, bem depois de a vitória estar assegurada. Junto com Saul e seus 600 homens estão aqueles que desertaram das fileiras de seu exército e venderam seus serviços aos filisteus (14:21). Quando aqueles que fugiram de Saul e se esconderam nas colinas vêem a derrota e retirada dos filisteus, eles também se juntam a Saul, a fim de multiplicar suas forças.
“Estavam os homens de Israel angustiados naquele dia, porquanto Saul conjurara o povo, dizendo: Maldito o homem que comer pão antes de anoitecer, para que me vingue de meus inimigos. Pelo que todo o povo se absteve de provar pão. Todo o povo chegou a um bosque onde havia mel no chão. Chegando o povo ao bosque, eis que corria mel; porém ninguém chegou a mão à boca, porque o povo temia a conjuração. Jônatas, porém, não tinha ouvido quando seu pai conjurara o povo, e estendeu a ponta da vara que tinha na mão, e a molhou no favo de mel; e, levando a mão à boca, tornaram a brilhar os seus olhos. Então, respondeu um do povo: Teu pai conjurou solenemente o povo e disse: Maldito o homem que, hoje, comer pão; estava exausto o povo. Então, disse Jônatas: Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por ter eu provado um pouco deste mel. Quanto mais se o povo, hoje, tivesse comido livremente do que encontrou do despojo de seus inimigos; porém desta vez não foi tão grande a derrota dos filisteus.” (I Sam. 14:24-30)
É uma derrota dos filisteus e uma vitória de Deus, mas não é a vitória que poderia ter sido; poderia ser muito mais categórica. Nos versos 24 a 30 o autor explica por que a vitória não é aquilo que poderia e deveria ter sido. Em resumo, os soldados israelitas estão “angustiados” nesse dia, de modo que não conseguem perseguir e destruir mais filisteus. O único responsável pela aflição de Israel é nenhum outro senão seu rei, Saul. É seu conjuramento insano que atrapalha os soldados israelitas.
Parece que a imagem de Saul entrou em decadência desde a sua impressionante vitória sobre os amonitas em Jabes-Gileade no capítulo 11. Saul é humilhado pelos filisteus, não só pela ocupação de Israel, mas também pela maneira como tiram proveito da tecnologia do ferro (13:19-23). A maior parte das dificuldades de Saul é conseqüência direta do ataque de Jônatas aos filisteus. Agora, quando vê que os filisteus estão sendo derrotados pelos israelitas, ele resolve fazê-los pagar por sua humilhação. Sua luta contra eles vira uma questão pessoal. Não é uma batalha de Deus, ou mesmo de Israel; é sua batalha e sua vitória. Por isso, Saul coloca seus homens sob juramento: ninguém deve comer até o anoitecer. Os homens devem lutar com o estômago vazio. Saul parece raciocinar que isto evitará uma valiosa perda de tempo (e luz do dia?), parando para preparar e comer a refeição. (Uma vez que Saul não planejou esta batalha, nem ele nem seus homens estão realmente preparados para os acontecimentos do dia). Na pressa, não há rações prontas para os homens comerem, ou assim parece a Saul. Por isso, ele proíbe seus homens de comerem durante o dia, e eles lutam o dia inteiro sem comida.
Saul está errado em duas coisas. Primeiro, está errado em pensar que sua ordem produzirá uma vitória maior dos israelitas sobre os filisteus. Saul parece achar que suas ordens resultarão em mais tempo de perseguição à preciosa luz do dia e, assim, mais filisteus serão mortos. Não funciona desse jeito. À medida que os filisteus procuram fugir para seu país, a batalha se alastra para leste, primeiro para Bete-Áven (14:23) e depois para Aijalom (14:31). Os israelitas os perseguem por mais de 20 milhas de território montanhoso, e isto sem comer. Eles ficam exaustos e debilitados pela fome, e não conseguem perseguir seus inimigos com tanta eficácia quanto se estivessem bem alimentados.
Saul está errado ainda numa segunda coisa. Está errado em supor que a única maneira de alimentar seus guerreiros é com “comida caseira”, o que levará muito tempo. Afinal, não é dia de “comida pronta” e Saul acha que não existe nenhuma chance de conseguir uma rápida fonte de energia. Ele está errado. Deus tem uma comida “mais do que pronta” disponível. Ele colocou estrategicamente um favo de mel na floresta, e comê-lo não demora absolutamente nada. Os soldados, da mesma maneira que Jônatas, só precisam enfiar a ponta da vara no mel, tirá-la e levá-la à boca. Não existe comida mais rápida, ou melhor, nos arredores. Este é o alimento mais perfeito e mais natural que alguém poderia esperar. Faz “Gatorade” parecer patético.
Jônatas não ouve a ordem de Saul até que seja muito tarde. Ele está ocupado demais atacando e lutando com os filisteus para se sentar no acampamento esperando que Saul passe um decreto. E assim, enquanto persegue os filisteus, as forças de Saul se juntam a ele. Quando Jônatas se alimenta com o mel, um dos homens o informa sobre a ordem ridícula de Saul. Jônatas diz aquilo que a maioria de nós deve estar pensando neste momento: “Meu pai turbou a terra; ora, vede como brilham os meus olhos por eu ter provado um pouco deste mel.” (14:29) Seu pai deve ser louco e egoísta para não deixar seus homens se alimentarem. Se os israelitas pudessem fazer o mesmo que ele, a vitória seria muito maior. Saul não é a fonte dos sucessos militares de Israel, mas um empecilho a eles. As vitórias de Israel são mais a despeito de seu rei do que conseqüências de sua liderança. Todos os soldados israelitas devem pensar isto, e Jônatas simplesmente tem coragem de dizê-lo.
“Feriram, porém, aquele dia aos filisteus, desde Micmás até Aijalom. O povo se achava exausto em extremo; e, lançando-se ao despojo, tomaram ovelhas, bois e bezerros, e os mataram no chão, e os comeram com sangue. Disto informaram a Saul, dizendo: Eis que o povo peca contra o SENHOR, comendo com sangue. Disse ele: Procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra. Disse mais Saul: Espalhai-vos entre o povo e dizei-lhe: Cada um me traga o seu boi, a sua ovelha, e matai-os aqui, e comei, e não pequeis contra o SENHOR, comendo com sangue. Então, todo o povo trouxe de noite, cada um o seu boi de que já lançara mão, e os mataram ali. Edificou Saul um altar ao SENHOR; este foi o primeiro altar que lhe edificou.”
Já é ruim o suficiente quando as bobagens de Saul impedem uma grande vitória de Israel, mas é indesculpável quando sua ordem resulta em pecado. Obedientemente, os israelitas acatam a ordem insana de Saul para não comer até o anoitecer. E, devido à sua fadiga, menos filisteus são mortos. Mas, quando o dia chega ao fim, o povo faminto encontra o gado deixado por seus inimigos. É triste dizer que os soldados israelitas temem mais desobedecer as ordens de Saul do que temem desobedecer as leis de Deus. Os soldados famintos devoram o rebanho sem prepará-lo adequadamente, e por isso, acabam pecando (Lv. 17:10; 19:26).
Alguém diz a Saul que Israel está pecando desse jeito (14:33). Se alguém não lhe tivesse dito, seria de admirar que Saul tivesse percebido. Em vez de assumir a responsabilidade por ser uma “pedra de tropeço” a seus compatriotas, a justiça própria de Saul aponta seu dedo acusador para os homens famintos: “procedestes aleivosamente; rolai para aqui, hoje, uma grande pedra.” (14:33b) Esta é uma tentativa de minimizar os prejuízos causados pelo próprio Saul com sua ordem insana. Pelo menos ele está preocupado em impedir que seus homens cometam mais pecado.
Duas coisas parecem estranhamente irônicas quanto ao fato de Saul edificar um altar de pedra na noite em que os israelitas fazem suas “ofertas”. Primeiro, esta adoração mal pode ser chamada de sincera, tanto da parte dos israelitas, quanto da parte de Saul. Ela é simplesmente uma forma de santificar a satisfação do apetite dos soldados para que não pequem mais. E, quando é dito que este é o primeiro altar edificado por Saul, também não ficamos impressionados. Será que Saul precisa passar por esse tipo de crise para adorar a Deus? Será que ele só constrói altares em tempos de crise? Eu não chamaria este de um “momento santo” na história de Israel. Eles estão simplesmente cobrindo suas apostas, minimizando o dano causado pelo pecado, pecado este induzido por Saul e praticado por seus soldados.
Segundo, esta “refeição” é muito irônica. Saul proíbe seus soldados de comerem antes do anoitecer, embora a “comida pronta” providenciada por Deus não demore mais do que alguns minutos (como vemos pelo fato de Jônatas se satisfazer durante o combate). Saul acredita que comer será perda de tempo e um empecilho à capacidade de Israel de obter uma grande vitória. Mesmo assim os israelitas perseguem seus inimigos noite adentro; só que estão tão famintos e tentados pelos despojos de guerra, que pecam na maneira de comê-los. Para corrigir a situação, Saul tem que construir um altar e depois garantir que o sacrifício de cada homem seja feito e preparado de forma correta. Quanto tempo você acha que levou esta “refeição”? Isto é ineficiência!
“Disse mais Saul: Desçamos esta noite no encalço dos filisteus, e despojemo-los, até o raiar do dia, e não deixemos de resto um homem sequer deles. E disseram: Faze tudo o que bem te parecer. Disse, porém, o sacerdote: Cheguemo-nos aqui a Deus. Então, consultou Saul a Deus, dizendo: Descerei no encalço dos filisteus? Entregá-los-ás nas mãos de Israel? Porém aquele dia Deus não lhe respondeu. Então, disse Saul: Chegai-vos para aqui, todos os chefes do povo, e informai-vos, e vede qual o pecado que, hoje, se cometeu. Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto. Porém nenhum de todo o povo lhe respondeu. Disse mais a todo o Israel: Vós estareis de um lado, e eu e meu filho Jônatas, do outro. Então, disse o povo a Saul: Faze o que bem te parecer. Falou, pois, Saul ao SENHOR, Deus de Israel: Mostra a verdade. Então, Jônatas e Saul foram indicados por sorte, e o povo saiu livre. Disse Saul: Lançai a sorte entre mim e Jônatas, meu filho. E foi indicado Jônatas. Disse, então, Saul a Jônatas: Declara-me o que fizeste. E Jônatas lhe disse: Tão-somente provei um pouco de mel com a ponta da vara que tinha na mão. Eis-me aqui; estou pronto para morrer. Então, disse Saul: Deus me faça o que bem lhe aprouver; é certo que morrerás, Jônatas. Porém o povo disse a Saul: Morrerá Jônatas, que efetuou tamanha salvação em Israel? Tal não suceda. Tão certo como vive o SENHOR, não lhe há de cair no chão um só cabelo da cabeça! Pois foi com Deus que fez isso, hoje. Assim, o povo salvou a Jônatas, para que não morresse.”
Finalmente, depois de uma espera recorde pelo jantar, a refeição está terminada. Agora Saul está pronto para lutar - mas, e Deus? Saul ordena que seus homens voltem à batalha para causar mais danos ao exército filisteu e obter mais despojos. O povo consente com ele. Eles estão prontos para voltar à batalha. Mas o sacerdote não está tão certo disto. Ele insiste em primeiro buscar a vontade de Deus. Quando Saul consulta a Deus, ele espera um “sim” ou ”não” como resposta. “Descerei no encalço dos filisteus? Entrega-los-á nas mãos de Israel?”
Saul tira uma porção de conclusões precipitadas. Primeiro ele conclui que, uma vez que não obteve resposta, deve ser porque alguém pecou. Parece não lhe ocorrer que o pecado seja dele mesmo ou de seus soldados por comerem carne sem drenar adequadamente o sangue. Ele presume que haja pecado, e que este pecado seja uma violação à sua ordem insana (não da lei de Deus). Além disso, ele presume que é bem possível que tenha sido Jônatas o culpado por este pecado. E finalmente ele conclui que este “pecado” seja digno de morte. Não creio que seja por coincidência que ele diga: “Porque tão certo como vive o SENHOR, que salva a Israel, ainda que com meu filho Jônatas esteja a culpa, seja morto.” (v. 39) Por que, dentre os milhares de homens que estão com ele, Saul se concentra em Jônatas, seu filho? Receio saber o porquê, e não gosto disto em absoluto. Creio que o filho de Saul, Jônatas, é um homem muito parecido com Davi. Na guerra, Saul conclui que Jônatas seja, na melhor das hipóteses, uma amolação, e, com certeza, um obstáculo. Creio que ele esteja procurando uma desculpa para dar cabo de Jônatas, e esta situação parece perfeita para a ocasião. Antes que a sorte seja lançada, Saul deixa claro que, se Jônatas for indicado, ele morrerá. Creio que ele saiba que Jônatas será indicado.
Até onde vai o registro bíblico, Saul decide a questão com muita rapidez e arbitrariedade. Ele e seu filho ficam frente a frente com o restante dos soldados. Sem nenhuma surpresa, ele e Jônatas são indicados. Então Saul lança a sorte entre ele e Jônatas, e Jônatas é indicado. O povo consente com este processo, pelo menos por enquanto (v. verso 40). Quem irá se opor a Saul nesse estado de espírito? Quando Jônatas é isolado pelo lançamento de sortes, seu pai lhe pergunta o que ele fez (não é interessante que Saul já tenha estabelecido a punição antes mesmo que o crime seja revelado?). Jônatas “confessa” que realmente provou um pouco de mel com a ponta da vara. Uma pequena lambida no mel, dada sem nenhum conhecimento da ordem de seu pai e nenhuma perda de tempo, é o crime abominável que Saul supõe seja a razão de Israel não ter conseguido concluir a batalha iniciada por Jônatas. Saul parece sentir que é melhor matar seu filho do que admitir seu próprio pecado e idiotice.
Mesmo aqui Jônatas é um filho exemplar. Ele não dá nenhuma desculpa, nem faz qualquer acusação contra seu pai, ainda que ele seja louco. Jônatas coloca sua vida nas mãos de seu pai, o rei. Ele está disposto a morrer se essa for a vontade de seu pai, se essa for a vontade de Deus. Com grande pompa, Saul uma vez mais assevera a morte de Jônatas. É como se Saul não pudesse fazer nada mais justo.
Finalmente, o povo que calmamente suportara todas as cenas do rei, teve o suficiente. Eles estão dispostos a deixar que Saul submeta a si mesmo e a Jônatas à prova (v. 40), mas não a permitir que Saul mate seu filho. Eles percebem o quanto as atitudes de Saul são insanas. Jônatas, não Saul, lhes deu grande libertação (verso 45). Será que ele deve ser morto por causa disto? Ele agiu com Deus, não contra Ele, e por isso não será morto como pecador. Muito pelo contrário! Nenhum fio de cabelo de sua cabeça cairá no chão. E assim é que Jônatas, trabalhando com Deus, salva Israel, e Israel, enfrentando Saul, salva Jônatas. Saul, que não salva ninguém, não tem permissão para destruir seu próprio filho. Com este incidente, tem fim a batalha com os filisteus, mais depressa e menos decisiva do que deveria, tudo devido à insensatez de Saul, o “libertador” de Israel.
“E Saul deixou de perseguir os filisteus; e estes se foram para a sua terra. Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam. Os filhos de Saul eram Jônatas, Isvi e Malquisua; os nomes de suas duas filhas eram: o da mais velha, Merabe; o da mais nova, Mical. A mulher de Saul chamava-se Ainoã, filha de Aimaás. O nome do general do seu exército, Abner, filho de Ner, tio de Saul. Quis era pai de Saul; e Ner, pai de Abner, era filho de Abiel. Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”
Há um sentido no qual este capítulo é uma espécie de bênção com relação à vida e reinado de Saul como rei de Israel. Há um sumário de seus aparentes sucessos, uma clara alusão a seus fracassos e uma lista de seus descendentes. O capítulo 15 descreve o pecado que significa o fim do reinado de Saul (o pecado anterior significava o fim da dinastia de Saul - o reinado de seus descendentes). Os capítulos posteriores apresentam Davi como seu substituto e mostram o ciúme de Saul e sua oposição a Davi. O último capítulo de I Samuel descreve a morte de Saul e seu filho. No entanto, este capítulo parece ser a bênção sobre Saul e seu reinado.
A batalha acabou, mas não a guerra. Os filisteus sofrem uma grande perda, mas não uma derrota total. Cada exército - israelita e filisteu - segue seu próprio caminho. As duas nações continuam em guerra uma contra a outra pelo resto da vida de Saul. Isto é particularmente acentuado no verso 52:
“Por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus; pelo que Saul, a todos os homens fortes e valentes que via, os agregava a si.”
Pelo resto da vida de Saul haverá conflito, e sua consideração pelos filisteus pode ser vista no fato de ele procurar agregar a seu exército qualquer “homem forte e valente”. As conseqüências de sua loucura vão segui-lo todos os dias de seu reinado. Como veremos no capítulo 31, Saul e seu filho Jônatas morrem às mãos dos filisteus. Que lamentável que a vitória sobre os filisteus não tenha sido completa nesta batalha iniciada por Jônatas.
Tenho me referido a Saul como louco e fracassado. Como podemos, então, explicar a avaliação de seu reinado nos versos 47 e 48, que parecem colocá-lo sob um ângulo favorável? A resposta tem pelo menos dois aspectos. Primeiro, parece correto dizer que um homem pode ser um fracasso moral e espiritual e, no entanto, ser um grande líder militar. Veja o homem usado por Deus no livro de Juízes para libertar Seu povo. Sansão não é nenhum gigante moral, mas é usado por Deus para libertar Israel das mãos de seus inimigos. O mesmo pode ser dito de muitos outros juízes levantados por Deus. Deus não se limita a usar somente pessoas piedosas para cumprir Suas promessas e Seus propósitos. Portanto, a vitória militar pode ser alcançada por meio de um homem como Saul, a despeito do tipo de homem que ele é. Quantos de nós atribuem nossos méritos e nossa bondade à graça e misericórdia de Deus para conosco?
Segundo, as coisas ditas nestes dois versos são realmente verdadeiras e representam a avaliação da liderança de Saul do ponto de vista de um historiador secular. Saul, como rei de Israel, realmente luta contra todas as nações em derredor e lhes impõe castigo. Com relação à batalha com os amalequitas, Saul age mesmo com valentia e livra Israel daqueles que os despojam.
Parece que a batalha entre Israel e os filisteus, descrita nos capítulos 13 e 14, é uma coisa típica da vida e do reinado de Saul em Israel. Ele luta com os filisteus e os israelitas vencem. A batalha é travada sob sua liderança. Mas a vitória não foi o que poderia ter sido devido à sua loucura. E a batalha não é resultante de sua fé e iniciativa, mas da fé e iniciativa de Jônatas. Apesar disto, como lemos em 13:4, é divulgada uma notícia de que Saul “derrotara a guarnição dos filisteus”. Do ponto de vista de um historiador secular, as vitórias de Israel sob os cuidados de Saul são suas vitórias. Sabemos que estas vitórias foram obtidas pela graça de Deus, muitas vezes devido à atitude de pessoas como Jônatas e, com freqüência, a despeito da inércia e loucura de Saul.
Apesar das “vitórias” de Saul e Israel, os filisteus jamais são destruídos, jamais são completamente derrotados, a fim de que Saul e Israel contendam com eles durante todo o seu reinado. Confiando no “braço da carne”, parece que Saul procura heróis que lutem por ele e por Israel. Com toda a certeza o terreno está sendo preparado para Davi e o papel que desempenhará na batalha com os filisteus e com Golias, seu campeão.
Primeiro, não é nada difícil perceber porque Jônatas e Davi se tornarão amigos dedicados. Na verdade, eles são almas gêmeas. Jônatas é um homem de fé e compreensão espiritual. Ele é um homem que age com ousadia devido à sua fé em Deus, enquanto seu pai espera que o mau tempo passe. Jônatas teria sido um grande rei, mas ele é benjamita e não descendente de Judá; e, assim, nenhum de seus descendentes poderia ser o Messias. Mas, quando Jônatas vê que a mão de Deus está sobre Davi, ele é um dos primeiros israelitas a recebê-lo como o próximo rei de Israel, sem ciúmes ou hesitação.
Segundo, este texto prepara o terreno para a introdução de Davi nos capítulos 16 e 17. O caráter de Saul é evidente. Sua loucura e seu ciúme contra Davi não chegam a nos surpreender, pois já haviam sido demonstrados no seu trato com seu próprio filho, Jônatas. Saul já havia tentado matá-lo; não será nenhuma surpresa vê-lo também tentando matar Davi, bem como outras pessoas. Assim como ele relutou em enfrentar os filisteus no princípio, ele também hesitará em enfrentá-los quando Golias for seu campeão. Nos próximos capítulos haverá poucas surpresas para nós sobre Saul, devido àquilo que já lemos nos primeiros capítulos de I Samuel.
Terceiro, vemos que a visão histórica de um homem pode ser muito diferente da visão de Deus. A avaliação feita por um semelhante com certeza não é perfeita. No que diz respeito a Deus, com certeza esta não é a verdadeira ”medida de um homem”, pois quando Deus julga o homem, Ele vê o coração. A história secular pode considerar Saul um sucesso, mas, em termos bíblicos e espirituais, ele é um miserável fracasso. Os índices seculares de sucesso não são indicadores da aprovação ou da bênção de Deus. O autor de I Samuel quer que vejamos Saul como um homem que é rejeitado por Deus. Como é triste ser valorizado pelo mundo e desprezado por Deus. Como é melhor, se necessário for, ser desprezado pelo mundo e valorizado por Deus (ver I Pe. 4).
Quarto, vemos neste texto que os cristãos podem e agem de maneira que aparentemente atrapalhe a realização plena da obra de Deus. Em última análise, os homens não podem impedir aquilo que Deus propôs e prometeu fazer. Deus usa a fé e a obediência dos homens para cumprir Seus propósitos, mas Ele não se limita a estes meios. A soberania de Deus também permite que Ele empregue a incredulidade e a desobediência para alcançar Seus propósitos (ver Gn. 50:20, Sl. 76:10). Ele usa até mesmo Satanás para atingi-los (v. II Co. 12:5-10). Contudo, reconhecendo a soberania de Deus sobre todas as coisas, também deve ser dito que Deus, às vezes, permite que a ação (ou a inércia) dos homens atrapalhem aquilo que poderia ter sido feito (v. II Re. 13:14-19). Deus é soberano na história mas, em Seu controle absoluto sobre todas as coisas, Ele estabeleceu que as ações têm conseqüências, e que a desobediência e a falta de fé podem resultar em algo menor do que poderia e deveria ter sido se tivéssemos agido de maneira santa. Com toda a certeza isto é ilustrado pela maneira como a loucura de Saul no capítulo 14 impede uma vitória cabal sobre os filisteus.
Quinto, o governo de Saul é fonte de grandes problemas para Israel, mas também é meio para a sua própria destituição. Sabemos pelo capítulo 14 que a ordem insana de Saul impede Israel de obter uma vitória esmagadora sobre os filisteus. Conseqüentemente, pelo resto de seus dias, ele e a nação são atormentados pelos filisteus (v. 52). O ataque do capítulo 17 lança a ascensão e projeção de Davi em Israel e o início do fim para Saul. A batalha de Israel com os filisteus no capítulo 31 resulta na morte de Saul e de Jônatas. Como lemos em Cantares de Salomão, são as “raposinhas que devastam os vinhedos” (2:15). Este momento aparentemente insignificante de insensatez tem graves conseqüências para Israel e seu rei.
Finalmente, vemos em nosso texto uma excelente ilustração de legalismo. Zelar pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus não é legalismo, é discipulado. Com muita freqüência ouço algumas pessoas se referirem aos sermões baseados nos mandamentos de Deus (do Novo ou do Velho Testamento) como sendo “legalistas”. Embora algumas pessoas sejam legalistas na maneira como buscam obedecer aos mandamentos de Deus, o zelo pelo conhecimento e obediência a eles não é legalismo. O Salmo 119 é um excelente exemplo de um crente que zela pelo conhecimento e obediência aos mandamentos de Deus. O amor à lei do Senhor não é legalismo.
Legalismo é um descontentamento com os mandamentos de Deus da forma como eles são. O legalismo supõe que os mandamentos e as proibições de Deus não sejam suficientes. O legalismo procura consertar este “problema” adicionando mais regras e regulamentos. Estes acréscimos são mantidos de forma tão intensa quanto os mandamentos das Escrituras (às vezes, até mais). Aqueles que deixam de obedecê-los são severamente julgados por aqueles que os adotam.
Deixe-me ilustrar o legalismo do Novo Testamento. A lei de Moisés requeria que os homens guardassem o sábado, e isto significava que o sábado deveria ser um dia de descanso. Não significava que fosse pecado os discípulos de Jesus colherem alguns grãos e comê-los. Não significava que fosse pecado nosso Senhor curar um doente no sábado. Os escribas e fariseus não podiam acusar nosso Senhor de violar qualquer lei de Deus; eles apenas podiam acusá-lo de violar as leis do Antigo Testamento como eles as interpretavam e aplicavam, e como eles as aperfeiçoavam com suas tradições. Procurar “incrementar” as leis de Deus, acrescentando alguma coisa a elas, era colocar-se acima da Lei como juiz:
“Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo?” (Tg. 4:11-12)
Pelo que entendo deste texto de Tiago, aqueles que “julgam” injustamente seus irmãos, geralmente o fazem com base em suas próprias regras legalistas, e não de acordo com a Palavra de Deus. Tiago diz que, aqueles que julgam os outros por suas próprias regras, julgam também a Lei de Deus como inadequada.
O rei Saul é um legalista. Como rei de Israel, ele deveria conhecer bem a lei de Deus, e ter cuidado em obedecê-la e cuidar que fosse obedecida em seu reino (Dt. 17:18-20). Parece até que ele não teria percebido a violação da lei de Deus, caso alguém mais não lhe tivesse mostrado (v. I Sam. 14:33). Saul facilmente justifica sua negligência em cumprir os mandamentos de Deus e, no entanto, está pronto - quase ansioso, para condenar seu próprio filho à morte por violar uma de suas regras idiotas. Como todos os legalistas, Saul acha fácil coar o mosquito e engolir o camelo (Mt. 23:23-24). Ele distila sua indignação quando os outros transgridem suas regras, mas é mais do que tolerante com suas flagrantes transgressões aos mandamentos de Deus.
Ao contrário do que os legalistas pensam, o legalismo não impede o pecado; ele o favorece. As proibições que os legalistas amontoam sobre si e sobre os outros não são a cura para as concupiscências da carne (Cl. 2:20-23). Havia nos tempos do Novo Testamento aqueles que proibiam o casamento e comer certos alimentos (I Tm. 4:3), mas estes eram enganadores e mentirosos que procuravam desviar o povo de Deus da verdade. Embora Paulo fosse solteiro, ele instruiu os maridos e as esposas a não se absterem de sexo, a menos que fosse por uma razão importante, e apenas por algum tempo. O legalismo faz os homens caírem, como a ordem legalista de Saul fez os israelitas pecarem ao comer carne sem o devido preparo. Vamos tomar cuidado com o legalismo, em todas as suas formas mais piedosas.
Uma palavra final. O contraste entre Saul e Jônatas em nosso texto é difícil de ser ignorado. Jônatas é aquilo que Saul não é. Não vamos nos esquecer de que Jônatas é filho de Saul. Não são os bons “cuidados paternais” de Saul que fazem de Jônatas o que ele é. Sua devoção é a despeito de Saul, não por causa dele. Que todos aqueles que gostariam de levar o crédito pelo modo como seus filhos se saem observem isto. E observemos também que muitos pais crentes dão à luz filhos descrentes. Lembro-me, por exemplo, de Sansão e seus pais (v. Jz. 13:1-23, especialmente o verso 8).
Até agora eu estava disposto a ver Saul como uma anomalia, uma espécie de caso excepcional. Seus pecados são mais notórios, mais visíveis, e talvez mais dramáticos do que os nossos, mas, em última análise, suas tentações e fracassos, na verdade, são “comuns aos homens” (v. I Co. 10:13; Tg. 5:17). Suas falhas não estão registradas a fim de que gostemos de odiar este homem. Creio que estão registradas como advertência, para que não precisemos repetir os pecados que ele tão obviamente comete. Gostaria de pensar que minha vida se espelha mais em Jônatas do que em seu pai, mas este nem sempre é o caso. Vamos prestar atenção e aprender destes dois homens tão diferentes, Saul e Jônatas. E vamos nos esforçar para servir a Deus fielmente, obedecendo Seus mandamentos, para que não nos tornemos exemplos negativos de desatino para as futuras gerações.
Sempre tive problemas em jogar coisas fora. Quando Jeanette e eu éramos recém-casados, vivíamos no interior do Estado de Washington. Uma vez que não havia coleta de lixo, tínhamos que levar nossos detritos para o depósito da região. Eu tinha um trailer que usava para isto e, literalmente, toda vez que me preparava para ir ao depósito, as últimas palavras de Jeanette eram “Não traga nada de volta!”. Isto porque muitas vezes eu voltava do depósito com mais tralhas do que havia levado.
Quando vim para Dallas para fazer o seminário, trabalhei num departamento de garantia de qualidade. Os itens danificados que não tinham conserto iam para a pilha de “descarte”. Imagine o quanto aquilo era difícil para mim; eu odiava jogar fora qualquer coisa que parecesse ter alguma utilidade. Ainda hoje, em nossa vizinhança, sou um dos poucos a quem as pessoas se dirigem para dizer onde tem algum bom cacareco - no beco perto de casa. Um dia, um vizinho descia do beco e gritou pela janela “Bob, tem um cortador de grama fantástico lá no beco, atrás da casa do Tinsley.” Encontrei o cortador e estava aparando minha grama com ele, quando o vizinho que o tinha jogado fora voltava do trabalho. Quando lhe expliquei como achei seu cortador, ele respondeu: “Fico contente que você o tenha consertado e esteja usando; quer um bagageiro também? Esqueci de jogá-lo fora com o cortador.”
Saul e eu não somos nada parecidos nessa questão de guardar coisas consideradas sem valor pelos outros. Saul joga fora as tranqueiras com prazer. O que o incomoda é ver coisas em perfeito estado serem destruídas. Ele não tem problema algum para matar homens e mulheres amalequitas, mesmo seus filhinhos. No entanto, o que é difícil para ele é matar seu rei, Agague. Ele não tem nenhum problema em massacrar o gado comum, mas não agüenta desperdiçar carne de primeira e um bom cordeiro.
A recusa de Saul em aniquilar totalmente os amalequitas lhe custa o reinado. Este é um pecado gravíssimo. Nosso texto não mostra apenas o pecado de Saul, mostra também o nosso. Saul está disposto a fazer coisas que jamais pensaríamos - como matar criancinhas. Será que teríamos matado crianças amalequitas como Saul? Se não, por que não? Nosso texto chama a atenção para a natureza da desobediência de Saul, que é muito parecida com a desobediência comum entre os cristãos atuais. Nosso texto tem lições importantes para aprendermos sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências e, também, sobre a nossa própria desobediência às determinações de Deus.
Os amalequitas, um nome que poderia soar vagamente familiar ao leitor da Bíblia, pode ser estranho para nós, mas não é estranho para os israelitas. Os amalequitas são um dos povos que habitam a parte sul de Canaã. Quando os israelitas deixaram o Egito e se dirigiam para Canaã (ver Ex. 17:8 e ss), eles foram uma das primeiras nações que os israelitas encontraram. Esta é uma das nações vizinhas com quem Israel está em constante conflito. Os amalequitas atacam Israel, que, desobedientemente, procura possuir a terra prometida depois de sua incredulidade em Cades-Barnéia (ver Nm. 14:25, 43, 45). Eles se juntam aos midianitas para atacar e saquear Israel e são uma das nações que ameaçam tanto Israel, que Gideão precisa ter certeza da presença de Deus com ele na batalha (ver Jz. 6:3, 33, 7:12). Esta é a nação atacada por Davi, que invade Ziclague e captura sua família e seus bens e a família e os bens de seus homens (ver I Sam. 27:8, 30:1, 18, II Sam. 1:1).
A ordem para matar a nação inteira e seu gado não é algo novo. Deus exigiu isto dos israelitas quando encontrassem as nações cananéias:
“No entanto, nada do que alguém dedicar irremissivelmente ao SENHOR, de tudo o que tem, seja homem, ou animal, ou campo da sua herança, se poderá vender, nem resgatar; toda coisa assim consagrada será santíssima ao SENHOR. Ninguém que dentre os homens for dedicado irremissivelmente ao SENHOR se poderá resgatar; será morto.” (Lv. 27:28-29)
“Porém, das cidades destas nações que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o SENHOR, teu Deus, destruí-las-ás totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o SENHOR, vosso Deus.” (Dt. 20:16-18)
“No sétimo dia, madrugaram ao subir da alva e, da mesma sorte, rodearam a cidade sete vezes; somente naquele dia rodearam a cidade sete vezes. E sucedeu que, na sétima vez, quando os sacerdotes tocavam as trombetas, disse Josué ao povo: Gritai, porque o SENHOR vos entregou a cidade! Porém a cidade será condenada, ela e tudo quanto nela houver; somente viverá Raabe, a prostituta, e todos os que estiverem com ela em casa, porquanto escondeu os mensageiros que enviamos. Tão-somente guardai-vos das coisas condenadas, para que, tendo-as vós condenado, não as tomeis; e assim torneis maldito o arraial de Israel e o confundais. Porém toda prata, e ouro, e utensílios de bronze e de ferro são consagrados ao SENHOR; irão para o seu tesouro. Gritou, pois, o povo, e os sacerdotes tocaram as trombetas. Tendo ouvido o povo o sonido da trombeta e levantado grande grito, ruíram as muralhas, e o povo subiu à cidade, cada qual em frente de si, e a tomaram. Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos.” (Js. 6:15-21)
O texto de I Samuel 15 e as passagens acima podem provocar muitas perguntas nos leitores cristãos atuais. (1) Em primeiro lugar, por que Deus ordena o extermínio de nações inteiras? (2) Por que o gado e até mesmo crianças inocentes devem ser destruídos? (3) Por que os amalequitas são particularmente indicados para serem exterminados? (4) Por que uma geração posterior de amalequitas é punida pelos pecados de uma geração anterior? (5) Por que o fato de Saul poupar um homem e umas poucas cabeças de gado é uma ofensa tão grave para Deus? Vamos tentar responder estas questões.
Primeiro, existem razões gerais para o extermínio de povos como os cananeus. Estes são os povos que possuem a terra prometida que Deus deu a Israel. A principal razão afirmada acima é que estes povos são extremamente maus. Se não forem totalmente destruídos, ensinarão aos israelitas suas práticas pecaminosas, colocando-os, dessa forma, debaixo da condenação divina. É fácil ver a razão pela qual todos os guerreiros do inimigo devam ser mortos; mas por que mulheres, crianças e o gado? O pecado que envolvia os Cananeus tinha contaminado e corrompido seus animais, e Deus não permitiria que qualquer um sobrevivesse.
Segundo, aqueles que Deus ordena que sejam aniquilados são aqueles que são culpados, para os quais a punição é uma justa retribuição. Mesmo que seus antepassados tenham pecado gravemente, as pessoas que Deus ordena que Saul destrua também são pecadores culpados, cujo destino é uma justa recompensa:
“Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los.” (I Sam. 15:18)
“Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal.” (I Sam. 15:33)
Os amalequitas são pecadores, merecedores da ira de Deus mediante Israel. Estes pecadores, os amalequitas, são aqueles que desfilharam mulheres e, dessa forma, é justo que experimentem o sofrimento e a crueldade que eles mesmos infligiram a seus inimigos.
Terceiro, somos lembrados de que Deus não tem prazer em punir o inocente:
“Então, perguntou Deus a Jonas: É razoável essa tua ira por causa da planta? Ele respondeu: É razoável a minha ira até à morte. Tornou o SENHOR: Tens compaixão da planta que te não custou trabalho, a qual não fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” (Jn. 4:9-11)
Quarto, o extermínio dos amalequitas da época de Saul é a execução de uma ordem dada muitos anos antes e reiterada diversas vezes.
Êxodo 17:8-15
“Então, veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Com isso, ordenou Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, e peleja contra Amaleque; amanhã, estarei eu no cimo do outeiro, e o bordão de Deus estará na minha mão. Fez Josué como Moisés lhe dissera e pelejou contra Amaleque; Moisés, porém, Arão e Hur subiram ao cimo do outeiro. Quando Moisés levantava a mão, Israel prevalecia; quando, porém, ele abaixava a mão, prevalecia Amaleque. Ora, as mãos de Moisés eram pesadas; por isso, tomaram uma pedra e a puseram por baixo dele, e ele nela se assentou; Arão e Hur sustentavam-lhe as mãos, um, de um lado, e o outro, do outro; assim lhe ficaram as mãos firmes até ao pôr-do-sol. E Josué desbaratou a Amaleque e a seu povo a fio de espada. Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué; porque eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu. E Moisés edificou um altar e lhe chamou: O SENHOR É Minha Bandeira. E disse: Porquanto o SENHOR jurou, haverá guerra do SENHOR contra Amaleque de geração em geração.” (Ex. 17:8-16)
Números 24:20-25
“Viu Balaão a Amaleque, proferiu a sua palavra e disse: Amaleque é o primeiro das nações; porém o seu fim será destruição. Viu os queneus, proferiu a sua palavra e disse: Segura está a tua habitação, e puseste o teu ninho na penha. Todavia, o queneu será consumido. Até quando? Assur te levará cativo. Proferiu ainda a sua palavra e disse: Ai! Quem viverá, quando Deus fizer isto? Homens virão das costas de Quitim em suas naus; afligirão a Assur e a Héber; e também eles mesmos perecerão. Então, Balaão se levantou, e se foi, e voltou para a sua terra; e também Balaque se foi pelo seu caminho.” (Nm. 24:20-25)
Deuteronômio 25:17-19
“Lembra-te do que te fez Amaleque no caminho, quando saías do Egito; como te veio ao encontro no caminho e te atacou na retaguarda todos os desfalecidos que iam após ti, quando estavas abatido e afadigado; e não temeu a Deus. Quando, pois, o SENHOR, teu Deus, te houver dado sossego de todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança, para a possuíres, apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu; não te esqueças.” (Dt. 25:17-19)
Quando os israelitas partem do Egito e rumam para a terra prometida, eles são atacados pelos amalequitas, como descrito em Êxodo 17. Sabemos por Deuteronômio 25:18 que este ataque é covarde, pois eles atacam pelas costas, tomando de assalto os retardatários que estão cansados e abatidos. Deus dá a Israel a vitória sobre o exército amalequita, mas isto não extermina toda a nação. Deus dá ordens específicas às futuras gerações para que apaguem a memória deste povo, e sua ordem é registrada para a posteridade de Israel.
Em Números 24, há uma referência muito interessante a esta “maldição” que Deus impõe sobre os amalequitas. Balaque, o rei de Moabe, teme os israelitas e procura causar seu fim, contratando Balaão para amaldiçoá-los. Balaque deve ignorar a Aliança Abraâmica:
“Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:1-3, ênfase minha)
Os amalequitas não abençoaram os israelitas, eles os amaldiçoaram, atacando-os no caminho. Por isso, Deus os amaldiçoa, como Se comprometera com Abraão e seus descendentes. Agora, Balaque procurar atrair Balaão para “amaldiçoar” Israel, o povo a quem Deus abençoou. Balaão, não só abençoa Israel, mas também reitera a maldição sobre os amalequitas, pronunciada anteriormente em Êxodo 17. Além de amaldiçoar os amalequitas, ele também abençoa os queneus, que mostraram misericórdia para com os israelitas (Nm. 24:21, v. I Sam. 15:6). A despeito de si mesmo, Balaão abençoa aqueles a quem Deus abençoa (incluindo aqueles que abençoam Israel), e ele deve amaldiçoar aqueles a quem Deus amaldiçoa (aqueles que amaldiçoam Israel).
Em Deuteronômio 24, a segunda geração de israelitas que está prestes a entrar na terra prometida é relembrada do dever de seus descendentes de destruir os amalequitas, tão logo a nação tenha se estabelecido e vencido as nações circunvizinhas. É interessante que este lembrete do dever de exterminar os amalequitas seja encontrado no contexto de ensino sobre justiça (ver 25:1-16). Por inferência, a aniquilação dos amalequitas é o cumprimento da justiça.
A pergunta que talvez permaneça é: “Mas, por que esta geração deve ser destruída, quando foi uma geração anterior que tratou com crueldade a Israel?” Já dissemos que a geração de amalequitas da época de Saul é má e merece a morte. Parece certo dizer que esta geração é ainda pior do que aquela que oprimiu Israel no deserto, como descrito em Êxodo 17. Julgo a destruição dos amalequitas à luz das palavras ditas por Deus a Abraão séculos antes:
“Ao pôr-do-sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande pavor e cerradas trevas o acometeram; então, lhe foi dito: Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice. Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus.” (Gn. 15:12-16)
Deus diz a Abraão (aqui Abrão) que vai lhe dar a terra de Canaã, mas primeiro seus descendentes serão escravizados numa terra desconhecida durante 400 anos. Sabemos que esta terra é o Egito. Quando os 400 anos de cativeiro estiverem completos, Deus então lhes dará a terra de Canaã. A razão dada para esta demora é que “não se encheu ainda a medida da iniqüidade dos amorreus” (Gn. 15:16). Deus preferiu que o pecado deste povo amadurecesse, alcançasse sua maturidade completa, para então levá-los a julgamento. Quando Deus ordena a Saul que extermine os amalequitas, podemos presumir, com certeza, que seus pecados tenham amadurecido e tenha chegado o tempo de seu julgamento.
Além disso, podemos dizer que a demora no julgamento de Deus é também devido à Sua graça, pois, ao retardar seu julgamento, Deus dá tempo aos seus escolhidos para serem salvos de Sua ira:
“Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão.” (Rm. 9:22-23)
“Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento.” (II Pe. 3:9)
Este capítulo fala sobre a desobediência de Saul e suas conseqüências; portanto, vamos refletir sobre a natureza de sua desobediência a fim de entendermos a gravidade de suas conseqüências.
A desobediência de Saul não provém de sua compaixão. Podemos ser tentados a pensar que Saul desobedece a ordem de Deus por sincera, embora equivocada, motivação. Talvez considerássemos sua desobediência de modo diferente se o víssemos poupando as criancinhas amalequitas. Mas Saul não poupa nenhuma criança amalequita; ele poupa Agague, o rei dos Amalequitas. Saul não desobedece a Deus porque seja misericordioso, humano, bondoso. Ele friamente assassina cada homem, mulher e criança amalequita, exceto um - o rei.
Creio que podemos presumir com segurança que Saul poupe Agague, junto com o melhor das manadas e rebanhos amalequitas, porque seja de seu próprio interesse. Com certeza, ele ganha certa popularidade ao permitir que os israelitas tenham uma boa refeição sacrificial com os animais amalequitas. Afinal, isto significa não só que podem se banquetear com carne, mas também que não têm que sacrificar seus próprios animais. Poupar a vida de Agague provavelmente dá a Saul um troféu por sua proeza e poder. Quando Agague se assenta à sua mesa é como se fosse uma cabeça de alce empalhada, pendurada e exibida no gabinete de um caçador. Lembro-me das palavras de outro rei registradas no livro de Juízes:
“Adoni-Bezeque, porém, fugiu; mas o perseguiram e, prendendo-o, lhe cortaram os polegares das mãos e dos pés. Então, disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, a quem haviam sido cortados os polegares das mãos e dos pés, apanhavam migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E o levaram a Jerusalém, e morreu ali.” (Jz. 1:6-7)
Para Saul, ter um rei assentado à sua mesa, cativo e dependente dele, é como ter um troféu desse rei. Creio que seja por isso que Saul poupe a vida de Agague e não a vida de qualquer outro amalequita.
A desobediência de Saul é perpetrada por sua obediência parcial. A desobediência, às vezes, ocorre de forma grosseira, ousada, tal como a de Adão e Eva com relação ao fruto proibido no Jardim do Éden. Mas, aqui, Saul peca por não obedecer à risca as ordens de Deus. Saul faz a maior parte daquilo que Deus lhe diz para fazer por meio de Samuel, mas não obedece totalmente. Samuel vê essa obediência incompleta como pecado.
A desobediência de Saul é de natureza religiosa. A desobediência de Saul é vista e retratada como obediência. Não sei como ele justifica o fato de ter poupado a vida de Agague. Para mim não me parece muito religioso. Mas Saul é mestre em camuflar seu pecado a respeito dos rebanhos amalequitas. Ele diz que ele e o povo pouparam o melhor dos rebanhos para sacrificar ao Senhor. Ora, talvez eles tenham realmente pretendido fazer isto, mas sua motivação, com toda a probabilidade, é interesseira. A matança de todo o gado, como Deus ordenou, também seria um sacrifício, mas o povo não poderia comer nada. Poupar os animais, e depois sacrificá-los a Deus, proporciona pelo menos duas coisas. Primeiro, o povo tem uma refeição grátis às custas de Deus. Eles podem partilhar a refeição sacrificial (2:12-17; 9:11-25). E segundo, eles podem sacrificar este gado para Deus em lugar de seu próprio gado, evitando assim um verdadeiro sacrifício de sua parte. A questão é que a desobediência de Saul tem uma fachada piedosa, mas, no fundo, é um pecado interesseiro. Assim, as ações de Saul são hipócritas, parecendo religiosas quando são pagãs.
A desobediência de Saul é conjunta. Saul não age sozinho. A princípio, quando fala com Samuel, ele está disposto a conversar sobre sua autodenominada obediência na primeira pessoa “Executei as palavras do SENHOR” (verso 13). Mas, uma vez que fica evidente que sua “obediência” é inaceitável para Deus, subitamente ele procura jogar a culpa sobre o povo de Israel:
“Respondeu Saul: De Amaleque os trouxeram; porque o povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao SENHOR, teu Deus; o resto, porém, destruímos totalmente.” (verso 15)
“Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente;” (verso 20)
Só depois que suas desculpas são rejeitadas e seu pecado é exposto por Samuel, é que Saul “confessa” seu papel neste pecado, junto com o povo:
“Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz.” (verso 24)
Quantas vezes o pecado se transforma num acontecimento social, cogitado e formado por muitas pessoas.
A desobediência de Saul não é levada muito a sério por ele. Saul é tardio em assumir a responsabilidade por seu pecado, como mostrado por Samuel. Mesmo quando confessa o pecado, ele joga parte da culpa sobre o povo e, então, tenta - rápido demais para o meu gosto - “ir adiante” com as bênçãos de Deus, esperando escapar da disciplina divina. Isto fica claro nos versos 24 a 33. De certa forma, Saul diz algo assim: “O.K., O.K., então eu baguncei tudo. Admito. Agora a gente pode continuar. Quero que fique comigo para a adoração, para que minha imagem não fique manchada diante do povo.” Na verdade, como no pecado da obediência parcial, Saul está mais preocupado com a opinião do povo do que com a opinião de Deus. Saul quer deixar seu pecado para trás sem ter aversão por ele, sem renunciar a ele.
O pecado de Saul é hipócrita. Caso você se lembre, Saul é um homem que não tolera que qualquer um descumpra suas ordens, mesmo quando elas são insensatas e prejudiciais. No capítulo 14, o filho de Saul, Jônatas, inadvertidamente viola a ordem de Saul para não comer até o anoitecer. Jônatas não ouviu a ordem por estar muito ocupado lutando contra os filisteus, mas Saul está determinado a condená-lo à morte por sua desobediência, e o teria feito se o povo não tivesse se recusado a permitir que tal acontecesse (14:36-46). Ora, quando chega sua vez de obedecer a ordem de Deus, ele é espantosamente indulgente consigo mesmo. Desobedecer a Deus? Pode ser. Desobedecer a Saul? Jamais!
A desobediência de Saul é repetição do mesmo tipo de desobediência vista anteriormente em I Samuel. Este é o segundo dos dois maiores exemplos da desobediência de Saul. O primeiro se encontra no capítulo 13, quando ele oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel. Em resposta a esse pecado, Samuel diz:
“Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13b-14)
Agora, no capítulo 15, encontramos o segundo exemplo da desobediência de Saul:
“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (I Sam. 15:22-23)
Por que esta acusação do capítulo 13 aparentemente é repetida no capítulo 15? Por que Samuel diz a Saul que Deus o rejeitou como rei, quando já havia dito quase a mesma coisa no capítulo 13? A resposta é que a primeira sentença é uma profecia condicional, que não seria cumprida caso Saul se arrependesse genuinamente de seu pecado. É isto que vemos afirmado como um princípio pelo profeta Jeremias:
“Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o SENHOR; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe.” (Jr. 18:6-8)
Naturalmente, era por isto que o rei de Nínive esperava e recebeu:
“Começou Jonas a percorrer a cidade caminho de um dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Os ninivitas creram em Deus, e proclamaram um jejum, e vestiram-se de panos de saco, desde o maior até o menor. Chegou esta notícia ao rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais, cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre cinza. E fez-se proclamar e divulgar em Nínive: Por mandado do rei e seus grandes, nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem os levem ao pasto, nem bebam água; mas sejam cobertos de pano de saco, tanto os homens como os animais, e clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos? Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez.” (Jn. 3:4-10)
Existem, então, algumas profecias que são absolutamente certas, profecias que não podem ser revertidas ou mudadas. E existem também profecias que são advertências sobre o julgamento que virá a menos que os homens se arrependam e sejam perdoados. Quando José interpreta os sonhos de Faraó, ele lhe diz que os dois sonhos dizem respeito à mesma coisa, e isto indica que aquilo que o sonho profetiza certamente ocorrerá (Gn. 41:32). As palavras de Samuel, o profeta, no capítulo 13, são um aviso do julgamento e uma oportunidade para Saul se arrepender. No capítulo 15, vemos que Saul sem dúvida não se arrepende, mas persiste em sua desobediência. Assim, as palavras de Samuel neste capítulo dizem respeito à remoção de Saul de seu cargo, mesmo que isto ocorra alguns anos mais tarde. É exatamente isto que Samuel deixa claro para Saul no versículo 29:
“Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.”
Como, então, podemos enquadrar as palavras do verso 29 àquilo que acabamos de ler no verso 11?
“Arrependo-me de haver constituído Saul rei, porquanto deixou de me seguir e não executou as minhas palavras. Então, Samuel se contristou e toda a noite clamou ao SENHOR.”
O mesmo termo hebraico é empregado nos dois versículos 11 e 29, portanto, não ousamos tentar solucionar nosso problema dizendo que o termo original não seja o mesmo. O que podemos dizer é que o termo empregado aqui é encontrado mais de 100 vezes no Velho Testamento. A forma empregada (Niphal) é traduzida como “arrepender-se” 38 vezes na Versão King James, e muitas delas se referindo ao “arrependimento” de Deus. No primeiro exemplo deste verbo (verso 11 do nosso texto), o autor fala da tristeza de Deus a respeito da maneira como anda a monarquia de Saul. Não é que Deus seja pego de surpresa ou que isto não faça parte de Seu plano soberano. Deus não é imune ao pecado humano; Ele sofre com ele. Mesmo quando Deus propõe que o mal faça parte de Seu plano eterno, Ele não se alegra com ele. Pelo contrário, isto Lhe causa pesar, que é o que diz o verso 11.
No verso 29, a mesma forma hebraica (Niphal outra vez) é usada, mas o contexto dita como este termo um tanto amplo deve ser compreendido. Quando Deus repreende Saul por sua desobediência no capítulo 13, Ele o adverte de que ele perderá sua dinastia, seu reino. Esta é uma profecia condicional, que pode ser evitada caso Saul verdadeiramente se arrependa. Ele não o faz. Portanto, agora no verso 29, quando Saul suplica a Samuel que não o abandone, que não traga a promessa de julgamento sobre ele, Samuel o relembra de que Deus não é homem para cometer erros e depois se “arrepender” e mudar o curso das coisas. A sentença de Samuel indica que Saul será removido do poder. Saul implora que não seja assim. Samuel lhe diz que Deus não erra em tais julgamentos, por isso, Deus não se “arrependerá” do curso que determinou para Saul. É tarde demais, e a opinião Deus não mudará agora, pois o tempo para arrependimento já se foi.
Saul procura desculpar sua desobediência afirmando que pretende usar os animais poupados para oferecer sacrifícios a Deus. Samuel não aceita suas desculpas. Nos versos 22 e 23, ele estabelece um princípio que será adotado diversas vezes pelos profetas posteriores, por nosso Senhor e por Seus apóstolos. O princípio é afirmado tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo. No verso 22 Samuel faz uma afirmação positiva. Ele nos informa que, ainda que em Seus planos Deus tenha prescrito rituais religiosos como uma coisa boa (principalmente se forem feitos com mãos limpas e coração puro), a obediência aos Seus mandamentos é muito melhor.
Saul supõe exatamente o contrário. Suas palavras e ações nos dizem que prestar rituais religiosos por prestar é a coisa mais importante do mundo. Para Saul, desobedecer a ordem de Deus não é tão importante, desde que sua desobediência permita que Ele ofereça a Deus um sacrifício ritual. Para ele, oferecer o sacrifício é mais importante do que obedecer a Deus. Para Samuel, a obediência a Deus é a mais sublime de todas as formas de sacrifício (compare com Rm. 12:1-2). Obedecer a Deus é melhor do que todos os sacrifícios. Desobedecer a Deus, e depois oferecer sacrifícios, é inútil.
No verso 23 Samuel compara o pecado de um israelita com os pecados dos gentios, os quais um bom judeu jamais pensaria cometer. Saul não leva a sério seu pecado de desobediência. Este povo pagão, os amalequitas, merece morrer. Saul não questiona isto. Os pecados que os pagãos cometem são aqueles que os israelitas odeiam. Samuel dá uma pequena aula a Saul ao lhe dizer quer sua desobediência não é menos desprezível do que os pecados pagãos de adivinhação, iniqüidade ou idolatria. Na verdade, os pagãos cometem seus pecados em total ignorância. Eles não possuem as Escrituras como o povo de Deus. O pecado de Saul é igual aos pecados pagãos que ele tanto odeia. Obedecer é melhor do que a adoração ritual; desobedecer é pior do que a idolatria pagã ou a feitiçaria (ARA).
É realmente triste ler o registro bíblico da desobediência de Saul. Mas, ainda mais triste é ler o relato de sua resposta à repreensão de Samuel. Saul começa afirmando ter obedecido a ordem de Deus. Depois, quando seu pecado é exposto, ele admite sua falha em executar totalmente a ordem, mas tenta santificar sua desobediência afirmando que é melhor irem adorar a Deus. Quando Samuel rejeita suas desculpas esfarrapadas, Saul finalmente confessa que pecou, jogando, no entanto, uma parte da culpa sobre o povo. Ele afirma que temeu o povo, e por isso, cedeu à pressão que exerciam sobre ele (verso 24). Sua preocupação não é que tenha pecado contra um Deus justo, mas que sua imagem pública ficará manchada se Samuel abertamente cortar relações com ele. Ele não tem uma profunda convicção a respeito da vileza de seu pecado. Simplesmente ele teme que seja muito ruim se a situação não for manejada de forma apropriada. Por isso, ele implora que Samuel volte e adore com ele, aparentando que tudo vai bem.
“Disse Samuel: Traze-me aqui Agague, rei dos amalequitas. Agague veio a ele, confiante; e disse: Certamente, já se foi a amargura da morte. Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou mulheres, assim desfilhada ficará tua mãe entre as mulheres. E Samuel despedaçou a Agague perante o SENHOR, em Gilgal. Então, Samuel se foi a Ramá; e Saul subiu à sua casa, a Gibeá de Saul. Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.”
Saul peca no capítulo 13 quando oferece o holocausto que é tarefa de Samuel. Mas agora, no capítulo 15, é necessário que Samuel cumpra a tarefa de Saul. E, neste caso, isto não é pecado. Saul parece relutante em se “arrepender” e voltar atrás em sua decisão de deixar o rei Agague vivo. Assim sendo, Samuel mesmo cumpre a ordem de Deus, pois é necessário que todos os amalequitas sejam mortos, especialmente o rei, que os liderou em sua maldade. Agague é trazido à frente. O rei está certo de que, uma vez que não foi executado na hora, o perigo já tenha passado. Certamente ele se sente à salvo enquanto estiver sob a custódia de Saul. Mas sua confiança não tem fundamento. Samuel é agora o único diante de quem ele deve ficar, e Samuel age no interesse de Deus. Da mesma forma que ele, comandante-em-chefe do exército amalequita, desfilhou mulheres, agora, sua mãe ficará desfilhada com sua morte (verso 33). Samuel não o mata simplesmente, ele o despedaça, sem dúvida porque esta é a maneira como ele tratava os inimigos que derrotava. Ainda que o texto não nos diga, é provável que Samuel cuide para que todo o gado dos amalequitas que os israelitas pouparam também seja morto.
Não é dito que Saul verdadeiramente lamente seu pecado ou mesmo seu rompimento com Samuel. No entanto, é um dia triste para Samuel. Ele chorou e intercedeu junto ao Senhor durante toda a noite anterior à repreensão de Saul (15:11). Ele lamenta por Saul depois que se eles separam (15:35). E o Senhor também lamenta por Saul, e pelo fato de tê-lo constituído rei de Israel. Isto não é nenhuma surpresa para Deus, pois é parte de Seu plano eterno. Saul não pode ser o rei do qual virá o Messias, pois ele não é da tribo de Judá, mas da tribo de Benjamim. Mesmo assim, Deus lamenta tê-lo posto de lado. Foi necessário, mas não é fonte de alegria. Será que pensamos que Deus, que é todo-poderoso, faz somente coisas que O deixem feliz? Deus realmente faz coisas que Lhe causam tristeza, como constituir Saul como rei, e como enviar Seu Filho para morrer na cruz do Calvário às mãos de vis pecadores. Deus faz tudo isto para Sua glória e para o nosso bem.
Primeiramente, devemos ver em nosso texto que Deus sempre cumpre Seus intentos. Não só na época do êxodo (Ex. 17:8-16), mas muitas vezes depois (Nm. 24:20-21; Dt. 25:17-19), Deus ordenou aos israelitas o extermínio dos amalequitas devido à gravidade de seu pecado, como demonstrado por seu ataque aos israelitas após o êxodo. Deus não Se esquece de Sua Palavra e, em I Samuel 15, a despeito da desobediência de Saul, a Palavra de Deus é cumprida. Deus mantém Suas promessas, sejam elas de bênção (como no caso dos israelitas e dos queneus) ou de julgamento.
Vemos na preservação dos queneus e na destruição dos amalequitas não apenas o cumprimento de uma promessa específica de Deus, mas também o cumprimento da aliança de Deus com Abraão (Gn. 12:1-3). Nesta aliança, Deus promete abençoar todos os que abençoarem Abraão e seus descendentes (por exemplo, os queneus), e amaldiçoar todos os que amaldiçoarem Abraão e sua descendência (os amalequitas). A aliança Abraâmica é um fator preponderante na história de Israel, explicando o julgamento e a bênção de Deus com relação às nações que se relacionam com Israel.
Receio que a atitude arrogante de Saul com relação ao seu pecado é semelhante à maneira que muitas pessoas vêem seu próprio pecado nos dias atuais. Por exemplo, dentro do Catolicismo Romano, algumas pessoas sentem-se livres para pecar e depois ir ao confessionário e dizer “Pai, perdoa-me porque pequei...” Muitos cristãos evangélicos também não levam a sério seus pecados. Dizemos muitas vezes que Cristo morreu por nossos pecados, que morreu por todos eles: passados, presentes e futuros. De fato, isto é verdade. No entanto, não nos dá licença para pecar. A graça de Deus jamais deve ser usada como desculpa para o nosso pecado (v. Rm. 5:18-6:11; Jd. 1:4). Abusar da graça de Deus e pecar deliberadamente, esperando ser perdoado, talvez seja o pecado mais terrível de todos (v. Hb. 10:26-31).
Nossa passagem também nos alerta sobre o perigo de classificar os pecados. Pecados odiosos são aqueles que os outros praticam, enquanto somos inclinados a considerar nossos próprios pecados, tal como mentir, como “mentirinhas brancas”. Nas igrejas evangélicas não bebemos, fumamos ou dançamos, falando contra aqueles que o fazem. É relativamente fácil para os cristãos condenarem os homossexuais e os imorais, se este não for o “nosso” tipo de pecado. Vamos ficar alertas, pois a desobediência à Palavra de Deus é considerada o pior de todos os pecados. Saber o que Deus nos ordena a fazer (ou a não fazer), e então desobedecer, é rebelar-se deliberadamente contra Deus. Nenhuma adoração ritualística, nenhuma atividade religiosa, cancela o mal de tal pecado.
Ver o pecado de Saul em nosso texto nos ensina uma lição valiosa sobre liderança espiritual. Na verdade, liderança espiritual não é dar às pessoas aquilo que elas querem, mas é fazer aquilo que Deus quer. Os líderes espirituais primeiramente devem ser seguidores de Deus. Saul é designado como rei de Israel. Sua tarefa é conhecer e obedecer aos mandamentos de Deus para liderar a nação em obediência. Mesmo que as palavras de Saul sobre a pressão exercida pelo povo sejam verdadeiras, Saul deixa de liderar de maneira piedosa. Sua tarefa não é agradar os homens, mas agradar a Deus. Na nossa época atual, quando líderes são eleitos muitas vezes, quase sempre sua eleição é baseada no quanto agradam aos outros. Este não é um teste de um líder espiritual. O teste é o quanto esta pessoa agrada a Deus obedecendo à Sua Palavra e desafiando os outros a segui-lo enquanto assim o faz. Isto não justifica uma liderança despótica, que simplesmente afirma falar por Deus. Significa que é uma liderança bíblica, baseada na Palavra de Deus e provada por ela.
Nosso texto é ainda mais difícil para nós do que poderíamos imaginar. Não só a desobediência à Palavra de Deus é um pecado muito grave, mas também a obediência parcial. Saul nos ensina que obediência parcial aos mandamentos de Deus é, de fato, verdadeira desobediência. Como Saul, muitos de nós somos inclinados a dar a nós mesmos o benefício da dúvida, se obedecermos as ordens de Deus em sua quase totalidade. Deus não vê a obediência parcial como vemos. Servir a Deus não é como um jogo de ferradura, onde alguém ganha pontos por se aproximar da marca. Pecado é não alcançar a marca, não importa quão perto você chegue dela.
Na Bíblia, repetidamente, o padrão é a obediência total, não a obediência parcial. As palavras de despedida de nosso Senhor, que conhecemos como a “Grande Comissão”, incluem esta afirmação:
“Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” (Mt. 28:20, ênfase minha).
É incrível como temos nos convencido de que muitos dos mandamentos de nosso Senhor não sejam mais aplicáveis hoje em dia. Será que esta é apenas outra forma de obediência parcial? Deveríamos refletir seriamente sobre esta questão.
Alguns cristãos chamam a luta para obedecer plenamente os mandamentos de Deus de legalismo. Legalismo não é deixar de manter o alto padrão estabelecido pelas Escrituras. Legalismo é achar que o padrão colocado pelas Escrituras é muito baixo e acrescentar seus próprios requisitos àqueles dados por Deus. Legalismo é ir além dos mandamentos de Deus. O cristianismo bíblico não deve procurar manter um baixo padrão dos mandamentos de Deus.
Jamais obedecemos perfeitamente os mandamentos da Bíblia. Os escribas e fariseus tolamente achavam que obedeciam, mas estavam errados. Lembre-se do que nosso Senhor falou a respeito de sua obediência:
“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.” (Mt. 5:20)
Ninguém obedece perfeitamente aos mandamentos de Deus. Mesmo quando parece que o fazemos, nossa atitude e nossa motivação nunca são aquilo que deveriam ser. Minha “justiça”, muitas vezes, é “justiça própria” e meu serviço, “interesseiro”.
Na verdade, há apenas uma pessoa cuja obediência foi perfeita, e podemos agradecer a Deus por Ele, nosso Senhor Jesus Cristo.
“Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Dt. 17:18-20)
“Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei.” (Sl. 40:8)
Ainda que o rei de Deus devesse obedecer à Sua Palavra, nenhum dos reis do Velho Testamento, incluindo Davi, nem sequer se aproximou do padrão da obediência perfeita. Somente Jesus Cristo, o Messias de Deus, pôde reivindicar perfeita obediência à vontade de Deus, e esta obediência tornou possível a salvação de pecadores indignos como eu e você:
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)
“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados. Por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste; não te deleitaste com holocaustos e ofertas pelo pecado. Então, eu disse: Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade. Depois de dizer, como acima: Sacrifícios e ofertas não quiseste, nem holocaustos e oblações pelo pecado, nem com isto te deleitaste (coisas que se oferecem segundo a lei), então, acrescentou: Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade. Remove o primeiro para estabelecer o segundo.” (Hb. 10:4-9)
Paulo resumiu a questão toda nestas palavras:
“Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos.” (Rm. 5:19)
Foi o pecado de Adão, sua desobediência, que mergulhou toda a raça humana em pecado. Foi a obediência de nosso Senhor Jesus Cristo que tornou possível a nossa salvação. Devemos abandonar todos os pensamentos de mérito pela nossa salvação e perceber que nossas obras de justiça são como trapos de imundície (Is. 64:6). Precisamos nos agarrar à justiça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu na cruz do Calvário, suportando a punição pelos nossos pecados, e que ressurgiu do túmulo, declarando-nos justos e dando-nos a vitória sobre o pecado e a morte. Eis aqui a nossa esperança, e eis aqui a nossa salvação.
Lembro-me muito bem do meu primeiro dia de emprego para uma firma de entrega de carnes. Na verdade, o emprego era do meu cunhado, mas concordei em substituí-lo por um semestre enquanto ele fazia um treinamento para lecionar. No meu primeiro dia eu o acompanhei enquanto fazíamos a entrega de carne em diversos lugares. Alguns eram restaurantes muito bons que tinham filé no cardápio, outros eram botequins que serviam “rabo de porco com feijão” por 25 centavos. Ainda me lembro do cheiro horrível que nos recebia nesses lugares.
Achei que deveria me vestir adequadamente, uma vez que era meu primeiro dia no emprego, por isso usei um terno. Jamais cometi aquele erro de novo. Quando a gente entrava num desses botecos, não passava pela porta da frente; íamos direto para a cozinha, pela porta dos fundos. Ao entrar no primeiro estabelecimento, fomos recebidos com olhares assustados, apavorados. O pessoal começou a se dispersar como um bando de baratas tontas.
Não entendi nada, mas meu cunhado sim. “É o terno que está usando”, disse ele. “As pessoas pensam que você é da vigilância sanitária”. Vesti-me bem demais. Parecia um inspetor de saúde. Não é de admirar que tivessem aquelas expressões assustadas e apavoradas. Foi a última vez que usei terno para trabalhar naquele emprego, e fiquei tão feliz quanto meus fregueses.
O mesmo tipo de olhar parece pairar no rosto dos líderes da vila de Belém com a chegada de Samuel (verso 4). “É de paz a tua vinda?”, perguntam. O que será que eles temem? Por que os rostos pálidos, o suor nas palmas das mãos e o tremor nos joelhos? O que eles temem de Samuel? Por que um profeta sairia de seu caminho para vir a esta tribo insignificante e a este lugar tão sem importância? Este homem viera por alguma razão, e a presença de um profeta podia ser vista como a presença do próprio Deus. Talvez seu receio venha de sua devoção e sincero temor a Deus. Talvez não. Talvez seja medo de Saul, uma vez que os pronunciamentos de Samuel a respeito do desprazer divino para com ele parecem ter se tornado públicos:
“Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:13-14)
“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz. Agora, pois, te rogo, perdoa-me o meu pecado e volta comigo, para que adore o SENHOR. Porém Samuel disse a Saul: Não tornarei contigo; visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, já ele te rejeitou a ti, para que não sejas rei sobre Israel. Virando-se Samuel para se ir, Saul o segurou pela orla do manto, e este se rasgou. Então, Samuel lhe disse: O SENHOR rasgou, hoje, de ti o reino de Israel e o deu ao teu próximo, que é melhor do que tu. Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa.” (I Sam. 15:22-29)
Se Deus rejeitou Saul como rei e está prestes a apontar outro para assumir seu lugar, certamente Samuel irá designar o novo rei. Samuel está com medo de Saul, medo de que ele o mate (16:2). Se Samuel teme que Saul o mate, não é razoável que o povo presuma que aqueles que estão ao seu lado possam também ser mortos por Saul? Afinal, Saul matará Aimeleque e os sacerdotes em Nobe simplesmente por alimentarem Davi (ver I Samuel 22). Os belemitas têm boas razões para temer Saul - e qualquer um que se oponha a ele e venha até eles.
Com um enorme suspiro de alívio, os anciãos de Belém ficam sabendo por Samuel que ele veio oferecer um sacrifício e que serão convidados para a refeição sacrificial. É claro que eles não sabem o resto da história, que é sobre o que realmente trata nossa lição. Temos muito a aprender deste capítulo que descreve a designação de Davi como rei de Israel, aquele que, no devido tempo, substituirá Saul.
“Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei. Disse Samuel: Como irei eu? Pois Saul o saberá e me matará. Então, disse o SENHOR: Toma contigo um novilho e dize: Vim para sacrificar ao SENHOR. Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar.”
Samuel deve ser elogiado por sua lealdade a Saul. Quando Saul desobedece a Deus no capítulo 15, Samuel fica angustiado e clama a Deus durante toda a noite (15:11). Sua angústia é em resposta ao lamento de Deus por ter constituído Saul como rei. Samuel vem interceder por Saul diante de Deus. A reação de Saul à reprimenda de Samuel mal é de arrependimento, o que causa em Samuel ainda mais pesar:
“Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte; porém tinha pena de Saul. O SENHOR se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel.” (I Sam. 15:35)
É como se Samuel não estivesse disposto a desistir de Saul. Ele deve estar relutante em apontar o sucessor de Saul porque vai parecer como se colocasse o último prego no caixão político de Saul. A pergunta de Deus a Samuel soa como uma suave repreensão. Quanto tempo ainda Samuel lamentará sobre aquele que Deus rejeitou? Quanto tempo Samuel terá uma opinião diferente da de Deus? Deus rejeitou Saul e é tempo de Samuel agir de acordo com isto. Samuel deve encher um chifre com azeite e ir até Jessé, o belemita, onde deve ungir um de seus filhos como substituto de Saul.
A relutância de Samuel toma outra forma no verso 2, quando ele hesita devido aos perigos envolvidos. Samuel se queixa de que, se chegar aos ouvidos de Saul que ele está ungindo um novo rei, ele o matará. Parece que este é um perigo real. Afinal, Saul não hesita ao aniquilar quase todos os amalequitas (capítulo 15). Nem mesmo hesita ao condenar seu próprio filho à morte (capítulo 14). Como Herodes séculos mais tarde, ele não vacila ante o pensamento de dizimar qualquer ameaça potencial ao seu trono. Nem irá relutar em matar qualquer um que apóie um rei rival (ver capítulos 21 e 22). Samuel sente que sua preocupação é uma boa razão para hesitação.
Deus tem a solução para o problema de Samuel. Ele deve tomar um novilho e dizer ao povo de Belém que veio oferecer um sacrifício ao Senhor. Ele deve convidar Jessé para esta refeição sacrificial, a qual propiciará ocasião para que unja um de seus filhos como rei. O filho específico não é identificado, mas deve ser um dos filhos de Jessé. Esta será uma refeição muito semelhante àquela a que Saul foi convidado junto com seu servo (ver capítulos 9 e 10).
Algumas pessoas podem ficar perturbadas diante das instruções que Deus dá a Samuel. Deus não instrui pessoalmente Samuel a enganar Saul e o povo de Belém? É verdade que Deus não informa aos anciãos de Belém todas as coisas que está para fazer por meio de Samuel, mas aquilo que Ele mostra é absolutamente verdadeiro. Samuel vem realmente oferecer um sacrifício. Deus, muitas vezes, tem muito mais em mente do que nos revela de antemão. Este é só meio diferente. A maravilha mesmo é que Deus nos diga algumas das coisas que está por fazer (ver João 15:15).
“Fez, pois, Samuel o que dissera o SENHOR e veio a Belém. Saíram-lhe ao encontro os anciãos da cidade, tremendo, e perguntaram: É de paz a tua vinda? Respondeu ele: É de paz; vim sacrificar ao SENHOR. Santificai-vos e vinde comigo ao sacrifício. Santificou ele a Jessé e os seus filhos e os convidou para o sacrifício. Sucedeu que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: Certamente, está perante o SENHOR o seu ungido. Porém o SENHOR disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração. Então, chamou Jessé a Abinadabe e o fez passar diante de Samuel, o qual disse: Nem a este escolheu o SENHOR. Então, Jessé fez passar a Samá, porém Samuel disse: Tampouco a este escolheu o SENHOR. Assim, fez passar Jessé os seus sete filhos diante de Samuel; porém Samuel disse a Jessé: O SENHOR não escolheu estes. Perguntou Samuel a Jessé: Acabaram-se os teus filhos? Ele respondeu: Ainda falta o mais moço, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, pois não nos assentaremos à mesa sem que ele venha. Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. Tomou Samuel o chifre do azeite e o ungiu no meio de seus irmãos; e, daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de Davi. Então, Samuel se levantou e foi para Ramá.”
Os anciãos de Belém ficam pálidos com a chegada de Samuel. Eles temem que sua vinda não seja de paz. Mas as palavras de Samuel os acalmam. Ele veio para oferecer sacrifício e eles são convidados a participar. Eles se santificam e se juntam a Samuel no sacrifício. Além disso, Samuel também consagra Jessé e seus filhos como convidados especiais.
Anos antes, a escolha de Saul não fora tão difícil para Samuel. Deus lhe dissera com antecedência que o futuro rei chegaria no dia seguinte. Desde o princípio Deus tinha deixado claro que Saul era aquele a quem Ele escolhera (9:15-17). No caso do substituto de Saul, Samuel sabe onde estará o novo rei e filho de quem será, mas não sabe qual dos filhos de Jessé será. Samuel tem seus próprios critérios para selecionar o novo rei, alguns dos quais deviam ter origem na designação de Saul, reforçados pelos critérios para designação dos reis daquela época e também da nossa.
Quais seriam exatamente estes critérios? Primeiro, esperava-se que o primogênito fosse o escolhido. O primogênito recebia porção dupla dos bens de seu pai. A liderança da família era transmitida a ele. Esperava-se que ele fosse o mais maduro, o mais experiente e o mais sábio da família. Assim, por que o filho mais novo seria o escolhido de Deus? Além de priorizar a ordem de nascimento, Samuel espera que o futuro rei seja revelado por sua aparência. Estudos mostram que executivos de alto escalão tendem a ser “altos, morenos e bonitos”. Samuel espera a mesma coisa. Foi exatamente assim com Saul (ver 9:2).
Jessé e seus sete filhos sabem o que Samuel veio fazer. É mais ou menos como encontrar a Cinderela. Eles devem estar assustados diante da possibilidade de alguém de sua família ser o próximo rei. E assim Jessé faz seus filhos passarem um a um diante de Samuel, começando pelo mais velho. Deus sabe o que Samuel está pensando quando ele olha para Eliabe, o filho mais velho de Jessé, um rapaz alto, de boa aparência (ver verso 7). Mas Ele diz a Samuel que esta não é a Sua escolha para o futuro rei de Israel, indicando que Seu critério tem mais a ver com o caráter de um homem do que com sua aparência exterior. E assim, o próximo filho de Jessé, Abinadabe, passa por Samuel e também é rejeitado. Então vem Samá, e depois os outros quatro filhos de Jessé, mas Deus não aponta nenhum deles como Seu escolhido.
Certamente Samuel fica perplexo e se pergunta qual deve ser o problema. Até parece que ninguém da família de Jessé considere Davi como rei, mesmo como uma possibilidade remota. Literalmente ele foge de seus pensamentos até que Samuel pergunte a Jessé se não há outros filhos. Bem, há Davi, é claro, mas ele é só um rapazinho - ainda é considerado uma criança - não um homem. Como poderia ser o novo rei? Ele tem um trabalho de criança - guardar as ovelhas. Quando viajo para o exterior, vejo muitas mulheres ou crianças cuidando de pequenos rebanhos de ovelhas. Este é o serviço de Davi, que parece dizer tudo. Como ele pode ser considerado como candidato a rei de Israel?
O que interessa para Deus é o coração de Davi. Saul é um homem cujo coração Deus teve que mudar:
“Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia.” (I Sam. 10:9)
Mas o coração de Saul não continuou leal a Deus e ele tem que ser rejeitado e substituído por um homem como Davi, que tem um coração voltado para Deus. Por isso, Deus diz a Saul:
“Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou.” (I Sam. 13:14)
O que ninguém percebe é que Deus dará a Davi tudo o que ele precisa para ser rei de Israel. O Espírito de Deus imediatamente se apossa dele para guiá-lo e capacitá-lo. Pela providência de Deus, ele é estrategicamente colocado na presença de Saul como seu escudeiro (16:21), onde pode aprender como governa um rei. Davi não é escolhido para substituir Saul imediatamente, mas primeiro ele é colocado numa espécie de internato, para depois ser preparado mentalmente, moral e espiritualmente para reinar, o que ainda levará muitos anos.
Jessé manda alguém até Davi e ele é trazido diante de Samuel. Davi também é um jovem de boa aparência, com todas as qualidades encontradas em seus irmãos mais velhos, salvo sua idade e posição como primogênito. Vemos que Deus não desqualifica Davi por sua boa aparência, mas também não o escolhe por causa disso. Boa aparência num rei é como boa aparência numa esposa - não deve ser a base para a escolha da companheira para o resto da vida. Mas, tendo escolhido uma mulher temente a Deus, se ela for bonita também, de modo algum isto diminui sua atração (ver Pv. 31:30). O caráter de Davi é agradável a Deus e é a base de sua escolha para o serviço. A aparência física de Davi é um bônus extra; as deficiências de Davi serão supridas pelo Espírito Santo e pelo preparo de Deus.
Deus mostra a Samuel que Davi é, de fato, Seu escolhido como rei de Israel e, por isso, Samuel se põe de pé e o unge. O Espírito de Deus vem sobre Davi, apossando-se dele e capacitando-o daí em diante. Samuel, então, ergue-se e retorna para sua casa em Ramá.
“Tendo-se retirado de Saul o Espírito do SENHOR, da parte deste um espírito maligno o atormentava. Então, os servos de Saul lhe disseram: Eis que, agora, um espírito maligno, enviado de Deus, te atormenta. Manda, pois, senhor nosso, que teus servos, que estão em tua presença, busquem um homem que saiba tocar harpa; e será que, quando o espírito maligno, da parte do SENHOR, vier sobre ti, então, ele a dedilhará, e te acharás melhor. Disse Saul aos seus servos: Buscai-me, pois, um homem que saiba tocar bem e trazei-mo. Então, respondeu um dos moços e disse: Conheço um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é forte e valente, homem de guerra, sisudo em palavras e de boa aparência; e o SENHOR é com ele. Saul enviou mensageiros a Jessé, dizendo: Envia-me Davi, teu filho, o que está com as ovelhas. Tomou, pois, Jessé um jumento, e o carregou de pão, um odre de vinho e um cabrito, e enviou-os a Saul por intermédio de Davi, seu filho. Assim, Davi foi a Saul e esteve perante ele; este o amou muito e o fez seu escudeiro. Saul mandou dizer a Jessé: Deixa estar Davi perante mim, pois me caiu em graça. E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele.”
Em questão de tempo, é um longo caminho desde a designação profética de Davi como rei de Israel até sua ascensão ao trono; e ainda mais longo em termos de logística. Como um jovem rapaz, a quem nem mesmo a família considera como candidato a rei, ascende a essa posição, quando um rei paranóico já está nesse lugar, um rei que não hesita em matar seus concorrentes? A resposta a esta pergunta toma tempo e espaço nas Escrituras, mas os versos 14 a 23 nos dão uma amostra de como Deus providencialmente faz aquilo que indica mediante Seu profeta.
Obviamente, Saul não faz idéia do que aconteceu, conforme registrado nos versos 1 a 13 deste capítulo. Se ele acreditar nas palavras de Samuel (pode ser também que não acredite, especialmente à medida que o tempo passe e ele continue como rei de Israel), será realmente afastado e substituído por um homem da escolha de Deus. Ele não sabe que Samuel já designou e ungiu Davi como seu substituto, ou que o Espírito que Deus lhe deu agora é dado a Davi. O que ele realmente sabe é que as coisas estão bem diferentes do que eram. Ele não vê mais Samuel (ver 15:35). Ele não sente a presença e o poder do Senhor, através do Espírito. O que ele experimenta mesmo é um fenômeno espiritual bem diferente. Um “espírito maligno da parte de Deus” se apossa de Saul, aterrorizando-o. Ele parece ter ataques quando o terror deste espírito está presente e épocas que são mais normais.
Como seria de se esperar, existem várias teorias sobre este “espírito maligno da parte de Deus”. A aparição deste “espírito”, bem como o desaparecimento do Espírito Santo, vêm da parte de Deus. Ou seja, é o Senhor quem ordena que o Espírito Santo deixe Saul. Será possível que o pedido de Davi para que Deus não retire dele Seu Espírito (Sl. 51:11) seja, de certa forma, conseqüência daquilo que ele observa com seus próprios olhos enquanto está a serviço de Saul? O espírito maligno também é da parte de Deus. Isto não deveria ser nenhuma surpresa, uma vez que Deus é soberano. Satanás não pode fazer nada a ninguém sem que Deus permita (ver, por exemplo, Jó 1 e 2). Para os servos de Saul, este “espírito maligno” não é novo ou incomum. Eles já o viram e o reconhecem, e sabem qual é o melhor tratamento para Saul. Todas estas coisas me levam a concluir que o espírito que oprime Saul seja demoníaco. Pelo que conheço da história, parece que homens como Adolf Hitler tiveram uma experiência extremamente semelhante.
Os servos de Saul crêem que a música tenha efeito benéfico sobre Saul e recomendam que ele encontre um homem hábil no tocar da harpa para que, quando o espírito o atacar, o músico toque uma canção suave e acalme seu espírito atribulado. Saul aprova a idéia. Ele, acima de tudo, está aterrorizado pela opressão do espírito.
Subitamente um dos servos de Saul se lembra de alguém que se encaixa perfeitamente às suas necessidades. Em algum lugar ele viu e ouviu falar de Davi de Belém. Davi não é apenas um músico dotado que toca harpa com destreza, ele é também um valente guerreiro (talvez por suas “lutas” com o urso e o leão), um homem de boa aparência e de bom senso. Mais importante, é um homem com que o Senhor está presente. As mesmas coisas que qualificam Davi como rei são aquelas que o qualificam para servir ao rei. As qualidades reais de Davi estão se tornando evidentes, até mesmo para aqueles que estão no palácio.
Saul convoca Davi com educação, no entanto, este é um convite que ninguém ousa recusar. O pedido é feito a Jessé, uma vez que Davi ainda vive sob seu teto. Pelas palavras de Saul a Jessé, fica claro que ele sabe que Davi é guardador de ovelhas (ver o verso 19). Jessé envia Davi ao rei junto com uma oferta de alimentos, onde ele começa a servir como seu criado. Conforme o caráter e as habilidades de Davi vão ficando mais evidentes para Saul, ele é promovido à posição de seu escudeiro, provavelmente o serviço mais íntimo e pessoal de qualquer um dos servos de Saul. Saul não só começa a respeitar as habilidades de Davi, ele também começa a amá-lo. Talvez Davi seja quase como um filho para ele.
Termina o período de experiência de Davi e ele toma posse do cargo, por assim dizer, junto ao rei. De forma adequada, Saul solicita a Jessé que permite que Davi permaneça a seu serviço. Assim é que, toda vez que Saul é atormentado pelo espírito maligno, Davi toca sua harpa e tranqüiliza o espírito atribulado do rei. O Espírito de Deus em Davi faz com que o espírito maligno, durante algum tempo, se retire de Saul. Como Saul soletra alívio? D A V I.
O pecado do capítulo 15 é o fim para Saul; não é o fim do seu reinado, mas o fim da oportunidade para ele mudar e se arrepender. Mas, por que ungir Davi tanto tempo antes dele ser nomeado e coroado como rei? Primeiro, o Espírito que está sobre Saul para que desempenhe seus ofícios reais, pode agora ser removido e colocado sobre Davi. É no Espírito que Davi crescerá, amadurecerá e servirá a Saul, enquanto Deus o prepara para o seu ofício. Como é irônico e inesperado que Davi sirva ao rei em preparação para servir como rei. Os caminhos de Deus estão além da nossa capacidade de predizê-los.
Segundo, a unção de Davi acaba sendo um teste para os israelitas. Sua unção, diferentemente de Saul, é semipública. Seu pai e seus irmãos, assim como os homens proeminentes da cidade que comparecem ao banquete sacrificial, precisam saber que o novo rei que substituirá Saul está sendo designado. Na medida em que os homens compreendam que Davi é o próximo rei, sua reação é indicativa da alusão ao Rei de Israel e Seu Reino. Isto também determina seu lugar no reino de Davi.
Deixe-me ilustrar com a história de um homem e sua esposa, Nabal e Abigail, descrita em I Samuel 25. Davi está fugindo de Saul, e ele e seus homens se escondem onde os rebanhos de Nabal são guardados. Eles não molestam nenhum dos pastores de Nabal, nem tomam qualquer animal de seu rebanho. Eles são úteis a Nabal e, como estão na época da tosquia, educadamente lhe solicitam uma oferta. Nabal recusa, com estas palavras:
“Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos são, hoje em dia, os servos que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (I Sam. 25:10b-11)
Não é que Nabal não saiba quem é Davi. Ele sabe que ele é o filho de Jessé, e também sabe que está fugindo de seu senhor, Saul. Em outras palavras, ele sabe que Davi é o rei designado para substituir Saul. Se há alguma dúvida disto, ouça as palavras de sua esposa, Abigail, ditas a Davi:
“Perdoa a transgressão da tua serva; pois, de fato, o SENHOR te fará casa firme, porque pelejas as batalhas do SENHOR, e não se ache mal em ti por todos os teus dias. Se algum homem se levantar para te perseguir e buscar a tua vida, então, a tua vida será atada no feixe dos que vivem com o SENHOR, teu Deus; porém a vida de teus inimigos, este a arrojará como se a atirasse da cavidade de uma funda. E há de ser que, usando o SENHOR contigo segundo todo o bem que tem dito a teu respeito e te houver estabelecido príncipe sobre Israel, então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar ao coração o sangue que, sem causa, vieres a derramar e o te haveres vingado com as tuas próprias mãos; quando o SENHOR te houver feito o bem, lembrar-te-ás da tua serva.” (I Sam. 25:28-31)
Nabal sabe exatamente quem é Davi e se recusa a fazer qualquer coisa por ele. Será por que ele pode ter repercussão negativa junto a Saul (ver os capítulos 21 e 22)? Abigail é uma mulher sábia e temente a Deus. Ela sabe quem é Davi, e sua resposta e seu apelo a ele se fundamentam em sua submissão a ele como futuro rei. A designação precoce de Davi como futuro rei de Israel, portanto, se torna um teste.
É quase o mesmo hoje em dia. Quando o autor de I Samuel volta sua atenção de Saul para Davi, ele nos leva a refletir sobre um homem que é um protótipo de nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, Saul se parece demais com Satanás. Saul recebe autoridade para governar segundo Deus, no entanto, suas regras e seu governo se tornam mais importantes para ele do que o governo e as leis de Deus. Por isso, ele é posto de lado. Davi é designado para ocupar seu lugar, para governar sobre o povo de Deus com retidão. Satanás, como o Saul dos tempos antigos, foi rejeitado por Deus. Na cruz do Calvário, nosso Senhor derrotou Satanás. Contudo, ele ainda está livre para se opor a Deus, embora seu julgamento e sua punição sejam certos. Neste ínterim, Jesus Cristo foi designado como o Rei de Deus. Ele não apenas proclamou o reino de Deus, Ele também o conquistou com Sua morte, sepultamento e ressurreição. Todos aqueles que se submetem a Ele como Rei entrarão em Seu reino e governarão com Ele por toda a eternidade. A questão para você e para mim, hoje, é: “A quem serviremos?” Quem reinará sobre nós? A que reino iremos nos submeter? Por natureza, todos os homens são nascidos no reino de Satanás. Somente pelo novo nascimento, por confiar na obra de Jesus Cristo na cruz do Calvário, é que os homens são transportados do reino das trevas para o reino da luz, do reino de Satanás para o reino de Deus. Você já mudou os reis, meu amigo?
Samuel erra sobre quem será o rei de Deus. Ele espera que o rei seja “alto, moreno e bonito”, por assim dizer. Deus deixa claro a Samuel que a aparência externa não é Seu critério para a escolha do rei (I Sam. 16:7). Davi também tem boa aparência, mas esta não é a base para sua escolha por Deus. Por desígnio divino, nosso Senhor Jesus Cristo, o rei eterno de Deus, também não devia ser reconhecido por Sua aparência:
“Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.” (Is. 53:1-3)
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.” (Fp. 2:5-8)
Pelo que entendo destes textos e de outros, o Senhor Jesus não era uma pessoa que chamava a atenção, fisicamente falando. Os homens não eram atraídos a Ele por Seus belos traços ou por Sua voz profunda, tipo locutor de rádio. Os homens eram atraídos a Ele quando reconheciam Seu coração igual a Deus, Seu ser igual a Deus. Foram Sua submissão e obediência ao Pai que O distinguiram, junto ao fato dEle ter cumprido perfeitamente todas as profecias relativas ao Messias. Ele é aquele apontado por Deus para governar e, quando Ele voltar, todos os homens se ajoelharão diante Dele e O reconhecerão como o Rei de Deus (Fp. 2:9-11). A exortação das Escrituras é para que O recebamos como Rei e que nos tornemos parte de Seu reino, ou aguardemos Sua ira sobre nós como Seus inimigos (Sl. 2:10-12).
Talvez esta seja uma boa ocasião para falarmos sobre música e sua relação com o reino espiritual. Você deve se recordar que em I Sam. 10 (versos 5-6, 10-13) os profetas com quem Saul se encontrou, e a quem se juntou como “um dos profetas” (pelo menos por alguns instantes) quando o Espírito desceu poderosamente sobre ele, estavam acompanhados de instrumentos musicais - tamborim, flauta e harpa (verso 5). De alguma forma, a descida do Espírito sobre Saul (e talvez sobre os outros profetas) está associada à música, ou até mesmo seja principiada por ela. No capítulo 16, as possessões demoníacas de Saul são acalmadas pelo toque da harpa de Davi. Em II Re. 3:14-15 uma vez mais, Eliseu chama um menestrel a fim de profetizar no Espírito. Entendo que a música deva ter algum tipo de papel na ligação (ou desligamento) com o reino espiritual. Acho que devemos ter muito cuidado com o tipo de música que ouvimos. Sei que tem havido muita discussão sobre o “rock”, e não desejo ser muito loquaz neste assunto, mas sugiro que haja um tipo de música potencialmente benéfico e, provavelmente um tipo que possa invocar o espírito errado. Este texto deve nos dar uma pausa para pensar no tipo de música que ouvimos e sua influência sobre nós.
Nossa passagem fala sobre a escolha de Davi para desempenhar uma função dada por Deus - não para sua salvação. Alguns poderiam ficar tentados a se desviar desta passagem achando que Deus escolheu salvar Davi porque ele tinha um coração voltado para Ele. Deus escolheu Davi para servir por causa de seu coração. Há uma diferença enorme entre Deus escolher para um serviço e Sua eleição para salvação. Se Deus escolhesse salvar os que tivessem coração puro, Ele não salvaria ninguém:
“Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” (Pv. 20:9, ver Rm. 3:9-18).
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr. 17:9, ver também Rm. 3:9-18)
Deus não salva os homens devido àquilo que vê em seus corações e gosta do que vê. Deus salva homens que são vis pecadores em seus corações e tem misericórdia deles, colocando seus pecados sobre Seu Filho, Jesus Cristo. Somente Cristo é sem pecado e, por isso, capaz de morrer pelos pecados dos outros. Há apenas uma pessoa em toda a história da raça humana cujo coração foi livre de pecado, e essa pessoa é Jesus Cristo. Deus salva aqueles que confiam Nele para serem perdoados de seus pecados e para terem o presente da vida eterna.
Hoje em dia há muita discussão sobre liderança, e devo dizer que as qualidades e qualificações procuradas nos líderes contemporâneos não são aquelas que Deus buscou em Davi. Os evangélicos escolhem seus líderes quase nas mesmas bases que a sociedade secular. Procuramos homens que tenham “recursos” (dinheiro e influência) e “uma boa cabeça prá negócios”. Deus buscou um homem que tinha um coração voltado para Ele. Creio que esta característica seja o primeiro e principal pré-requisito para o tipo de liderança que Deus quer. Vamos procurar ser o tipo de homens e mulheres que Deus busca para o Seu serviço.
Quando chego à história de “Davi e Golias” sinto-me como um comediante convidado para falar numa convenção de comediantes. Enquanto subo ao palco, alguém me entrega uma lista das dez piadas mais famosas e mais batidas que se conhece - com instruções para contá-las de forma a fazer o público rir.
O problema com histórias do Antigo Testamento como a nossa, e de outras como “Daniel na cova dos leões” e “Jonas e a ‘Baleia’”, é que estamos familiarizados demais com elas. Não quero dizer que as conheçamos tão bem assim, pois muitas vezes não conhecemos. Mas pensamos que sim e, conseqüentemente, temos uma longa lista de idéias preconcebidas. Ao abordarmos nosso estudo vamos procurar obter o máximo que pudermos e, pela capacitação do Espírito, colocar essas idéias preconcebidas na prateleira e considerar todos os aspectos de nosso texto uma vez mais.
Talvez seja útil fazermos algumas considerações antes de nosso estudo em I Samuel 17 sobre Davi e Golias.
Primeiro, a Septuaginta (a tradução grega do Velho Testamento feita por volta de 200 a.C.) omite uma porção de versos deste capítulo. A Septuaginta omite, especificamente, os versos 12 a 31, 41, 50 e 55 a 58. O texto hebraico tradicional, conhecido como Texto Massorético, não omite. Uma vez que o Texto Massorético é o texto original e a Septuaginta apenas uma tradução (e, às vezes, bastante livre), presumiremos que a Septuaginta omitiu propositadamente os versos que estavam no texto original.
Segundo, parece haver uma discrepância entre os capítulos 16, onde Saul conhece e ama Davi, e o capitulo 17, onde Saul parece não saber quem seja ele. Várias soluções são propostas. Certamente nenhum autor (ou “editor”) colocaria estes dois capítulos lado a lado, sabendo que há alguma coisa errada no capítulo 16, ou no capítulo 17, ou em ambos. Talvez Davi tenha crescido consideravelmente desde o capítulo 16, ou a memória de Saul esteja falhando (havia uma porção de rostos e nomes a serem lembrados, ou quem sabe seu estado mental simplesmente turve seus pensamentos). Existem algumas explicações plausíveis para este aparente problema. Também devemos observar que o verso 15 do capítulo 17 parece ligar claramente este capítulo ao capítulo 16. É preciso lembrar que Saul não pergunta sobre Davi, mas sobre o pai de Davi. Afinal de contas, ele promete que sua casa ficará livre de impostos (ver 17:25). Se Jessé realmente é muito velho nos dias de Saul (17:12), então é provável que este jamais o tenha encontrado, uma vez que Jessé não podia viajar para visitar o rei. Não seria por isso que Jessé envia Davi para checar o bem-estar de seus filhos (ver 17:17-19)? Por que, então, devemos presumir que Saul se lembre dele?
Terceiro, o capítulo 17 complementa muito bem o capítulo 16, fornecendo detalhes que não estão presentes no capítulo anterior. No capítulo 16 temos o relato da designação (unção) de Davi como futuro rei de Israel mas, nesse capítulo, ele não pronuncia uma só palavra e nenhum de seus feitos é registrado. É no capítulo 17 que vemos um retrato claro de Davi e de seu caráter, pelas palavras e atos aqui registrados. No capítulo 16, Deus designa Davi como Seu rei porque ele é um “homem segundo o coração de Deus” (ver 13:14, 16:7). No capítulo 17, vemos, em termos bem específicos, exatamente o que é ser um “homem segundo o coração de Deus”. Qualquer um que tente colocar uma brecha entre estes dois capítulos, apontando aparentes incoerências entre eles, deixa de considerar sua evidente continuidade.
Quarto, esta guerra não precisaria ser travada, não fosse a tolice de Saul no capítulo 14. É Jônatas, filho de Saul, quem precipita a guerra com os filisteus que ocupam o território de Israel (capítulo 13). Saul vê o exército se dissolvendo diante de seus olhos e desobedece a Deus, deixando de esperar por Samuel para oferecer o holocausto (13:8-14). No capítulo 14, Jônatas inicia um ataque ao posto de guarda dos filisteus que resulta na intervenção divina por meio de um terremoto. A batalha contra os filisteus poderia ter sido definitivamente vencida pelo exército israelita, não fosse um edito insano expedido por Saul. Ao proibir seus soldados de comer antes do anoitecer, Saul coloca em risco a vida de Jônatas e predispõe os outros soldados a pecar por consumir a carne dos animais abatidos junto com seu sangue. À medida que o dia se arrasta, a fraqueza dos soldados devido à fome os impede de lutar bem. Além do mais, o tempo gasto no preparo da comida para este exército faminto custa a Saul e seus homens a chance de vencer definitivamente os filisteus. A guerra do capítulo 17 é conseqüência da loucura de Saul no capítulo 14, uma guerra que jamais teria sido travada não fosse seu edito.
Quinto, apenas uma pequena parcela dos 58 versos do capítulo 17 descreve a luta entre Davi e Golias. Se admitirmos que os versos 40 a 51 tratem da batalha entre Davi e o gigante filisteu, devemos, então, observar que aproximadamente 80% do capítulo seja preparação para este confronto ou venha após a vitória sobre Golias, enquanto somente 20% descrevem realmente o confronto entre ambos. Quando nos concentramos somente em “Davi e Golias”, negligenciamos a maior parte desta passagem e sua ênfase.
Consideremos, então, o capítulo 17 à luz de um retrato mais amplo do Velho Testamento até este ponto da história de Israel. A história de Davi e Golias parece bem diferente quando vista numa perspectiva mais ampla das Escrituras que a precedem (de Gênesis até I Samuel 16).
Começaremos em Gênesis 12:3, com a chamada “Aliança Abraâmica”. Ali, Deus diz a Abrão:
“Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn. 12:3, ARA, ênfase minha)
Se Golias está amaldiçoando Israel e seu Deus e, se Deus é um Deus que guarda Sua aliança, é de se esperar que Golias seja divinamente amaldiçoado. Biblicamente falando, uma nuvem negra paira sobre a cabeça de Golias, o blasfemo filisteu.
Passando rapidamente pela Lei de Moisés, chegamos ao livro de Números, particularmente aos capítulos 13 e 14, que descrevem o temor de Israel com relação aos cananeus e sua conseqüente rebelião contra Deus em Cades-Barnéia. Deus tinha libertado Israel das mãos de Faraó e tinha lançado os egípcios no Mar Vermelho. Agora, quando os israelitas chegam a Cades-Barnéia, espias são enviados a Canaã para avaliar a terra prometida. A terra e seus frutos são magníficos. O único problema para dez dos espias é o tamanho dos habitantes do lugar:
“Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela. O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, mui grandes e fortificadas; também vimos ali os filhos de Anaque. Os amalequitas habitam na terra do Neguebe; os heteus, os jebuseus e os amorreus habitam na montanha; os cananeus habitam ao pé do mar e pela ribeira do Jordão. Então, Calebe fez calar o povo perante Moisés e disse: Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente, prevaleceremos contra ela. Porém os homens que com ele tinham subido disseram: Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós. E, diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra que devora os seus moradores; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura. Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos.” (Nm. 13:27-33, ARA, ênfase minha).
O temor dos israelitas é causado pela estatura (ou seja, o poderio militar) dos “gigantes” que vivem em Canaã. “Não podemos subir contra os cananeus”, protestam, “lá tem gigantes!” Devido a esse medo e sua recusa em confiar em Deus, esta geração de israelitas perece no deserto. Quando seus filhos - a segunda geração - estão prestes a possuir a terra, Deus lhes dá instruções muito claras sobre como reagir diante dos inimigos que irão enfrentar:
“Eis que o SENHOR, teu Deus, te colocou esta terra diante de ti. Sobe, possui-a, como te falou o SENHOR, Deus de teus pais: Não temas e não te assustes.” (Dt. 1:21)
“O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença.” (Dt. 28:7)
“Passou Moisés a falar estas palavras a todo o Israel e disse-lhes: Sou, hoje, da idade de cento e vinte anos. Já não posso sair e entrar, e o SENHOR me disse: Não passarás o Jordão. O SENHOR, teu Deus, passará adiante de ti; ele destruirá estas nações de diante de ti, e tu as possuirás; Josué passará adiante de ti, como o SENHOR tem dito. O SENHOR lhes fará como fez a Seom e a Ogue, reis dos amorreus, os quais destruiu, bem como a sua terra. Quando, pois, o SENHOR vos entregar estes povos diante de vós, então, com eles fareis segundo todo o mandamento que vos tenho ordenado. Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco; não vos deixará, nem vos desamparará. Chamou Moisés a Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: Sê forte e corajoso; porque, com este povo, entrarás na terra que o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus pais; e tu os farás herdá-la. O SENHOR é quem vai adiante de ti; ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te atemorizes.” (Dt. 1:1-8, ver também Js. 1:9, 8:1 e 10:25)
O livro de Josué registra a derrota dos inimigos de Israel, não devido à sua estatura ou poderio militar, mas porque Deus está com eles nas batalhas. No livro de Juízes lemos a respeito dos homens levantados por Deus para libertar Seu povo das mãos de seus inimigos. Em alguns casos, um único indivíduo (como Sansão, ver cap. 13-16) mata muitos deles, ao passo que, em outros, um pequeno grupo (como Gideão e seus 300 homens, ver cap. 6-8) derrota uma força inimiga amplamente superior.
Quando chegamos em I Samuel, encontramos nos primeiros 16 capítulos a preparação para o confronto entre Davi e Golias. Ouça as palavras de Ana, registradas no capítulo 2:
“Não multipliqueis palavras de orgulho, nem saiam coisas arrogantes da vossa boca; porque o SENHOR é o Deus da sabedoria e pesa todos os feitos na balança. O arco dos fortes é quebrado, porém os débeis, cingidos de força... Ele guarda os pés dos seus santos, porém os perversos emudecem nas trevas da morte; porque o homem não prevalece pela força. Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido.” (I Sam. 2:3-4, 9-10)
No capítulo 4 chegamos à primeira batalha com os filisteus no livro de I Samuel. Quando os israelitas sofrem uma derrota às suas mãos, eles levam a Arca de Deus consigo para a guerra, certos de que isto lhes dará, milagrosamente, a vitória. Os israelitas são novamente derrotados, os filhos de Eli, Hofni e Finéias, são mortos e o próprio Eli também morre quando toma conhecimento deste desastre. Os filisteus orgulhosamente carregam a Arca como troféu de guerra, um símbolo de sua “vitória sobre Israel e seu Deus”. Sem nenhuma assistência humana, Deus humilha Dagom, o deus filisteu, e o povo das principais cidades filistéias (capítulos 5 e 6).
No capítulo 7 os israelitas se arrependem de seus pecados e vão à Mispa para serem julgados por Samuel e cultuar a Deus. Quando os filisteus tomam conhecimento deste ajuntamento, presumem que seja algum tipo de manobra militar hostil, e por isso reúnem suas forças e cercam o lugar onde os israelitas estão reunidos. Os israelitas estão indefesos, mas Samuel intercede por eles e, enquanto ele oferece o sacrifício, Deus intervém com uma tempestade elétrica que faz com que as armas de ferro dos filisteus virem condutores elétricos e devastem seu exército.
No capítulo 8 os israelitas exigem um rei para julgá-los e governá-los. Boa parte de sua motivação é querer alguém que vá adiante deles e lute suas batalhas (ver 8:5, 20). Saul é escolhido, um homem que, dos ombros para cima, sobressai a seus irmãos israelitas (9:2). Este é o homem que libertará o povo de Deus dos filisteus:
“Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim.” (I Sam. 9:1516, ARA, ênfase minha).
A primeira batalha de Saul com os filisteus vem imediatamente após sua vitória decisiva sobre os amonitas que sitiavam Jabes-Gileade (capítulo 11). O confronto não é iniciado por Saul, mas por seu filho Jônatas, que ataca a guarnição dos filisteus situada em Israel (13:1-4). Saul entra em pânico em virtude do tamanho do exército filisteu e de seu exército estar se desmantelando. Em desobediência à ordem de Deus, ele mesmo oferece o holocausto em vez de esperar por Samuel (13:814). Este é o começo do fim para Saul.
A situação entre os soldados israelitas e o exército filisteu chega a uma espécie de impasse. Saul parece preferir isto a se arriscar em qualquer atitude ofensiva. Jônatas toma uma atitude tipo Davi. Sem dizer nada a ninguém (especialmente ao seu pai), ele toma seu escudeiro e ataca um posto avançado dos filisteus, dizendo estas palavras, que refletem seu caráter e a qualidade de sua fé:
“Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos.” (I Sam. 14:6, ARA, ênfase minha)
Quando vemos o confronto entre israelitas e filisteus e entre Davi e Golias à luz da revelação bíblica precedente, ganhamos uma perspectiva bem diferente. Será que os israelitas, incluindo Saul, são aterrorizados por Golias? (ver 17:11, 24, 32) Não deveriam. Na verdade, esse medo não é apenas falta de fé, é desobediência aos mandamentos de Deus ao Seu povo (ver Dt. 1:21, 31:8, etc). Será que eles têm pavor deste gigante? Deveriam dizer: “Só um...?” Será que eles querem bater em retirada e não atacar? Deveriam considerar a teologia e a prática de Jônatas, que crê que Deus não é limitado pelo número de guerreiros que lutam em Seu nome. Não é o tamanho de Golias ou a arrogância de suas palavras que devem nos causar estranheza, mas a incredulidade e o medo do povo de Deus. A situação não é nova, nem desconhecida. As chances não são piores aqui do que em qualquer outro lugar. Simplesmente Israel carece de fé. Israel carece de uma liderança temente a Deus.
“Ajuntaram os filisteus as suas tropas para a guerra, e congregaram-se em Socó, que está em Judá, e acamparam-se entre Socó e Azeca, em Efes-Damim. Porém Saul e os homens de Israel se ajuntaram, e acamparam no vale de Elá, e ali ordenaram a batalha contra os filisteus. Estavam estes num monte do lado dalém, e os israelitas, no outro monte do lado daquém; e, entre eles, o vale.”
Saul jamais parece tomar a iniciativa de iniciar um confronto militar com os filisteus, e esta vez não é exceção. Depois da derrota parcial e humilhação às mãos dos israelitas no capítulo 14, os filisteus parecem ansiosos não só por recuperar seu domínio militar sobre Israel (ver 4:9), mas também seu orgulho. Os dois exércitos se preparam para o confronto, aproximadamente 14 milhas a sudoeste de Jerusalém, entrincheirando-se em lados opostos do Vale de Elá e assentando acampamento nas encostas de duas montanhas, cada uma das quais desce para o vale onde corre um ribeiro (ver 17:40).
Podemos muito bem nos perguntar por que este impasse continua por tanto tempo, com os dois lados fingindo um luta com muita gritaria e brados de guerra, mas sem nenhum contato verdadeiro e sem nenhuma baixa. Saul e seu exército realmente não querem lutar, nem os filisteus. É mais fácil compreender a relutância dos filisteus. Eles empregam tanto o aço quanto o bronze em seus instrumentos de guerra. Eles têm carros, por exemplo (ver 13:5), mas estes são projetados para um solo relativamente nivelado, não para a encosta de montanhas - estes veículos não são “para todo tipo de terreno”. Também não é fácil para um soldado com uma proteção tão pesada quanto a de Golias lutar com agilidade e facilidade enquanto se esforça para manter o equilíbrio na encosta de uma montanha. O perigo de lutar nesses terrenos acidentados é claramente expresso mais tarde em II Samuel. Quando as forças leais a Davi saem para lutar contra Absalão e seu exército, mais guerreiros das forças rebeldes são mortos por causa do terreno do que pelos soldados de Davi:
“Porque aí se estendeu a batalha por toda aquela região; e o bosque, naquele dia, consumiu mais gente do que a espada.” (II Sam. 18:8)
Ainda que os filisteus superem os israelitas em número e em armas, o terreno é tal que dificulta em muito a sua investida, da mesma maneira que o inverno dificultou as investidas militares na Europa no passado. Nenhum dos dois lados parece querer uma batalha de verdade, e assim, o desafio de Golias é uma espécie de chamariz, se ele puder encontrar alguém disposto a lutar com ele.
“Então, saiu do arraial dos filisteus um homem guerreiro, cujo nome era Golias, de Gate, da altura de seis côvados e um palmo. Trazia na cabeça um capacete de bronze e vestia uma couraça de escamas cujo peso era de cinco mil siclos de bronze. Trazia caneleiras de bronze nas pernas e um dardo de bronze entre os ombros. A haste da sua lança era como o eixo do tecelão, e a ponta da sua lança, de seiscentos siclos de ferro; e diante dele ia o escudeiro. Parou, clamou às tropas de Israel e disse-lhes: Para que saís, formando-vos em linha de batalha? Não sou eu filisteu, e vós, servos de Saul? Escolhei dentre vós um homem que desça contra mim. Se ele puder pelejar comigo e me ferir, seremos vossos servos; porém, se eu o vencer e o ferir, então, sereis nossos servos e nos servireis. Disse mais o filisteu: Hoje, afronto as tropas de Israel. Dai-me um homem, para que ambos pelejemos. Ouvindo Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito. Davi era filho daquele efrateu de Belém de Judá cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; nos dias de Saul, era já velho e adiantado em anos entre os homens. Apresentaram-se os três filhos mais velhos de Jessé a Saul e o seguiram à guerra; chamavam-se: Eliabe, o primogênito, o segundo, Abinadabe, e o terceiro, Samá. Davi era o mais moço; só os três maiores seguiram Saul. Davi, porém, ia a Saul e voltava, para apascentar as ovelhas de seu pai, em Belém. Chegava-se, pois, o filisteu pela manhã e à tarde; e apresentou-se por quarenta dias.”
É possível que Golias seja o comandante das forças filistéias, mas não vejo razão convincente para pensar assim. Ele não é mencionado nos três primeiros versos do capítulo 17 e parece ter surgido somente depois de um prolongado impasse entre os dois exércitos. Quando ele é apresentado, não é como rei dos filisteus, nem como seu comandante em chefe, mas como um “campeão”. Por isso, estou inclinado a pensar que, enquanto o impasse continua, Golias aproveite a oportunidade para se aproximar dos israelitas, passando por suas próprias tropas e apresentando-se abertamente como um alvo convidativo a qualquer um suficientemente ousado para “vir e pegá-lo”.
Golias parece falar por todo o exército filisteu quando propõe uma solução para o impasse entre os dois exércitos. Se ele vencer, isto lhe dará grande prazer (ele parece amar uma boa briga e o fato de ainda estar vivo testemunha que não perdeu nenhuma disputa), e uma vantagem real para os filisteus. No entanto, enquanto a oferta for mantida, se pelo menos um único israelita se opuser a Golias e vencê-lo, Israel obterá a vitória sobre todo o exército filisteu. Desta forma, a perda de apenas uma vida seria necessária para determinar o exército vitorioso.
Durante esses 40 dias parece que os israelitas ficam cada vez mais receosos e relutantes em aceitar o desafio de Golias. Enquanto isso, ele parece ficar cada vez mais ousado. Duas vezes ao dia (de manhã e à tarde) ele se aproxima da linha de frente israelita e desafia qualquer guerreiro corajoso a sair e lutar com ele. Até posso imaginar que, à medida que os dias passem, Golias se torne cada vez mais arrogante, talvez chegando mais e mais perto (e os israelitas fugindo toda vez que ele o faz - ver 17:24). A princípio, sua oferta é um desafio, depois parece se tornar um insulto. Ele está tentando incitar os israelitas a tomarem uma atitude.
Este desafio é fácil para Golias. Afinal, esse camarada é um gigante. Ele mede “seis côvados e um palmo” (verso 4), o que o faz ter quase 3 metros de altura. Se hoje ele fosse um jogador de basquete, poderia “enterrar” a bola sem tirar os pés do chão! Se sua altura não for suficiente para aterrorizar os israelitas, sua armadura deve dar arrepios na espinha. Já ouvi falar de mulheres “bem vestidas”, mas Golias manda sua mensagem justamente pelo modo como está equipado. Ele usa um capacete de bronze e uma couraça que pesa cerca de 60 kg, e suas pernas também estão protegidas por caneleiras. Ele carrega um dardo de bronze entre os ombros e tem uma lança tão pesada que alguns precisariam de um amigo para pegar uma das extremidades e ajudar a carregá-la. A ponta da lança pesa cerca de 7 kg, segundo algumas estimativas, e outros sugerem ainda mais. Além de todo esse equipamento de proteção usado ou carregado por Golias, ele tem um escudeiro que vai à sua frente levando seu escudo.
Os israelitas levam a sério o desafio de Golias. Eles e seu rei estão apavorados por causa do gigante filisteu. Eles estão tão assustados que ninguém se dispõe a aceitar o desafio de Golias. Ninguém quer enfrentar o gigante. De manhã e à tarde, durante 40 dias, Golias tenta provocar alguém para que lute com ele, e aterroriza os que não aceitam.
Golias, o campeão filisteu, é descrito nos versos 4 a 11 por sua elevada estatura física e sua impressionante e ofensiva armadura. Davi, o futuro oponente de Golias, é apresentado nos versos 12 a 15 com uma descrição bem diferente. Nada é dito sobre sua estatura, sua força ou suas armas. Simplesmente é dito que ele é o mais novo dos oito filhos de Jessé, o efrateu de Belém de Judá. Muito mais é dito a respeito de Jessé, que é um homem já muito velho nos dias de Saul (verso 12). Também é dito que os três irmãos mais velhos de Davi (os mesmos mencionados em 16:6-9) foram à guerra com Saul, e que Davi é deixado em casa para apascentar as ovelhas, salvo quando precisa viajar para servir como ministro de música para Saul (ver 16:14-23).
Por que esta ênfase “familiar” na descrição de Davi, quando Golias é descrito em termos de sua assombrosa aparência, armas e agressividade? Há muitas razões. Primeira, não é a aparência de Davi que faz com que Deus o escolha, mas seu coração, seu caráter. Segundo, para que Davi seja reconhecido como alguém de cuja descendência algum dia virá o Messias, ele precisa ser da tribo de Judá (ver Gn. 49:8-12), e deve ser de Belém (ver Mq. 5:2). Ser o mais novo da família explica a razão pela qual ele é designado para apascentar as ovelhas, e também a razão pela qual seu pai idoso o envia para entregar comida a seus irmãos e trazer notícias de seu bem-estar. É também outro exemplo de como Deus muitas vezes reverte a maneira dos homens, a qual, aqui, seria escolher o filho mais velho de Jessé, não o mais novo.
“Disse Jessé a Davi, seu filho: Leva, peço-te, para teus irmãos um efa deste trigo tostado e estes dez pães e corre a levá-los ao acampamento, a teus irmãos. Porém estes dez queijos, leva-os ao comandante de mil; e visitarás teus irmãos, a ver se vão bem; e trarás uma prova de como passam. Saul, e eles, e todos os homens de Israel estão no vale de Elá, pelejando com os filisteus. Davi, pois, no dia seguinte, se levantou de madrugada, deixou as ovelhas com um guarda, carregou-se e partiu, como Jessé lhe ordenara; e chegou ao acampamento quando já as tropas saíam para formar-se em ordem de batalha e, a gritos, chamavam à peleja. Os israelitas e filisteus se puseram em ordem, fileira contra fileira. Davi, deixando o que trouxera aos cuidados do guarda da bagagem, correu à batalha; e, chegando, perguntou a seus irmãos se estavam bem. Estando Davi ainda a falar com eles, eis que vinha subindo do exército dos filisteus o duelista, cujo nome era Golias, o filisteu de Gate; e falou as mesmas coisas que antes falara, e Davi o ouviu. Todos os israelitas, vendo aquele homem, fugiam de diante dele, e temiam grandemente, e diziam uns aos outros: Vistes aquele homem que subiu? Pois subiu para afrontar a Israel. A quem o matar, o rei o cumulará de grandes riquezas, e lhe dará por mulher a filha, e à casa de seu pai isentará de impostos em Israel.”
Nos versos 4 a 30 há um claro contraste entre o jeito como Golias vem para o combate e a maneira como Davi se apresenta para enfrentá-lo. A figura marcante de Golias é previsível, até mesmo esperada. Ele é um soldado experiente, um lutador arrogante (se não corajoso), um campeão cuja função é lutar no território entre os exércitos oponentes. Davi está envolvido nesta batalha de uma forma diferente. Jamais esperaríamos isto dele e, provavelmente, nem ele. Ele nem mesmo está no exército. Seus três irmãos mais velhos estão, mas há ainda outros quatro que são mais velhos do que ele e que também não estão lutando. Davi é o mais novo de oito filhos. Seu trabalho é tocar harpa para Saul e apascentar as ovelhas de seu pai. Quem poderia imaginar que ele acabaria aceitando o desafio de Golias?
A chegada de Davi à cena do conflito não é conseqüência de sua própria iniciativa. Ele está mais do que ocupado cuidando de Saul e das ovelhas de seu pai (verso 15). Seus três irmãos mais velhos estão lutando contra os filisteus poucas milhas a oeste e, aparentemente, já faz algum tempo que Jessé recebeu alguma notícia deles. Devido à sua idade avançada, Jessé não pode viajar para muito longe; portanto, ele chama Davi e o instrui a ir ao acampamento do exército israelita. Aparentemente, o propósito de sua visita é levar alguns suprimentos para seus irmãos e seu comandante (versos 17-18). No entanto, sente-se que o que Jessé mais deseja é ter notícias em primeira mão sobre o rumo das coisas e sobre seus filhos.
Estou certo de que Jessé não deseja colocar seu filho mais novo em perigo. Creio que ele espera que Davi chegue enquanto os soldados estão no acampamento, não na frente de batalha. Ele quer que Davi entregue os suprimentos, fale diretamente com seus irmãos, e depois se apresse em voltar prá casa com as notícias, sem se envolver na luta. Simplesmente não acontece desse jeito. Deus providencialmente orquestra os fatos para que ocorra uma série de acontecimentos bem diferentes.
Depois de cuidar para que alguém tomasse conta de seu rebanho de ovelhas, Davi parte logo cedo, viajando aproximadamente 12 milhas para oeste, rumo ao acampamento israelita. Se ele tivesse chegado alguns minutos antes, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ele teria encontrado seus irmãos ainda no acampamento, onde simplesmente lhes teria dado os suprimentos enviados por Jessé, perguntado sobre seu bem-estar e depois iniciado a volta para casa antes que eles fossem para a frente de batalha.
Mas Davi chega justamente quando os soldados israelitas estão deixando o acampamento e indo apressadamente para a linha de frente, dando um impressionante grito de guerra enquanto atacam - aproximando-se, mas nem tanto, dos filisteus. Davi tem pouca opção, a não ser deixar a comida que trouxe de casa com o soldado que está na retaguarda com os suprimentos, e ir atrás de seus irmãos na frente de batalha. Ali ele encontra os irmãos e, enquanto conversa com eles, Golias se adianta para repetir seu desafio pela 41ª vez. Golias diz o de sempre, mas esta é a primeira vez que Davi o ouve. Ele ouve o desafio do gigante e sua blasfêmia contra Israel e seu Deus. Ele vê os apavorados israelitas (incluindo seus irmãos) baterem em retirada, sua coragem estraçalhada pelas palavras e pela aparência deste homem.
Providencialmente, alguns soldados israelitas conversam com Davi ou, pelo menos, conversam na sua frente. As palavras que ele ouve o pegam totalmente desprevenido, tanto que ele pede que sejam repetidas e confirmadas diversas vezes por diversas pessoas. Todos dizem a mesma coisa, que o rei Saul expediu um edito convocando voluntários para lutar com Golias, e que também ofereceu uma recompensa substancial ao homem que se apresentasse e aceitasse o desafio. Saul promete dar a essa pessoa grandes riquezas, assim como uma de suas filhas por esposa. Ele também promete isentar de impostos a família do pai do voluntário.
Admito que é mera especulação, mas não creio que esta tríplice oferta seja feita de uma só vez. Creio que tenha sido feita de modo progressivo. Você já esteve no portão de embarque de um aeroporto prestes a embarcar, quando o atendente anuncia que o vôo está com excesso de reservas? A princípio, a companhia aérea pode oferecer US$ 100 de crédito a quem se dispor a ceder seu assento. Depois, se ainda forem necessários outros assentos, a companhia aumenta a oferta. E então, a pessoa que devolve sua passagem recebe um crédito de US$ 200. Finalmente, se ainda for necessário, a companhia oferece passagens grátis de ida e volta para qualquer lugar do país.
Acho que é isto que Saul faz. Ele não está disposto a enfrentar Golias pessoalmente, por isso convoca um voluntário. Ninguém se apresenta. Então ele oferece uma quantia substancial em dinheiro (ou terras, ou o que quer que seja em forma de riqueza) a qualquer voluntário. Ninguém ainda. Poucos dias depois, Saul lança a oferta de uma de suas filhas como esposa - sem voluntários. Finalmente, ele acrescenta mais um benefício ao pacote - ele isentará de impostos a família do homem. Eis um negócio que Saul acha irrecusável.
Davi também acha irrecusável. Quando fica sabendo o que está sendo oferecido por Saul, ele acha tão incrível que pede a confirmação de diversas pessoas antes de acreditar. Em minha opinião, Davi não é totalmente motivado pelo que é oferecido. Pelo contrário, ele fica espantado que tal oferta tenha sido feita, pois espera que um verdadeiro soldado aproveite a oportunidade - o privilégio - de enfrentar Golias. Afinal, este homem está afrontando o povo de Deus e, portanto, o próprio Deus. Davi está certo de que Deus dará a vitória àquele que lutar com Golias. É batata! E além da grande honra e do privilégio de lutar com Golias, o rei está oferecendo todos estes prêmios! Não dá para entender. Davi pergunta mais e mais vezes para ter certeza de que ouviu corretamente. É alguma pegadinha? Por que será que ninguém quer aceitar a oferta de Saul?
“Ouvindo-o Eliabe, seu irmão mais velho, falar àqueles homens, acendeu-se-lhe a ira contra Davi, e disse: Por que desceste aqui? E a quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção e a tua maldade; desceste apenas para ver a peleja. Respondeu Davi: Que fiz eu agora? Fiz somente uma pergunta. Desviou-se dele para outro e falou a mesma coisa; e o povo lhe tornou a responder como dantes.”
A maioria das pessoas pensa que o milagre deste capítulo seja a derrota de Golias por Davi. Embora seja um grande milagre, não vamos nos esquecer que muitos obstáculos precisam ser superados antes que Davi possa confrontar Golias. O primeiro é a sua situação. Ele é jovem e nem mesmo está no exército de Saul. Ele é um jovem pastor que cuida do rebanho de seu pai a algumas milhas do lugar onde os dois exércitos estão frente a frente. Além de Golias, Davi também precisa passar por seu irmão mais velho, Eliabe, e por Saul. Ele precisa primeiro obter permissão oficial para entrar em combate com Golias no campo de batalha. O primeiro obstáculo está em vias de ser removido. Agora Davi está tratando do segundo obstáculo – seu irmão mais velho, Eliabe – nos versos 28 a 30.
Vamos relembrar as palavras de Eliabe a Davi à luz daquilo que já aprendemos sobre ele no capítulo 16. Eliabe é o mais velho dos oito filhos de Jessé; Davi é o mais novo. Eliabe deve ser “alto, moreno e bonito”, pois Samuel espera que ele seja ungido rei de Israel. Eliabe é rejeitado (junto com os outros seis irmãos mais velhos de Davi), porque Deus não escolherá o rei com base na aparência, mas com base num coração segundo o Seu próprio coração (13:14; 16:7). Eliabe não possui o “coração” que Davi possui. Além disso, Samuel ungiu Davi na presença de seus irmãos (16:13) para que Eliabe soubesse de sua eleição como rei.
Perto do final do capítulo 17, Eliabe não está com boa cara. Quando ouve Davi perguntando a alguns de seus companheiros de batalha sobre as recompensas oferecidas por Saul ao homem que derrotar Golias, Eliabe fica extremamente irado e descarrega sua raiva em Davi. Primeiro ele o acusa de vir ao campo de batalha pelos motivos errados. Especificamente, ele acusa Davi de querer ser um espectador da peleja por pura diversão, não muito diferente de ir a um circo. Ou ele não sabe que Davi veio em obediência às instruções de seu pai ou mentalmente põe isso de lado. Depois, ele ataca Davi acusando-o de deixar suas responsabilidades com relação ao seu trabalho de cuidar das ovelhas de seu pai. Ele acusa Davi de abandonar o rebanho e junta um insulto à injúria, acrescentando a palavra “poucas” (“poucas ovelhas”, verso 28), sugerindo que a tarefa de Davi não é apenas doméstica (cuidar de ovelhas), mas também banal (só umas “poucas ovelhas”). Na verdade, Davi não negligenciou seu rebanho, mas assegurou-se de que alguém cuidasse dele na sua ausência (verso 20). No entanto, o pior de tudo é que Eliabe ousa julgar o coração de seu irmão mais novo, acusando-o de agir com maldade.
Ironicamente, em todas as áreas em que Eliabe acusa Davi, seu irmão mais novo não é somente inocente, mas é digno de elogio. Davi vem ao campo de batalha para trazer comida a seus irmãos e levar notícias deles a seu pai - ele vem em obediência às instruções de seu pai. Davi não abandonou seu rebanho; ele se assegurou de que alguém cuidasse dele enquanto estivesse ausente. Davi não é culpado de ter um coração maléfico; ele é escolhido por Deus porque é “um homem segundo o coração de Deus”. E Davi não deve ser tratado com desrespeito, uma vez que em breve será o rei de Israel (e isto inclui Eliabe).
Examinando todas as acusações de Eliabe, o ponto principal é: a juventude de Davi. Davi é acusado de vir à cena da batalha por curiosidade infantil. Isto é injusto. É acusado de abandonar suas responsabilidades como faria uma criança, e também é acusado da insolência e maldade que as crianças são capazes. Que ousadia Davi vir e levantar questões pertinentes ao pedido de Saul e ao desafio de Golias!
Se Davi tivesse voltado direto para casa e desse ao seu pai um relato honesto e completo sobre a guerra e a conduta de seus irmãos mais velhos, o que ele teria dito a Jessé? Teria relatado que absolutamente nenhum progresso tinha sido feito para derrotar os filisteus, e que Eliabe, Abinadabe e Samá correram como covardes quando Golias se aproximou. Teria que dizer a seu pai que, ao trazer à baila a questão do voluntário para lutar com Golias, foi severamente “cortado” por seu irmão mais velho. Não é interessante que a arrogância e as blasfêmias de Golias são minimizadas por Eliabe, enquanto Davi é falsamente acusado de maldade por fazer e falar o que é certo?
Davi talvez fique aflito e desapontado pelas cruéis palavras acusatórias de seu irmão, mas não é barrado por elas. Ele responde a seu irmão e o desafia a ser específico quanto aos erros que cometeu, dizendo o que ele fez. Ele parece insistir que o assunto sobre o qual está falando não é inadequado. Sobre o que mais alguém deveria conversar, a não ser sobre enfrentar Golias e ir buscar a recompensa oferecida por Saul? Assim, Davi continua o que estava fazendo - perguntando àqueles ao seu redor se o seu entendimento sobre a oferta de Saul é correto.
“Ouvidas as palavras que Davi falara, anunciaram-nas a Saul, que mandou chamá-lo. Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu. Porém Saul disse a Davi: Contra o filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois tu és ainda moço, e ele, guerreiro desde a sua mocidade. Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. Disse mais Davi: O SENHOR me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu. Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o SENHOR seja contigo. Saul vestiu a Davi da sua armadura, e lhe pôs sobre a cabeça um capacete de bronze, e o vestiu de uma couraça. Davi cingiu a espada sobre a armadura e experimentou andar, pois jamais a havia usado; então, disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois nunca o usei. E Davi tirou aquilo de sobre si.”
Se for do jeito de Eliabe, Davi voltará para casa humilhado. Felizmente para Israel, Davi não fica arrasado e nem é dissuadido pela sarcástica repreensão de seu irmão, que tenta “podá-lo”. Eliabe poderia ter ordenado que ele fosse para casa, se Saul não tivesse ouvido sobre o interesse de Davi em seu programa de incentivos para enfrentar Golias. Sem levar Eliabe em consideração, Saul convoca Davi, cujas primeiras palavras ao rei são piedosas e animadoras:
“Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu.” (v. 32)
Embora o sentido das palavras de Davi vá muito além de Saul, o foco principal está sobre ele, pois está apavorado com a presença agourenta de Golias e dos filisteus. Davi bondosamente e, um tanto indiretamente, encoraja Saul a não temer. Ele fala isto porque está disposto a ir e lutar com Golias. Ele está disposto a fazer aquilo que nem Saul, nem qualquer outro soldado em Israel, está disposto a fazer - lutar com Golias.
Antes de considerar a fé de Davi, vamos ponderar por alguns instantes sobre os temores de Saul. Sou forçado a concluir que ele, por natureza, não é nenhum pouco corajoso. Seu pai foi “um homem de bens” (9:1), mas o mesmo não é dito a seu respeito. Saul é aquele que se esconde entre a bagagem quando é indicado para ser rei de Israel (10:22). Quando o Espírito desce sobre ele, ele se torna um novo homem, com um novo coração (10:9). Davi parece ser um homem segundo o coração de Deus antes mesmo do Espírito Santo descer sobre ele. Quando enfrenta a oposição dos filisteus, Saul é passivo, não ofensivo, embora a luta contra os filisteus seja uma parte significativa de seu chamado como rei (9:16). Somente quando o Espírito de Deus desce poderosamente sobre ele, Saul parece agir decisivamente contra seus inimigos (11:6). Por natureza, de maneira alguma Saul é corajoso; somente no Espírito ele é um verdadeiro líder.
Assim dizendo, devo admitir que sinto certa compaixão (ou pelo menos pena) de Saul. De diversas formas, sua recusa em lutar com Golias (individual ou coletivamente) é totalmente lógica. Afinal, disseram-lhe que seu reinado estava praticamente no fim (13:13-14; 15:23). Samuel o deixou, não vendo sua face novamente (15:35). E o Espírito de Deus se apartou dele, sendo substituído por um “espírito maligno da parte do Senhor” (16:14). Acho que eu também não estaria fazendo qualquer coisa perigosa ou corajosa.
Davi é um homem intrépido e, até aqui, o único israelita com coragem no campo de batalha. Onde ele a consegue? Deixe-me sugerir algumas fontes. Primeiro, sua coragem tem origem em sua teologia - seu entendimento de Deus. Ele é “um homem segundo o coração de Deus” (13:14, 16:7). Uma pessoa não pode ser um “homem segundo o coração de Deus” a menos que conheça o Seu coração, e isto só ocorre quando se entende Deus por meio de Sua Palavra (veja, por exemplo, o Salmo 119). Davi conhece a Deus não só de forma histórica (como Deus libertou Israel no passado) e teológica, mas também de forma prática, como em breve irá demonstrar a Saul.
Davi age como um rei de Israel deveria agir. Ele precisa confiar em Deus, incentivar seus colegas israelitas a fazer o mesmo, e derrotar os inimigos de Deus, especialmente os filisteus. Quando ele foi ungido como o futuro rei de Israel (capítulo 16), deve ter gasto um bom tempo meditando no significado destas coisas, bem parecido com o que Maria faria séculos depois (ver Lucas 2:19, 51). O que significa ser rei de Israel? O que ele deve fazer como rei? Suas ações no dia em que ele enfrenta Golias, sem dúvida, são conseqüências de suas meditações. Este jovem não é um soldado, e alguns diriam até que ele é jovem demais para lutar, mas Davi é providencialmente colocado numa situação em que precisa confiar em Deus e obedecer à Sua Palavra, ou então acovardar-se em incredulidade e desobediência, como Saul e os demais.
Saul dá a Davi todas as oportunidades para arranjar uma desculpa e voltar para a casa de seu pai e suas ovelhas, sem culpa ou vergonha. Há certa bondade em suas palavras quando tenta convencê-lo a não lutar com Golias. Ele não diz que Davi é muito pequeno para lutar, mas que é muito jovem e, por isso, inexperiente. Golias é um campeão maduro, com muitos anos de experiência em combates. Davi é apenas um garoto, sem nenhuma experiência. Ou pelo menos é isto que Saul supõe; no entanto, Davi diz o contrário, com tanta convicção que Saul permite que ele represente Israel na luta contra Golias.
Davi é jovem, mas seu dever, aparentemente banal, de cuidar de um pequeno rebanho de ovelhas o preparou muito bem para lutar com Golias. Eliabe jamais esteve tão errado a seu respeito, como demonstram as palavras de Davi a Saul. Esta manhã, junto com seus irmãos, Davi vê e ouve o que qualquer outro soldado israelita vê e ouve na frente de batalha. A diferença é que o que ele vê é muito parecido com as coisas que já enfrentou como pastor. Golias é forte e poderoso, capaz de destruir um homem? Leões e ursos também, e Davi os derrubou e matou. Poucas criaturas são mais assustadoras quando rugem do que um urso ou um leão (ver I Pe. 5:8). Ao desempenhar seus deveres como pastor Davi matou tanto ursos quanto leões (versos 34-36).
Quando Davi arrisca sua vida para salvar uma ovelha que está sob seus cuidados, Deus o salva. Será que ele está preocupado por ter que enfrentar Golias? Não, pois o Deus que o salvou das garras do leão e das garras do urso também o salvará das mãos de Golias. Repare que Davi fala em ser salvo das “mãos” ou das “garras” de um leão ou urso, não das “presas”. Isto porque a fera tinha um cordeiro em sua boca e não queria soltá-lo, tendo que lutar com Davi com suas patas e garras. Golias não representa nenhuma ameaça e, uma vez que Davi, com a ajuda de Deus, destruiu com suas próprias mãos o leão e urso que rugiam, ele também pode destruir os filisteus que urram. Golias fala (urra) de um jeito que assusta as forças israelitas? Ele não assusta Davi. Davi já viu isso antes.
Creio que a fé de Davi em Deus seja contagiosa e que Saul, de alguma forma, crê que haja uma boa chance de ele prevalecer contra Golias. Saul lhe dá permissão para lutar e lhe oferece sua armadura. A armadura não é uma boa idéia, e Davi a recusa, mas ela é uma forte implicação de que Davi luta com Golias em lugar de Saul, como representante oficial do exército israelita. Se for esse o caso, a vitória de Davi deve ser a vitória de Israel (o que acabará sendo). Caso contrário, sua derrota irá parecer a derrota de Israel, pelo menos nos termos especificados por Golias (ver versos 8 e 9). Davi não está travando esta luta sozinho. Ele está lutando por Deus, por Saul e por todo o povo de Israel.
Não quero ser muito prolixo a respeito da armadura de Saul, a qual ele oferece a Davi. Pode parecer, pelo menos à distância (e para aqueles mal informados), que é Saul quem esteja saindo contra Golias. Afinal, quem mais tem uma armadura como a dele? Isto também sugere que Davi não pode ser tão pequeno em estatura, ou a armadura nem mesmo serviria nele. Ele a coloca e depois a tira, porque não sabe lutar com ela - em suas palavras, ele nunca a “usou”. Davi irá contra Golias com as mesmas armas que costuma usar, aquelas que Deus lhe deu habilidade para usar.
“Tomou o seu cajado na mão, e escolheu para si cinco pedras lisas do ribeiro, e as pôs no alforje de pastor, que trazia, a saber, no surrão; e, lançando mão da sua funda, foi-se chegando ao filisteu. O filisteu também se vinha chegando a Davi; e o seu escudeiro ia adiante dele. Olhando o filisteu e vendo a Davi, o desprezou, porquanto era moço ruivo e de boa aparência. Disse o filisteu a Davi: Sou eu algum cão, para vires a mim com paus? E, pelos seus deuses, amaldiçoou o filisteu a Davi. Disse mais o filisteu a Davi: Vem a mim, e darei a tua carne às aves do céu e às bestas-feras do campo. Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do SENHOR dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel. Saberá toda esta multidão que o SENHOR salva, não com espada, nem com lança; porque do SENHOR é a guerra, e ele vos entregará nas nossas mãos. Sucedeu que, dispondo-se o filisteu a encontrar-se com Davi, este se apressou e, deixando as suas fileiras, correu de encontro ao filisteu. Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; a pedra encravou-se-lhe na testa, e ele caiu com o rosto em terra. Assim, prevaleceu Davi contra o filisteu, com uma funda e com uma pedra, e o feriu, e o matou; porém não havia espada na mão de Davi. Pelo que correu Davi, e, lançando-se sobre o filisteu, tomou-lhe a espada, e desembainhou-a, e o matou, cortando-lhe com ela a cabeça. Vendo os filisteus que era morto o seu herói, fugiram. Então, os homens de Israel e Judá se levantaram, e jubilaram, e perseguiram os filisteus, até Gate e até às portas de Ecrom. E caíram filisteus feridos pelo caminho, de Saaraim até Gate e até Ecrom. Então, voltaram os filhos de Israel de perseguirem os filisteus e lhes despojaram os acampamentos. Tomou Davi a cabeça do filisteu e a trouxe a Jerusalém; porém as armas dele pô-las Davi na sua tenda.”
A ironia deste incidente é que a armadura de Davi (ou a falta dela) parece “desarmar” Golias. Eis um homem cujo ego parece tão grande ou maior do que sua estrutura. Ele é arrogante, orgulhoso e blasfemo. Ele desafia os israelitas a lhe enviar seu melhor guerreiro, e o vencedor leva tudo. Você pode imaginar que choque para Golias e seu ego quando Davi aparece? Eis aqui um jovem sem nenhuma proteção e, aparentemente, sem nenhuma arma ofensiva. Davi leva uma funda, mas ainda não colocou nela uma pedra, por isso, com certeza, não parece ameaçador. O que Golias vê é o cajado que Davi leva nas mãos. Ele parece concluir que esta seja sua única arma. Ainda hoje as pessoas carregam pedaços de pau - para afastar cachorros inoportunos. Será que é por isso que Davi carrega seu cajado, para tratar Golias como a um cachorro? Golias profere maldições pelos seus deuses (verso 43). Ele é de Gate; será que ele sabe como Deus tratou seu “deus” Dagon?
Que insulto para Golias mandarem um rapazinho sem nenhuma armadura e com um pedaço de pau! É assim que o levam a sério? Será que fazem tão pouco de suas habilidades que mandam alguém como este? Golias é louco e, com certeza, pretende matar Davi e dar sua carcaça como alimento às aves do céu e às bestas do campo (verso 44). Será que a ameaça também pretende intimidar Davi? Não. De qualquer forma, isto confirma a fé de Davi. A imagem do cadáver de um inimigo alimentando as aves e as feras não começou com Golias:
“O SENHOR te fará cair diante dos teus inimigos; por um caminho, sairás contra eles, e, por sete caminhos, fugirás diante deles, e serás motivo de horror para todos os reinos da terra. O teu cadáver servirá de pasto a todas as aves dos céus e aos animais da terra; e ninguém haverá que os espante.” (Dt. 28:25-26)
Deus usou esta expressão para descrever o destino dos israelitas que rejeitarem Sua Palavra, mas a imagem também pode ser empregada com relação aos inimigos de Deus, quem quer que sejam (ver Jr. 7:33; 15:3; 16:4; 19:7; 34:20; Ez. 29:5). Golias espera assustar Davi, ameaçando matá-lo e dar seu corpo como alimento às aves e às feras? Simplesmente ele relembra a Davi a promessa de Deus com relação a Seus inimigos. É por isso que Davi pode reverter sua maldição:
“Hoje mesmo, o SENHOR te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel.” (I Sam. 17:46)
Não é o corpo de Davi que virará comida de passarinho neste dia, mas o de Golias. Davi deixa bem claro que sua disputa com Golias não é apenas uma questão pessoal - Davi luta com ele para a glória de Deus, e a favor da nação de Israel. Sua vitória será uma lição para todos de que “a batalha é do Senhor”, da mesma forma que a vitória (verso 47).
Isto faz Golias se mover. Davi não espera que Golias venha até ele. Em vez disto, ele corre em sua direção, pegando uma das cinco pedras na corrida, colocando-a na funda e depois girando enquanto se dirige para o gigante. Você pode imaginar Davi, a esta altura, tentando correr com a armadura de Saul, esperando desferir um golpe fatal contra Golias quando nem mesmo pode estender o braço acima dos ombros com uma espada? A funda é a arma perfeita. Golias está atrás do escudo carregado por seu escudeiro. Ele está protegido dos pés à cabeça, com uma abertura apenas ao redor dos olhos para que possa ver. Esta é a parte exposta de seu corpo. Este é o alvo de Davi, que ele acerta em cheio, ouso dizer, enquanto corre. A pedra se encrava na cabeça de Golias, derrubando-o como a uma árvore. Davi corre para ele, arranca a espada do corpo inerte e corta sua cabeça com ela. Agora o inimigo é comida de passarinho.
Este momento deve ter sido angustiante, quando o mundo todo parecia imóvel e em silêncio. Por alguns instantes os filisteus ficam paralisados, as mentes em disparada tentando captar o que acaba de acontecer diante de seus olhos, enquanto começam a perceber suas implicações. O mesmo deve ser verdade para os soldados israelitas. E então, depois de um instante de paralisia, os filisteus batem em retirada. Com a perda de seu campeão, toda coragem e vontade de lutar vão embora. Os soldados israelitas aproveitam a ocasião e vão atrás dos inimigos que batem em retirada. Não há lugar melhor para lutar com o inimigo como pela retaguarda, onde não existe proteção e o peso da armadura atrapalha sua fuga. Armadura, espada, qualquer coisa que retarde a fuga do inimigo, é deixada prá trás. Os corpos dos filisteus ficam espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas cidades. E no caminho de volta os soldados israelitas voltam carregados dos despojos saqueados dos campos filisteus. Davi parece carregar somente a cabeça do filisteu, junto com suas armas, as quais ele temporariamente coloca em sua tenda.
“Quando Saul viu sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o comandante do exército: De quem é filho este jovem, Abner? Respondeu Abner: Tão certo como tu vives, ó rei, não o sei. Disse o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este jovem. Voltando Davi de haver ferido o filisteu, Abner o tomou e o levou à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu. Então, Saul lhe perguntou: De quem és filho, jovem? Respondeu Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita.”
Esta passagem apresenta alguns problemas para os estudiosos. Pode parecer que Saul não conhece Davi e, portanto, não saiba quem seja ele. Devemos começar mostrando o que a pergunta de Saul não é: “Quem é este jovem?”, e sim “De quem é filho este jovem?” Porque deveríamos supor que uma vez que Saul conhece Davi ele também conhece seu pai? No capítulo 16, mensageiros são enviados a Jessé para pedir que ele permita que Davi vá à casa de Saul e toque harpa para ele (16:19). Isto não requer que Saul saiba o nome do pai de Davi. Seus servos podem cuidar de todos os detalhes. Devemos também nos lembrar que Jessé é idoso e não pode viajar, razão pela qual Davi é enviado ao campo de batalha para perguntar sobre o bem-estar de seus irmãos (17:12, 17 e seguintes). Assim, Jessé e Saul, provavelmente, nunca se encontraram. Por que, então, é tão extraordinário que Saul pergunte o nome do pai de Davi, talvez para a papelada fiscal, se ele realmente for isentá-lo?
No capítulo 16, sabemos que Davi vai trabalhar para Saul (16:14-23), e no capítulo 17, somos relembrados deste fato (17:15). No capítulo 18, encontramos Davi tocando sua harpa para o atribulado Saul, como ele faz no capítulo 16 (18:10-12) - e também no capítulo 19 (19:9-10). É difícil evitar o fato de que Saul conhece Davi, apesar de não saber (ou pelo menos não se lembrar) do nome de seu pai, Jessé. Não é nenhuma surpresa que um rei não se lembre do nome do pai de um de seus empregados de meio período. Mesmo que esperássemos que Saul se lembrasse, nosso texto não levanta questões sobre a precisão da passagem, apenas sobre a precisão da memória de Saul. Confuso como Saul está, por que achamos isto estranho?
Entretanto, existe uma coisa nos versos 55 a 58 que deveria nos incomodar - não é a falta de memória de Saul, mas seu desinteresse pela batalha. Mostrei que no capítulo 14 ele está “debaixo de uma romãzeira” (verso 2), enquanto Jônatas, junto com seu escudeiro, está prestes a lutar com alguns filisteus. É como se Saul estivesse no lugar mais confortável em vez de estar no lugar mais estratégico (que é para onde Jônatas vai). Agora, no capítulo 17, Davi acabou de falar com Saul e está saindo para a batalha com Golias. Saul e seu comandante em chefe assistem de um cômodo lugar à distância. Se alguém deveria estar pronto para a batalha, deveria ser estes dois. Saul é aquele cujo dever é ir para a batalha adiante dos israelitas; Abner, “o comandante do exército”, também deve liderar a batalha. No entanto, os dois parecem observar de uma distância segura, enquanto Davi sai para arriscar sua vida.
Podemos comparar esta cena a um jogo de futebol (americano) entre o Dallas Cowboys e o San Francisco Forty-Niners. Olhamos para o campo e vemos grandes jogadores como Jerry Rice e Steve Young pelo San Francisco. Depois, vemos um zagueiro novato em linha pelos Cowboys, junto com outros zagueiros bem leves. Ao correr os olhos pelo estádio, vemos Troy Aikman e o treinador Barry Switzer sentados no banco, observando o jogo com binóculos e perguntando um ao outro o nome do pai do novato. Simplesmente não parece certo, parece?
Eis aqui Saul e Abner, de braços cruzados e a uma distância segura, conversando sobre o pai de Davi. Abner diz a Saul que não sabe. Saul diz a Abner para verificar. Enquanto isso Davi avança contra Golias. Quase posso ouvir Saul, virando-se para Abner, dizer: “passa a pipoca”. Quando Davi volta, depois de matar Golias, Abner o leva a Saul com a cabeça de Golias nas mãos. Saul então pergunta a Davi de quem ele é filho, e ele lhe diz que o nome de seu pai é Jessé, o belemita. Isto é ainda mais bizarro, não é? E quanto à batalha? Por que Saul e Abner não estão envolvidos nela? Como encontram tempo para conversar sobre coisas como o nome do pai de Davi numa hora como esta? Saul não é retratado sob uma luz muito favorável. Se alguém quiser se preocupar, é só pensar no que Saul e Abner estão fazendo, e no que não estão fazendo, em vez de se torturar sobre razão pela qual eles não se lembram do nome do pai de Davi, um homem que, provavelmente, nunca encontraram e cujo nome talvez jamais tenham ouvido.
Sabemos o que Davi considerava em seu coração quando Samuel o ungiu como futuro rei de Israel em lugar de Saul. Imagino que ele tenha se sentido tal como a virgem Maria quando o anjo Gabriel lhe disse que ela estava prestes a se tornar mãe do Messias prometido. Sua resposta foi: — Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? (Lc. 1:34). Davi, da mesma forma, deve ter pensado: — Como posso me tornar rei de Israel, quando sou apenas um jovem que nem mesmo tem idade para estar no exército, e cuja única autoridade está sobre um pequeno rebanho de ovelhas? Os últimos versos do capítulo 16 começam a nos dizer como Deus realizará Sua vontade para Davi. O capítulo 17 é outra parte muito importante no plano para fazer dele um rei. É maravilhoso ver como Deus cuida em cumprir a Sua Palavra. E aquilo que Deus promete, Ele cumpre. Sua Palavra é certa.
Somos propensos a considerar a disputa entre Davi e Golias como algo extraordinário, extremamente incomum. E não é. Deus havia dado instruções bem específicas a respeito desses confrontos:
“Quando saíres à peleja contra os teus inimigos e vires cavalos, e carros, e povo maior em número do que tu, não os temerás; pois o SENHOR, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, está contigo. Quando vos achegardes à peleja, o sacerdote se adiantará, e falará ao povo, e dir-lhe-á: Ouvi, ó Israel, hoje, vos achegais à peleja contra os vossos inimigos; que não desfaleça o vosso coração; não tenhais medo, não tremais, nem vos aterrorizeis diante deles, pois o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco a pelejar por vós contra os vossos inimigos, para vos salvar.” (Dt. 20:1-4)
Alguns versos depois Deus instrui os israelitas a identificarem os covardes para que não minem a fé e a confiança de seus irmãos (verso 8). O problema de Saul e de Israel com os filisteus não é algo fora de série. O problema é o medo de Saul e sua falta de fé, que são contagiosos.
Não é interessante que as tropas fujam quando são lideradas por Saul? (ver I Sam. 13:5-7) Os soldados ficam apavorados porque Saul está aterrorizado (17:11, 24). Davi, um humilde pastorzinho, jovem demais para ser soldado do exército de Saul, se apresenta e, devido à sua fé e coragem, anima os outros a confiarem em Deus quando é usado para matar Golias e dar à Israel a vitória. Repare na longa lista de heróis que há entre os soldados de Israel em II Samuel 23, após Davi ter se tornado rei. Há muitos valentes sob sua liderança, muitos devido à fé e coragem demonstrados pessoalmente por Davi. Fico fascinado em saber que há uma porção de Golias depois deste, e sobre o quê os homens de Davi (assim como Davi) fazem com eles:
“Depois disto, houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; então, Sibecai, o husatita, feriu a Safe, que era descendente dos gigantes. Houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; e Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu a Golias, o geteu, cuja lança tinha a haste como eixo de tecelão. Houve ainda outra peleja; esta foi em Gate, onde estava um homem de grande estatura, que tinha em cada mão e em cada pé seis dedos, vinte e quatro ao todo; também este descendia dos gigantes. Quando ele injuriava a Israel, Jônatas, filho de Siméia, irmão de Davi, o feriu. Estes quatro nasceram dos gigantes em Gate; e caíram pela mão de Davi e pela mão de seus homens.” (II Sam. 21:18-22, compare com I Cr. 20:4-8).
Esse negócio de matar gigantes parece que virou rotina. Uma vez que Davi se levanta contra Golias, outros valentes enfrentam os membros da família de Golias. A coragem de Davi é contagiosa, da mesma forma que foi a covardia de Saul. Deus não pretendia que um gigante fosse morto por ele a fim de que nenhum israelita tivesse que encarar esse problema de novo. Deus pretendia que Davi enfrentasse e matasse o gigante para dar exemplo aos outros e fé para agir da mesma forma.
Digo que Golias sempre terá seus “Davis” e que estes homens sempre terão seus “Golias”. Algumas vezes os “Golias” serão indivíduos; outras, nações, ou até mesmo poderes celestiais. Em cada caso devemos nos lembrar de que “a batalha é do Senhor”. É Ele quem vai adiante de nós dando-nos a vitória.
“O SENHOR, vosso Deus, que vai adiante de vós, ele pelejará por vós, segundo tudo o que fez conosco, diante de vossos olhos, no Egito, como também no deserto, onde vistes que o SENHOR, vosso Deus, nele vos levou, como um homem leva a seu filho, por todo o caminho pelo qual andastes, até chegardes a este lugar. Mas nem por isso crestes no SENHOR, vosso Deus, que foi adiante de vós por todo o caminho, para vos procurar o lugar onde deveríeis acampar; de noite, no fogo, para vos mostrar o caminho por onde havíeis de andar, e, de dia, na nuvem.” (Dt. 1:30-33)
“Porquanto não saireis apressadamente, nem vos ireis fugindo; porque o SENHOR irá adiante de vós, e o Deus de Israel será a vossa retaguarda.” (Is. 52:12)
“Então, romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda;” (Is. 58:8)
“Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos assusteis por causa do rei da Assíria, nem por causa de toda a multidão que está com ele; porque um há conosco maior do que o que está com ele. Com ele está o braço de carne, mas conosco, o SENHOR, nosso Deus, para nos ajudar e para guerrear nossas guerras. O povo cobrou ânimo com as palavras de Ezequias, rei de Judá.” (II Cr. 32:78)
Nosso texto tem muitas coisas a nos ensinar sobre liderança, como ela se desenvolve e como é reconhecida. Devido às circunstâncias familiares e à ordem de nascimento, Davi não parece destinado à liderança. Mas ele é um homem segundo o coração de Deus. Deus providencialmente o prepara enquanto ele cumpre fielmente suas obrigações como pastor. Quando um leão ou um urso ataca uma das ovelhas do rebanho, ele a salva, enfrentando o urso ou o leão. Neste processo, Davi aprende a confiar em Deus e a usar as armas que lhe foram dadas, uma lição para nós também. Davi não busca a liderança; de certa maneira, ela é imposta a ele. Davi se torna um líder por ser um bom crente. Ele vai à cena da batalha em obediência às instruções de seu pai. E quando vê o medo dos israelitas, procura fazer alguma coisa a esse respeito. Ao ouvir Golias blasfemar contra Deus e intimidar os exércitos do Senhor, Davi se propõe a lutar com ele em nome do Senhor. Davi não busca a liderança, mas ela é imposta a ele e ele não procura se esquivar de suas responsabilidades. Quão humildes talvez tenham parecido suas funções de pastor, mas quão bem Deus as usou preparando-o para enfrentar Golias na batalha.
Nosso texto nos ensina sobre meios e métodos. Vivemos numa época em que os homens imitam os métodos de outros homens. Um homem parece ter um negócio ou ministério de sucesso, e escreve um livro contando aos outros “como” ele fez. Outros lêem seu livro, também querendo ser bem sucedidos, e então imitam seus métodos. Davi não luta contra Golias com as armas ou com os métodos de Saul. Davi luta contra Golias com os métodos que desenvolveu e praticou enquanto cuidava de suas ovelhas.
Muitas vezes esperamos que Deus cause a derrota de seus inimigos usando meios incomuns ou espetaculares. De fato, Deus lançou as pragas sobre os egípcios e atraiu seu exército para o Mar Vermelho. Deus usou terremotos, tempestades e enchentes. Deus é capaz de libertar Seu povo do jeito que quiser. Mas, no caso de Golias, Deus usou um rapazinho e uma funda. Em si mesmas estas armas podem não ser muito impressionantes, mas Davi e sua funda causaram grande impressão em Golias! Quando os meios mais comuns são usados por Deus, devemos nos lembrar que até nossa habilidade em atirar uma flecha, ou arremessar uma pedra, ou permanecer num terreno escorregadio vêm Dele:
“O caminho de Deus é perfeito; a palavra do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam. Pois quem é Deus, senão o SENHOR? E quem é rochedo, senão o nosso Deus? O Deus que me revestiu de força e aperfeiçoou o meu caminho, ele deu a meus pés a ligeireza das corças e me firmou nas minhas alturas. Ele adestrou as minhas mãos para o combate, de sorte que os meus braços vergaram um arco de bronze. Também me deste o escudo da tua salvação, a tua direita me susteve, e a tua clemência me engrandeceu. Alargaste sob meus passos o caminho, e os meus pés não vacilaram.” (Sl. 18:30-36)
“Bendito seja o SENHOR, rocha minha, que me adestra as mãos para a batalha e os dedos, para a guerra;” (Sl. 144:1)
Enfim, não é que Davi seja incrível, mas que o Deus a quem ele serve, e que foi adiante dele, é que é incrível. Saul parece ter se concentrado no inimigo em vez de ter se concentrado em Deus. Parece que Deus sempre nos dá inimigos que são bem maiores do que nós, para que lutemos em nossas fraquezas, confiando Nele e não em nós mesmos, dando-Lhe a glória, em vez de tomarmos o crédito para nós mesmos.
Quando chegamos a Davi, chegamos ao rei escolhido de Deus. Este é aquele de cuja descendência virá o Messias prometido, cujo reino não terá fim. E assim Davi, muitas vezes, nos provê uma prefiguração de Cristo. Nosso texto não é exceção. Davi é um tipo de Cristo, como Golias é um tipo de Satanás. Satanás tem o mundo inteiro tremendo de medo dele e da morte (ver Hb. 2:14-15). Nós, como os israelitas do passado, somos impotentes para derrotá-lo. Aquilo que não podemos fazer por nós mesmos, Cristo fez por nós, da mesma forma que Davi lutou com Golias por Saul e pelos israelitas. Jesus veio e enfrentou Satanás face a face e obteve a vitória. Davi fez isto ao matar Golias. Jesus o fez sendo crucificado na cruz do Calvário. Mas depois que Ele morreu para pagar a pena pelos nossos pecados, Ele ressurgiu do túmulo, triunfou sobre Satanás, o pecado e a morte. Em tudo Ele foi vencedor, e Jesus venceu morrendo e ressurgindo da morte. Todos aqueles que reconhecem seus pecados, e desistem de confiar em si mesmos colocando sua confiança em Jesus Cristo, têm o perdão de seus pecados e a segurança da vida eterna em Seu reino. Obrigado, Senhor, por seu campeão, o Senhor Jesus Cristo.
Há uns 25 anos, quando dava aulas, conheci um jovem que, segundo os boatos, fora membro de uma gangue de motoqueiros. Em conseqüência de um acidente, ele sofrera danos cerebrais e viera para a escola onde eu lecionava para obter ajuda. Certa vez, enquanto falava de Jesus a outro estudante, o motoqueiro com danos cerebrais me interrompeu, prensou-me contra a parede e depois me suspendeu pelo pescoço até alguém vir em meu socorro. O jovem escapou impune, pois se presumia que seus atos fossem conseqüência de suas condições, não de seu pecado e rejeição ao evangelho. Jamais houve qualquer dúvida para mim de que seus atos foram friamente calculados e executados.
Enquanto leio nosso texto em I Samuel 18, penso em meu encontro com este jovem agressivo. Sob todos os aspectos, o comportamento de Saul se parece com os delírios de um homem mentalmente perturbado, não responsável por seus atos. Se Saul fosse acusado de tentativa de assassinato pelas duas vezes em que atirou sua lança em Davi, há pouca dúvida de que alegaria “insanidade temporária”. Creio que nosso texto retrata Saul sob uma luz diferente, algo que está longe de ser lisonjeiro. Neste incidente, e naquele que se segue, creio que talvez tenhamos mal interpretado a narrativa da união de Davi com a família de Saul. Vamos prestar bastante atenção às palavras de nosso texto e à voz do Espírito Santo, enquanto Ele nos fala através deste intrigante capítulo.
Quanto mais alguém lê e medita sobre este texto, mais algumas características vão se tornando evidentes. Permitam-me compartilhar algumas delas para prepará-los para esta exposição e estimulá-los ao seu próprio estudo da passagem.
Primeiro, algumas repetições importantes devem ser registradas:
Segundo, o autor parece comparar a atitude de Saul com a atitude de Jônatas, com relação a Davi e seu reino.
Terceiro, existe um forte senso de progressão ou de desenvolvimento neste capítulo. Por um lado, o entusiasmo de Saul por Davi e seu ministério degenera para a suspeita e depois para o medo. Por outro, a popularidade e a ascensão de Davi em Israel são cada vez mais crescentes. Cada degrau acima para Davi parece ser um degrau abaixo para Saul. E cada tentativa de Saul para reprimir a popularidade de Davi só faz aumentá-la.
Quarto, existe uma sutil ligação entre os esforços de Saul para se livrar de Davi e os esforços posteriores de Davi para se livrar de Urias, o marido de Bate-Seba. Saul tenta colocar Davi em situações militares perigosas para que ele seja morto em batalha. Isto tirará Davi do caminho de maneira a não colocar Saul sob um ângulo desfavorável (compare I Samuel 18:17 com II Samuel 11:14-17). Será que Davi aprendeu esta artimanha com Saul?
Quinto, o medo de Saul e seus intentos para matar Davi são mascarados por ele (Saul) no capítulo 18, mas revelados no capítulo 19. No capítulo 18 Saul tenta acabar com Davi de forma astuciosa. Ele parece promover Davi ao colocá-lo em posição de autoridade sobre seu exército, e depois o recompensando ao lhe oferecer sua(s) filha(s) em casamento. No entanto, por trás disto, há um motivo muito sinistro revelado em nosso texto, mas que não é publicamente revelado aos que viviam naquela época. Saul fala com um vocabulário dos mais santos (“...sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR...” - verso 17), mas sua intenção é totalmente vil (“porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” - verso 17). Quando todas estas artimanhas falham, no capítulo 19, a oposição de Saul a Davi se torna pública, onde ele ordena que Jônatas e seus servos o matem (19:1). Há hipocrisia em toda parte no capítulo 18, mas ela dá lugar à franca hostilidade no capítulo 19. Assim, no capítulo 18 precisamos ver as coisas não do jeito como aparentam ser - o jeito como Saul quer que os outros vejam - mas como elas são, à luz do que é revelado sobre o coração e a mente de Saul, fornecido pelo autor inspirado de I Samuel.
Sexto, o capítulo 18 (como o capítulo 16) não enfoca Davi tanto quanto enfoca Saul, Jônatas e Mical. Podemos dizer que este capítulo “enfoca a família” de Saul. Começa com o amor de Jônatas por Davi e termina com o amor de Mical por ele. Durante todo o tempo, aprendemos sobre o medo e a animosidade crescente de Saul para com Davi, que se torna seu genro, assim como seu oficial.
Sétimo, a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento por volta do segundo século a.C) omite uma porção dos versos encontrados no texto original hebraico (versos 1 a 5, 10-11, 17 a 19).
“Sucedeu que, acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma. Saul, naquele dia, o tomou e não lhe permitiu que tornasse para casa de seu pai. Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto. Saía Davi aonde quer que Saul o enviava e se conduzia com prudência; de modo que Saul o pôs sobre tropas do seu exército, e era ele benquisto de todo o povo e até dos próprios servos de Saul.”
Este deve ter sido um dia glorioso para Davi e, também, um bom dia para Saul. O prolongado impasse entre Israel e os filisteus finalmente chega ao fim. Golias, que aterroriza a cada soldado israelita e prova ser um grande embaraço para Saul, é morto pelas mãos de Davi. Isto leva a uma debandada geral, com corpos e despojos filisteus espalhados desde o campo de batalha até os portões de suas principais cidades. Quando Davi regressa, após a morte de Golias, ele é levado diante de Saul por Abner. Saul averigua uma vez mais quem é o pai de Davi. Não estou tão certo quanto já estive de que isto fosse para isentar seu pai dos impostos. Pelo fato de Saul ter pedido a permissão de Jessé para empregar Davi por meio período (16:19), parece razoável que ele peça novamente sua permissão para manter Davi consigo em tempo integral.
A conversa de Davi com Saul define a questão para Jônatas (18:1). Sem dúvida, ele fica impressionado com a vitória de Davi sobre Golias, mas, o que mais o impressiona, parece ser as palavras de Davi ao seu pai. Será a fé de Davi em Deus? Será o fato de ele ter cuidado em dar glória a Deus? Será seu espírito humilde e reverente? Será seu cuidado pelo povo de Israel? Não é dito exatamente o que tanto impressiona Jônatas nesta conversa, mas fica claro que daí em diante estes dois homens passam a ser como irmãos.
Somente uma geração má e perversa poderia encontrar nas palavras de nosso texto ocasião para dizer que o relacionamento entre Davi e Jônatas é pervertido. Davi e Jônatas são almas gêmeas. Jônatas ama Davi como a si mesmo. Esta não é a maneira como todo crente deveria se sentir com relação a seus irmãos? Nesse dia, Jônatas e Davi fazem uma aliança. Apesar de não serem fornecidos os detalhes, não é difícil inferir quais sejam. De sua parte, Jônatas parece reconhecer que Davi é aquele que Deus escolheu para ser o próximo rei de Israel. Jônatas fica mais do que feliz em abrir mão da esperança do trono de seu pai em consideração ao escolhido de Deus - Davi.
Creio que isto seja simbolizado pelo fato de Jônatas presentear Davi com sua capa e sua armadura. Sabemos, pelo Velho Testamento, que a túnica de José era símbolo de sua autoridade (Gn. 37:3, 23). Antes de Arão morrer, suas vestes sacerdotais foram removidas para serem usadas por seu filho, Eleazar (Nm. 20:22-28). Elias colocou seu manto sobre Eliseu, que estava para assumir o seu lugar (I Re. 19:19-21).
Em seu livro Considerando o Coração, numa nota de rodapé, Dale Ralph Davis se reporta a um documento acadiano, encontrado em Ugarit, sobre a história de um rei do século XIII que se divorciou da esposa. Seu filho poderia escolher com qual dos pais viveria; mas, se o herdeiro escolhesse viver com sua mãe, ele tinha que abdicar do seu direito ao trono. Se ele escolhesse viver com sua mãe, desistindo, assim, de seus direitos, ele deveria indicá-lo, simbolicamente, deixando suas vestes no trono. Assim se parece o presente de Jônatas a Davi de seu manto e sua armadura. Eis um homem magnífico, com um espírito como o de João Batista (Jo. 3:30) e de Barnabé.
Jônatas está disposto a abrir mão de seu direito ao trono e servir Davi, o escolhido de Deus como o próximo rei. Esse mesmo espírito não é encontrado em Saul. Na melhor das hipóteses, Saul está empolgado por causa daquilo que Davi pode fazer por ele. Como sempre, Saul está ansioso para acrescentar homens militarmente habilidosos às suas tropas. Assim, ele promove Davi a funcionário de tempo integral. Até onde vai o registro bíblico, nada é feito com relação às recompensas que Saul ofereceu ao homem que acabasse com Golias. Davi é um servo fiel de Saul, indo aonde quer que seja enviado, e sendo bem sucedido aonde vai. Todo mundo fica impressionado com ele, mesmo os servos de Saul (que devem fazê-lo com certa precaução, sabendo o quão ciumento Saul pode se tornar - ver 16:2). Davi tem o “toque de Midas”. É como se tudo o que ele tocasse prosperasse, e é assim porque a mão de Deus está sobre ele (verso 12).
“Sucedeu, porém, que, vindo Saul e seu exército, e voltando também Davi de ferir os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente, diziam: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares. Então, Saul se indignou muito, pois estas palavras lhe desagradaram em extremo; e disse: Dez milhares deram elas a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão o reino? Daquele dia em diante, Saul não via a Davi com bons olhos.
Você já deve ter ouvido as palavras daquela canção não tão nova que diz: “Que diferença faz um dia...” Nada pode ser mais verdadeiro em nosso texto. É difícil acreditar como a popularidade de Davi tem vida curta com Saul. Um dia ele se apresenta pela fé e derrota Golias, o que resulta na vitória de Israel sobre os filisteus (capítulo 17). Bem no meio da comemoração, as mulheres israelitas entoam uma canção de vitória e azedam a consideração e o respeito de Saul, levando-o a numerosas tentativas para tirar a vida de Davi. Os versos 6 a 9 descrevem este acontecimento decisivo, que muda para sempre o curso da história.
Davi, aparentemente, se juntou aos israelitas enquanto eles perseguiam os filisteus fugitivos e, agora, ele está de regresso. Talvez Saul nem mesmo tenha saído com suas tropas, como parecem indicar os versos finais do capítulo 17. Se for assim, as mulheres de todas as cidades israelitas “foram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando”, onde ele esteve desde o princípio, e foram saudar Davi e os guerreiros israelitas quando voltavam da perseguição aos filisteus fugitivos.
Ninguém poderia prever o resultado desta comemoração. O canto e a comemoração das mulheres não parecem incomuns em Israel. Vimos isto na época em que Deus tirou os israelitas do Egito e lançou os egípcios no Mar Vermelho (ver Ex. 15:1-21). A letra da canção composta às pressas inclui este refrão:
“Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.”
A primeira pergunta que devemos fazer é “Será verdade? Saul mata apenas milhares, enquanto Davi mata dez milhares?” Embora, provavelmente, haja alguma licença poética envolvida, sou propenso a achar que, em essência, os versos sejam verdadeiros. Sabemos, pelo capítulo 14, que a vitória de Israel sobre os filisteus é minimizada devido ao decreto insano de Saul para que seus soldados não comam até o anoitecer. A vitória de Davi (a vitória que Israel obteve porque Davi derrotou Golias) parece mais decisiva. Parece que qualquer coisa que Saul faça, ou tenha feito, Davi faz melhor.
Será que as mulheres querem dizer alguma coisa com o que estão cantando? Acho muito difícil. Elas estão exultantes, regozijando-se com a vitória que Deus lhes deu. Saul contribuiu muito em tempos passados; só que Davi contribuiu muito mais. Saul, que não estava sequer ansioso para se tornar o primeiro do reino, agora está extremamente irritado porque o povo o colocou em segundo plano e a Davi, em primeiro. Eis um homem a quem foi dito que sei reinado chegaria ao fim, e agora ele tem uma forte premonição (se é que a unção de Davi já não se tornou conhecida) de que Davi é aquele que o substituirá. As mulheres estão cantando e dançando, mas Saul não está mexendo os pés. Ele ficou ofendido e a canção não é aquela que o faz querer “cantar junto”. Todos os demais estão celebrando, felizes pela vitória que Deus proporcionou através de Davi - exceto Saul. Eis agora uma aparência horrível em seu rosto e, deste momento em diante, ele olha para Davi com desconfiança.
“No dia seguinte, um espírito maligno, da parte de Deus, se apossou de Saul, que teve uma crise de raiva em casa; e Davi, como nos outros dias, dedilhava a harpa; Saul, porém, trazia na mão uma lança, que arrojou, dizendo: Encravarei a Davi na parede. Porém Davi se desviou dele por duas vezes. Saul temia a Davi, porque o SENHOR era com este e se tinha retirado de Saul.” (10-12)
Todos nós sabemos que Saul realmente tem alguns dias bem ruins causados pelo “espírito maligno da parte do Senhor”, que se apossa dele de tempos em tempos. Davi é contratado, em regime de meio período, para tocar sua harpa e acalmar a alma atribulada de Saul (16:14-23). Agora Davi é empregado em tempo integral e parte de seus deveres é continuar a tocar a harpa quando Saul está atribulado. O problema com os problemas de Saul é que Davi se tornou o seu maior problema (pelo menos em sua mente). O ciúme de Saul vira assassinato nos versos 10 a 12.
Antes de nos atermos a estes versos, talvez seja útil um comentário sobre a relação entre os versos 6 a 9 e 10 a 12. Nos versos 6 a 9, Saul está com ciúmes e, nos versos 10 a 12, é dito que o espírito maligno se apossa dele. Alguns dizem, e até mesmo insistem, que os demônios são a fonte da maioria dos males. Já ouvi falar sobre o “demônio do ciúme”, o “demônio do alcoolismo”, o “demônio do orgulho”, e assim por diante. Não estou tentando dizer que a atividade demoníaca não possa produzir tais manifestações, mas preciso dizer que a Bíblia nos fala que estas coisas não vêm de Satanás, mas de nossa própria natureza pecaminosa (ver Gl. 6:16-21). Em nosso texto, o ciúme de Saul (versos 6 a 9) precede a poderosa possessão do espírito maligno sobre ele (verso 10). Entendo que a possessão do espírito maligno sobre Saul é, de alguma forma, conseqüência de seu ciúme. Creio que Satanás seja um oportunista, que se aproveita das fraquezas e do pecado humano (ver, por exemplo, II Co. 2:10-11). O uso de drogas ilegais (e talvez de algumas legais), a entrega ao sexo ilícito ou a acessos de fúria, ou outros tipos de males, podem muito bem abrir as portas para os ataques satânicos e demoníacos. Vamos ter cuidado para não dar a Satanás tanto crédito, fazendo-o a causa do mal em vez de um oportunista que simplesmente promove e aumenta o mal que há em nossa natureza caída.
Estou em dívida com Dale Ralph Davis por sugerir que as atitudes assassinas de Saul para com Davi nos versos 10 a 12 (como em todo o capítulo) ainda não são reconhecidas como tal por Davi ou pelos outros. Deixe-me sugerir por que concordo com ele. Primeiro, a intenção de Saul matar Davi não é conhecida nem mesmo por seu filho Jônatas até o primeiro verso do capítulo 19. Repetidamente, o autor nos diz quais são os verdadeiros motivos de Saul, da mesma forma que faz aqui no verso 11. Mas isto se faz necessário somente se as ações de Saul não forem evidentes. Saul realmente tem acessos ocasionados pelo “espírito maligno”, mas até aqui parece que apenas ele é afetado. Ele está aterrorizado (16:14). Agora, sem mais nem menos, os “acessos” de Saul viram atos homicidas - a lança atirada duas vezes em Davi. Posso até ouvir os servos de Saul desculpando-o e dizendo: “Você terá que desculpar Saul, hoje ele não está em si.” Afirmo que ele está em si.
Em minha opinião, parte do problema deriva da tradução “delirou”, no verso 10. O termo hebraico ocorre mais de 100 vezes no Velho Testamento. Na versão NASB é traduzido por “delirou” apenas duas vezes (aqui e em I Re. 18:29). Jamais é traduzido como “delirar” na versão King James. Praticamente é sempre traduzido como algum tipo de “profecia”. O termo pode se referir à profecia de um verdadeiro profeta (como em Nm. 11:25-26; I Cr. 25:2), ou a profecias enganosas de um falso profeta (como em I Re. 22:10). Parece que, mesmo quando verdadeiros profetas profetizaram, eles se comportaram de maneira diferente (ver I Sam. 19:18-24), o que poderia ser considerado como “delírio” por um observador.
O problema com a tradução “delirou”, em nosso texto, é que também pode ser facilmente mal interpretada como alguma forma de insanidade temporária. De fato, talvez seja como o comportamento de Saul se parece. Também poderia ser o que Saul quer que as pessoas pensem sobre seu comportamento. Afinal, se Saul “age como louco”, atirando a lança em Davi e o matando durante o que parece ser um ataque de insanidade ou um ato incontrolável propiciado por um espírito maligno, ele acaba se safando. O problema em ver Saul como temporariamente insano é que aqui está escrito o que ele pensa no momento em que atira a lança em Davi “Encravarei a Davi na parede.” (verso 11). Saul sabe exatamente o que está fazendo, e faz exatamente o que pretende. Por isso, não estranho que Saul realmente profetize, talvez da maneira como o fazem os demônios do Novo Testamento:
“Achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio imundo, e bradou em alta voz: Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus!” (Lc. 4:33-34)
Portanto, se Saul profetiza, ele percebe que Davi é próximo rei, o que poderia estimulá-lo a se fingir de louco e procurar matar Davi de maneira que pareça um ataque incontrolável ocasionado por um espírito demoníaco. Apesar das duas tentativas de Saul para matar Davi, elas não funcionam. Uma vez mais Davi é bem sucedido enquanto Saul fracassa:
Porque o Senhor está com Davi, ele não pode ser morto antes do tempo; porque o Senhor deixou Saul, ele não consegue fazer nada direito.
“Pelo que Saul o afastou de si e o pôs por chefe de mil; ele fazia saídas e entradas militares diante do povo. Davi lograva bom êxito em todos os seus empreendimentos, pois o SENHOR era com ele. Então, vendo Saul que Davi lograva bom êxito, tinha medo dele. Porém todo o Israel e Judá amavam Davi, porquanto fazia saídas e entradas militares diante deles. Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus. Respondeu Davi a Saul: Quem sou eu, e qual é a minha vida e a família de meu pai em Israel, para vir a ser eu genro do rei? Sucedeu, porém, que, ao tempo em que Merabe, filha de Saul, devia ser dada a Davi, foi dada por mulher a Adriel, meolatita. Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical. Viu Saul e reconheceu que o SENHOR era com Davi; e Mical, filha de Saul, o amava. Então, Saul temeu ainda mais a Davi e continuamente foi seu inimigo. Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado.” (13-30)
A simples visão de Davi em sua casa enfurece Saul, mas parece que ele não pode matá-lo ali também; assim, Saul tenta afastá-lo, constituindo-o comandante de uma tropa de 1.000 homens. É difícil ver isto como rebaixamento de posto no esboço geral deste capítulo, embora possa ser. Antes, sou propenso a ver como uma clara promoção. Com isto Saul parece mostrar bondade para com Davi, embora, na realidade, esteja procurando ocasião para se livrar dele. Se os filisteus ou algum outro inimigo não matar Davi, pelo menos ele ficará fora de vista e, quem sabe, fora da mente dos israelitas. Simplesmente não funciona desse jeito, de novo. Aonde quer que Davi seja enviado, Deus o faz prosperar, para que sua posição junto ao povo continue a se elevar. Tudo isto é observado por Saul, cujo medo de Davi continua aumentando.
Saul deve pensar que está no caminho certo ao tentar que Davi seja morto pelas mãos de algum dos inimigos de Israel, mas ele precisa atrai-lo a uma empreitada mais perigosa, que certamente será fatal para ele. Assim, Saul lhe oferece sua filha Merabe como esposa (verso 17). Este não é um presente em resposta à morte de Golias. Deveria ser (17:25), mas não é. É como se Saul tivesse se esquecido de sua promessa. Saul faz com que se pareça uma nova oferta e tudo o que Davi precisa fazer é “ganhar” Merabe, sendo “somente filho valente e guerreando as guerras do SENHOR” (verso 17).
Como estas palavras soam piedosas. Felizmente o texto não é do tipo “esfregue e cheire”, porque o cheiro não seria agradável. Lembro-me de uma canção caipira: “‘Trabalhando’ como o diabo, Servindo ao Senhor”. Se fôssemos escrever uma canção sobre Saul, seria “‘Falando’ como o Senhor, Servindo ao diabo”. Suas palavras são realmente religiosas, mas sua intenção é totalmente vil. Saul oferece sua filha a Davi com a esperança de que ela seja a sua morte enquanto ele procura obter sua mão realizando grandes proezas militares.
Certamente Saul não está preparado para a resposta de Davi. Davi rejeita sua oferta. Não é que Davi esteja relutante em se arriscar na batalha. Isto ele faz com toda disposição, sem esperar qualquer recompensa, como desposar uma das filhas de Saul. Davi é realmente um homem humilde, que considera sua posição indigna de tal presente, por isso, ele recusa. Devido à sua recusa, Merabe é dada a outro homem como esposa. Isto não é conseqüência da mudança de opinião de Saul ou da quebra de sua promessa (não que Saul seja incapaz de tais coisas), mas simplesmente porque o texto não sustenta esta conclusão. É estabelecido um tempo, um prazo, dentro do qual Davi deve preencher certos critérios (ver versos 19 e 26). Uma vez que Davi recusa a oferta de Saul, ele não preenche os requisitos dentro do tempo estabelecido, e então Merabe é dada a Adriel (verso 19). O reflexo disto não é tão negativo para Saul quanto é positivo para Davi.
Grandemente desapontado, Saul tem certeza de que se puder fazer Davi se interessar por uma de suas filhas, ele fará alguma loucura suficientemente grande para se matar em batalha. Como Saul fica feliz ao ouvir que sua filha mais nova, Mical, está loucamente apaixonada por Davi. Esta é sua segunda chance. Uma vez que Mical está mais do que disposta a se casar com Davi, com um ligeiro empurrãozinho, desta vez Davi até pode aceitar a oferta. Ainda resta uma esperança de se livrar dele.
Desta vez Saul é bem mais meticuloso. Ele oferece Mical a Davi e então instrui seus servos a falarem bem de sua idéia para que, desta vez, Davi aceite a oferta. Seus servos falam com Davi e dizem que o rei realmente gosta dele e que todos querem que ele se torne seu genro. Como seria de esperar, Davi responde mostrando sua condição humilde e sua incapacidade em dar um dote apropriado a uma mulher tão nobre. O que ele poderia dar em pagamento seria um insulto a Mical e a Saul. Eis como Saul atrai Davi: ele não quer seu dinheiro - o dote pode ser pago com uma moeda diferente - prepúcios de filisteus! Isto, sim, prende o interesse de Davi. Ele quer Mical e está ansioso para batalhar pelo Senhor; assim, aceita a oferta. No entanto, em vez de ser morto, Davi luta contra os filisteus e apresenta ao rei o dobro do número de prepúcios exigido.
Para seu desgosto, Saul agora deve dar a Davi a mão de sua filha em casamento. Isto representa muito mais do que o fracasso de seus planos, de novo - e até pior, Davi é bem sucedido, de novo. Agora, Saul, que teme demais a Davi e quer vê-lo eliminado, tem dois membros de sua própria família ligados a ele por amor e compromisso. O capítulo começa com a narrativa do amor de Jônatas por Davi e sua aliança com ele; e termina com o amor de Mical por Davi e seu compromisso de casamento com ele. De certa forma, Davi saiu-se vitorioso sobre dois membros diretos da família de Saul. Agora, exatamente aqueles que Saul pensava poder confiar para ajudá-lo a se livrar de Davi, estão ao lado deste. Saul, seus planos e seu reino estão se desintegrando.
O casamento que Saul propõe a Davi é planejado como incentivo para engajá-lo numa ousada campanha militar, e assim ele o faz. O único problema é que estes deveres perigosos não livram Saul de Davi; apenas servem para elevar Davi acima de todos os outros comandantes militares. Ele age mais sabiamente do que todos eles e, por isso, é muito querido.
Voltemos um pouco para dar uma olhada mais abrangente no que o capítulo 18 descreve. Primeiro, da forma mais incomum e inesperada, Deus faz acontecer aquilo que Ele planejou e prometeu. Nos capítulos 13 e 15, Deus mostra a Saul que seu reinado chegará ao fim. Em nosso texto, observamos a desintegração de seu reino. Saul continua a perder o controle de sua própria vida e de seu reino. No capítulo 16, Davi é ungido como o novo rei de Israel e vemos como Deus prepara o caminho para o seu reinado. Davi tem ligações estreitas com Saul e seu palácio. Agora ele está intimamente associado aos membros da família real de Saul - seu filho (agora um amigo chegado) e sua filha (agora esposa de Davi). Ele tem autoridade no exército de Saul e, através de suas experiências, revela-se um homem valente e um grande líder. Davi está em ascensão e Saul em queda. Não é do jeito que esperávamos, mas os planos de Deus raramente acontecem do jeito que esperamos (ver Is. 55:8-11; Rm. 11:33-36: I Co. 2:6-16).
Uma segunda observação de nosso texto é que a Palavra de Deus é absolutamente certa e segura. Deus alerta Saul sobre a disciplina que virá se ele não se arrepender e é quase certo que ele não se arrepende. A despeito dos intensos esforços de Saul, Deus cuida para que seu reino seja removido. Por outro lado, Deus prometeu o reino a Davi, e nosso texto nos assegura que nada menos que o total cumprimento de Sua promessa deve ser esperado. Deus mantém Suas promessas, quer sejam de bênção e prosperidade, quer de julgamento.
Terceiro, vemos em Jônatas a mais excelente ilustração do amor que Deus requer de nós. Somos continuamente instruídos a “amar ao próximo como a nós mesmos” (Lv. 19:18; Mt. 19:19; 22:39, Mc. 12:31; Rm. 13:9; Gl. 5:14; Tg. 2:8). Isto é precisamente o que Jônatas faz com relação a Davi (ver verso 1). Assim, Jônatas é um exemplo para nós de como devemos amar o próximo como a nós mesmos. Não vejo qualquer referência a Jônatas amar primeiro a si mesmo, como um tipo de pré-requisito para amar aos outros. O que vejo é auto-sacrifício, quando Jônatas, de bom grado, desiste de seu reino em favor de Davi (sem mencionar seu manto e sua armadura). Jônatas é um amigo leal e fiel, que arriscará sua própria vida para salvar a vida de Davi. Que homem nobre e abnegado Jônatas é! A tanto quanto a Bíblia se refere suas ações não estão “acima e além do chamado do dever”; elas são o cumprimento de seu dever, e do nosso.
Quarto, observamos em Saul aquilo que vemos nos discípulos de nosso Senhor durante Seu ministério terreno, e aquilo que, muitas vezes, vemos na igreja hoje em dia - competição, ciúmes e auto-afirmação. Davi é o servo mais leal que Saul já teve e, no entanto, Saul se sente ameaçado pela sua competência, pelo seu sucesso. Os discípulos estavam sempre procurando se afirmar, perguntando quem seria o maior, e se zangavam quando outro discípulo parecia superá-los. Na igreja de hoje, Deus intencionalmente deu a cada cristão um dom ou dons espirituais, para capacitá-lo a se sobressair em determinado ministério. Podemos nos regozijar na força que Deus dá aos outros, procurando nos beneficiar de seus ministérios, ou podemos resistir a eles com um espírito competitivo. Alguns se perguntam o quanto a crítica, o ministério e a doutrina a outros cristãos estão enraizados em ciúmes e inveja, em vez de estarem enraizados na fidelidade a Deus e à Sua Palavra. Vamos tomar cuidado com o ciúme, não importa quão religioso seja o rótulo que demos a ele ou às suas manifestações.
Jônatas e Saul ilustram, cada um ao seu modo, uma das duas reações lógicas ao fato de Jesus ser o rei de Deus. Davi é o escolhido de Deus como o próximo rei de Israel. Saul parece ter conhecimento disto, e se opõe intensamente, a ponto de fazer todos os esforços para dar cabo de Davi. Jônatas também parece ter conhecimento disto e, mesmo que isto signifique que Davi reinará em seu lugar, Jônatas faz aliança com ele e renuncia a seu direito ao trono.
Deus designou Seu Filho, Jesus Cristo, para estabelecer o Seu Reino e governar sobre todas as criaturas da terra, e do céu. Como Saul, podemos procurar prolongar nosso reinado e resistir ao reino inevitável do rei de Deus. Se assim o fizermos, o faremos para nossa própria destruição. Ou, então, podemos renunciar a todo pensamento de reinar e nos submetermos ao rei de Deus, o Senhor Jesus Cristo, como Jônatas se submeteu a Davi. A escolha certa é renunciar a todo e qualquer pensamento de tentar manter o controle e autoridade sobre a nossa própria vida, e nos submetermos somente Àquele que é qualificado para reinar. Estas são as duas únicas escolhas que Deus nos dá. Não levar Cristo a sério é rejeitar o Seu governo. Resistir ao reino de Cristo é trazer julgamento sobre nós mesmos. Submeter-se a Ele é ter a vida eterna. Qual delas você escolherá? Com quem será parecido: Jônatas ou Saul? Jamais você tomará uma decisão tão importante em toda a sua vida.
Queria começar esta mensagem comparando Davi a um gato, o qual, dizem, tem “sete vidas”. Mas isso não seria apropriado para Davi, pois parece que ele tem muitas “vidas” mais. Em apenas dois capítulos (I Samuel 18 e 19), Saul tenta matá-lo, pelo menos, doze vezes:
18:11 Saul atira sua lança em Davi duas vezes
18:13 Saul constitui Davi como comandante de 1000 homens, esperando que ele seja morto
18:17 Merabe é oferecida a Davi, se ele “lutar as batalhas do Senhor como um valente”
18:20f. Mical é oferecida a Davi por 100 prepúcios de filisteus e ele traz 200
19:1 Saul ordena que Jônatas e seus servos matem Davi
19:10 Saul arremessa a lança em Davi novamente
19:11f Saul envia mensageiros à casa de Davi para matá-lo
19:18f Saul envia três grupos de homens a Ramá para pegar Davi, indo, depois, ele mesmo
No capítulo 20, Saul não só continua tentando matar Davi, mas também arremessa sua lança em Jônatas por defendê-lo (20:33). No capítulo 22, Saul mata Aimeleque e toda a casa de seu pai (exceto um) e depois aniquila aqueles que vivem em Nobe, a cidade dos sacerdotes.
Não posso evitar, mas acho que se Saul tivesse se empenhado para matar os inimigos de Israel (como os filisteus) como se empenhou para matar seus servos leais (tais como Davi, Jônatas e Aimeleque), ele teria sido um grande rei e líder militar. Em seu estado mental desordenado, seus maiores aliados são considerados inimigos e seus inimigos se tornam seus aliados (para matar Davi). Saul se torna um homem extremamente paranóico. Ele teme seu servo mais leal, Davi, o qual não matará seu rei nem mesmo quando tem o que parece ser a oportunidade perfeita para isso. Inicialmente Saul procura esconder sua animosidade, seu ciúme e seu ódio de Davi, mas isto acaba no primeiro versículo do capítulo 19. Daí em diante Saul atenta abertamente contra a vida de Davi e qualquer um que ele ache que o apóie ou defenda.
Nosso texto descreve quatro libertações divinas de Davi das mãos do rei Saul. A primeira é descrita nos versos 1 a 7, quando Jônatas censura seu pai e argumenta com ele sobre sua reação ao sucesso de Davi. A segunda está registrada nos versos 8 a 10, quando Saul, providencialmente, não acerta sua lança em Davi. A terceira vem de Mical, a esposa de Davi e filha de Saul. Ela desce Davi pela janela e depois engana seu pai e seus servos para dar tempo a Davi de escapar. Finalmente, há a libertação religiosa de Davi por meio de Samuel e as profecias dos homens enviados por Saul em sua captura, nos versos 18 a 24.
Esta mensagem será pregada na manhã do domingo que antecede o Natal. Alguns podem estranhar a razão pela qual farei isto, uma vez que a passagem parece não ter nada a ver com a festividade que estamos prestes a comemorar. Permitam-me assegurar-lhes que a estreita relação entre este texto e a história do Natal não é forçada. Atentando às palavras de nosso texto, aprenderemos o que existe em Saul que é tão contraditório ao espírito do Natal e, na realidade, ao espírito cristão. Nosso texto é importante para aqueles que conhecem a Cristo como Salvador e para aqueles que precisam conhecê-Lo desta forma.
“Cada vez que os príncipes dos filisteus saíam à batalha, Davi lograva mais êxito do que todos os servos de Saul; portanto, o seu nome se tornou muito estimado. Falou Saul a Jônatas, seu filho, e a todos os servos sobre matar Davi. Jônatas, filho de Saul, mui afeiçoado a Davi, o fez saber a este, dizendo: Meu pai, Saul, procura matar-te; acautela-te, pois, pela manhã, fica num lugar oculto e esconde-te. Eu sairei e estarei ao lado de meu pai no campo onde estás; falarei a teu respeito a meu pai, e verei o que houver, e te farei saber. Então, Jônatas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e lhe disse: Não peque o rei contra seu servo Davi, porque ele não pecou contra ti, e os seus feitos para contigo têm sido mui importantes. Arriscando ele a vida, feriu os filisteus e efetuou o SENHOR grande livramento a todo o Israel; tu mesmo o viste e te alegraste; por que, pois, pecarias contra sangue inocente, matando Davi sem causa? Saul atendeu à voz de Jônatas e jurou: Tão certo como vive o SENHOR, ele não morrerá. Jônatas chamou a Davi, contou-lhe todas estas palavras e o levou a Saul; e esteve Davi perante este como dantes.”
Uma coisa que Saul não suporta em seus servos é o sucesso. Como Satanás, Saul não admite ficar em segundo plano (ver Isaías 14; Ezequiel 28). Assim, quando os comandantes israelitas saem à batalha, Davi está entre eles (ver 18:13) e se sai melhor do que todos eles (18:30). Sem nenhuma pretensão, a fama de Davi continua a crescer. Sua sabedoria (sem dúvida produto do Espírito Santo, ver 16:13) o distingue dos demais comandantes. Ele é muito querido.
É justamente isso o que Saul mais teme. Abandonando suas táticas de capa e espada, ele dá ordens a seus servos - incluindo Jônatas - para matar Davi. Jônatas fez uma aliança com Davi, a qual, com toda a certeza, não pretende quebrar. Mas a verdadeira razão para ele não fazer nenhum mal a Davi é por ser “mui afeiçoado a ele”. Proteger Davi é mais do que um dever para Jônatas; ele se deleita em Davi. Jônatas realmente ama Davi como a si mesmo (18:1). Portanto, ele começa a reverter a ordem de seu pai para matá-lo. Se for necessário, Jônatas transgredirá esta ordem, mas ele prefere argumentar com seu pai para revogá-la. Nos versos 1 a 7 ele consegue seu intento.
Primeiro Jônatas previne Davi sobre as ordens de seu pai. Ele insiste para Davi ficar alerta e se esconder até que ele fale com seu pai. Estranhamente, ele diz a Davi que irá se encontrar com seu pai exatamente no mesmo lugar onde Davi deve se esconder (versos 2 e 3). Será que isto é para que Davi observe a coisa toda? Será que Jônatas quer garantir a Davi que nada acontecerá pelas suas costas? Além disso, ele promete informar Davi sobre o resultado da discussão.
A maneira como Jônatas lida com seu pai a favor de Davi é um modelo para nós em diversos aspectos. Primeiro, encontramos aqui o exemplo de um amigo que ama o próximo como a si mesmo. Confrontar (ou deveríamos dizer “contradizer”) Saul é um negócio perigoso (ver 16:2, 4; 20:33; 22:11-19); mesmo assim, ele o faz. Segundo, Jônatas se submete, e a seus interesses pessoais (o trono, por exemplo), aos interesses de Davi (ver 23:17). Terceiro, Jônatas é um filho fiel e submisso a seu pai. Ele o aborda diretamente e lhe fala com respeito. Ele fala bem de Davi. Por um lado, Jônatas suplica pela vida de Davi; por outro, suplica que seu pai faça aquilo que é melhor para ele mesmo. Ele relembra a Saul que Davi é seu servo mais fiel e dedicado, cujas ações sempre o beneficiaram. Ele também o relembra que, quando Davi matou Golias, o próprio Saul se regozijou com a vitória, pois também era a sua vitória (19:5). Agir de maneira hostil contra Davi não seria justo ou sábio, e ainda pior, seria pecado, pois seria derramar sangue inocente (19:4-5).
Por ora, Saul é persuadido pelos argumentos de Jônatas. Ele jura que “tão certo como vive o SENHOR” Davi não será morto (verso 6). Não é uma promessa que durará muito tempo, mas é uma admissão de culpa, temporária e parcial, da parte de Saul, e uma confissão da inocência de Davi. Jônatas chama Davi, fala sobre o encontro com seu pai e o resultado, e depois o leva à presença dele. Por algum tempo, pelo menos, as coisas são como costumavam ser (verso 7).
“Tornou a haver guerra, e, quando Davi pelejou contra os filisteus e os feriu com grande derrota, e fugiram diante dele, o espírito maligno, da parte do SENHOR, tornou sobre Saul; estava este assentado em sua casa e tinha na mão a sua lança, enquanto Davi dedilhava o seu instrumento músico. Procurou Saul encravar a Davi na parede, porém ele se desviou do seu golpe, indo a lança ferir a parede; então, fugiu Davi e escapou.”
Parece que Saul quer as duas coisas: não parece ansioso para sair com seus homens e lutar com os filisteus; mas, quando Davi sai contra eles e volta como herói, ele se enche de fúria e ciúmes. Não há indicação de que Saul vá à guerra contra os filisteus, mas sabemos que Davi vai e obtém uma vitória importante (verso 8). Isso acarreta uma reprise literal do capítulo 18, versos 6 a 9. O “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul, que está sentado em sua casa com a lança na mão. (Davi também está na casa, com a harpa nas mãos - verso 9). Cheio de ciúmes, Saul tenta encravar Davi na parede com sua lança, mas Davi, de alguma forma, se desvia e foge de sua presença na escuridão da noite, escapando da morte uma vez mais (verso 10).
A estreita relação entre o ciúme de Saul e a possessão do “espírito maligno da parte do Senhor” no verso 9 é digna de nota. Sabemos que este “espírito maligno da parte do Senhor” se apossa de Saul com a saída do Espírito Santo (16:14-15). Também sabemos que este espírito não possui Saul da mesma forma todas as vezes. Anteriormente, quando o espírito vinha sobre ele, Davi era convocado para tocar sua harpa e o espírito se afastava (16:23). Embora saibamos que a harpa tocada por Davi fazia o espírito deixar Saul, não é dita a razão pela qual o espírito se apossava dele. O ciúme e a fúria de Saul poderiam ser a causa da possessão do espírito, talvez até mais do que uma conseqüência. Quando Saul estivesse “cheio” de ciúmes ou de fúria, o espírito viria sobre ele naquele momento, quando estava mais vulnerável. Quando perdemos o autocontrole, seja pela raiva, por ambição, pelas drogas ou por imoralidade sexual (para dar alguns exemplos), nos expomos às influências satânicas ou demoníacas. Creio que seja por isto que Saul é possuído pelo espírito maligno quando reage incontrolavelmente ao sucesso de Davi na guerra.
“Porém Saul, naquela mesma noite, mandou mensageiros à casa de Davi, que o vigiassem, para ele o matar pela manhã; disto soube Davi por Mical, sua mulher, que lhe disse: Se não salvares a tua vida esta noite, amanhã serás morto. Então, Mical desceu Davi por uma janela; e ele se foi, fugiu e escapou. Mical tomou um ídolo do lar, e o deitou na cama, e pôs-lhe à cabeça um tecido de pêlos de cabra, e o cobriu com um manto. Tendo Saul enviado mensageiros que trouxessem Davi, ela disse: Está doente. Então, Saul mandou mensageiros que vissem Davi, ordenando-lhes: Trazei-mo mesmo na cama, para que o mate. Vindo, pois, os mensageiros, eis que estava na cama o ídolo do lar, e o tecido de pêlos de cabra, ao redor de sua cabeça. Então, disse Saul a Mical: Por que assim me enganaste e deixaste ir e escapar o meu inimigo? Respondeu-lhe Mical: Porque ele me disse: Deixa-me ir; se não, eu te mato.”
Davi pode ter escapado noite adentro, mas Saul não está disposto a abandonar seu plano de capturá-lo e matá-lo. Ele coloca alguns de seus homens de emboscada do lado de fora da casa de Davi. Suas ordens são para que esperem até de manhã e então o matem. Davi parece se sentir seguro quando chega à sua casa. Mical conhece seu pai bem melhor. Enfaticamente ela diz a Davi que, a menos que ele fuja enquanto ainda está escuro, não viverá mais um dia. A hora de Davi escapar é esta. Até posso ver Mical enfrentando Davi, com as mãos na cintura, dizendo ao seu ingênuo marido como são as coisas com papai.
A relutância de Davi talvez esteja relacionada à única forma de ele poder escapar. Não será uma saída muito honrosa. Se ele quiser viver, terá que deixar sua dignidade para trás. A casa deles deve estar localizada junto aos muros da cidade. Mical tem que descer seu marido pela janela para ele alcançar o chão, fora dos muros da cidade, e desaparecer na escuridão da noite.
O outro lado da fuga também não é muito glorioso. Uma coisa é Davi sair de casa, à noite e sem ser notado. No entanto, Mical também sabe que precisa ganhar tempo para ele, a fim de que sua fuga seja bem sucedida. Quando os servos de Saul batem à porta, Mical está pronta para recebê-los. Ela tem tudo preparado. Na cama, ela colocou um ídolo com as roupas de Davi, para dar a impressão de sua forma, com um tecido de pelos de cabra na cabeça. À distância, sem poder olhar de perto, alguém poderia pensar que Davi estivesse de cama, talvez muito doente.
Os mensageiros de Saul retornam e relatam o que Mical lhes disse. Saul fica desconfiado e manda os mensageiros de volta à casa de Mical para trazerem Davi, a fim de matá-lo pessoalmente. Deve ter sido uma piada quando estes caras arrancam as cobertas e descobrem um ídolo do lar, habilmente colocado ali para enganá-los. Talvez vermelhos de vergonha, os mensageiros retornam e dizem a Saul que foram enganados. Saul fica furioso com sua filha por tê-lo enganado e por ter deixado Davi escapar. Uma vez mais Mical tenta enganar seu pai, dizendo-lhe que Davi ameaçou matá-la se ela não cooperasse. Isto se encaixa muito bem à avaliação distorcida que Saul tem de Davi, embora esteja longe da verdade.
Certamente há um toque de humor neste episódio. Ele mostra como os planos de Saul para matar Davi são inúteis. Devemos fazer uma pausa por um momento para relembrar como Davi conseguiu sua esposa. Anteriormente, quando Golias ridicularizava Saul e o exército de Israel, o rei ofereceu sua filha ao homem que o enfrentasse e matasse (17:25). Por direito, Davi deveria ter recebido uma das filhas de Saul como esposa. Depois de Davi ficar famoso e Saul sentir ciúmes dele, Saul lhe faz outra oferta de uma esposa:
“Disse Saul a Davi: Eis aqui Merabe, minha filha mais velha, que te darei por mulher; sê-me somente filho valente e guerreia as guerras do SENHOR; porque Saul dizia consigo: Não seja contra ele a minha mão, e sim a dos filisteus.” (I Sam. 18:17)
Davi recusa a oferta crendo, sinceramente, ser indigno de receber uma das filhas de Saul como esposa, e também consciente de não poder pagar o dote exigido (18:18, ver também o verso 23).
Quando Saul lhe oferece novamente uma de suas filhas, ele é bem mais perspicaz na maneira como trata do assunto:
“Mas Mical, a outra filha de Saul, amava a Davi. Contaram-no a Saul, e isso lhe agradou. Disse Saul: Eu lha darei, para que ela lhe sirva de laço e para que a mão dos filisteus venha a ser contra ele. Pelo que Saul disse a Davi: Com esta segunda serás, hoje, meu genro. Ordenou Saul aos seus servos: Falai confidencialmente a Davi, dizendo: Eis que o rei tem afeição por ti, e todos os seus servos te amam; consente, pois, em ser genro do rei. Os servos de Saul falaram estas palavras a Davi, o qual respondeu: Parece-vos coisa de somenos ser genro do rei, sendo eu homem pobre e de humilde condição? Os servos de Saul lhe referiram isto, dizendo: Tais foram as palavras que falou Davi. Então, disse Saul: Assim direis a Davi: O rei não deseja dote algum, mas cem prepúcios de filisteus, para tomar vingança dos inimigos do rei. Porquanto Saul tentava fazer cair a Davi pelas mãos dos filisteus. Tendo os servos de Saul referido estas palavras a Davi, agradou-se este de que viesse a ser genro do rei. Antes de vencido o prazo, dispôs-se Davi e partiu com os seus homens, e feriram dentre os filisteus duzentos homens; trouxe os seus prepúcios e os entregou todos ao rei, para que lhe fosse genro. Então, Saul lhe deu por mulher a sua filha Mical.” (I Sam. 18:20-27)
Quando fica claro que Davi quer se casar com Mical e que, alegremente, providenciará o número de prepúcios filisteus exigido (na verdade, o dobro = 200), Saul fica pasmo. Saul tem certeza que o amor de Mical por Davi (e o dele por ela) acarretará a morte deste quando ele tentar matar esse tanto de filisteus. Uma vez mais, os planos de Saul vão para o espaço. Davi consegue os prepúcios (duas vezes mais) e recebe uma das filhas de Saul como esposa. Ela ama Davi e não está disposta a fazer parte de qualquer complô para matá-lo. Mais do que isto, é ela quem salva Davi de seu pai. Uma vez mais, Saul atirou em seu próprio pé (ou devo dizer furou) tentando matar o ungido do Senhor. Não ouço Saul rindo, mas deve ter havido bem mais do que um risinho abafado nos palácios celestiais.
Ao deixarmos este salvamento, não devemos negligenciar o Salmo 59, que é a reflexão de Davi sobre esta libertação. Embora não ousemos tentar tratar deste salmo em detalhes, duas observações podem ser feitas. Primeira, você perceberá que Mical não é mencionada no salmo. Não que é ela seja de alguma forma menosprezada por Davi, como se não tivesse participado de seu salvamento. Neste salmo Davi não está olhando para a causa imediata de sua libertação, mas para a causa principal - Deus. Assim, Davi louva a Deus por salvar sua vida. Segunda, a descrição de Davi de seus perseguidores soa como se eles fossem gentios, não judeus (ver Sl. 59:5-8). Não ficaria surpreso se os homens que Saul enviou para capturar Davi fossem gentios. Sabemos que ele contratava mercenários (ver I Sam. 14:52). Tais homens não teriam escrúpulos para ajudar a matar Davi, quando os israelitas poderiam ter. Que conveniente é para Saul (um judeu) utilizar esses mercenários (gentios) para se opor ao rei de Deus, da mesma forma que os líderes religiosos judaicos se opuseram a Cristo anos mais tarde. Finalmente, Davi fala dos homens que procuram capturá-lo como mentirosos (Sl. 59:12). Seriam estes homens alguns daqueles que falsamente acusaram Davi diante de Saul? (ver I Sam. 24:9; 26:19)
Assim, Davi fugiu, e escapou, e veio a Samuel, a Ramá, e lhe contou tudo quanto Saul lhe fizera; e se retiraram, ele e Samuel, e ficaram na casa dos profetas. Foi dito a Saul: Eis que Davi está na casa dos profetas, em Ramá. Então, enviou Saul mensageiros para trazerem Davi, os quais viram um grupo de profetas profetizando, onde estava Samuel, que lhes presidia; e o Espírito de Deus veio sobre os mensageiros de Saul, e também eles profetizaram. Avisado disto, Saul enviou outros mensageiros, e também estes profetizaram; então, enviou Saul ainda uns terceiros, os quais também profetizaram. Então, foi também ele mesmo a Ramá e, chegando ao poço grande que estava em Seco, perguntou: Onde estão Samuel e Davi? Responderam-lhe: Eis que estão na casa dos profetas, em Ramá. Então, foi para a casa dos profetas, em Ramá; e o mesmo Espírito de Deus veio sobre ele, que, caminhando, profetizava até chegar à casa dos profetas, em Ramá. Também ele despiu a sua túnica, e profetizou diante de Samuel, e, sem ela, esteve deitado em terra todo aquele dia e toda aquela noite; pelo que se diz: Está também Saul entre os profetas?
Os esforços de Mical para retardar os perseguidores de Davi dão resultado. Davi escapa noite adentro e foge para Ramá, onde se encontra com Samuel e lhe conta tudo o que Saul fez. Então, ele e Samuel deixam Ramá e vão para Naiote. A notícia de que Davi e Samuel estão em Naiote chega aos ouvidos do rei que, então, envia alguns de seus homens para prender Davi. Quando estes homens chegam a Naiote, encontram um grupo de profetas que está profetizando. Samuel está entre eles, presidindo o grupo. O Espírito de Deus desce sobre os homens enviados por Saul para capturar Davi e eles também começam a profetizar.
Não é dito o que estes homens fazem quando estão possuídos pelo Espírito, exceto que profetizam, mas podemos nos aventurar a supor que talvez não estejam muito longe do alvo. Sabemos, com certeza, que eles não prendem Davi ou fazem mal a Saul. Se eles profetizam, é razoável supor que suas palavras incluam o louvor a Deus. Também é possível que profetizem a respeito do próximo rei de Israel. Se estes homens, sob o controle do Espírito de Deus, proclamam Davi como o próximo rei, como podem tomar parte no plano de Saul para matá-lo? Do ponto de vista de Saul, este primeiro grupo de homens está fora.
Saul não aprende muito bem a lição. Não sabemos exatamente que tipo de relatório chega a ele sobre a primeira “companhia” enviada para prender Davi. O texto só indica que “foi dito a Saul”. Se ele é informado de que o Espírito de Deus desceu sobre seus homens e eles profetizaram, ele não capta o sentido da mensagem. Assim, ele envia um segundo grupo para prender Davi. (Temos certeza que, desta vez, ele escolhe homens que não sejam tão inclinados à “espiritualidade”). No entanto, quando este segundo grupo chega, acontece exatamente a mesma coisa com eles. Saul, então, envia um terceiro destacamento, só para que a mesma coisa se repita novamente.
Saul simplesmente ainda não entendeu que seus esforços são inúteis. Se na última tentativa ele disse a si mesmo “agora vai!”, desta vez deve ter pensado: “se quiser algo bem feito, faça você mesmo”. E assim ele chega à Ramá e vai até o grande poço que está em Seco. Lá, ele pergunta onde Samuel e Davi podem ser encontrados. Dizem a ele que ambos estão em Naiote, em Ramá, por isso ele prossegue até Naiote. No caminho, o Espírito de Deus desce sobre o próprio Saul e ele profetiza até chegar ao seu destino.
Deve ter sido um grande espetáculo. Saul, com certeza, estava muito irritado por ter enviado três destacamentos para prender Davi sem nenhum sucesso. Agora, ele está determinado a fazer o serviço ele mesmo. Você pode imaginar o seu humor quando se aproxima do lugar onde estão Davi e Samuel? De repente, o Espírito de Deus o domina, fazendo-o tirar sua túnica e estender-se nu diante de Samuel pelo resto do dia e durante toda a noite.
Saul pretende matar Davi e eliminar a ameaça ao trono? Ele não consegue nem mesmo prendê-lo e, agora, talvez esteja até profetizando que Davi certamente será rei. Saul chega como rei, com toda a autoridade e poder, determinado a realizar seu plano? Agora ele jaz nu diante de Samuel.
A notícia da chegada de Saul e sua conduta inesperada circulam rapidamente. Imagino que as pessoas que ouvem a notícia vêm averiguar e ver por si mesmas. Nu em pelo, Saul não parece tão valentão (perdão pela expressão). Estou mais interessado na questão dos lábios daqueles que vêem Saul neste estado espiritual: “Está Saul entre os profetas?” (verso 24).
Como a chegada e a conduta de Saul podem ser explicadas? Será que todo mundo sabe que ele está procurando matar Davi? Se não sabem, sua chegada e sua conduta são ainda mais misteriosas. Que outra razão haveria para Saul agir como profeta, entre profetas? Nós sabemos. Nenhum homem pode ser controlado pelo Espírito de Deus e executar seu plano demoníaco para matar o ungido de Deus. Eis um jeito de Deus garantir a segurança de Davi. Mesmo quando tenta fazer o serviço ele mesmo, Saul não consegue ter sucesso para impedir o intento de Deus. Como disse o Cristo glorificado anos mais tarde a “Saul(o)” (Paulo, o apóstolo): “Dura cousa é recalcitrares contra os aguilhões” (At. 26:14).
Precisamos observar mais uma coisa neste parágrafo final do capítulo 19: sua semelhança com o incidente ocorrido anteriormente na vida de Saul:
“Então, seguirás a Gibeá-Eloim, onde está a guarnição dos filisteus; e há de ser que, entrando na cidade, encontrarás um grupo de profetas que descem do alto, precedidos de saltérios, e tambores, e flautas, e harpas, e eles estarão profetizando. O Espírito do SENHOR se apossará de ti, e profetizarás com eles e tu serás mudado em outro homem. Quando estes sinais te sucederem, faze o que a ocasião te pedir, porque Deus é contigo. Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. Sucedeu, pois, que, virando-se ele para despedir-se de Samuel, Deus lhe mudou o coração; e todos esses sinais se deram naquele mesmo dia. Chegando eles a Gibeá, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que, dantes, o conheciam, vendo que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então, um homem respondeu: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em provérbio: Está também Saul entre os profetas?” (I Sam. 10:5-12)
Não parece coincidência demais que esta expressão encontrada no capítulo 10 seja, literalmente, repetida no capítulo 19? A primeira vez é no início do reinado de Saul. O Espírito desceu sobre Saul como prova de que ele era o rei escolhido de Deus, e também para capacitá-lo a agir como rei. Assim, o coração de Saul é mudado e ele “se torna outro homem” (10:6, 9-10). O Espírito de Deus desce sobre ele quando ele encontra um “grupo de profetas” (10:5, 10). Quando Saul profetiza com os outros profetas, as pessoas que testemunham o fato ficam surpresas e dizem “Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Está Saul entre os profetas?” (10:11) Estes dizeres, então, se tornam um provérbio entre o povo (10:12).
As semelhanças entre os dois incidentes são marcantes, embora separadas por muitos anos. Nos dois casos, o Espírito de Deus desce sobre Saul e ele profetiza com os outros profetas. Aqueles que testemunham este acontecimento ficam surpresos e perguntam “Está também Saul entre os profetas?”. Em nenhum dos casos o fenômeno profético dura mais do que um dia, e depois cessa (muito parecido com aquilo que vemos em Nm. 11:16-30).
No entanto, há também algumas diferenças. O primeiro fenômeno profético acontece bem no início do reinado de Saul. Na realidade, a vinda do Espírito sobre ele é uma evidência de que Deus o preparou para desempenhar seus deveres como rei (compare com Nm. 11:16-30). Parece ser um tipo de credenciamento de Saul como rei de Israel. O segundo e último fenômeno chega no final de sua carreira, depois que lhe é dito que seu reinado chegaria ao fim. Quando Saul profetiza nesta última vez, é mais como um credenciamento de Davi (talvez meio indireto) do que de Saul. É quase como se Deus usasse o primeiro fenômeno como prova de que Saul é o rei e o segundo como prova de que seu reino está próximo do fim. Eis aqui algo para meditarmos um pouco mais.
Alguns podem estranhar porque, no domingo antes do Natal, não deixei de lado esta série em I Samuel e preguei uma “mensagem de Natal”, como já fiz outras vezes. Quando estudei o texto, percebi o quanto é parecido com a história do “primeiro Natal”. Temos Davi, a quem Deus escolheu e ungiu como rei de Israel. O rei Saul sabe que Davi é o rei de Deus e, por isso, sente-se ameaçado, embora Davi não procure tirá-lo do trono para reinar em seu lugar. Cheio de ciúmes, Saul tenta matá-lo e, não importa o quanto tente capturá-lo e matá-lo, seus planos sempre fracassam. Não existe jeito de Davi - o rei de Deus - ser morto por um homem como Saul, ou por qualquer outro. Em certo sentido, podemos dizer que Davi leva uma vida encantada, pois é o propósito de Deus para ele que se torne o próximo rei.
A história do Natal é sobre um outro rei, o “Filho de Davi”, a quem Deus constituiu para governar sobre o povo de Israel. Quando este rei nasceu, os magos do Oriente O buscaram para adorá-Lo. O rei Herodes, junto com o povo de Jerusalém, fica muito atribulado (não deleitado!) porque estes nobres estão à procura do “Rei dos judeus” (Mt. 2:1-3). Ele chama os líderes religiosos judaicos, procurando saber o lugar onde este “Rei” pode ser encontrado. Ele também diz aos magos para avisá-lo quando encontrarem este “Rei”. Ele não faz isto para adorar o Senhor Jesus (como os magos), mas para matá-lo. Herodes tem tamanha intenção de se livrar deste “Rei”, o qual ele acha ser uma ameaça ao seu reino, que mata todos os meninos na área de Belém, na esperança de que o “Rei” esteja entre eles. A despeito de todos os seus esforços, Herodes fracassa.
Como o rei Saul, Herodes não aprende a lição que todos os reis terrenos deveriam saber: que o monarca ungido de Deus, Jesus Cristo, o Messias prometido, não pode ser derrotado ou destruído. Esta é a lição ensinada no Salmo segundo:
“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.”
Os sábios do Oriente estão certos e Herodes (como Saul) totalmente errado. Ninguém pode derrotar o ungido de Deus. E esse rei é Jesus Cristo. Ele virá outra vez e subjugará os Seus inimigos. E então reinará sobre todas as coisas. Aqueles que se submetem a Ele como o rei ungido e designado por Deus, com Ele reinarão; os que resistirem serão destruídos.
O bebê na manjedoura, Jesus Cristo, é o Messias prometido, o rei que governará sobre todas as coisas. Ele é também o descendente de Davi. Deus não somente designa Davi como o rei de Israel, Ele o designa como aquele do qual nascerá o Rei. Que tolice é Saul tentar destruir Davi. Da mesma forma que Saul cai prostrado e humilhado diante do profeta Samuel, todo aquele que resistir a Jesus Cristo, o rei de Deus, um dia cairá diante Dele e O professará como o Rei dos reis:
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Fp. 2:5-11).
Esta é a mensagem do Natal. Esta é a mensagem do evangelho. Deus enviou Seu filho para ser o Salvador do mundo. Ele O enviará segunda vez para ser o Rei dos Reis. Todos aqueles que rejeitaram a Jesus como Salvador serão Seus inimigos quando Ele voltar. E todos aqueles que O resistirem agora, um dia cairão diante Dele como o Aquele que os derrotou. Todos aqueles que O receberem agora, como o único meio de Deus para salvação de seus pecados, reinarão com Ele quando Ele voltar. Se Saul nos ensina alguma coisa, é que é uma tolice resistir ao rei designado por Deus. Não vamos cometer o mesmo erro.
Minha esposa tem o mesmo nome que uma tia que morreu no ano passado aos 90 anos. Não tenho certeza de quão bem aos 90 anos, mas relativamente bem. “Titia J” (J de Jeanette) era muito ativa e bondosa. Em seus últimos meses sua memória começou a falhar. Não era como se ela se esquecesse de tudo, mas era como se suas informações estivessem arquivadas no lugar errado. (Para o pessoal da informática era como se suas tabelas de alocação de arquivo estivessem corrompidas). Pedaços de informação de um determinado lugar e de uma determinada época estavam ligados a pedaços de outro lugar e de outra época. Isto resultava em versões totalmente diferentes das histórias relembradas por minha esposa.
Um dia, quando visitávamos Tia J, a discussão girou em torno dos tempos passados. Tia J se lembrava de uma certa história e minha esposa, Jeanette, corrigia os detalhes, dizendo algo como: “Não, tia J, não se lembra que, quando a visitei, você estava vivendo numa casa assim e assim, em São Francisco?” Bem, Tia J não se lembrava de maneira alguma desse jeito. Este ciclo de ouvir as lembranças de Tia J e depois ouvir as correções editoriais de minha esposa continuou durante algum tempo. Finalmente, depois de uma história, minha esposa disse: “Não, Tia J, não foi desse jeito, foi daquele...” Tia J podia estar ficando velha, e sua mente podia estar lhe pregando algumas peças, mas ainda era afiada como uma navalha. Sua resposta à correção de minha esposa foi: “se você diz...” Que resposta! Embora Tia J não se lembrasse detalhadamente da história, para ela, sua memória era muito clara. Ela não queria magoar os sentimentos de minha esposa, mas também não estava disposta a concordar com alguma coisa que se lembrasse de forma diferente. Sua resposta “se você diz” foi perfeita; ela não estava disposta a concordar, mas também não desejava discordar.
Enquanto leio o capítulo 20 de I Samuel, lembro-me de Tia J e de sua resposta. Ela me faz lembrar de Jônatas e sua resposta às palavras de Davi, no começo deste capítulo. Davi recorre a Jônatas, convencido de que seu pai, Saul, está tentando matá-lo. Davi procura saber o que fez para que Saul se sinta desse jeito com relação a ele. Jônatas não pode acreditar em seus ouvidos. Para ele é simplesmente inconcebível que seu pai realmente tenha voltado atrás em sua palavra, depois de prometer que não mataria Davi (19:6). Davi está determinado a convencê-lo de que seus temores não são ilusões paranóicas, como o medo de Saul. Assim, ele faz um juramento para garantir a Jônatas que está falando a verdade. A resposta de Jônatas, como a de Tia J, foi “O.K. aceitarei sua palavra. Deve ser do jeito que você diz.”
Este é um triste capítulo nas vidas de Saul, Jônatas e Davi. Fica muito claro que Saul está decidido a matar Davi, e que ele matará até mesmo seu próprio filho, caso ele atrapalhe suas tentativas. É um momento decisivo no relacionamento entre Davi e Jônatas e entre Davi e Saul. É ocasião para a confirmação da aliança entre Davi e Jônatas e também para uma separação muito triste. Contudo, há alguns pontos brilhantes neste capítulo sombrio, e algumas lições muito importantes para os cristãos atuais aprenderem destas palavras inspiradas.
“Então, fugiu Davi da casa dos profetas, em Ramá, e veio, e disse a Jônatas: Que fiz eu? Qual é a minha culpa? E qual é o meu pecado diante de teu pai, que procura tirar-me a vida? Ele lhe respondeu: Tal não suceda; não serás morto. Meu pai não faz coisa nenhuma, nem grande nem pequena, sem primeiro me dizer; por que, pois, meu pai me ocultaria isso? Não há nada disso. Então, Davi respondeu enfaticamente: Mui bem sabe teu pai que da tua parte achei mercê; pelo que disse consigo: Não saiba isto Jônatas, para que não se entristeça. Tão certo como vive o SENHOR, e tu vives, Jônatas, apenas há um passo entre mim e a morte. Disse Jônatas a Davi: O que tu desejares eu te farei. Disse Davi a Jônatas: Amanhã é a Festa da Lua Nova, em que sem falta deveria assentar-me com o rei para comer; mas deixa-me ir, e esconder-me-ei no campo, até à terceira tarde. Se teu pai notar a minha ausência, dirás: Davi me pediu muito que o deixasse ir a toda pressa a Belém, sua cidade; porquanto se faz lá o sacrifício anual para toda a família. Se disser assim: Está bem! Então, teu servo terá paz. Porém, se muito se indignar, sabe que já o mal está, de fato, determinado por ele. Usa, pois, de misericórdia para com o teu servo, porque lhe fizeste entrar contigo em aliança no SENHOR; se, porém, há em mim culpa, mata-me tu mesmo; por que me levarias a teu pai? Então, disse Jônatas: Longe de ti tal coisa; porém, se dalguma sorte soubesse que já este mal estava, de fato, determinado por meu pai, para que viesse sobre ti, não to declararia eu? Perguntou Davi a Jônatas: Quem tal me fará saber, se, por acaso, teu pai te responder asperamente? Então, disse Jônatas a Davi: Vem, e saiamos ao campo. E saíram. E disse Jônatas a Davi: O SENHOR, Deus de Israel, seja testemunha. Amanhã ou depois de amanhã, a estas horas sondarei meu pai; se algo houver favorável a Davi, eu to mandarei dizer. Mas, se meu pai quiser fazer-te mal, faça com Jônatas o SENHOR o que a este aprouver, se não to fizer saber eu e não te deixar ir embora, para que sigas em paz. E seja o SENHOR contigo, como tem sido com meu pai. Se eu, então, ainda viver, porventura, não usarás para comigo da bondade do SENHOR, para que não morra? Nem tampouco cortarás jamais da minha casa a tua bondade; nem ainda quando o SENHOR desarraigar da terra todos os inimigos de Davi. Assim, fez Jônatas aliança com a casa de Davi, dizendo: Vingue o SENHOR os inimigos de Davi. Jônatas fez jurar a Davi de novo, pelo amor que este lhe tinha, porque Jônatas o amava com todo o amor da sua alma. Disse-lhe Jônatas: Amanhã é a Festa da Lua Nova; perguntar-se-á por ti, porque o teu lugar estará vazio. Ao terceiro dia, descerás apressadamente e irás para o lugar em que te escondeste no dia do ajuste; e fica junto à pedra de Ezel. Atirarei três flechas para aquele lado, como quem atira ao alvo. Eis que mandarei o moço e lhe direi: Vai, procura as flechas; se eu disser ao moço: Olha que as flechas estão para cá de ti, traze-as; então, vem, Davi, porque, tão certo como vive o SENHOR, terás paz, e nada há que temer. Porém, se disser ao moço: Olha que as flechas estão para lá de ti. Vai-te embora, porque o SENHOR te manda ir. Quanto àquilo de que eu e tu falamos, eis que o SENHOR está entre mim e ti, para sempre.”
Quero dizer que posso entender por que Davi “fugiu” de Ramá para encontrar Jônatas naquele que deve ter sido o palácio de Saul (verso 1). Em Ramá, Davi está com Samuel, o profeta. Em Ramá, Saul não pode por as mãos em Davi. Quando Saul envia os três destacamentos para prender Davi, eles são divinamente proibidos por uma obra miraculosa do Espírito de Deus. Isto também acontece com Saul (19:18-24). Por que, então, Davi “foge” para o palácio onde vivem Saul e Jônatas? A única explicação que faz sentido é que é lá que pode ser encontrado seu querido amigo. Davi não parece estar fugindo de Saul, mas fugindo para Jônatas, da mesma forma como fugiu para Aimeleque e Samuel anteriormente.
A menos que Davi seja hipócrita naquilo que diz para Jônatas, ele humildemente assume uma posição digna de elogio. Ele não começa acusando ou atacando Saul. Ele começa enfocando seu próprio pecado. Repare na dupla referência ao pecado (“culpa”, “pecado”) no verso 1. Davi parece estar genuinamente interessado em saber se fez algo errado que tenha ocasionado o tratamento que Saul está dispensando a ele.
Inicialmente Jônatas está com dois pés atrás com Davi. Ele não responde à pergunta sobre sua culpa mas, em vez disto, contesta a avaliação de Davi sobre estar em perigo mortal - por parte de Saul! Ele contesta a afirmação de que Saul está perseguindo sua vida, em vez de responder a pergunta acerca de seu pecado. Jônatas é um tanto ingênuo aqui, pois garante a Davi que, se seu pai tivesse a intenção de matá-lo, certamente lhe contaria primeiro - a ele, seu filho.
Davi insistentemente discorda da avaliação de Jônatas da situação. Ele faz um juramento solene para ressaltar sua seriedade sobre o assunto. Não deixa que Jônatas ignore suas preocupações tão depressa. Agora que Saul sabe que Davi e Jônatas são amigos, unidos por uma aliança, por que seria tão tolo a ponto de revelar seus planos de matar Davi para Jônatas? Saul propositadamente mantém silêncio sobre seus planos a fim de que Jônatas não saiba o que ele está fazendo.
Davi afirma, então, com as palavras mais enérgicas possíveis, o fato de que sua vida está em perigo mortal. Sua vida está por um fio. Jônatas agora percebe a seriedade de Davi e como ele se sente sobre este perigo. Ele entende que Davi quer realmente que ele o leve a sério e, assim, demonstra compaixão, garantindo-lhe que fará qualquer coisa que ele queira. Jônatas pode ainda não estar convencido das más intenções de seu pai, mas está convencido de que Davi está aflito e teme por sua vida. Jônatas decide acreditar na palavra de Davi.
No verso 5 e seguintes, Davi propõe um plano que demonstrará as intenções de Saul para com ele. Isto parece ser tanto para o benefício de Jônatas quanto para o benefício de Davi. O plano é simples. No dia seguinte é lua cheia e, portanto, época de Saul fazer o sacrifício e compartilhar a refeição sacrificial. Davi faz parte de sua casa e por isso espera-se que esteja presente. Se Saul de fato pretende matá-lo, ficará muito preocupado quando descobrir que ele não está presente à refeição. Se Saul não planeja matá-lo, sua ausência não será problema. E assim Davi planeja ausentar-se e, com sua ausência, testar as intenções de Saul.
A ausência de Davi precisará ser explicada de tal forma que pareça razoável a ele estar ausente. Davi já preparou a explicação. Uma vez que Jônatas estará presente à celebração, ele pode dar a desculpa por Davi. Se, e quando Saul perguntar sobre sua ausência, Jônatas pode dizer ao rei que Davi pedira sua permissão para faltar à celebração porque sentiu que deveria ir a Belém ficar com sua família durante os festejos. É uma explicação razoável, que não deverá causar a Saul nenhum problema, a menos que, de fato, ele esteja procurando uma desculpa para si mesmo - uma desculpa para matar Davi.
Mas, por que a ausência de Davi seria tão importante para Saul? Penso que Davi não tenha feito muitas refeições à mesa de Saul ultimamente. Duas vezes Saul tentou matá-lo com sua lança enquanto ele estava em sua casa. Davi fugiu da casa de Saul e até mesmo de sua própria casa, acabando em Ramá junto com Samuel. Durante algum tempo Davi ficou ausente. Esta refeição festival devia ser como o Natal é para nós, um tempo para a família quando se espera que os membros estejam presentes. Não importa que Davi tenha sua própria família e que eles queiram que esteja com eles. Saul espera que Davi fique consigo, o que lhe dará outra oportunidade para liquidá-lo. Se Davi não comparece à refeição, Saul não tem idéia de quando ocorrerá a próxima oportunidade para matá-lo. Portanto, a ausência de Davi deve ser um teste para as intenções de Saul.
Davi apela para Jônatas realizar seu plano e ver se Saul ainda pretende mesmo matá-lo. A base para este apelo é o amor que os dois homens sentem um pelo outro e a aliança que fizeram (ver 18:1-4; 19:1). Davi fala com Jônatas como se ele fosse seu senhor e ele seu servo (20:8). De fato, isto é verdade. Jônatas é, nesse momento, o filho do rei, e Davi, seu subordinado. Davi apela para a aliança que os dois fizeram e pede que Jônatas realize o plano proposto por ele. Em vez de Davi se entregar a Saul, ele pede que Jônatas mesmo o execute, se realmente for culpado de algum pecado. Jônatas fica apavorado ante tal sugestão. Davi realmente pensa que ele o trairia entregando-o a seu pai para ser morto? Se Jônatas soubesse de qualquer complô de seu pai contra ele, Davi realmente supõe, mesmo que por um momento, que seu amigo não o avisaria em vez de traí-lo?
Jônatas deixa claro que avisará Davi sobre qualquer complô contra ele. Se seu pai realmente pretende matá-lo, ele pode ter certeza de que Jônatas o avisará. No entanto, há uma possibilidade do plano falhar. Suponha que Saul de fato pretenda matar Davi, e que ele mate Jônatas por tentar saber quais são suas intenções contra ele. Se Saul matar Jônatas por tentar ajudar Davi, quem o avisará? Aquilo que expliquei rudemente, Davi diz com toda delicadeza:
“Quem tal me fará saber, se, por acaso, teu pai te responder asperamente?” (verso 10b)
A esta altura Jônatas faz algo estranho e totalmente inesperado. Ele não fala mais nada até que estejam no meio do campo (verso 12). Este parece ser o campo onde Jônatas discute com seu pai, enquanto Davi observa (19:1-6). Creio que Jônatas está começando a perceber como a situação se tornou séria. Se Saul está louco de ciúmes e planejando matar Davi, é provável que alguém que, por acaso ouça a conversa entre eles, possa relatá-la a Saul. Os dois não estão indo ao campo tomar ar fresco. Estão saindo para onde olhos curiosos e ouvidos atentos não possam entender o que está sendo dito entre eles. Uma vez que este também é o lugar onde Jônatas dirá a Davi o resultado do “teste”, eles poderão marcar o lugar onde cada um ficará.
Se o teste mostrar que Saul mudou de idéia e que suas intenções são favoráveis, então Jônatas mandará dizê-lo a Davi (verso 12). Mas, se as intenções de Saul ainda forem hostis, Jônatas então levará a notícia a Davi, para que possa fugir. Se for este o caso, e Davi tiver que fugir (como agora Jônatas parece temer), então ele fará Davi saber que vai com sua bênção e com seu amor (verso 13).
Agora, se Davi precisar fugir, Jônatas tem um pedido para ele, um pedido baseado na aliança que os dois fizeram. Se ele sobreviver ao teste, Davi poupará sua vida, da mesma forma que ele procurou proteger a vida de Davi. Jônatas sabe que Davi sobreviverá e se tornará rei de Israel. Quando Davi for rei, Jônatas pede que ele poupe sua vida. Ele sabe muito bem que, quando um rei substitui outro, o rei que está no controle mata quaisquer outros rivais ao trono, incluindo seus herdeiros. Jônatas quer que Davi garanta que ele e seus herdeiros não serão aniquilados, como é de praxe. Os dois homens aperfeiçoam e reafirmam sua aliança, como manifestação de seu amor. Há uma diferença muito importante entre esta aliança elucidada e aperfeiçoada e aquela feita anteriormente. A anterior era uma aliança entre dois homens, Davi e Jônatas. Esta é um aliança entre duas famílias, entre duas dinastias. Esta é a aliança entre os descendentes de Davi e os descendentes de Jônatas.
Uma mudança sutil, claramente percebida nos versos 18 a 23, aconteceu. Jônatas assumiu o controle da situação. A princípio, a iniciativa foi de Davi. Davi fugiu de Ramá e procurou por Jônatas. Jônatas reluta em acreditar naquilo que ele lhe diz a respeito de seu pai. Depois, percebendo a seriedade de Davi sobre este assunto, ele concorda em ajudá-lo da forma que ele achar melhor. Davi propõe um plano que revelará os planos de Saul com respeito a ele. Depois, no verso 11, Jônatas leva Davi para campo aberto onde continuam sua conversa. Acho que deste ponto em diante, Jônatas toma conta do problema. Ele não é mais um ouvinte relutante ou um auxiliar complacente de Davi, ele é o líder.
Nos versos 18 a 23 Jônatas cuidadosamente explica o plano pelo qual dará o resultado do teste a Davi. Davi deve se esconder por três dias, enquanto o teste estiver sendo levado a cabo. Então, no final deste período, ele deve vir ao campo onde estão neste momento. Ali, Jônatas informará o resultado do teste. Jônatas atirará três flechas, como se mirasse num alvo. Depois mandará um rapaz pegar as flechas. Se Jônatas disser ao jovem para procurar as flechas em sua direção, Davi deverá entender que as intenções de Saul são boas, e dessa forma, poderá sair do esconderijo. Mas, se Jônatas disser ao rapaz para procurá-las além de onde está, então Davi deve entender que Saul pretende prejudicá-lo, e deve fugir.
Uma vez mais, a aliança entre eles é mencionada com relação ao plano. Jônatas garante a Davi que fará tudo o que prometeu, por causa da aliança. O uso do termo para sempre, no verso 23, indica que esta aliança agora é vista como sendo entre Jônatas e seus descendentes, e Davi e seus descendentes. Esta aliança extensiva é a base de sua amizade e confiança mútua.
“Escondeu-se, pois, Davi no campo; e, sendo a Festa da Lua Nova, pôs-se o rei à mesa para comer. Assentou-se o rei na sua cadeira, segundo o costume, no lugar junto à parede; Jônatas, defronte dele, e Abner, ao lado de Saul; mas o lugar de Davi estava desocupado. Porém, naquele dia, não disse Saul nada, pois pensava: Aconteceu-lhe alguma coisa, pela qual não está limpo; talvez esteja contaminado. Sucedeu também ao outro dia, o segundo da Festa da Lua Nova, que o lugar de Davi continuava desocupado; disse, pois, Saul a Jônatas, seu filho: Por que não veio a comer o filho de Jessé, nem ontem nem hoje? Respondeu Jônatas a Saul: Davi me pediu, encarecidamente, que o deixasse ir a Belém. Ele me disse: Peço-te que me deixes ir, porque a nossa família tem um sacrifício na cidade, e um de meus irmãos insiste comigo para que eu vá. Se, pois, agora, achei mercê aos teus olhos, peço-te que me deixes partir, para que veja meus irmãos. Por isso, não veio à mesa do rei. Então, se acendeu a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho de mulher perversa e rebelde; não sei eu que elegeste o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha do recato de tua mãe? Pois, enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem seguro o teu reino; pelo que manda buscá-lo, agora, porque deve morrer. Então, respondeu Jônatas a Saul, seu pai, e lhe disse: Por que há de ele morrer? Que fez ele? Então, Saul atirou-lhe com a lança para o ferir; com isso entendeu Jônatas que, de fato, seu pai já determinara matar a Davi. Pelo que Jônatas, todo encolerizado, se levantou da mesa e, neste segundo dia da Festa da Lua Nova, não comeu pão, pois ficara muito sentido por causa de Davi, a quem seu pai havia ultrajado.”
No dia seguinte Jônatas se senta à mesa com seu pai e outras pessoas, como sempre faz. O rei Saul se senta de “costas para a parede” (verso 25), o que lhe dá grande segurança (deste jeito, ninguém pode apunhalar ou atirar em alguém pelas costas). Jônatas senta-se em frente a ele e Abner ao lado do rei. Todo mundo parece estar sentado no lugar de costume. Evidentemente, o lugar de Davi à mesa está vazio. Saul não diz nada. Ele pensa consigo mesmo que Davi, de alguma forma, está impuro e não possa participar da refeição.
No outro dia o lugar de Davi ainda está vazio. Tentando parecer casual, Saul pergunta a Jônatas por que “o filho de Jessé” não aparece há dois dias. Jônatas dá a Saul a desculpa que ele e Davi ensaiaram. Davi, responde Jônatas, pediu permissão a ele para se ausentar, a fim de que pudesse celebrar com sua família em Belém. O irmão de Davi o pressionou e ele pediu permissão a Jônatas para se ausentar, e Jônatas concedeu. Simples - sem grandes problemas.
Mas, com toda certeza, é um problema para Saul! Ele fica furioso, e sua fúria se concentra em Jônatas. É tudo culpa de Jônatas, Saul conclui. Ele chama seu próprio filho dos nomes mais ofensivos. Todas as acusações de Saul são, em essência, verdadeiras e baseadas na aliança que Jônatas e Davi fizeram. Jônatas é o primogênito de Saul, o herdeiro do trono. Jônatas está jogando tudo isto fora por prometer amor e lealdade a Davi. Se Davi viver, o trono será seu e não de Jônatas. Por isso, Saul ordena que Jônatas traga Davi para que seja morto.
As razões de Saul são interesseiras e de modo algum piedosas. Saul não dá importância ao fato de que Deus indicou através de Samuel que seu reino seria tirado dele (13:13-14; 15:22-23). Ele despreza o fato de Samuel ter ungido Davi como o próximo rei de Israel (16:13). Matar Davi será matar o ungido de Deus. Ainda que Davi não faça isto a ele, Saul com toda certeza pretende matá-lo. Jônatas pressiona seu pai a pensar em termos de justiça bíblica. Se Davi vai ser morto, por cometer qual pecado deve ser executado? Qual pecado seu merece a pena de morte? Se não existe razão nas Escrituras para matá-lo (quer dizer, na lei de Moisés), então Saul é o único que está pecando, não Davi.
Saul agora é realmente perverso. Ele pega sua lança, que está sempre ao seu lado, e a atira em seu próprio filho, Jônatas. Saul atira a lança, e Jônatas entende. Ele não acerta. Felizmente Saul não melhorou sua pontaria. Não há mais dúvidas na cabeça de Jônatas. Agora há dois lugares vazios na mesa, o de Davi e o de Jônatas. Que conveniente! Jônatas está profundamente pesaroso. Seu pesar, você notará, não é devido à humilhação que seu pai lhe impôs à mesa do jantar, mas devido à maneira como seu pai desonrou Davi (verso 34). O tempo todo Davi estava certo, absolutamente certo. Saul realmente pretende matá-lo, e também matará qualquer um que tente pará-lo.
“Na manhã seguinte, saiu Jônatas ao campo, no tempo ajustado com Davi, e levou consigo um rapaz. Então, disse ao seu rapaz: Corre a buscar as flechas que eu atirar. Este correu, e ele atirou uma flecha, que fez passar além do rapaz. Chegando o rapaz ao lugar da flecha que Jônatas havia atirado, gritou Jônatas atrás dele e disse: Não está a flecha mais para lá de ti? Tornou Jônatas a gritar: Apressa-te, não te demores. O rapaz de Jônatas apanhou as flechas e voltou ao seu senhor. O rapaz não entendeu coisa alguma; só Jônatas e Davi sabiam deste ajuste. Então, Jônatas deu as suas armas ao rapaz que o acompanhava e disse-lhe: Anda, leva-as à cidade. Indo-se o rapaz, levantou-se Davi do lado do sul e prostrou-se rosto em terra três vezes; e beijaram-se um ao outro e choraram juntos; Davi, porém, muito mais. Disse Jônatas a Davi: Vai-te em paz, porquanto juramos ambos em nome do SENHOR, dizendo: O SENHOR seja para sempre entre mim e ti e entre a minha descendência e a tua.”
Agora é hora de Jônatas realizar seu plano. Ele precisa dizer a Davi que ele estava certo, que Saul realmente pretende matá-lo. Como combinado, Jônatas vai ao campo onde sabe que Davi está escondido e observando. Ele manda seu jovem servo ir pegar suas flechas. Ele atira a primeira flecha além de onde está o jovem, e então grita que ela está adiante dele. Davi agora sabe. Saul está tentando matá-lo. Ele precisa escapar tão rápido quanto possível. Quando o jovem traz a flecha de volta, Jônatas o manda retornar à cidade.
Se o plano é que Davi escape despercebido pela floresta, ele não é executado. Os dois homens sabem que daí em diante suas vidas jamais serão as mesmas. Talvez não se vejam novamente, e se o fizerem, será em segredo, e por pouco tempo. Assim, Davi sai do esconderijo e se aproxima de Jônatas e lhe dá um doloroso adeus. Os dois se beijam e choram, Davi mais do que Jônatas. Esta vai ser uma grande perda para ele, e ele sabe disso. Quando se separam, Jônatas fala sobre a aliança que fez com Davi e sua descendência e reafirma seu compromisso em mantê-la. Davi se levanta e parte, e Jônatas retorna à cidade. As coisas jamais serão as mesmas novamente, e ambos sabem disso.
Neste capítulo podemos perceber um ponto muito importante no que se refere ao relacionamento de Davi com Saul e com Jônatas. Antigamente, Davi fugia da presença de Saul, mas isto era sempre temporário. Agora, é permanente. Davi não se sentará à mesa de Saul outra vez, não tocará sua harpa para acalmar o espírito atribulado do rei outra vez, não lutará por Saul no exército israelita outra vez. Davi se tornará um fugitivo que estará constantemente fugindo de Saul, que procura matá-lo. Por isso, a amizade que Davi gozou com Jônatas também não será a mesma outra vez. E assim, Davi e Jônatas dizem este triste adeus de nosso texto. Eles se encontrarão novamente, mas não será com freqüência, ou por muito tempo.
Uma palavra resume todo este capítulo, e essa palavra é aliança. Davi foge para Jônatas, num momento de puro desespero, porque eles têm um relacionamento pactual que garante a Davi o amor e o apoio de Jônatas. Esta aliança de mútuo amor e boa vontade será a razão para Jônatas levar Davi tão a sério, que se disporá a realizar o teste proposto por ele. Também é a razão pela qual Jônatas toma essas elaboradas precauções de segurança (sair para o campo, comunicando-se com Davi através de um tipo de sinal). Esta aliança é realmente elucidada e estendida em nosso texto. O que, originalmente, era uma aliança entre dois homens, agora se torna uma aliança entre duas famílias. O que era uma aliança geral, vaga, feita na época em que não havia animosidade da parte de Saul contra Davi, agora é elucidada para cuidar de sua hostilidade e de seus intentos violentos contra ele. A aliança entre Jônatas e Davi também é o ponto forte da fúria de Saul contra ambos, Davi e Jônatas. A aliança que une estes dois homens e suas famílias provocou a ira de Saul contra Davi e contra seu filho, Jônatas. Saul não poderia se opor a um sem se opor ao outro.
Esta aliança é o fundamento e a diretriz do relacionamento entre Davi e Jônatas. Ela dá a ambos a sensação de segurança e expressa a submissão e a servidão de um ao outro. Este é um assunto de tal importância que devemos fazer uma pausa para refletir sobre ele. Primeiramente, vamos discutir esta aliança como sendo relevante aos nossos relacionamentos com as outras pessoas. E depois concluiremos explorando a maneira pela qual uma “aliança” determina o nosso relacionamento com Deus.
Mesmo no mundo em que vivemos somos governados com fundamento numa aliança que os homens fazem entre si. A Declaração de Independência dos Estados Unidos foi escrita, em parte, porque o povo da nação sentia que a Inglaterra quebrara a aliança com aqueles que eram governados por ela. Nossa Constituição é um tipo de aliança, que nos une como nação. Seja escrito ou oral, implícito ou expresso, o governo é estabelecido com base numa aliança feita por homens.
Creio que o casamento é uma das mais importantes alianças que um homem pode fazer com uma mulher. Ainda é comum para algumas pessoas que vivem juntas sem serem casadas, dizer: “Amamos um ao outro e não precisamos de um pedaço de papel para nos manter juntos.” Nosso texto deixa claro que uma aliança é a conseqüência natural do amor, uma expressão do amor. Davi e Jônatas fizeram uma aliança porque eles se amavam. Em suas mentes, teria sido inconcebível não fazerem uma aliança. Por que dois homens, que se amam como irmãos, não estariam dispostos a assumir compromissos que eles juram manter para sempre?
Uma aliança é prova de amor. Uma aliança é um acordo mútuo sobre a definição de como o amor será refletido num relacionamento. Acho que também é certo dizer que um relacionamento pactual se desenvolve. Quando o ciúme de Saul se torna evidente, tanto Davi como Jônatas modificam (ou elucidam) sua aliança para que as novas circunstâncias sejam levadas em conta. Mas o compromisso que têm um com o outro não diminui por causa dos tempos difíceis que sobrevêm sobre seu relacionamento; os tempos difíceis fazem com que os dois se comprometam ainda mais um com o outro. A mesma coisa se aplica aos votos do casamento. Quando um homem e uma mulher se juntam para se tornar marido e mulher, eles fazem votos que são, na realidade, a definição da aliança que está sendo feita. Esta aliança não deve ser quebrada. Esta aliança é o fundamento e o esteio quando os problemas chegam, mesmo quando o amor parece faltar. Uma aliança dá ao casamento a estabilidade que os sentimentos românticos não podem dar, porque não são constantes.
Para todos os crentes em Cristo não há somente uma aliança individual entre eles e Jesus Cristo, há também um relacionamento pactual entre todos os crentes. Nós formamos uma comunidade pactual, unidos pela aliança. Repare como o profeta Malaquias repreende os antigos israelitas por falharem em manter suas alianças:
“Não temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou o mesmo Deus? Por que seremos desleais uns para com os outros, profanando a aliança de nossos pais? Judá tem sido desleal, e abominação se tem cometido em Israel e em Jerusalém; porque Judá profanou o santuário do SENHOR, o qual ele ama, e se casou com adoradora de deus estranho. O SENHOR eliminará das tendas de Jacó o homem que fizer tal, seja quem for, e o que apresenta ofertas ao SENHOR dos Exércitos. Ainda fazeis isto: cobris o altar do SENHOR de lágrimas, de choro e de gemidos, de sorte que ele já não olha para a oferta, nem a aceita com prazer da vossa mão. E perguntais: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher da tua aliança. Não fez o SENHOR um, mesmo que havendo nele um pouco de espírito? E por que somente um? Ele buscava a descendência que prometera. Portanto, cuidai de vós mesmos, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR, Deus de Israel, diz que odeia o repúdio e também aquele que cobre de violência as suas vestes, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto, cuidai de vós mesmos e não sejais infiéis.” (Ml. 2:10-16)
Aquilo que eu disse sobre as alianças determinarem os relacionamentos entre os homens é conseqüência natural de uma verdade mais elevada: Deus determina o relacionamento do homem Consigo mesmo por meio de uma aliança. Quando Deus destruiu toda a raça humana por causa de seu pecado, Ele estabeleceu uma aliança com Noé e seus descendentes. Quando Deus passou a relacionar-se com Abrão (antes dele ser chamado Abraão), Ele o fez por meio de uma aliança, a Aliança Abraâmica (Gn. 12:1-3, etc.). Quando Deus libertou o povo de Israel da escravidão do Egito, Ele passou a relacionar-se com eles, e este relacionamento foi governado pela Aliança Mosaica. As ações de Deus em Israel no Antigo Testamento podem ser vistas como o cumprimento dessa aliança. Deus agiu de acordo com Sua aliança.
Todos os tratos de Deus com os homens podem ser vistos como o cumprimento de Sua aliança com eles. Mas, enquanto Deus sempre mantém os termos de Sua aliança, o homem consistentemente tem demonstrado que é um transgressor dessa aliança. Se nossa salvação dependesse de guardarmos a aliança de Deus, jamais seríamos perdoados de nossos pecados e jamais faríamos parte de Seu Reino. Deus sabia que, apesar dos homens terem prometido guardar a aliança mosaica, eles jamais o fariam:
“Ouvindo, pois, o SENHOR as vossas palavras, quando me faláveis a mim, o SENHOR me disse: Eu ouvi as palavras deste povo, as quais te disseram; em tudo falaram eles bem. Quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos, para que bem lhes fosse a eles e a seus filhos, para sempre!” (Dt. 5:28-29)
Tempos depois na história de Israel, quando Josué disse ao povo suas palavras de despedida, uma vez mais eles prometerem guardar esta aliança (mosaica). Josué os conhecia muito melhor:
“Então, Josué disse ao povo: Não podereis servir ao SENHOR, porquanto é Deus santo, Deus zeloso, que não perdoará a vossa transgressão nem os vossos pecados. Se deixardes o SENHOR e servirdes a deuses estranhos, então, se voltará, e vos fará mal, e vos consumirá, depois de vos ter feito bem. Então, disse o povo a Josué: Não; antes, serviremos ao SENHOR. Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos de que escolhestes o SENHOR para o servir. E disseram: Nós o somos. Agora, pois, deitai fora os deuses estranhos que há no meio de vós e inclinai o coração ao SENHOR, Deus de Israel. Disse o povo a Josué: Ao SENHOR, nosso Deus, serviremos e obedeceremos à sua voz. Assim, naquele dia, fez Josué aliança com o povo e lha pôs por estatuto e direito em Siquém.” (Js. 24:19-25)
Havia apenas uma solução. Precisava haver uma salvação que não dependesse da perfeição e do desempenho do homem. Precisava ser uma salvação que dependesse da perfeição e do desempenho de Deus. E, assim, no Velho Testamento, Deus começou a falar da “nova aliança” que faria com os homens, a qual resultaria na salvação eterna:
“Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o SENHOR. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o SENHOR. Pois perdoarei as suas iniqüidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.” (Jr. 31:31-34)
Esta “nova aliança” foi cumprida pelo Messias prometido, o Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo.
“E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós.” (Lc. 22:19-20)
“E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica. E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto de os filhos de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desvanecente, como não será de maior glória o ministério do Espírito! Porque, se o ministério da condenação foi glória, em muito maior proporção será glorioso o ministério da justiça. Porquanto, na verdade, o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobreexcelente glória. Porque, se o que se desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente.” (II Co. 3:4-11)
“Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança, a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados.” (Hb. 9:11-15)
Tudo se reduz a isto. Deus sempre se relacionou com os homens com base numa aliança. Em todos os casos os homens falharam em guardar a aliança de Deus, embora Deus tenha fielmente mantido sua aliança e suas promessas. A fim de salvar os homens de seus pecados e lhes dar acesso a Seu reino, Deus substituiu a(s) antiga(s) aliança(s) por uma nova e melhor. Esta aliança não depende do nosso desempenho, mas do desempenho de Deus. Deus enviou Seu Filho, Jesus Cristo, para viver um vida sem pecado, para cumprir perfeitamente a antiga aliança mosaica. E depois, quando morreu na cruz do Calvário, Ele suportou a pena pelos pecados dos homens. Quando Ele ressurgiu da morte, demonstrou a satisfação de Deus e Sua (de Cristo) Justiça. Pela morte, funeral e ressurreição de Cristo Deus deu aos homens uma nova aliança, segundo a qual pôde ser garantido aos homens o perdão dos pecados e a vida eterna. Para que sejamos salvos, precisamos apenas abraçar esta aliança como nossa única esperança e meio de salvação. Esta aliança foi conquistada de uma vez por todas. Ela não pode ser deixada ou anulada. Precisa apenas ser abraçada. Pelo reconhecimento de nossa incapacidade de agradar a Deus pelos nossos próprios esforços, e por confiar na obra de Cristo feita em nosso favor, fazemos parte desta nova aliança e de todos os seus benefícios. Você já faz parte desta aliança? Eu o incentivo a fazer isto hoje. Que grandioso Deus nós temos, que nos oferece este relacionamento pactual com Ele.
Antes de começar a Faculdade, eu tinha dois empregos de verão. Trabalhei numa loja de autopeças durante dois anos, mas quando os negócios ficaram um pouco devagar, arranjei outro emprego para completar minha renda trabalhando para a Sorveteria Queen, bem em frente à loja de autopeças. Meu emprego não consistia em trabalhar na sorveteria, mas trabalhar para ela, dirigindo uma pequena scooter Cushman, do tipo que era construída como miniatura de uma caminhonete de entregas. Na carroceria desse veículo havia um freezer carregado de Dilly Bars. Na frente da scooter tinha uma pequena cabine sem portas. Meu serviço consistia em dirigir pela cidade onde morava, Shelton, Washington, vendendo Dilly Bars a todas as crianças que me ouviam chegando e corriam para comprar sorvete. Subir e descer as ladeiras de Shelton era um desafio, mas o maior problema era escapar dos cachorros. Alguns me perseguiam, enquanto que os piores pareciam querer se juntar a mim na cabine, ou, pior ainda, tentavam me arrancar dela. Como o trabalho não tinha grande status social, eu procurava atrair os jovens clientes enquanto tentava rechaçar os cães.
Numa determinada ocasião, encontrei-me num grande dilema. Precisava ficar na loja e também sair com a scooter para a sorveteria. Quando falei com meu pai sobre o problema, ele se ofereceu para ficar (ou sentar) em meu lugar na scooter. Tudo corria razoavelmente bem. Meu pai andava prá cima e prá baixo com a scooter e os cachorros da vizinhança até que se comportavam. Então, uma cliente aproximou-se para comprar sorvete para seus filhos. Quando ela olhou para dentro da scooter, tanto ela quanto o motorista foram pegos de surpresa. Ela era esposa de um dos membros da diretoria do colégio e meu pai era o diretor. Tentando achar graça da situação, ela disse Compre um sorvete e ajude um aluno a ir prá Faculdade? Ambos tiveram que rir.
A vida tem momentos embaraçosos, não é? Lembro-me de um domingo na igreja, quando a Sra. Drebick desmaiou e pediram ajuda para carregá-la prá fora. Quando dois homens discretamente tentaram tirá-la de seu assento, de repente sua perna se esticou, dando um pontapé no chapéu da mulher que estava sentada à sua frente, fazendo com que seu cabelo despencasse sobre seu rosto. Sei que não deveria ter rido...
Um dos momentos mais embaraçosos da minha vida foi quando fui escolhido para testemunhar diante da igreja sobre o acampamento de verão a que tinha ido. Tudo corria razoavelmente bem quando subi na plataforma e dei meu recado. No entanto, o pastor tocava uma guitarra para acompanhar nossos cânticos e, quando tentei deixar o púlpito e descer da plataforma, meus pés se enroscaram no fio da guitarra. Tropecei e cambaleei, escapando por pouco de me esparramar na plataforma diante de toda a igreja, mas o que consegui mesmo foi arrebentar o fio da guitarra.
Todos nós temos nossos momentos embaraçosos e gostaria de ouvir os seus. Até o rei Davi os teve. Em nosso texto, Davi tem diversas experiências humilhantes, todas devido ao ciúme de Saul e suas tentativas de matá-lo. Tanto quanto foram ruins no momento, estes episódios dolorosos também provaram ser benéficos a Davi. Ao ver as coisas que lhe aconteceram, começamos a perceber como Deus usa situações parecidas em nosso benefício. Vamos ver com cuidado o que Deus tem a nos ensinar em nosso texto.
Nem sempre as coisas foram ruins entre Saul e Davi. Às vezes Saul era muito cordial com ele (16:21), e houve época em que se regozijou com sua vitória sobre Golias e os filisteus (19:5). A unção de Davi como substituto de Saul não foi devido à sua ambição, mas conseqüência da própria loucura de Saul. Num momento de pânico, Saul desobedeceu as instruções de Samuel para esperá-lo (10:8), oferecendo ele mesmo o sacrifício (capítulo 13). Samuel o repreendeu por isso, mas ele jamais se arrependeu totalmente de seu pecado. Posteriormente, ele falhou em aniquilar totalmente os amalequitas como Deus o instruíra no capítulo 15. Tudo isto explica o fim da dinastia de Saul e Samuel disse isto a ele.
Sabemos que o Espírito de Deus deixou Saul e foi substituído por um espírito maligno da parte do Senhor. Sabemos também que o Espírito de Deus desceu com poder sobre Davi (16:13-14). Isto abriu as portas para que Davi fosse empregado para acalmar o espírito atribulado de Saul ao tocar sua harpa (16:14-23). Apesar de no início Saul ter amado Davi, logo ele se tornou muito ciumento. Saul não podia sequer ouvir a canção entoada pelas mulheres a respeito de Davi (18:7), nem sobre o profundo amor e afeição demonstrados a ele por sua própria família (18:1-5, 20), nem sobre o respeito e admiração que ganhou junto aos homens de seu exército (18:13-16, 30). Saul desconfiava de qualquer atitude de Davi. Finalmente, a canção que as mulheres entoavam, comparando e contrastando as vitórias de Davi com as dele, levou Saul ao auge da insanidade.
Saul fez inúmeras tentativas contra a vida de Davi. Algumas foram às ocultas, tais como lhe oferecer uma de suas filhas em casamento (o que requeria que Davi agisse corajosamente na guerra para provar seu valor como marido - 18:17-29). Outras foram mais explícitas, tais como quando procura traspassar Davi com sua lança (18:10-12). Finalmente, Saul deu ordens para que ele fosse morto (19:1). Em conseqüência do apelo de seu filho Jônatas, sua ordem foi cancelada durante algum tempo (19:1-7), mas logo depois ele novamente fez de tudo para matá-lo (19:8 e ss). Jônatas e Davi se encontraram e desenvolveram um plano que deixaria claro que Saul realmente tinha intenção de matar Davi. Isto resultou na sua fuga e na triste despedida de Jônatas (capítulo 20).
Agora, no capítulo 21, encontramos Davi num refúgio político, um homem sem pátria. Chegamos a uma nova etapa de sua vida. É uma época dolorosa de separação: de sua esposa, de sua posição como empregado de Saul e de seu estimado amigo Jônatas. É também uma época perigosa, mas na qual o ungido de Deus não pode ser morto, não importa quão grande o perigo possa parecer. É tempo de crescimento e de preparação, tempo que o prepara para o dia em que governará Israel como o rei ungido de Deus.
Então, veio Davi a Nobe, ao sacerdote Aimeleque; Aimeleque, tremendo, saiu ao encontro de Davi e disse-lhe: Por que vens só, e ninguém, contigo? Respondeu Davi ao sacerdote Aimeleque: O rei deu-me uma ordem e me disse: Ninguém saiba por que te envio e de que te incumbo; quanto aos meus homens, combinei que me encontrassem em tal e tal lugar. Agora, que tens à mão? Dá-me cinco pães ou o que se achar. Respondendo o sacerdote a Davi, disse-lhe: Não tenho pão comum à mão; há, porém, pão sagrado, se ao menos os teus homens se abstiveram das mulheres. Respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, como sempre, quando saio à campanha, foram-nos vedadas as mulheres, e os corpos dos homens não estão imundos. Se tal se dá em viagem comum, quanto mais serão puros hoje! Deu-lhe, pois, o sacerdote o pão sagrado, porquanto não havia ali outro, senão os pães da proposição, que se tiraram de diante do SENHOR, quando trocados, no devido dia, por pão quente. Achava-se ali, naquele dia, um dos servos de Saul, detido perante o SENHOR, cujo nome era Doegue, edomita, o maioral dos pastores de Saul. Disse Davi a Aimeleque: Não tens aqui à mão lança ou espada alguma? Porque não trouxe comigo nem a minha espada nem as minhas armas, porque a ordem do rei era urgente. Respondeu o sacerdote: A espada de Golias, o filisteu, a quem mataste no vale de Elá, está aqui, envolta num pano detrás da estola sacerdotal; se a queres levar, leva-a, porque não há outra aqui, senão essa. Disse Davi: Não há outra semelhante; dá-ma.
Onde Davi poderia encontrar refúgio ou mesmo pedir ajuda? Certamente Aimeleque, o sumo sacerdote, é confiável. E, assim, Davi foge para Nobe, a cidade dos sacerdotes, poucas milhas ao norte e a oeste de Jerusalém (algumas milhas ao sul de Gibeá, a cidade de Saul). Davi está ciente da influência de Saul e de seu potencial para a violência. Assim, ele guarda o verdadeiro propósito de sua vinda, talvez pensando que esteja fazendo um favor ao sacerdote. Acaba não sendo desse jeito, como veremos.
Aimeleque também não é nenhum tolo. Quando vê Davi, vai tremendo ao seu encontro (compare com 16:1-5). Em especial, ele fica perturbado por vê-lo chegando sozinho, e o questiona sobre isso. Davi foi feito comandante de mil homens por Saul. Se estiver vindo em missão oficial (como o fez inúmeras vezes no passado - ver 22:15), então deve estar com seus homens. Onde estão? estranha o sacerdote. E pergunta a Davi por que ele vem sozinho.
Davi já tem uma história pronta para o sacerdote. Não sei se ele acredita ou não, mas acha melhor não pressionar Davi. Ele aceita suas palavras sem pensar muito no assunto. Davi acredita que, se mantiver Aimeleque na ignorância, certamente Saul não lhe fará mal. Ele está errado. Davi lhe diz que está a serviço do rei, e que ele o enviou em missão secreta, que não pode ser descrita. Davi diz que não está sozinho; que seus homens estão escondidos a pouca distância. Todo esse mistério dá um ar de importância à missão, ou, pelo menos, Davi assim espera.
Agora Davi dá a razão de sua visita: ele precisa de mantimentos. Continuando a encenação, ele diz a Aimeleque que precisa de pão. O único pão que o sacerdote tem às mãos é pão sagrado, pão da proposição, que geralmente é comido só pelos sacerdotes. Se Davi e seus homens não estiverem cerimonialmente impuros por terem tido relações sexuais com mulheres, o sacerdote lhe dará cinco dos pães sagrados. Davi lhe garante que não estão. Se, em condições normais, sempre foi assim, quanto mais agora. O sacerdote lhe dá o pão sagrado, mas enquanto o faz, Doegue, o edomita, observa com grande interesse. Doegue é o maioral dos pastores de Saul, um serviço que Davi cuidaria muito bem. Não muito tempo depois Doegue relata a Saul aquilo que viu, ocasionando a morte de quase todos na cidade de Nobe (ver 22:6-23).
Davi então pede uma espada a Aimeleque. Poucas espadas podem ser encontradas em todo o reino, menos ainda no campo dos sacerdotes. Que necessidade ele tinha de armas? Havia somente uma nas imediações, a espada de Golias, a espada que Davi conseguira com a vitória sobre o gigante filisteu. A espada era uma espécie de troféu, um memorial da vitória que Deus deu a Israel através de Davi. Na verdade, ela pertencia a Davi, portanto o sacerdote a dá a ele de bom grado, sem dúvida estranhando por que ele veio tão despreparado para a batalha. Davi dá a desculpa de que estava com tanta pressa que não teve tempo de pegar sua espada ou outra arma. Isto deve ter produzido um olhar confuso no rosto do sacerdote, à medida que fica cada vez mais difícil acreditar nessa história. Apesar disto, ele lhe dá a espada de Golias, e parece que em seguida Davi parte para Gate.
Levantou-se Davi, naquele dia, e fugiu de diante de Saul, e foi a Aquis, rei de Gate. Porém os servos de Aquis lhe disseram: Este não é Davi, o rei da sua terra? Não é a este que se cantava nas danças, dizendo: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares? Davi guardou estas palavras, considerando-as consigo mesmo, e teve muito medo de Aquis, rei de Gate. Pelo que se contrafez diante deles, em cujas mãos se fingia doido, esgravatava nos postigos das portas e deixava correr saliva pela barba. Então, disse Aquis aos seus servos: Bem vedes que este homem está louco; por que mo trouxestes a mim? Faltam-me a mim doidos, para que trouxésseis este para fazer doidices diante de mim? Há de entrar este na minha casa?
Como professor das Escrituras, ministrei um bom número de seminários em prisões. Sempre existe a possibilidade de ocorrerem alguns problemas. Às vezes pensava no que faria se algum tipo de tumulto irrompesse enquanto estivesse lá dentro. Em alguns casos, preferiria estar atrás daquelas grades, com presidiários crentes, do que do lado de fora, com guardas incrédulos. Estes seminários na prisão ajudaram-me a entender estes incríveis versos finais de I Samuel 21.
É realmente impressionante o que Davi faz. Ele foge de Israel para a terra dos filisteus. Ele troca o povo de Deus pelos inimigos de Deus. Ele procura refúgio com o rei Aquis, com quem antes batalhou. Davi já foi a Gate anteriormente - bem, quase foi. Depois de matar Golias, o campeão filisteu, ele e os israelitas perseguiram os filisteus, matando-os até as cidades de Gate e Ecrom (I Sam. 17:51-52). Agora Davi se aproxima de Gate novamente, mas, desta vez, como um refugiado político pedindo asilo a Aquis.
Davi chega a Gate procurando proteção e abrigo, mas esta é a cidade de Golias (17:23), a quem ele matou. Para tornar as coisas ainda piores, ele está carregando a espada de Golias (versos 8 e 9). Acho que Davi devia estar louco para ir a Gate, mais louco ainda que sua conduta posterior (verso 13). Se estes versos nos dizem alguma coisa é sobre o quanto Saul está decidido a matá-lo. Se Davi é forçado a procurar abrigo entre seus inimigos, o que isto que dizer sobre seu amigo Saul? Esta nada mais é senão outra confirmação da hostilidade (até mesmo da insanidade) de Saul. Realmente a situação é desesperadora!
O autor desta narrativa não está tão interessado em nos dizer sobre a chegada de Davi em Gate, quanto está em descrever sua partida. Quaisquer que sejam as razões de Davi para ir até lá é bastante óbvio que Deus não o quer ali. Deus usa os servos de Aquis para pressioná-lo a tomar Davi como uma séria ameaça à segurança dos filisteus. Tanto aqui quanto nos capítulos 27 a 29, Aquis é apresentado como alguém ingênuo, sem nenhuma astúcia. De certo modo ele toma gosto por Davi. Ele parece muito confiante na submissão dele e no seu valor como aliado. Ele não está disposto a alimentar o pensamento de que Davi ainda é um israelita leal, prestes a assumir o trono de Israel.
Não era incomum que os reis aceitassem refugiados políticos das nações vizinhas (ver, por exemplo, I Reis 11:40; II Reis 25:27-30). Se lhes fosse dado abrigo, poderiam se tornar gratos aliados, quando não servos leais. Estes refugiados eram uma espécie de troféu, um testemunho vivo do domínio e poderio militar da nação anfitriã. Aquis é trazido de volta à realidade por seus servos. O rei não se lembra de que Davi foi designado como o próximo rei de Israel? Não se lembra da morte de Golias e da derrota para Israel sob a liderança de Davi? Já se esqueceu da canção sobre Davi, proclamando-o maior que Saul:
Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares?
Aquis é forçado a pensar muito bem na oferta de asilo feita a Davi. Enquanto ele está pensando sobre isso, Davi também está pensando. Ele ouviu o conselho que os servos dão a Aquis. Ele sabe que, se o conselho deles for ouvido, ele pode ser morto. Ele está metido em encrenca, em muita encrenca. Como poderá sair dessa enrascada com vida?
Mas há um jeito. Davi escapa com vida, mas não com dignidade. Se ele chegou como um temível guerreiro, ainda maior que Golias, agora ele parte como um lunático. De alguma forma, ele tem a idéia de agir como louco. Se puder convencer o rei de que perdeu a sanidade, não será mais levado a sério, e pode até ser que o deixem com vida. Assim Davi começa a realizar seu plano. Ele arranha os portões da cidade e deixa a saliva escorrer pelo queixo e pela barba. Ele é patético e repugnante.
Agindo assim ele convence ninguém menos que o rei. De qualquer forma, Aquis não quer realmente matar Davi. Ele parece sinceramente gostar dele. Esta é a sua saída. O rei não precisa levar a sério um cara louco! Não há glória em matar Davi. Não há benefício em mantê-lo em Gate. Gate não é um asilo de loucos! Eles já têm bastante filisteus doidos na cidade; não precisam de um louco israelita também. E assim Aquis expulsa Davi da cidade. A vida dele é poupada e acabam-se as preocupações de seus conselheiros. Esta, ao que parece, é uma situação vantajosa para os dois lados.
Davi retirou-se dali e se refugiou na caverna de Adulão; quando ouviram isso seus irmãos e toda a casa de seu pai, desceram ali para ter com ele. Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens.
Davi retorna ao território de Judá, mas não muito distante da fronteira de Israel com a Filistia. Ele se esconde na caverna de Adulão. A localização de Adulão não é exata, mas parece ter se sido há algumas milhas a leste de Gate, na direção de Belém e Jerusalém. Parece que Davi encontrou um esconderijo isolado e seguro, longe o suficiente de Gate e não muito perto de Saul.
Davi parece estar sozinho, até agora. Mas, quando se esconde na caverna de Adulão, uma porção de gente começa a chegar esperando juntar-se a ele. Os primeiros a ouvir sobre seu paradeiro parecem ser os de sua família, que se unem a ele na caverna. Eles devem sentir que, uma vez que Davi é visto como inimigo de Saul, eles também não estão seguros. Parece que é uma suposição acertada, com base no destino dos sacerdotes (ver capítulo 22). Outros os seguem, aqueles que estão em perigo, em dívida, ou não são a favor de Saul. Eles vêm a Davi como seu novo líder. Será que estes homens, como os discípulos do Senhor, esperam um novo rei e um novo reino que derrubará o antigo? Aqueles que se juntam a Davi durante sua estadia na caverna chegam aproximadamente a 400 homens.
Dali passou Davi a Mispa de Moabe e disse ao seu rei: Deixa estar meu pai e minha mãe convosco, até que eu saiba o que Deus há de fazer de mim. Trouxe-os perante o rei de Moabe, e com este moraram por todo o tempo que Davi esteve neste lugar seguro. Porém o profeta Gade disse a Davi: Não fiques neste lugar seguro; vai e entra na terra de Judá. Então, Davi saiu e foi para o bosque de Herete.
Da caverna abandonada, ou de seu famoso esconderijo, Davi vai para Mispa de Moabe procurar um lugar de refúgio para seus pais já idosos (ver I Sam. 17:12). Eles não estão seguros em Belém, pois Saul pode facilmente entrar em contato com eles, e com Davi através deles. Tampouco podem seguir o ritmo de Davi e dos outros que estão com ele, mudando-se rapidamente de um lugar para outro no deserto. Eles não são forjados para a vida de fugitivos. Assim Davi procura um lugar seguro para eles em Moabe. Você deve se lembrar que Rute, a bisavó de Davi, era moabita (ver Rute 1:4; 4:13-17). Isto pode ter disposto o rei de Moabe a atender ao pedido de Davi. Também parece colocar os seus pais fora de perigo durante os anos em que ele foge de Saul.
Enquanto Davi se esconde na fortaleza de Moabe, o profeta Gade chega com um recado de Deus para ele. Ele não deve continuar se escondendo ali. Deve partir e retornar ao território de Judá. Davi obedece à ordem do profeta, ainda que possa estranhar a razão para retornar a Judá em vez de ficar em Moabe. Quando chegarmos ao capítulo 26, Davi saberá o porquê e nos dirá (e a Saul). Davi volta para Judá, escondendo-se no bosque de Herete, uma espécie de Robin Hood antigo.
Uma coisa evidente nesta passagem das Escrituras é a verdade das palavras escritas pelo apóstolo Tiago no Novo Testamento:
Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou, com instância, para que não chovesse sobre a terra, e, por três anos e seis meses, não choveu. (Tg. 5:17)
Muitos gostam de pensar em Davi como um homem de verdade. Creio que nosso texto o retrata como um homem de verdade. Nem sempre ele pensa ou faz algo espiritual. Ele tem um coração segundo o coração de Deus, mas também tem pés de barro. Davi procura refúgio com Aimeleque, contudo, reconhece que estava errado. Ele admite ser o responsável pelas mortes dos sacerdotes e de suas famílias (22:22). Ele foge para a Filistia, procurando abrigo com seus inimigos, em vez de procurá-lo em Deus. Então foge para Moabe, onde um profeta precisa lhe dizer para ir para casa. Davi não faz nada certo. Ele é um homem de verdade, não uma caricatura, e não uma lenda criada pela imaginação de algum escritor. Muitas vezes, é por causa das falhas de Davi que somos encorajados e temos esperança, pois ele é um homem semelhante a nós. Deus nos trata graciosamente como tratou Davi.
Alguns poderiam facilmente passar pelo nosso texto sem dar uma segunda olhada. Para um olhar destreinado, parece que Davi tem muita sorte, pelo menos em duas ocasiões. Primeiro ele consegue fugir para Nobe onde não há pão, exceto aquele que é reservado aos sacerdotes. Aimeleque faz uma exceção e lhe dá um pouco desse pão. Segundo, Davi foge para o território filisteu carregando a espada de Golias, achando-se na cidade do gigante. Ele parece marcado para morrer, mas sua fingida loucura lhe consegue uma escolta prá fora da cidade. Como pode ser um cara de sorte?
Outros textos da Escritura deixam claro que isto não é sorte, nem que a libertação de Davi é conseqüência desse ardil. Esta libertação é divina. De fato, logo veremos (capítulo 22) que, enquanto Davi foge de Nobe para Gate, os sacerdotes e suas famílias não têm tanta sorte. O véu é levantado para nós nos Salmos. O cenário histórico do Salmo 52 é o relato de Doegue, que viu Davi em Nobe, para Saul. Os Salmos 34 e 56 são escritos durante a estadia de Davi em Gate. Os Salmos 57 e 142 são escritos enquanto Davi se esconde na caverna. Estes Salmos são as reflexões e considerações de Davi sobre o que realmente aconteceu em nosso texto. Vamos fazer uma pausa para meditar brevemente em algumas lições que os Salmos nos mostram.
(1) A Libertação é Divina. Deus é o Único que salva. Conseqüentemente, é o Único a quem devemos clamar por libertação (Sl. 34:4-7; 57:1-3; 142). Ele é também o Único a quem devemos louvar por nos libertar. Nem sempre pode parecer que Deus seja aquele que liberta, mas todas as libertações são Dele. Pelas aparências, alguns não veriam Deus como o Libertador de Davi quando Ele poupa sua vida em Gate, mas o Salmo 34 deixa muito claro que a libertação de Davi vem de Deus.
(2) Deus é o nosso Libertador daqueles que procuram a nossa destruição (Sl. 56:1-7; 57:4-6). Davi vê sua destruição como intento de homens vis e Deus como o Único que livra os homens das suas mãos.
(3) A libertação divina é dada àqueles que amam a Deus e confiam Nele, e que clamam a Ele por sua salvação (Sl. 56:3-4, 9-11; 57:1-3; 142:1-2). Deus cuida de Seus amados e, desta forma, protege aqueles que procuram refúgio Nele. Ele liberta os que O temem e que clamam a Ele por sua salvação.
(4) A libertação de Deus não é algo merecido, é um presente de Sua graça (Sl. 57:1). A libertação divina não é concedida pelos méritos dos homens, mas porque Deus é gracioso e misericordioso. Ele é movido por compaixão pelas nossas aflições (Sl.17-18; 56:8). Sua libertação muitas vezes resulta das conseqüências de nossas tolices e pecados.
(5) Deus livra os homens para que Lhe sejam gratos, para que O louvem e para que Lhe dêem glória (Sl. 56:12; 57:5, 8, 9, 11; 142:7). Quando Deus livra os homens de suas aflições, espera-se que eles O agradeçam e O louvem por Sua bondade, e, desta forma, O glorifiquem publicamente. Assim, nossa libertação divinamente operada não é somente para o nosso bem, mas para a glória de Deus.
(6) Deus também liberta os homens para que aprendam mais sobre Ele e instruam outros naquilo que aprenderam (Sl. 34:8-14). Creio que Davi escreve sobre o temor de Deus no Salmo 34 porque aprendeu muito sobre temor. Primeiramente Davi teme aos homens. Esta parece ser a razão para fugir para Gate. Ele teme Saul. Depois, parece temer os filisteus. Davi aprende que Deus lança fora os medos e dessa forma aprendemos a temer a Deus em vez dos homens. Este temor de Deus nos ensina a refrear a língua do mal e os lábios de falar dolosamente (Sl. 34:13). Creio que Davi reconhece a importância de dizer a verdade, e quando ele vem a temer a Deus mais do que aos homens, ele fala a verdade e incentiva os outros a fazerem o mesmo. A libertação de Davi o capacita a instruir outros naquilo que ele aprendeu.
(7) Deus livra, mesmo quando parece que a libertação é operada por outros meios (34). Quem pensaria que a falsa loucura de Davi e sua expulsão de Gate venham das mãos de Deus? Não é por sorte, ou porque ele age com rapidez? Não na cabeça de Davi. É Deus quem o liberta de Gate, mesmo quando os meios empregados por Ele sejam a falsa loucura de Davi. (Não foi Deus quem plantou a idéia da encenação em sua cabeça?)
(8) Deus opera através de meios que parecem normais e talvez até desagradavelmente humanos (Sl. 34). Você já assistiu a algum filme que procurava retratar um tema religioso ou espiritual? Mesmo quando estou longe da televisão, ouvindo apenas o som, posso dizer quando uma cena espiritual está ocorrendo. Quase sempre há um fundo musical celestial. Não sei como descrevê-lo, mas é uma música com uma auréola audível. É música que associamos a coisas celestes ou espirituais (geralmente são usados violinos e harpas para surtir o efeito desejado).
Você se lembra de ler o aviso colocado junto à estrada antes de chegar a um trecho em obras ou em construção? Ele diz Devagar, Homens Trabalhando. Creio que este é o jeito que muitos cristãos esperam que Deus aja. Quando Deus está livrando alguém na Bíblia, esperamos realmente ver um aviso que diz Devagar, Deus Trabalhando. Queremos ouvir algum tipo de música celestial tocando ao fundo, ou algo que nos diga que Deus está presente. Mas estes sinais externos não são evidentes na época em que os irmãos de José o vendem como escravo. Não são evidentes quando Satanás torna miserável a vida de Jó, pelo menos para ele. Tampouco são evidentes quando Davi está babando e arranhando os portões de Gate. Mas Deus está em ação, mesmo quando isto não é aparente aos nossos olhos. Posteriormente no livro de II Samuel veremos que Salomão se torna herdeiro do trono de seu pai (Davi), apesar de ter nascido de Bate-Seba, aquela que foi mulher de Urias. O templo será construído no terreno que Davi comprou porque deliberadamente fez o censo de Israel, sabendo que estava errado. Foi na eira de Araúna, o jebuseu, que Davi ofereceu sacrifício quando Deus cessou a praga (II Samuel 24). Deus está em ação quando não esperamos ver Suas mãos.
(9) A libertação de Deus muitas vezes ocorre em circunstâncias nas quais escapar parece impossível (142:4). Deus Se deleita em deixar que nos envolvamos em situações impossíveis, para que, quando Ele nos salve, fique bem claro que foi Ele que o fez. Davi, em seus salmos, faz um retrato desolador de sua condição, e então prossegue descrevendo a maneira como Deus o resgata.
(10) Deus nos livra de formas que não são lisonjeiras, mas humilhantes. Às vezes as cenas do telejornal mostram o resgate de alguém da forma mais desfavorável. Pode ser uma mulher com os cabelos desgrenhados, o rosto sujo e com roupas em condições deploráveis. Ninguém gosta de ser salvo deste jeito ou nestas condições, mas se tiver de escolher entre ser resgatado de forma humilhante ou não ser resgatado de jeito nenhum, a decisão é óbvia. Deus salva Davi de uma forma que o deixa muito humilhado. Deus não pretende levantar o moral de Davi; Ele pretende salvá-lo de forma que o humilhe e o faça voltar-se para Ele para ser liberto. É estranho, mas é verdade, que Deus nos humilhe primeiro, para que percebamos nossa situação desesperadora, e para que humildemente clamemos a Ele por socorro.
Ao meditar sobre a Bíblia, percebo quantas vezes Deus salva ou livra os Seus da destruição, mas de forma muito humilhante. Penso em Abrão, que fugiu para o Egito procurando socorro no tempo da fome. Fazendo isto, ele colocou não apenas sua vida em risco, mas também a promessa de Deus de que ele e Sarai teriam um filho, através do qual viriam as bênçãos sobre si e sobre o mundo inteiro (ver Gn. 12:1-3 e ss). Abrão mentiu sobre Sarai, dizendo que ela era sua irmã em vez de sua esposa e, como conseqüência, ela foi levada para o harém de Faraó. Deus livrou Abrão e Sarai, mas de um jeito que foi humilhante. Faraó os expulsou de sua terra, fornecendo-lhes o que parece ser uma escolta armada para fora da cidade (ver Gn. 12:17-20).
Uma das libertações mais humilhantes (além desta de Davi) é a de Naamã. Talvez você se lembre de que Naamã, o comandante do exército sírio, também era leproso. Através de uma jovem escrava israelita, Naamã fica sabendo que há um profeta em Israel que pode curá-lo. Mas, quando chega à porta do profeta, este não o recebe pessoalmente, mas manda um servo que o instrui a se banhar sete vezes no rio Jordão. Naamã fica furioso, porque não é tratado como um alto oficial. Finalmente, depois de receber um sábio conselho de seu servo, o comandante sírio obedece e fica livre de sua enfermidade. Deus o salva, mas de maneira que o humilhe (ver II Reis 5).
(11) A libertação de Deus é mais do que temporal, mais do que apenas física; ela inclui a libertação da condenação eterna (Sl. 34:21-22; 56:13). É interessante que no Novo Testamento a palavra que muitas vezes é traduzida por salvo é usada com sentido muito mais amplo do que apenas salvação espiritual. É usada como cura física e outros atos de livramento. Em nosso texto, Deus salva a vida de Davi, mas, em seus salmos, ele informa aos leitores que esta salvação temporal é um protótipo da salvação eterna que Deus também realiza. O Deus que nos salva de nossas aflições e de nossos inimigos, é o mesmo Deus que nos salva de Sua ira eterna.
A libertação de Davi tem ligação direta com o Novo Testamento e, particularmente com nosso Senhor Jesus Cristo. Considere o uso de nosso texto pelo Senhor, em Mateus 12:
Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes. Porque o Filho do Homem é senhor do sábado. (Mateus 12:1-8)
Os fariseus ficam muito perturbados por aquilo que consideram violações do Sábado, feitas por nosso Senhor e Seus discípulos. Quando os discípulos (não Jesus, observe) colhem algumas espigas e as comem no Sábado, os fariseus vêem isto como flagrante violação da lei. Afinal, isto é trabalho, pensam eles. Portanto, fazem questão de confrontar Jesus com este exemplo de Seu desrespeito ao Sábado.
Jesus vira a mesa sobre os fariseus. Em essência, eles persistem em Lhe perguntar: Quem você pensa que é? Como ousa violar o Sábado curando e permitindo que Seus discípulos colham espigas no dia santo? Jesus responde a este desafio de várias formas. Ele mostra que Seus oponentes são hipócritas, porque não guardam o Sábado da mesma forma que exigem que Ele o faça (eles trabalharão para tirar um boi de uma cova). Tampouco é errado fazer o bem no Sábado. Eles falham na compreensão de que o Sábado foi criado para o benefício do homem, não o homem para o Sábado. Outra resposta de Jesus é que Ele trabalha no Sábado para imitar Seu Pai, que também trabalha, salvando os homens.
Mas aqui Jesus faz uma abordagem diferente. Jesus volta ao nosso texto, relembrando a Seus oponentes que Davi comeu pão sagrado, mesmo não sendo sacerdote. Como é que eles não se preocupam com isto? A resposta, Jesus sugere, é: quem são vocês para fazer qualquer distinção. Eles não protestam por Davi ter comido o pão sagrado porque ele é Davi. Em breve irá se tornar o rei de Israel. Isto coloca toda a questão sob uma luz inteiramente diferente. O mesmo é verdade para os sacerdotes do templo. Eles trabalham no sábado, mas não são condenados por isso, e com razão, pois são sacerdotes.
Um das razões pelas quais Jesus não se sente obrigado a seguir as regras dos Fariseus a respeito do Sábado é porque Ele é o Filho de Deus. Ele é o Messias de Deus, Aquele a quem Deus designou para governar sobre toda a terra como Rei. Se Davi pode comer o pão sagrado porque ele é quem é, e se os sacerdotes podem violar o Sábado porque são quem são, então, certamente, nosso Senhor não deve ser desafiado da maneira como os Fariseus estão fazendo. Quem são vocês para fazer qualquer distinção. Este é o princípio ilustrado em nosso texto, como indicado por nosso Senhor.
Quem são vocês para fazer qualquer distinção. Sem Cristo, somos alienados e estranhos ao Reino de Deus. Somos inimigos de Deus. Somos pecadores, condenados com razão à morte e à danação eterna. Em Cristo, somos perdoados, purificados, justificados e destinados à vida eterna. Davi é salvo muitas vezes em sua vida. A libertação de nosso texto é realmente a mais humilhante. Não é do jeito que ele preferia, mas é liberto da morte e de seus inimigos. É uma libertação humilhante, mas é divina. Por isso, Davi dá glória a Deus.
Como Davi, estamos condenados à morte. Sem a graça divina, somos tão bons quanto os mortos. Nosso problema está no nosso próprio pecado, que nos torna inaceitáveis à vista de Deus. Ele nos coloca debaixo da condenação divina e da danação eterna. Deus, em Sua misericórdia nos deu um meio de escape. Os meios de libertação de Deus não nos lisonjeiam, mas sempre glorificam a Ele. Ele enviou Seu Filho à terra como homem (o perfeito Deus-Homem), para viver uma vida perfeita e morrer como inocente como pagamento por nossos pecados. A cruz não foi um acontecimento para inflar o ego. Foi a morte horrível de nosso Senhor em favor de pecadores culpados. Mas Deus levantou Jesus da morte, glorificando-O e aqueles que, pela fé, estão Nele. É pela fé em Jesus Cristo que pecadores indignos são libertados da morte eterna, para a glória de Deus. Você já recebeu o perdão de seus pecados, este presente da justiça de Deus em Cristo? Tudo o que precisa fazer é reconhecer seu pecado e confiar em Jesus como único meio de Deus para sua libertação. Eu o incentivo a fazer isto hoje.
Um amigo conta a história de um senhor que se queixava daquelas coisas que aparecem com a idade. “Não me incomoda ter que tirar os óculos à noite. Também não me incomoda ter que tirar meus dentes para dormir. E também meu aparelho auditivo, que coloco no criado-mudo ao lado da cama. Não sinto falta de uma boa visão, de bons dentes, nem de um bom ouvido - mas de uma coisa sinto falta: da minha memória!”
Alguns de nós que ainda não chegaram a este ponto poderiam estranhar se começassem a perder a memória. Se alguém devia estar “perdendo a memória”, esse alguém é o rei Saul. A essa altura de sua vida ele já estava com alguns problemas. Ele ficou encantado quando encontrou Davi para tocar harpa e acalmar seu espírito atribulado (16:14-23). Também se regozijou grandemente quando Davi enfrentou Golias e o venceu (capítulo 17, ver também 19:5). Mas, quando as mulheres israelitas começaram a celebrar, dando a Davi maior honra do que a ele, o rei começou a ver Davi com desconfiança (18:6-9). Rapidamente dominado pelo ciúme, tentou matá-lo de forma a não ficar mal diante do povo (18:10-29). Pouco tempo depois, ordenou a seus servos que o matassem (19:1). Jônatas o dissuadiu de seus planos por algum tempo (19:1-7), mas isto não durou muito. Logo Saul estava arremessando sua lança em seu próprio filho (20:33). Deus poupou a vida de Davi de várias formas, mas, finalmente, foi necessário que ele fugisse da presença do rei. Primeiro ele fugiu para Aimeleque, o sumo sacerdote, que consultou o Senhor para ele (22:10, 15) e lhe deu um pouco do pão sagrado, junto com a espada de Golias (21:1-9). Nosso texto descreve as conseqüências que se seguem a este episódio.
Quando chegamos ao capítulo 22, vemos um rei que perdeu totalmente o juízo, mentalmente falando. Em seu estado, Saul seria admitido em qualquer hospício. Seus ataques de depressão e de ciúmes parecem cada vez mais intensos e mais freqüentes. Agora parece que seu estado é de constante medo e ciúmes, com breves lampejos de sanidade. Em nosso texto, Saul chega ao auge de sua depressão, pois seu medo de Davi o leva a matar pessoas inocentes. Sua fúria ciumenta o faz ordenar a morte de todos os sacerdotes, algo quase inconcebível.
Nas instruções dadas anteriormente a Israel e seu rei, sobre seu papel e responsabilidade no governo da nação, encontramos estas instruções acerca dos sacerdotes:
“Quando alguma coisa te for difícil demais em juízo, entre caso e caso de homicídio, e de demanda e demanda, e de violência e violência, e outras questões de litígio, então, te levantarás e subirás ao lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher. Virás aos levitas sacerdotes e ao juiz que houver naqueles dias; inquirirás, e te anunciarão a sentença do juízo. E farás segundo o mandado da palavra que te anunciarem do lugar que o SENHOR escolher; e terás cuidado de fazer consoante tudo o que te ensinarem. Segundo o mandado da lei que te ensinarem e de acordo com o juízo que te disserem, farás; da sentença que te anunciarem não te desviarás, nem para a direita nem para a esquerda. O homem, pois, que se houver soberbamente, não dando ouvidos ao sacerdote, que está ali para servir ao SENHOR, teu Deus, nem ao juiz, esse morrerá; e eliminarás o mal de Israel, para que todo o povo o ouça, tema e jamais se ensoberbeça.” (Dt. 17:8-13)
O rei Saul está prestes a matar não somente um sacerdote, mas a executar todos eles e suas famílias - a despeito das palavras dadas por Deus sobre o respeito e obediência aos sacerdotes. Vamos prestar atenção ao nosso texto para ver como Saul chegou tão baixo em sua vida e em sua liderança, enquanto vemos também o que Deus tem a nos ensinar.
“Porém o profeta Gade disse a Davi: Não fiques neste lugar seguro; vai e entra na terra de Judá. Então, Davi saiu e foi para o bosque de Herete.”
Parece que, quando Davi vai até Aimeleque, o sumo sacerdote, uma de suas intenções é obter orientação divina. Pelo menos é isso o que Doegue diz a Saul, e Aimeleque parece confirmar (22:10; 15). Uma vez que Davi oculta o fato de estar fugindo de Saul, não se sabe qual orientação ele recebeu de Aimeleque. No entanto, sabemos que depois disto ele foge do país. Primeiro ele vai a Gate, de onde é expulso por agir como doido (21:10-15); depois para a caverna de Adulão (22:1-2), e então para Moabe (22:3-4), onde deixa seu pai e sua mãe, talvez se escondendo num lugar seguro.
Como Melquisedeque em Gênesis 14, o profeta Gade surge do nada e instrui Davi a não ficar nesse lugar seguro, mas a entrar no território de Judá. Se entendo corretamente, ele diz a Davi para parar de se esconder fora do território de Israel. Davi deve encontrar abrigo em Israel, especificamente no território de sua própria tribo, Judá. Afinal, Judá é a primeira tribo a reconhecer Davi como rei (II Samuel 2:4). Davi obedece, fazendo do bosque de Herete o seu esconderijo. O lugar exato deste bosque não é muito claro, mas, pela leitura de II Samuel 18:8, é um lugar perigoso, onde Saul e seus homens relutarão em entrar. Este bosque parece ser para Davi e seus homens o que foi a floresta de Sherwood para Robin Hood e seu bando.
“Ouviu Saul que Davi e os homens que o acompanhavam foram descobertos. Achando-se Saul em Gibeá, debaixo de um arvoredo, numa colina, tendo na mão a sua lança, e todos os seus servos com ele, disse a todos estes: Ouvi, peço-vos, filhos de Benjamim, dar-vos-á também o filho de Jessé, a todos vós, terras e vinhas e vos fará a todos chefes de milhares e chefes de centenas, para que todos tenhais conspirado contra mim? E ninguém houve que me desse aviso de que meu filho fez aliança com o filho de Jessé; e nenhum dentre vós há que se doa por mim e me participe que meu filho contra mim instigou a meu servo, para me armar ciladas, como se vê neste dia. Então, respondeu Doegue, o edomita, que também estava com os servos de Saul, e disse: Vi o filho de Jessé chegar a Nobe, a Aimeleque, filho de Aitube, e como Aimeleque, a pedido dele, consultou o SENHOR, e lhe fez provisões, e lhe deu a espada de Golias, o filisteu.”
Confesso que às vezes me deixo levar pela imaginação. Quando leio que Saul está sentado debaixo de uma árvore com a lança na mão, não consigo deixar de pensar quais os tipos de arma que ele teria se vivesse hoje em dia. Consegue imaginá-lo com um par de pistolas automáticas no coldre, uma espingarda dupla de cano curto e uma uzi nas mãos? Este cara é paranóico. Ele parece jamais estar sem sua lança ou o que parece ser uma legião de guarda-costas.
Ele parece achar que o mundo todo está contra ele e a favor de Davi. O termo conspirastes aparece duas vezes em nosso texto (nos versos 8 e 13). Nos versos 6 a 10, Saul se comporta como uma espécie de Rodney Dangerfield, que lamenta e choraminga porque ninguém “o respeita”. Literalmente ele acusa todo mundo de fazer parte dum plano sinistro contra ele, quando, na realidade, Deus é quem está tirando seu reino, devido ao seu próprio pecado (ver 13:8-14; 15:1-31). Tendo em vista o sentimento de culpa lançado por Saul sobre seus servos, Doegue o informa sobre a visita de Davi a Aimeleque e a inocente concessão deste ao pedido de Davi.
Não é nenhuma surpresa que Saul acuse Davi de conspirar contra ele. Afinal, é isso que ele pensa. Mas Saul não tem razão para acusá-lo. Davi não está “armando alguma cilada”, como ele afirma (22:8;13), esperando o momento oportuno para por fim à sua vida. Davi se esconde procurando se esquivar de Saul e escapar de suas tramas para matá-lo.
O que é espantoso nestes versos são as acusações feitas por Saul contra seu próprio filho, Jônatas. Devido à aliança de Jônatas com Davi, não ficaríamos surpresos se lêssemos que Saul o acuse de ser enganado, de ser recrutado por Davi, para se juntar a ele numa conspiração. Mas Saul acusa Jônatas de corromper Davi, de instigá-lo contra ele (22:8). Esta acusação tem um peso impressionante. A “conspiração” contra ele, se investigada a fundo, tem sua origem em Jônatas, não em Davi. Saul perdeu o juízo.
Mas a teoria da conspiração vai ainda mais além. Saul não acusa somente Jônatas e Davi de conspirarem contra ele, ele também acusa seus servos - todos eles! Saul está rodeado por seus servos enquanto se senta debaixo do arvoredo próximo à sua casa em Gibeá (verso 6). Ele começa por relembrá-los sobre a natureza dos políticos e dos favores decorrentes da vitória e do poder. Como recompensa por sua lealdade a ele, os Benjamitas receberam propriedades e autoridade como favor político. Será que eles pensam que, quando Davi se tornar rei, eles desfrutarão desses mesmos privilégios? É claro que não. Agora o ponto alto do momento - Saul faz com que se lembrem que eles são seus devedores. Ele quer retribuição - quer que o informem sobre o paradeiro de Davi. Ele diz que, ficando silêncio e ocultando qualquer informação sobre Davi e seu paradeiro, eles estão se unindo a ele na conspiração. Doegue, o edomita, acha que esta é uma ótima razão para transmitir a Saul aquilo que viu em Nobe.
Doegue acabou de ver Davi. Enquanto estava em Nobe, ele o viu chegar e tratar com o sumo sacerdote, Aimeleque. O sumo sacerdote consultou o Senhor para ele e também lhe deu do pão sagrado e a espada de Golias, a qual estivera guardando. Todas estas coisas são verdadeiras, mas o que Doegue não diz (talvez não soubesse) é que Davi não disse a Aimeleque que estava fugindo de Saul. Ele não revelou ao sumo sacerdote qualquer coisa que o tornasse um conspirador contra Saul. Mas Saul não está interessado em saber a verdade. Ele está cego de ciúmes e do desejo de se livrar de qualquer um que ache que é uma ameaça ao seu trono.
“Então, o rei mandou chamar Aimeleque, sacerdote, filho de Aitube, e toda a casa de seu pai, a saber, os sacerdotes que estavam em Nobe; todos eles vieram ao rei. Disse Saul: Ouve, peço-te, filho de Aitube! Este respondeu: Eis-me aqui, meu senhor! Então, lhe disse Saul: Por que conspirastes contra mim, tu e o filho de Jessé? Pois lhe deste pão e espada e consultaste a favor dele a Deus, para que se levantasse contra mim e me armasse ciladas, como hoje se vê. Respondeu Aimeleque ao rei e disse: E quem, entre todos os teus servos, há tão fiel como Davi, o genro do rei, chefe da tua guarda pessoal e honrado na tua casa? Acaso, é de hoje que consulto a Deus em seu favor? Não! Jamais impute o rei coisa nenhuma a seu servo, nem a toda a casa de meu pai, pois o teu servo de nada soube de tudo isso, nem muito nem pouco. Respondeu o rei: Aimeleque, morrerás, tu e toda a casa de teu pai. Disse o rei aos da guarda, que estavam com ele: Volvei e matai os sacerdotes do SENHOR, porque também estão de mãos dadas com Davi e porque souberam que fugiu e não mo fizeram saber. Porém os servos do rei não quiseram estender as mãos contra os sacerdotes do SENHOR. Então, disse o rei a Doegue: Volve-te e arremete contra os sacerdotes. Então, se virou Doegue, o edomita, e arremeteu contra os sacerdotes, e matou, naquele dia, oitenta e cinco homens que vestiam estola sacerdotal de linho. Também a Nobe, cidade destes sacerdotes, passou a fio de espada: homens, e mulheres, e meninos, e crianças de peito, e bois, e jumentos, e ovelhas. Porém dos filhos de Aimeleque, filho de Aitube, um só, cujo nome era Abiatar, salvou-se e fugiu para Davi; e lhe anunciou que Saul tinha matado os sacerdotes do SENHOR. Então, Davi disse a Abiatar: Bem sabia eu, naquele dia, que, estando ali Doegue, o edomita, não deixaria de o dizer a Saul. Fui a causa da morte de todas as pessoas da casa de teu pai. Fica comigo, não temas, porque quem procura a minha morte procura também a tua; estarás a salvo comigo.”
Depois de Saul intimidar seus servos, Doegue revela que Davi foi até Aimeleque, o sumo sacerdote, o qual consultou o Senhor para ele e lhe deu do pão sagrado e a espada de Golias. Saul ouviu tudo o que achava necessário saber. Em sua cabeça, não só Aimeleque, mas todos os sacerdotes fazem parte da “conspiração” contra ele. Aimeleque e os sacerdotes são convocados para comparecer diante dele. Duvido que você e eu possamos sequer imaginar o clima nefasto deste encontro. Vivemos num país onde o Presidente pode ser questionado, ter oposição e até mesmo ser removido do cargo. Quando ele fala, seus oponentes podem vaiá-lo sem medo. Não é assim na corte de Saul.
Recentemente li um artigo que descrevia o terror habilmente produzido por Joseph Stalin no coração de seus ministros.
Os jantares de Stalin no Kremlin duravam a noite toda. Ele se sentava numa longa mesa e forçava seus ministros e camaradas a beber, hora após hora, enquanto os enredava, sondava, bajulava e aterrorizava. De madrugada, quando suas mentes já estavam entorpecidas de medo, vodca e confusão, o NKVD poderia levar um ou dois deles, sem nenhuma explicação, para ser eliminado. Era um tipo de estudo de laboratório sobre paranóia: para toda ação existe uma reação contrária de mesma força e intensidade (no caso do Kremlin, ligeiramente desiguais). Paranóia induz à paranóia. Stalin desviava o medo através do álcool, e depois presidia um jogo psicológico mútuo que terminava em morte.
Uma coisa é ter um louco no poder, a quem você pode refrear e até mesmo destituir. Outra é ter um louco como ditador, alguém como Stalin, Nero ou Hitler. Tais homens detêm o poder absoluto. Eles podem fazer o que quiserem, mesmo que isto seja irracional e insano, sem que alguém que os detenha. Assim é com Saul. Saul está louco e não tem ninguém que o detenha. Saul imagina que Davi, Jônatas e até mesmo seus servos sejam conspiradores? Quem há para corrigi-lo? Agora, esse doido tem uma audiência com todo o sacerdócio. Na ocasião, não serão os sacerdotes que julgarão Saul, mas ele os julgará. Podemos apenas tentar imaginar o clima de terror desse momento, a terrível sensação de medo que devem sentir todos os que estão diante de Saul.
Saul mostra seu desdém por Davi e Aimeleque pela forma como se dirige a eles. Ele os chama pelo nome de seus pais: “o filho de Jessé” (verso 8) e “o filho de Aitube” (verso 12). No pecado descrito no capítulo 13, quando Saul oferece o holocausto, ele se faz igual a Samuel. Aqui, ao tratar com Aimeleque e os outros sacerdotes, Saul se faz superior a eles. Ele não busca a verdade, mas rapidamente condena os sacerdotes como traidores do trono. Ele não pergunta se Aimeleque o traiu, mas por que (verso 13).
Aimeleque responde com extraordinário equilíbrio. Ele não aproveita a oportunidade para culpar Davi por tê-lo enganado, o que Davi realmente fez. Pelo contrário, Aimeleque permanece diante de Saul, falando a favor de Davi, e relembrando ao rei que Davi não é apenas seu servo mais leal, mas também um homem honrado pelo povo, a quem Saul promoveu a posições de autoridade e poder. Se nada disso importa, pelo menos Saul deve se lembrar de que Davi é seu genro (verso 14).
Aimeleque também fala em sua defesa e a favor de todos os sacerdotes convocados por Saul.
Aimeleque realmente ajudou Davi ao consultar o Senhor para ele e ao lhe dar do pão sagrado e a espada de Golias. Ele não o ajudou intencionalmente em qualquer ato de conspiração. E o fato de tê-lo ajudado não é nada de novo ou inédito, muito menos inadequado. Certamente não foi a primeira vez que Davi lhe pediu para consultar o Senhor. Por isso, podemos deduzir que Davi, com freqüência, procurava orientação divina ao sair em missão para o rei. Saul não deveria ver esta visita de Davi, ou a concessão de Aimeleque, como algo extraordinário ou proibido.
Aimeleque está com a razão e Saul fica furioso. O rei pronuncia a sentença de morte, não apenas para Aimeleque, mas para todos os sacerdotes que reuniu. Parece que esta era sua intenção desde o princípio. Ele ordena aos guardas de prontidão que matem os sacerdotes. Não importa o quanto estes homens temam Saul, eles não estão dispostos a matar os sacerdotes. Deve ter sido um momento muito doloroso, quando todos ficam imóveis, se recusando a cumprir as ordens de Saul.
Mas Saul não será demovido de sua decisão. Ele se vira para Doegue, o edomita, e lhe ordena que destrua os sacerdotes, o que ele faz. Agora Saul irá matar o “rei dos judeus” (Davi) e qualquer um que o apóie (como os sacerdotes), e pedirá a ajuda dos gentios se for necessário. Doegue mata 85 sacerdotes naquele dia, mas isto não é o bastante para Saul. Ele vai, então, a Nobe, a cidade dos sacerdotes, e continua a aniquilar as famílias e até mesmo o gado dos sacerdotes. É impressionante! Saul, aquele que não teve zelo para matar os amalequitas, mesmo tendo sido ordenado por Deus, agora é zeloso para matar os sacerdotes e seu gado, embora proibido por Deus. Até onde vai a decadência de Saul?
Apenas um sacerdote, Abiatar, sobrevive e corre até Davi para lhe contar o que Saul fez aos sacerdotes. Davi assume total responsabilidade, admitindo que vira Doegue em Nobe, e que sabia que esse homem provavelmente falaria a Saul sobre sua visita. Não há nada que Davi possa fazer por aqueles que foram assassinados, mas ele oferece refúgio a Abiatar.
“Foi dito a Davi: Eis que os filisteus pelejam contra Queila e saqueiam as eiras. Consultou Davi ao SENHOR, dizendo: Irei eu e ferirei estes filisteus? Respondeu o SENHOR a Davi: Vai, e ferirás os filisteus, e livrarás Queila. Porém os homens de Davi lhe disseram: Temos medo aqui em Judá, quanto mais indo a Queila contra as tropas dos filisteus. Então, Davi tornou a consultar o SENHOR, e o SENHOR lhe respondeu e disse: Dispõe-te, desce a Queila, porque te dou os filisteus nas tuas mãos. Partiu Davi com seus homens a Queila, e pelejou contra os filisteus, e levou todo o gado, e fez grande morticínio entre eles; assim, Davi salvou os moradores de Queila. Sucedeu que, quando Abiatar, filho de Aimeleque, fugiu para Davi, a Queila, desceu com a estola sacerdotal na mão. Foi anunciado a Saul que Davi tinha ido a Queila. Disse Saul: Deus o entregou nas minhas mãos; está encerrado, pois entrou numa cidade de portas e ferrolhos. Então, Saul mandou chamar todo o povo à peleja, para que descessem a Queila e cercassem Davi e os seus homens. Sabedor, porém, Davi de que Saul maquinava o mal contra ele, disse a Abiatar, sacerdote: Traze aqui a estola sacerdotal. Orou Davi: Ó SENHOR, Deus de Israel, teu servo ouviu que Saul, de fato, procura vir a Queila, para destruir a cidade por causa de mim. Entregar-me-ão os homens de Queila nas mãos dele? Descerá Saul, como o teu servo ouviu? Ah! SENHOR, Deus de Israel, faze-o saber ao teu servo. E disse o SENHOR: Descerá. Perguntou-lhe Davi: Entregar-me-ão os homens de Queila, a mim e aos meus servos, nas mãos de Saul? Respondeu o SENHOR: Entregarão. Então, se dispôs Davi com os seus homens, uns seiscentos, saíram de Queila e se foram sem rumo certo. Sendo anunciado a Saul que Davi fugira de Queila, cessou de persegui-lo. Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou nas suas mãos.”
Os servos de Davi lhe trazem a notícia de que Queila está sob o ataque dos filisteus. Na realidade, a responsabilidade de lidar com os filisteus é de Saul (I Sam. 9:16), mas ele está mais interessado em matar israelitas do que em lidar com os invasores filisteus. Numa reação bem mais nobre, Davi se sente na obrigação de ir em socorro de seus irmãos israelitas e procura orientação divina para saber de deve travar, ou não, batalha com os filisteus. O Senhor o instrui a atacá-los e libertar Queila.
Os homens de Davi ficam inquietos com a decisão de enfrentar os filisteus e dizem a ele. Sua apreensão não é muito difícil de entender. Afinal, este pequeno exército de 600 homens (23:13) não é um grupo de soldados altamente treinados, mas um grupo desconjuntado de homens descontentes que fugiram de Saul (22:2). A maioria deles uniu forças a Davi quando ele se escondia na caverna de Adulão. Esta caverna provavelmente ficava em território filisteu, ou bem próximo à fronteira do território de Israel. Dali Davi e seus homens foram para Moabe, onde se esconderam num “lugar seguro” (22:4-5). O profeta Gade disse a Davi para parar de se esconder em território estrangeiro e retornar ao território de sua própria tribo, Judá, o que ele fez, escondendo-se no bosque de Herete (22:5). No terreno denso e difícil desta floresta, os homens de Davi devem se sentir em relativa segurança, fora do alcance de Saul. Mas, quando Davi recebe instrução para lutar com os filisteus em Queila, a questão é totalmente diferente. A aventura agora é bem mais difícil e perigosa. Para lutar com os filisteus eles terão que sair do esconderijo para campo aberto, sabendo que isto os exporá ao ataque das forças de Saul. Uma vez que Queila está localizada a aproximadamente 20 milhas a sudeste de Gate, Davi e seus homens não estarão mais nas montanhas, escondendo-se seguramente na floresta, mas em terras baixas, em campo aberto, onde podem ser vistos pelo exército de Saul e confrontados pelos carros filisteus. Quando contestam a decisão de Davi de salvar o povo de Queila, eles parecem fazê-lo com base num risco bastante elevado. Não é seguro. Seria bem mais seguro se esconder de Saul na floresta do que atacar os filisteus em campo aberto.
Davi ouve as objeções levantadas por seus homens, mas tem intenção de obedecer a Deus, não a homens. Ele “consulta o Senhor” uma segunda vez (23:4) e recebe a mesma resposta, com a garantia de que Deus já lhes deu a vitória. Com esta garantia, Davi e seus homens chegam a Queila e atacam os filisteus, obtendo uma vitória decisiva, livrando os israelitas da derrota e tomando o rebanho dos filisteus (23:5). Como são estranhos os caminhos de Deus. Uma semana antes, qual deles teria pensado que comeria filé mignon do gado filisteu?
Tendo livrado o povo de Queila da derrota para os filisteus, alguns poderiam pensar que este povo seria um dos maiores defensores de Davi. Com toda certeza dariam abrigo a ele e seus homens. No entanto, Saul fica sabendo da presença de Davi em Queila, e convoca todo o Israel para atacar a cidade, certo de que isto resultará na sua captura e de seus homens. Afinal, Queila é uma cidade fortificada. Saul supõe que as “portas e ferrolhos” da cidade não vão impedi-lo de entrar, mas, em vez disto, encerrarão Davi e seus homens lá dentro.
Davi fica sabendo do ataque de Saul e se pergunta se é sábio ficar em Queila. Parece que ele quer evitar sua própria captura, mas ele também está preocupado com o bem-estar do povo da cidade. Ele os livrou dos filisteus só para que o exército de Saul destrua a cidade? Felizmente, quando Abiatar fugiu para se juntar a Davi, levou consigo a estola sacerdotal, o instrumento pelo qual a vontade de Deus poderia ser consultada (23:6). Desejando saber e fazer a vontade de Deus, Davi consulta o Senhor por meio da estola. Ele tem duas perguntas a fazer. Primeira, Saul realmente virá a Queila como ouviu? A sua informação está correta? Segunda, se Saul realmente vier, o povo da cidade trairá Davi e o entregará a Saul?
A resposta às duas perguntas é “Sim”. Repare, no entanto, que a resposta a ambas é hipotética, com base em algumas suposições. Se Davi ficasse em Queila, os homens de Saul viriam e atacariam a cidade. Se Davi ficasse e os homens de Saul viessem e atacassem a cidade, os homens de Queila o entregariam a Saul. Mas, sabendo destas coisas, Davi deixa Queila antes de Saul chegar. Conseqüentemente, Saul, na verdade, não ataca a cidade, nem os homens de Queila entregam Davi a ele. Mas teriam, se Davi tivesse ficado.
A primeira coisa a se notar sobre o questionamento de Davi e a resposta divina é: Deus não apenas sabe todas as coisas que acontecerão, Ele também sabe as que poderiam acontecer, sob quaisquer circunstâncias. Uma coisa é saber o que o futuro reserva. Outra, imensamente maior, é saber o que o futuro poderia reservar sob diferentes circunstâncias. A onisciência de Deus (onisciência = conhecer todas as coisas) é tal que Ele sabe todas as coisas existentes e todas as coisas possíveis. É exatamente assim que Deus pode estar no controle de todas as coisas (soberania de Deus), sem ser responsável pelo pecado dos homens. Por exemplo, Deus sabia que, em dadas circunstâncias, Judas trairia o Senhor Jesus por 30 moedas de prata. A traição de Jesus era uma parte necessária do plano de Deus, e não havia dúvida quanto a isto. A onisciência de Deus tornou tudo possível, sem torná-Lo culpado pelo pecado do homem. A mesma coisa pode ser vista nas palavras de Pedro aos judeus (e gentios) que foram responsáveis pela morte de nosso Senhor na cruz do Calvário:
“Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos.” (Atos 2:22-23)
E assim é que, informado por Deus sobre as conseqüências de ficar em Queila, Davi deixa a cidade com seus 600 seguidores. Ele retorna ao deserto, escondendo-se nos lugares seguros que encontra. Sabendo de sua partida, Saul faz seus homens retornarem e, desta forma, a cidade de Queila é poupada, não apenas dos filisteus, mas também de Saul. Contudo, aqueles que deviam suas vidas a Davi o teriam traído sem piedade. Em tudo isto, Davi também é poupado da ira e do ciúme de Saul, pois Deus não entregaria Seu futuro rei em suas mãos.
Embora muitas lições possam ser extraídas de nosso texto, uma delas parece ser mais importante e estar acima de todas as outras, e pode ser resumida nestas palavras:
Quando o mundo inteiro parece imprevisível e sem sentido e, quando os loucos têm poder para realizar seus planos infames, que resultam no sofrimento e na morte de pessoas inocentes, Deus ainda está no controle. Ainda que não seja aparente em meio aos caos e à confusão, os planos e intentos de Deus estão sendo realizados, mesmo através de loucos que procuram destruir os Seus propósitos e Suas promessas.
Ao longo da história, muitos cristãos têm vivido em épocas que são melhores descritas pelas palavras “loucura” e “insanidade”. Como podemos explicar por que um terrorista coloca uma bomba num prédio, matando centenas de pessoas a quem nunca conheceu? Que sentido faz um homem que rouba um trabalhador com pouco dinheiro e depois o mata desnecessariamente? Por que um adolescente atacaria uma escola, esvaziando uma arma automática numa porção de estudantes? Muita coisa que vemos acontecer em nosso mundo não faz sentido - é insano. Vamos torcer as mãos em desespero, como se, em meio ao caos e violência, Deus não estivesse no controle?
Nosso texto nos assegura que, mesmo em meio à insanidade, Deus está no controle. O rei Saul está louco quando ordena que Doegue, o edomita, mate todos os sacerdotes e suas famílias. Tudo parece sem sentido e insano. Sabemos que muitos inocentes foram mortos nesse dia e, de maneira alguma, tentamos justificar isto. No entanto, ao mesmo tempo, não devemos fazer vistas grossas ao fato de que Deus usou Saul - mesmo nos momentos mais irracionais - para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Nos capítulos 2 e 3 de I Samuel é dito a Eli que, devido à maldade de seus filhos, seu sacerdócio seria retirado:
“Veio um homem de Deus a Eli e lhe disse: Assim diz o SENHOR: Não me manifestei, na verdade, à casa de teu pai, estando os israelitas ainda no Egito, na casa de Faraó? Eu o escolhi dentre todas as tribos de Israel para ser o meu sacerdote, para subir ao meu altar, para queimar o incenso e para trazer a estola sacerdotal perante mim; e dei à casa de teu pai todas as ofertas queimadas dos filhos de Israel. Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel? Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, dissera eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram, honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos. Eis que vêm dias em que cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais velho nenhum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, a um tempo com o bem que fará a Israel; e jamais haverá velho em tua casa. O homem, porém, da tua linhagem a quem eu não afastar do meu altar será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e todos os descendentes da tua casa morrerão na flor da idade. Ser-te-á por sinal o que sobrevirá a teus dois filhos, a Hofni e Finéias: ambos morrerão no mesmo dia.” (I Samuel 2:27-34)
“Disse o SENHOR a Samuel: Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos. Naquele dia, suscitarei contra Eli tudo quanto tenho falado com respeito à sua casa; começarei e o cumprirei. Porque já lhe disse que julgarei a sua casa para sempre, pela iniqüidade que ele bem conhecia, porque seus filhos se fizeram execráveis, e ele os não repreendeu. Portanto, jurei à casa de Eli que nunca lhe será expiada a iniqüidade, nem com sacrifício, nem com oferta de manjares.” (I Samuel 3:11-14)
Devido ao pecado de Eli, que falhou em corrigir seus filhos, o sacerdócio lhe foi tirado. O sinal de que isto ocorreria foi a morte de seus dois filhos, Hofni e Finéias (2:34). A fase seguinte do cumprimento desta profecia está em nosso texto, ocasionada pelo ciúme insano de Saul, quando ordena que Doegue, o edomita, mate todos os sacerdotes e suas famílias. Apenas um sobrevivente é deixado, exatamente como Deus indicara (2:33). A próxima fase desse cumprimento virá nos dias de Salomão, quando o sacerdócio será tomado de Abiatar, o descendente de Itamar, filho de Arão, e dado a Zadoque, descendente de Arão por meio de Eleazar (I Reis 2:27, 35). O cumprimento total e final parece ser a vinda do Senhor Jesus Cristo, que é sacerdote para sempre (ver Salmo 110; Hebreus 5:6; Apocalipse 19:16).
Quem teria pensado que a profecia dos capítulos 2 e 3 seria cumprida como descrito no capítulo 22 por um cara literalmente louco? Mesmo em sua desobediência e insanidade, mesmo em sua rebelião contra Deus pela matança dos sacerdotes, Saul está sendo usado por Deus para cumprir Sua promessa, e de forma a não se opor ao caráter de Deus.
Repare na semelhança entre as profecias de Deus a respeito do sacerdócio de Eli nos capítulos 2 e 3 e as profecias Deus a respeito do reinado de Saul nos capítulos 13 e 15. Devido ao seu pecado de não corrigir seus filhos pelo abuso de seu sacerdócio, o sacerdócio é tirado de Eli. Uma parte importante disto vemos descrita no capítulo 22. Será que o cumprimento da promessa de Deus a Eli não foi dado neste ponto da história para apoiar a profecia de Deus a respeito do reinado de Saul? Da mesma forma que o sacerdócio de Eli foi retirado alguns anos e alguns capítulos depois, também o reinado de Saul é retirado alguns anos e alguns capítulos depois. Deus sempre mantém Suas promessas e, algumas vezes, Ele o faz empregando os instrumentos mais improváveis.
Segundo, podemos perceber em nosso texto a que velocidade e a que distância um pecado aparentemente banal pode nos levar. Os pecados de Saul nos capítulos 13 e 15 são muito sérios, mas não parecem ter grandes conseqüências imediatas. Cuidado com os pecados banais, pois não demorará muito para que cresçam significativamente. Saul, que a princípio era receoso e hesitante, deixando de cumprir cabalmente as instruções de Deus, agora é um maníaco furioso, que desceu tão baixo e tão rápido que pode ordenar a morte de todos os sacerdotes. O pecado quase sempre parece inofensivo, até que sua verdadeira natureza seja revelada.
Terceiro, deixe-me fazer uma breve observação e depois uma pergunta. Parece-me que os cristãos, com freqüência, estão entre as pessoas mais passíveis de crer e até mesmo de estimular as teorias da conspiração. Por que o FCC (Federal Communications Commission) recebe tantas cartas de cristãos protestando contra supostas tramas de Madelyn Murray O’Haire para banir programas cristãos do rádio e da televisão? Parece que estamos predispostos a acreditar em conspirações. Pergunto-me por que. Não sejamos paranóicos. Nem nos esqueçamos dos planos de Satanás.
Quarto, vejo em nosso texto três tipos. Saul é tipo dos anticristos que já vieram e que hão de vir, resistindo a Deus e ao Seu Messias, Jesus Cristo. Herodes é um desses anticristos (ver Mateus 2). Os escribas e fariseus são outro exemplo (ver Mateus 27:18; Marcos 15:10; João 11:47-48). Da mesma forma que Saul une forças a Doegue, um gentio, em sua tentativa de dar cabo da ameaça de Davi ao seu trono, os líderes judaicos uniram forças aos gentios para executar a Cristo. Davi é um tipo de Cristo, rejeitado e resistido porque deve se tornar o rei de Deus. Aimeleque é tipo de todos aqueles que sofrem e morrem por se associarem a Jesus, pois ele morreu por sua associação com Davi.
Finalmente, vejo em nosso texto outra lição muito importante, que pode ser resumida da seguinte forma:
A segurança do cristão não é obtida por se isolar ou por se esconder dos perigos deste mundo; ela é encontrada por aqueles que se lançam sobre Deus para orientação e proteção, enquanto procuram desempenhar o Seu serviço e cumprir a Sua vontade.
A princípio, Davi e seus homens parecem pensar que quanto mais distantes estiverem de Saul, mais seguros estarão. Davi não encontra segurança nenhuma em Gate, com os filisteus. Talvez ele tenha se sentido seguro dentro ou nas proximidades de Moabe, mas o profeta Gade o instrui a retornar ao território de Judá. E, quando os homens de Davi se sentem em relativa segurança no bosque de Herete, Deus os manda ir a Queila, onde ficam expostos, não só ao ataque dos filisteus, mas também ao ataque de Saul.
Davi é um homem de Deus, é Seu escolhido como rei, e é indestrutível até que a obra de Deus para ele esteja completa. Ele não precisa se esconder ou se arriscar, especialmente quando isto o impede de desempenhar sua missão e ministério (como salvar o povo de Queila). Davi não tem que calcular sua segurança em termos da distância do perigo; ele calcula sua segurança em termos de sua proximidade de Deus. Uma espécie de escapismo é encontrada nos círculos cristãos atuais, como se a distância fosse chave para a segurança. Sou contra este tipo de pensamento. Deus pode levar alguns a lugares distantes, mas não vamos procurar nos esconder quando Deus nos chama para ser sal e luz nas trevas.
Deixe-me dizer também que confiar em Deus e fazer o que é certo não é garantia de segurança física. Em nosso texto, Aimeleque é um homem piedoso, honrado, que fica contra Saul e a favor de Davi quando sabe dos riscos que corre. Ele é assassinado, junto com sua família e seus companheiros de sacerdócio. Em última análise, Aimeleque e seus companheiros mártires não poderiam estar num lugar mais seguro do que nos braços de Deus. Eles estão tão “seguros” quanto Davi, mas sua missão está terminada, a de Davi ainda não. Viver uma vida piedosa não é garantia de proteção contra o sofrimento, contra os problemas e até mesmo contra a morte. Mas Deus não permitirá que estas coisas nos afastem daquilo para o que Ele nos chamou. Até que nosso serviço para Ele esteja completo, ninguém pode estar mais seguro do que o cristão confiante e obediente, mesmo nas circunstâncias mais perigosas.
De todos os anos anteriores ao reinado de Davi sobre Israel, estes devem ter sido os mais negros de sua vida. Não parece ser exagero dizer que, a esta altura dos acontecimentos, o ânimo de Davi está muito abalado. A habilidade e coragem que lhe foram dadas por Deus lhe trazem grande sucesso, o que, por sua vez, lhe traz popularidade. A alegria e satisfação inicial de Saul logo se transformam em medo e suspeita e, finalmente, em tentativa de assassinato. Agora, Davi é o homem mais procurado de Israel, sem qualquer culpa além da de servir fielmente a Deus e ao seu rei. Davi foge para Aimeleque, o sumo sacerdote, o qual lhe dá do pão sagrado e a espada de Golias, e também consulta o Senhor para ele (21:1-9). Isto resulta no massacre de Aimeleque, dos sacerdotes e de suas famílias - tudo devido à conclusão errada de Saul de que eles haviam se unido a Davi numa conspiração (22:6-19).
Do quartel-general de Aimeleque em Nobe, Davi foge para Gate, procurando a proteção de Aquis, o rei filisteu. Os servos do rei Aquis vêem Davi como a mais perigosa das ameaças. Para salvar sua vida, ele se finge de louco, a fim de ser expulso de Gate (21:10-15). De lá, ele encontra um esconderijo na caverna de Adulão, onde sua família se junta a ele, junto com muitos outros homens que não estão em boa situação com Saul (22:1-2). Os seguidores de Davi agora são aproximadamente 400 homens (22:2), e ele os leva até Moabe, procurando um lugar de refúgio para seus pais (22:3-4), enquanto eles se escondem num lugar seguro das proximidades, mas ainda no território de Moabe.
É neste ponto que vou me aventurar a uma pequena especulação com base no texto. Devo admitir que fico perturbado por Davi buscar refúgio para seus pais em Moabe. Sei que Rute, a mulher da qual Davi é descendente, é moabita, e isto pode ter dado a ele um pequeno crédito junto ao rei daquele lugar. Mas, ainda assim, os moabitas são inimigos de Israel. Por que Davi deixa seus pais ali?
Uma possível explicação pode ser encontrada no Salmo 27, um salmo de Davi, onde lemos sobre sua confiança em Deus na época em que malfeitores estão atrás dele. Talvez este seja o período que estamos tratando em nosso texto. No verso 10 deste salmo, lemos:
“Porque, se meu pai e minha mãe me desampararem, o SENHOR me acolherá.”
Entendo estas palavras no sentido literal e, por isso, preciso fazer uma pergunta: “Quando seu pai e sua mãe o abandonaram?” Talvez tenha sido exatamente nessa época. Pergunto-me se os membros da família de Davi não foram os últimos a reconhecê-lo como rei, da mesma forma que os irmãos e irmãs de nosso Senhor também não O reconheceram como o Rei dos judeus (ver João 7:2-5). Sabemos que seu irmão mais velho, Eliabe, o repreende por sua atitude na frente de batalha (I Sam. 17:28). Quando sua família vai à caverna de Adulão (22:1), provavelmente, é porque agora entendem o perigo que correm como membros de sua família. Se Saul não poupa nem a família dos sacerdotes, que ele acha que conspiram com Davi, por que pouparia a família de Davi?
Creio que a família de Davi seja literalmente forçada a ir à caverna de Adulão e que isto não seja realmente o que querem. Talvez estejam ressentidos e achem que Davi seja o responsável por seu sofrimento. Quando fica claro que estar com Davi significa se esconder em lugares remotos e inacessíveis, seus pais podem tê-lo rejeitado e exigido que ele encontrasse um lugar de refúgio que não os obrigasse a ficar com ele. Se for isso mesmo, a rejeição de seus pais seria apenas um golpe a mais no seu estado de espírito. Uma coisa é ser rejeitado por seus inimigos, como os filisteus, ou até mesmo por Saul. Outra é ser rejeitado por seus irmãos israelitas, ou até mesmo pelos mais próximos, os judeus. Mas, ser rejeitado por seus pais seria um golpe fatal.
Além do mais, a chegada de Jônatas ao esconderijo de Davi cai bem no meio do capítulo 23, um fato importante em virtude daquilo que está no começo e no final do capítulo. A primeira parte é a narrativa do salvamento do povo de Queila por Davi. Ele deixa a segurança do denso bosque de Herete para descer à Queila, em campo aberto. Ele decide sair do esconderijo para enfrentar os filisteus e, talvez, até mesmo o próprio Saul. Em resposta ao abnegado salvamento daquela cidade, Davi descobre que eles o teriam entregado a Saul, caso ele tivesse vindo e sitiado a cidade. Nos versos finais do capítulo descobrimos que os zifeus, sem nenhuma ameaça por parte de Saul, vão até ele e se oferecem para trair Davi e ajudar na sua captura.
A esta altura dos acontecimentos, as coisas devem parecer terrivelmente negras e agourentas para Davi. Eis um homem com a cabeça a prêmio e que não pode confiar em ninguém. Em Nobe, Davi tem lá suas dúvidas sobre Doegue, o edomita; agora ele duvida até dos seus parentes. É possível também que seu pai e sua mãe tenham se distanciado dele. Parece que não há ninguém para quem se voltar. Há Jônatas, é claro, mas ele está um tanto distante e parece difícil que possa estar com Davi neste momento...
Quando Davi abraça o amigo querido, naquele esconderijo desolado, que visão Jônatas deve ter sido para aqueles olhos tristes. Grandes homens de Deus como Davi, Paulo e muitos outros, incluindo nosso Senhor, experimentaram períodos de desânimo e até mesmo de depressão. Parece que este é um desses momentos para Davi. Em Sua graça, Deus lhe manda uma visita, Jônatas, que muito o anima. Em meio à traição do povo de Queila e dos zifeus, existe a devoção e o amor leal de seu amigo mais chegado, Jônatas. Ele não apenas tem muito ânimo a trazer para Davi, ele também tem muito a nos ensinar sobre isso. Vamos examinar nosso texto para aprender os aspectos mais importantes de ministrar aos outros.
“Vendo, pois, Davi que Saul saíra a tirar-lhe a vida, deteve-se no deserto de Zife, em Horesa.”
Creio que o verso 15 pretende dizer bem mais do que o simples fato de Davi ter conhecimento de que Saul está atrás dele. O que há de novo nisso? Apenas que Saul está perto. Mas a expressão “ficou ciente que” literalmente significa “viu”. Davi viu que Saul saíra para lhe tirar a vida. A palavra para “viu” é tão parecida com a palavra para medo que alguns até sugerem que o autor queria dizer que Davi estava com medo. Prefiro não mudar o texto sem alguma base, mas o sentido é quase esse. Todo o peso da perseguição de Saul e suas implicações parecem recair sobre Davi. Talvez, abatido de corpo e alma, Davi se angustie ao ouvir que, uma vez mais Saul está por perto, totalmente decidido a matá-lo. Muitas evidências mostram que, se tiver chance, Saul o matará. Lembro-me de vários provérbios que podem nos dar uma idéia daquilo que está implícito no texto:
“O semblante alegre do rei significa vida, e a sua benevolência é como a nuvem que traz chuva serôdia.” (16:15)
“Como o bramido do leão, assim é a indignação do rei; mas seu favor é como o orvalho sobre a erva.” (19:12)
“Como o bramido do leão, é o terror do rei; o que lhe provoca a ira peca contra a sua própria vida.” (20:2)
“Como leão que ruge e urso que ataca, assim é o perverso que domina sobre um povo pobre.” (28:15)
Palavras Bem-vindas de Um Visitante Bem-vindo
(23:16-18)
“Então, se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi para Davi, a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus, e lhe disse: Não temas, porque a mão de Saul, meu pai, não te achará; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo, o que também Saul, meu pai, bem sabe. E ambos fizeram aliança perante o SENHOR. Davi ficou em Horesa, e Jônatas voltou para sua casa.”
Enquanto leio estas palavras, lembro-me novamente de alguns provérbios:
“Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo.” (25:11)
“Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto.” (25:25)
Saul pode estar à procura de Davi, mas quem o encontra é Jônatas. Ele não poderia ter aparecido em ocasião mais oportuna, nem suas palavras poderiam ter sido mais bem escolhidas. O propósito de sua visita é fortalecer Davi em Deus. Seu encorajamento está resumido no verso 17, com os seguintes elementos:
(1) Jônatas diz para Davi não temer. Com todos os recursos de Saul, parece literalmente impossível que Davi escape de suas garras. Saul ordenou publicamente que Davi fosse detido e levado a ele, ou, pelo menos, que lhe fosse revelado o lugar de seu esconderijo. Saul tem poder e determinação para retaliar qualquer um que pareça apoiar Davi de alguma maneira. O número de mortos em Nobe é testemunho disto. Saul também recompensará qualquer um que lhe seja leal e o ajude a dar cabo de Davi. Os temores de Davi não são infundados; no entanto, Jônatas lhe diz para não temer.
(2) Jônatas assegura a Davi que, apesar de todos os esforços de Saul, ele não conseguirá encontrá-lo.
(3) A certeza de Jônatas parece ter base em sua confiança de que Deus designou a Davi como o futuro rei de Israel. Se Davi é o escolhido de Deus como o próximo rei de Israel, então, ninguém, incluindo Saul, será capaz de matá-lo e frustrar os intentos e as promessas de Deus. A segurança de Jônatas tem suas raízes na soberania do Deus a quem ele e Davi servem, e a quem Saul procura resistir.
(4) Jônatas procura encorajar Davi, garantindo-lhe sua submissão e lealdade a ele como o futuro rei de Israel. Jônatas sabe que Deus, de algum modo, removerá seu pai do trono e investirá Davi como o próximo rei de Israel. Jônatas não só aceita alegremente este fato, como também se propõe a ser o servo mais leal de Davi e seu maior defensor. Davi não só escapará das mãos de Saul e subirá ao trono, ele encontrará Jônatas assentado ao seu lado para lhe ajudar.
(5) Finalmente, a lealdade de Jônatas não é nenhum segredo. Saul, o pai de Jônatas, está totalmente ciente da lealdade de seu filho a Davi, embora não goste disso. Jônatas não mantém seu relacionamento com Davi em segredo. Certamente isto poderia encorajar outras pessoas a apoiarem Davi.
Jônatas é o Barnabé do Velho Testamento. Que grandes encorajadores são estes dois homens. No livro de Atos, Barnabé começa como um líder proeminente e Saulo (o apóstolo Paulo) nada mais é do que alguém a quem Barnabé toma sob seus cuidados. À medida que o tempo passa, fica claro que Deus escolheu Paulo para assumir o papel principal. Quando isto se torna evidente, Barnabé alegremente aceita este fato e se torna o defensor mais leal de Paulo.
O mesmo espírito é visto em Jônatas. Ele é o sucessor do trono, o descendente de Saul que todos esperam que governe em lugar de seu pai. Devido aos pecados de Saul, Deus o rejeita e designa Davi como o próximo rei. Jônatas percebe isto e, como Barnabé na época do Novo Testamento, se torna o defensor e amigo mais leal de Davi. Quando Davi está em perigo e seu ânimo parece arrefecer, Jônatas atravessa o deserto à sua procura para encorajá-lo. E é óbvio que ele consegue.
O resultado é outra aliança entre eles. De fato, é mais provável que esta seja repetição da aliança feita anteriormente, talvez com alguns detalhes a mais. A primeira aliança está em 18:1-4, onde os termos não são fornecidos, mas o significado é transmitido simbolicamente quando Jônatas tira sua armadura e a dá a Davi. No capítulo 20, Davi pede a ajuda de Jônatas com base na aliança que fizeram (verso 8), e depois Jônatas apela a Davi que poupe a sua vida e a de seus descendentes (verso 14 a 17). Novamente, nos versos 41 e 42 do capítulo 20, eles renovam sua aliança, como algo que permanecerá ao longo de sua descendência. Parece haver pouca dúvida quanto à natureza desta aliança no capítulo 23.
Antes de continuarmos com o restante do capítulo, vamos refletir sobre a natureza do ministério de Jônatas a Davi e como isto ilustra a natureza e a prática do encorajamento em todas as épocas, incluindo a nossa.
Primeiro, o encorajamento chega no momento certo e tem as palavras certas a dizer. Muitos teriam sido como um dos amigos de Jó neste momento da vida de Davi. Poderiam ter dito: “O que é que há com você, Davi? Não sabe que é pecado ficar com depressão? Leia a Bíblia e ore.” O livro de Provérbios tem muito a nos dizer sobre esta questão.
Segundo, o encorajamento afasta o medo e incentiva a coragem. Este é um elemento muito importante de minha definição de encorajamento. Ao longo dos anos, tenho ouvido uma porção de gente falar sobre o dom do encorajamento, ou o dom da exortação, como se ele lhes desse algum direito de intromissão na vida das outras pessoas por aconselhá-las. Receio que, mais comum ainda, seja a presunção de que o encorajamento está intimamente ligado à bajulação. Uma porção de “conselheiros” que tenho visto fazem disto uma prática para elogiar as pessoas por trabalhos bem feitos. Não sou contrário a dar uma palavra de elogio àqueles que fazem um bom trabalho, embora devamos ter cuidado para sermos honestos e não bajuladores. No fundo, encorajamento é ajudar a infundir coragem naqueles que estão amedrontados.
Considere esta passagem na epístola de Paulo aos Tessalonicenses:
“Exortamo-vos, também, irmãos, a que admoesteis os insubmissos, consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos.” (I Ts. 5:14)
Em nosso texto, Jônatas encoraja (literalmente, fortalece a mão de) Davi, dizendo-lhe para não temer. Encorajamento é a capacidade de sentir o medo ou o temor de outras pessoas e ministrar infundindo-lhes coragem.
Terceiro, o encorajamento dá coragem para agir. Já disse que o encorajamento afasta o medo e infunde a coragem. Mas o encorajamento que Jônatas ilustra é bem mais do que isto. O verdadeiro encorajamento não cuida das pessoas só para que elas se sintam melhor, cuida para que elas tenham coragem de fazer coisas difíceis, coisas que estão com receio de fazer. O encorajamento “fortalece a mão” daquele que é encorajado. É a “mão” que, então, trabalha, fazendo o serviço que foi dado por Deus.
Quarto, o encorajamento bíblico fortalece os desanimados fazendo seus olhos se voltarem para Deus. Jônatas encoraja Davi no Senhor. Ao que tudo indica Davi não viveria nem mais uma semana, quanto mais tempo suficiente para se tornar o rei de Israel. Mas Deus o ungiu pelas mãos de Samuel. Está nos planos e nos propósitos de Deus que Davi reine sobre Israel e, se é assim, os planos de Deus não podem ser frustrados. O único fundamento para a coragem de Davi é sua fé em Deus, em Sua Palavra, em Suas promessas, em Seu poder e em Sua fidelidade para completar aquilo que começou. Jônatas faz os olhos de Davi se voltarem para Deus, de onde vem a coragem. Em toda a Bíblia a mensagem é sempre a mesma: a coragem vem de Deus (Is. 35:4; 54:4; Jr. 30:10; Zc. 9:9; Jo. 12:15). A coragem vem pelo Espírito Santo (Mq. 3:7-8; Os. 2:3-5). A coragem vem de nosso Senhor (ver Mt. 9:2, 22; 14:27; Jo. 16:33; At. 23:11).
Quinto, o encorajamento é bem mais do que palavras; o encorajamento vem de pessoas que dão exemplos de coragem e não apenas falam sobre isso. É difícil encorajar os outros quando os nossos próprios joelhos estão tremendo. A coragem é contagiosa, assim como o medo. Saul é um homem cuja vida é caracterizada pelo medo ao invés de fé. Seria de se admirar que o exército de Saul se evapore quando “a coisa engrossa”? Claro que não! O medo de Saul toma conta de seu exército, por isso, seus soldados fogem (ver I Samuel 13:5-7; 17:11, 24, 32). Os covardes não encorajam os outros. São os corajosos que o fazem. Se o escritor de I Samuel quer nos dizer alguma coisa, é que Jônatas, diferentemente de seu pai, é um homem corajoso (ver I Sam. 13:3; 14:1-14). Ele deve ter tido muita coragem para procurar Davi na floresta, enquanto seu próprio pai está nas proximidades tentando matá-lo.
Quando vejo “encorajadores” no Novo Testamento, vejo homens de coragem. Barnabé é um dos grandes encorajadores do livro de Atos. Ele nos é apresentado no capítulo 4, onde é dito por Lucas que este homem vende um campo e coloca o rendimento aos pés dos apóstolos (4:36-37). Digo que Barnabé não é somente um homem generoso, mas um homem corajoso. Por que não dou mais aos outros? Se for honesto comigo mesmo, não dou mais porque tenho medo, medo de dar e não ter o suficiente para mim e para minha família. Será que não foi por isso que Ananias e Safira mentiram sobre o valor de sua oferta, retendo uma parte do dinheiro, talvez para os “momentos difíceis” (ver Atos 5)?
Com certeza, ir ao auxílio de Paulo, em Atos 9, foi um ato de coragem de Barnabé. Eis aqui um homem, Saulo, que prende cristãos e até mesmo os mata. Agora ele chega a Jerusalém, afirmando ter sido convertido ao cristianismo. Você pode culpar os cristãos por duvidarem de sua história e evitar o contato com ele? No entanto, Barnabé é um homem de fé e coragem. Ele crê que Deus pode salvar um homem como Saulo (a maioria dos crentes concordaria com isto), e vai mais além quando crê que Deus salvou Saulo (aqui é onde a maioria de nós pularia fora). Barnabé arrisca sua vida (agindo com coragem) e, desta forma, ele não só encoraja Saulo (Paulo), mas incentiva a igreja a ter coragem e a abraçar seu antigo inimigo como uma nova criatura em Cristo. É preciso coragem para encorajar.
Há muito tempo considero Barnabé um grande encorajador, mas agora sou forçado a reconhecer que grande encorajador Paulo veio a se tornar (em parte, graças a Barnabé). O encorajamento de Paulo se desenvolve a partir de sua própria coragem. Em Filipenses 1:14, Paulo escreve que muitos “ousam falar com mais desassombro a palavra de Deus” por causa de sua própria perseverança nos sofrimentos por amor do evangelho (ver 1:12-13). Repare como, em meio a uma incrível tormenta, a coragem de Paulo tem um impacto positivo até mesmo sobre aqueles que não são salvos:
“Havendo todos estado muito tempo sem comer, Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Senhores, na verdade, era preciso terem-me atendido e não partir de Creta, para evitar este dano e perda. Mas, já agora, vos aconselho bom ânimo, porque nenhuma vida se perderá de entre vós, mas somente o navio. Porque, esta mesma noite, um anjo de Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas! É preciso que compareças perante César, e eis que Deus, por sua graça, te deu todos quantos navegam contigo. Portanto, senhores, tende bom ânimo! Pois eu confio em Deus que sucederá do modo por que me foi dito. Porém é necessário que vamos dar a uma ilha... Enquanto amanhecia, Paulo rogava a todos que se alimentassem, dizendo: Hoje, é o décimo quarto dia em que, esperando, estais sem comer, nada tendo provado. Eu vos rogo que comais alguma coisa; porque disto depende a vossa segurança; pois nenhum de vós perderá nem mesmo um fio de cabelo. Tendo dito isto, tomando um pão, deu graças a Deus na presença de todos e, depois de o partir, começou a comer. Todos cobraram ânimo e se puseram também a comer. Estávamos no navio duzentas e setenta e seis pessoas ao todo.” (Atos 27:21-26; 33-37)
Tudo leva a uma só coisa: aqueles que encorajam, antes de mais nada, o fazem por serem pessoas de coragem, e depois, para infundir coragem nos outros, apontando para Deus, de onde vem a santa coragem. Jônatas é um desses homens, tal como nosso Senhor, Barnabé e Paulo. Eles são modelos que devemos imitar.
“Então, subiram os zifeus a Saul, a Gibeá, dizendo: Não se escondeu Davi entre nós, nos lugares seguros de Horesa, no outeiro de Haquila, que está ao sul de Jesimom? Agora, pois, ó rei, desce conforme te impõe o coração; toca-nos a nós entregarmo-lo nas mãos do rei. Disse Saul: Benditos sejais vós do SENHOR, porque vos compadecestes de mim. Ide, pois, informai-vos ainda melhor, sabei e notai o lugar que freqüenta e quem o tenha visto ali; porque me foi dito que é astutíssimo. Pelo que atentai bem e informai-vos acerca de todos os esconderijos em que ele se oculta; então, voltai a ter comigo com seguras informações, e irei convosco; se ele estiver na terra, buscá-lo-ei entre todos os milhares de Judá. Então, se levantaram eles e se foram a Zife, adiante de Saul; Davi, porém, e os seus homens estavam no deserto de Maom, na planície, ao sul de Jesimom. Saul e os seus homens se foram ao encalço dele, e isto foi dito a Davi; pelo que desceu para a penha que está no deserto de Maom. Ouvindo-o Saul, perseguiu a Davi no deserto de Maom. Saul ia de um lado do monte, e Davi e os seus homens, da outra; apressou-se Davi em fugir para escapar de Saul; porém este e os seus homens cercaram Davi e os seus homens para os prender. Então, veio um mensageiro a Saul, dizendo: Apressa-te e vem, porque os filisteus invadiram a terra. Pelo que Saul desistiu de perseguir a Davi e se foi contra os filisteus. Por esta razão, aquele lugar se chamou Pedra de Escape. Subiu Davi daquele lugar e ficou nos lugares seguros de En-Gedi.”
Jônatas vai prá casa enquanto Davi permanece nos lugares seguros de Horesa (versos 18-19). A situação de Davi não mudou, mas temos boas razões para supor que sua visão das coisas tenha mudado significativamente. As pessoas desse lugar eram conhecidas como zifeus, o povo de Zife (verso 19 e seguintes). Como Davi, eles são da tribo de Judá. Apesar disto, eles vão até Saul, em Gibeá, fornecendo-lhe a localização de Davi, a fim de que ele seja capturado. Eles parecem ansiosos para obter o favor de Saul e, também, com toda a probabilidade, em evitar sua ira. Assim, eles estão dispostos a lhe entregar Davi.
A linguagem de Saul no verso 21 é trágica. Soa muito espiritual; no entanto, suas santas palavras são apenas um véu para encobrir a maldade de suas intenções. “Benditos sejais vós do SENHOR...” O que poderia soar mais espiritual do que isto? Este uso do nome de Deus é “vão”, vulgar e profano. É aquilo que Deus proíbe - usar Seu nome em vão, de maneira vulgar e desprezível (Deuteronômio 5:11). Saul não ousa abençoar em nome do Senhor aqueles que se rebelam contra ele, mas abençoa aqueles que o ajudam em sua rebelião contra Deus. Não é espiritual abençoar aqueles que amaldiçoariam o ungido de Deus. Não é espiritual trair alguém de sua própria parentela. Como é irônico que os zifeus se compadecessem de Saul, enquanto Jônatas, seu próprio filho, se compadece de Davi.
Saul está começando a ficar esperto. Ele não convoca de imediato suas tropas para outra tentativa de capturar Davi. Afinal, parece que ele acabou de retornar de sua última tentativa frustrada. Desta vez ele pretende ser mais cuidadoso, pois não seria bom voltar de mãos vazias. Ele diz aos zifeus para observarem cuidadosamente os movimentos de Davi, tomando nota de seus esconderijos e suas rotas de fuga, para, então, o avisarem quando souberem exatamente onde Davi está. Assim, Saul tem certeza de que capturará seu inimigo.
O verso 22 é digno de nota. Saul conta aos zifeus que dizem que Davi é astutíssimo. Por que ele não diz que ele mesmo pensa assim? Talvez seja porque grande parte de suas informações sobre Davi venham de segunda mão, daqueles em quem ele não deveria realmente confiar, homens como Doegue, o edomita. Veremos mais sobre isto quanto chegarmos ao verso 9 do capítulo 24. Informação de segunda mão, na verdade, é fofoca, e não deveria ser tomada como se fosse uma verdade suprema.
Os zifeus retornam à sua terra, prontos e dispostos a cumprir as ordens de Saul. Nesse meio tempo, Davi se move umas poucas milhas em direção ao território descampado (ou deserto) de Maom (verso 25). Saul e seus homens aparecem uma vez mais em árdua perseguição. Que lugar para uma caçada de helicóptero! Davi se apressa para escapar de Saul e seus homens, enquanto ladeia a montanha. Atrás, em seu encalço, estão Saul e seus homens. Eles continuam ganhando terreno, ou talvez venham na direção contrária, para encontrar Davi quase de frente. Pode até ser que Saul tenha tropas no encalço de Davi vindas de ambas as direções. De uma forma ou de outra, Davi e seus homens estão sendo cercados. É apenas uma questão de tempo antes que caiam nas garras de Saul. Podemos ver seus homens se aproximando cada vez mais. Também podemos ver que todas as rotas de fuga estão bloqueadas. Não há saída. Eles estão no fim da linha.
De repente, quando os homens de Saul estão quase sobre eles, ouve-se um grito. Um mensageiro chama por Saul, informando-o que Israel está sob ataque filisteu. Não deve ser em Queila, pois parece que Saul não se importa com os problemas dessa cidade com os filisteus. Seria perto de Gibeá, a cidade de Saul? A situação é vista como sendo tão séria que Saul desiste de sua perseguição, a apenas alguns instantes do sucesso. Ele ordena a seus homens que dêem meia volta e desçam a montanha, reunindo-se para marchar contra o exército filisteu.
O suspense é tão intenso, tão denso, que alguém poderia cortá-lo com uma faca. Davi e seus homens parecem perdidos, mas são poupados por Deus. A ironia é que, embora Saul seja inimigo de Davi, os filisteus, inconscientemente, viram seus aliados. Seu ataque é um meio de Deus para livrar Seu rei ungido, Davi, das garras do rei Saul.
Quem acreditaria nisso? Quem imaginaria que Saul pudesse chegar tão perto de Davi, e então fizesse meia volta no último minuto? Quem teria acreditado que um ataque hostil contra Israel pudesse ser um meio de Deus para preservar a vida do futuro rei? Aqueles que conhecem a Deus crêem nisso. Na verdade, quase deveríamos esperar por isso. Os recursos de Deus são tão infinitos, que Ele não é forçado a livrar Seus escolhidos sempre da mesma maneira enfadonha, repetindo infinitamente o mesmo milagre. Muitas vezes Deus salva quando toda esperança humana já se foi, e assim, de formas que jamais esperaríamos ou prediríamos. Ele faz assim porque é Deus, porque Seus recursos são ilimitados e porque Sua maneira de fazer as coisas está muito além das nossas mais loucas fantasias.
Deus não apenas livra Davi da forma mais extraordinária, Ele também o encoraja de uma forma única. Deus o encoraja com uma visita inesperada, num lugar ermo e difícil de ser encontrado. Este lugar não está no caminho de Jônatas. É um lugar onde Davi pretende não ser encontrado; no entanto, ele é. E aquele a quem Deus escolhe para encorajar Davi, arduamente perseguido pelo rei Saul, é nenhum outro, senão o filho do rei, Jônatas.
Devemos concluir esta lição com as palavras das Escrituras que expressam tudo isto muito melhor do que poderíamos:
“Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao SENHOR, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos. Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.” (Isaías 55:6-11)
“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! QUEM, POIS, CONHECEU A MENTE DO SENHOR? OU QUEM FOI O SEU CONSELHEIRO? OU QUEM PRIMEIRO DEU A ELE PARA QUE LHE VENHA A SER RESTITUíDO? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)
Este incidente na caverna poderia facilmente ser uma reprise da execução de Eglom, rei de Moabe, conforme descrito em Juízes 3:12-31. Os moabitas estão oprimindo Israel e Deus ouve o clamor de Seu povo. Ele levanta Eúde como um dos juízes de Israel. Eúde, um benjamita canhoto, vai a Eglom para entregar o dinheiro do “tributo” que os israelitas pagam para Moabe. Ele porta uma espada feita sob medida na coxa direita, por baixo da capa. Parece que antes de ser admitido à presença de Eglom, ele é revistado, mas apenas do lado esquerdo, onde todos os homens destros guardam suas armas. Eúde chega quando o rei está em seu aposento privativo, sem mais ninguém por perto. Ele encontra o rei em sua sala de verão, onde fica o banheiro. Eúde assassina Eglom e foge, mas não pela entrada normal. Em vez disso, ele fecha e tranca a porta da sala privativa do rei, escapando sem ser visto. À medida que o tempo passa e o rei não sai de lá de dentro, seus servos ficam cada vez mais nervosos - mas ninguém quer interrompê-lo. Quando, finalmente, destrancam a porta, eles encontram o rei morto.
A mesma coisa poderia ter acontecido na caverna onde Davi e seus homens estão escondidos, e onde Saul decide se aliviar. Davi poderia facilmente tê-lo morto neste momento vulnerável, ou, pelo menos, poderia ter permitido que um de seus homens o fizesse. Em vez disso, Davi poupa a vida do rei, permitindo que ele deixe a caverna ileso, sem nem sequer saber que ele está por perto. O que Davi faz a seguir é ainda mais surpreendente, conforme veremos em breve. A reação de Saul é igualmente espantosa.
A história que vamos estudar é uma grande história. A sensação dramática é intensa. Encontramos nesta narrativa: perigo, suspense e surpresas. Mas, esta não é somente uma história bem escrita, legal e divertida. É uma história que tem grande aplicação para todos os cristãos ainda hoje. Como? Davi é um homem designado e ungido como o futuro rei de Israel. Os acontecimentos que estamos estudando têm lugar nesse meio tempo entre a sua designação e a sua nomeação como rei.
Nós, os que confiam em Jesus Cristo para o perdão de nossos pecados e para a nossa salvação eterna, somos aqueles que serão “reis e sacerdotes”.
“e perseveramos, também com ele reinaremos...” (II Tm. 2:12a)
“e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.” (Ap. 5:10)
“Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.” (Ap. 20:6)
“Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos.” (Ap. 22:5)
Essa questão de esperar para reinar é muito importante. Uma porção de erros encontrados nos círculos cristãos atuais (e ao longo da história da igreja) tem a ver com o relacionamento entre a nossa vida presente e o futuro reinado de Cristo junto com Seus santos. Alguns se enganam ao supor que podemos “reinar” desde já, gozando todos os benefícios futuros no presente. Nosso texto, como em todo o Velho e Novo Testamento, se baseia no fato de que, ainda que venhamos a reinar no futuro, no presente Deus está nos preparando mediante a rejeição e o sofrimento. Da mesma forma como Deus lidou com Davi nessa área, Ele também lida conosco hoje. Portanto, prestemos bastante atenção, pois não estamos lendo uma simples historinha. Este texto é a instrução de Deus para nós, através do exemplo de santos como Davi, e até mesmo de pessoas patéticas como Saul.
“Tendo Saul voltado de perseguir os filisteus, foi-lhe dito: Eis que Davi está no deserto de En-Gedi. Tomou, então, Saul três mil homens, escolhidos dentre todo o Israel, e foi ao encalço de Davi e dos seus homens, nas faldas das penhas das cabras monteses. Chegou a uns currais de ovelhas no caminho, onde havia uma caverna; entrou nela Saul, a aliviar o ventre. Ora, Davi e os seus homens estavam assentados no mais interior da mesma. Então, os homens de Davi lhe disseram: Hoje é o dia do qual o SENHOR te disse: Eis que te entrego nas mãos o teu inimigo, e far-lhe-ás o que bem te parecer. Levantou-se Davi e, furtivamente, cortou a orla do manto de Saul. Sucedeu, porém, que, depois, sentiu Davi bater-lhe o coração, por ter cortado a orla do manto de Saul; e disse aos seus homens: O SENHOR me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do SENHOR. Com estas palavras, Davi conteve os seus homens e não lhes permitiu que se levantassem contra Saul; retirando-se Saul da caverna, prosseguiu o seu caminho.”
No capítulo 23, Saul parece ter Davi em suas mãos. Ele está bem perto de Davi quando um mensageiro o informa que Israel está sob ataque, forçando-o a desistir de sua perseguição, para lutar com os filisteus. Não sabemos como Saul se sai no confronto, mas sabemos que ele retorna são e salvo, disposto a capturar Davi. Alguém o informou que Davi está no deserto de En-Gedi.
Saul espera encontrar Davi no sopé das “penhas das cabras montesas” (24:2) e parte naquela direção. Acho que Saul devia conhecer bem esta região e deve ter concluído que aquele ponto remoto nas montanhas da Judéia provavelmente seria o esconderijo de Davi, caso este soubesse que ele estava em sua perseguição. Parece que Davi faz exatamente o oposto. Em vez de fugir do deserto de En-Gedi para as “penhas das cabras montesas”, Davi vai em direção oposta, direto para Saul. O caminho dos dois se cruza num aprisco de ovelhas, onde também existe uma caverna. Saul sente o chamado da natureza e começa a procurar um lugar nos arredores onde possa se aliviar em particular.
Pense em si mesmo como um dos homens de Davi espreitando para fora da caverna, vendo Saul e seu exército se aproximar, e então parar. Posso até sentir a tensão quando os olhos de Saul se voltam para a caverna. Os homens de Davi se agacham na sua parte posterior e gemem silenciosamente, enquanto vêem Saul se aproximando. Eles não sabem o que Saul tem em mente. Deve parecer como se estivessem liquidados. Saul se aproxima, enquanto Davi e seus homens agarram suas armas, prontos para se defender. O que se segue não precisa ser descrito, exceto para dizer que foi um alívio tanto para Saul quanto para os homens de Davi.
Os homens de Davi agora estão mais calmos e começam a pensar no significado deste momento. Parece-lhes que Deus lhes deu uma oportunidade de matar Saul. Eles citam uma profecia que diz:
“Eis que te entrego nas mãos o teu inimigo, e far-lhe-ás o que bem te parecer.” (verso 4)
Pela reação de Davi, podemos chegar a uma destas alternativas: Primeiro, pode-se dizer que esta profecia é falsa, que deve ser rejeitada (ver I Reis 22). Segundo, talvez seja uma profecia relacionada a alguma outra pessoa (algum inimigo) que não Saul, e erroneamente aplicada a ele pelos homens de Davi. Terceiro, talvez a profecia seja verdadeira e se relacione a Saul, mas é erroneamente interpretada e aplicada pelos homens de Davi. Sou favorável à terceira opção.
Furtivamente, Davi vai até Saul, que está alheio ao que se passa atrás dele. Aparentemente, seu manto tinha sido retirado e posto de lado, longe o suficiente para que Davi pudesse alcançá-lo e cortasse um pedaço de sua orla. Imediatamente a consciência de Davi o acusa. Há aqueles que crêem que isto tenha sido muito significativo, de alguma forma desafiando ou contestando o direito de Saul reinar. Acho que não. Parece-me que a intenção de Davi é apenas obter uma prova de que ele conseguiu chegar a uma distância surpreendente e mesmo assim não causou nenhum dano a Saul. Intrinsecamente isto não teria perturbado Davi, mas o fato é que ele danifica a roupa de Saul. Em linguagem atual, é como se Davi tivesse estourado os pneus do carro de Saul. É mais ou menos como vandalismo.
O gesto de Davi não deve ser julgado pelo valor prejuízo, mas em termos de contra quem foi praticado. Um ato aparentemente banal seria muito grave se fosse contra o Presidente dos Estados Unidos. O ato de Davi foi cometido contra o seu rei. Não interessa se foi um gesto insignificante, certamente banal se comparado ao assassinato pretendido por seus homens. Ele levantou a mão contra o seu rei, e com isto, levantou a mão contra seu Deus. Foi Deus que levantou Saul e é Deus quem o destituirá do trono, de alguma forma que não inclui Davi agir com hostilidade contra ele:
“Acrescentou Davi: Tão certo como vive o SENHOR, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto.” (I Sam. 26:10)
Ainda que Saul seja destituído, é Deus quem o fará, não Davi. Até que Deus o destitua, o dever de Davi é servir fielmente a seu rei, e cortar um pedaço de seu manto não foi pelo bem de Saul. Por isso, a consciência de Davi o perturba.
Davi está com a consciência pesada por ter tirado um pedaço do manto de Saul. Seus homens, por outro lado, estão planejando coisas bem piores. O sucesso de Davi em cortar o manto de Saul incentiva seus homens a resolver o problema de uma vez por todas. Neste momento Saul está vulnerável. Seus homens estão fora de vista (com certeza Saul quer fazer suas necessidades em particular), e assim os homens de Davi podem dar cabo dele sem mais rodeios. Parece que é isto o que eles pretendem fazer e só a atitude enérgica de Davi os demove de sua intenção. A tradução do verso 7, na maioria das versões, é surpreendentemente branda (“persuadiu”, NASB - “conteve”, ARA) comparada à palavra empregada pelo autor (a nota da margem da versão NASB indica que a tradução literal seria repreendeu severamente). Ante a menção de matar o rei, Davi literalmente ataca seus homens, defendendo ferozmente a vida do rei e exigindo que, da mesma forma que ele não levantaria a mão contra ele, eles também não o farão. Enquanto os homens de Davi o olham com estranheza, Saul termina o serviço, veste seu manto (agora meio estragado) e sai da caverna.
Depois, também Davi se levantou e, saindo da caverna, gritou a Saul, dizendo: Ó rei, meu senhor! Olhando Saul para trás, inclinou-se Davi e fez-lhe reverência, com o rosto em terra. Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal? Os teus próprios olhos viram, hoje, que o SENHOR te pôs em minhas mãos nesta caverna, e alguns disseram que eu te matasse; porém a minha mão te poupou; porque disse: Não estenderei a mão contra o meu senhor, pois é o ungido de Deus. Olha, pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão. No fato de haver eu cortado a orla do teu manto sem te matar, reconhece e vê que não há em mim nem mal nem rebeldia, e não pequei contra ti, ainda que andas à caça da minha vida para ma tirares. Julgue o SENHOR entre mim e ti e vingue-me o SENHOR a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti. Dos perversos procede a perversidade, diz o provérbio dos antigos; porém a minha mão não está contra ti. Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? Seja o SENHOR o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão.
Matar Saul é agir contra o ungido do Senhor, e essa não é uma atitude cristã. Assim, o uso da revelação divina pelos homens de Davi está errado, por isso, ele é inflexível. Davi deve fazer para Saul “aquilo que lhe parece bom”. E o que lhe parece bom é sujeitar-se a seu rei e servi-lo fielmente, buscando o seu bem. Certamente isto significa que Davi não deve se opor a Saul ou agir de forma que lhe seja prejudicial. Para Davi, ser submisso ao rei significa muito mais do que isto. Significa agir de maneira a buscar o bem de Saul. A interpretação de Davi daquilo que “é bom”, com referência a Saul, com certeza surpreende o próprio Saul e, indubitavelmente, qualquer um que testemunhe o próximo acontecimento.
Davi e seus homens estão seguramente escondidos dentro da caverna. Tudo o que precisam fazer é ficar quietos e deixar que Saul e seus homens vão embora. Depois eles podem escapar na direção oposta. Abandonando todos os esforços para se proteger e fugir, Davi emerge da caverna, gritando para Saul. Ele se dirige a Saul como “Ó rei, meu senhor!” (verso 8), e um pouco adiante como ”pai” (verso 11). Davi se prostra em terra, mostrando sua reverência e submissão a Saul como rei (verso 8). Ele apela para o rei não levar em consideração as coisas ditas a seu respeito, para ouvir suas palavras e as comparar com suas ações, e então julgar por si mesmo sua culpa ou inocência.
Davi contesta a acusação de estar buscando a morte ou a derrota de Saul. Ele não está tentando tirá-lo do trono. Mostrando a Saul o pedaço do manto que ele cortou, Davi o desafia a reconhecer que, embora pudesse tê-lo morto, ele não o fez. Saul é o ungido de Deus. Prejudicar o rei é agir em rebelião contra Deus, que o colocou no trono. Quando a vida de Saul esteve nas mãos de Davi, este o protegeu, impedindo seus homens de matá-lo. E agora, Davi coloca sua vida nas mãos de Saul e, em última análise, nas mãos de Deus, pois é a Deus que ele faz seu último apelo. É para Ele que Davi clama por justiça. É por isso que ele não precisa agir contra o próprio Saul.
Davi relembra ao rei que os homens podem ser conhecidos por seus frutos. Das palavras de um antigo provérbio, Davi cita: “Dos perversos procede a perversidade” (verso 13). Davi nada fez de mal a Saul, e lhe garante que sua mão não será contra ele no futuro (verso 13). Ele também relembra ao rei que seus temores a seu respeito são exagerados. Davi se compara a um cão morto e a uma pulga (verso 14). Como pode um grande homem como Saul, com todo o seu poderio militar, ter tais temores a respeito de Davi?
Davi encerra sua argumentação dizendo a Saul que ele se entregou aos cuidados de Deus. Ele deixou o juízo e a retribuição para Deus. Ele espera na justiça e proteção de Deus dos ataques de Saul (verso 15). Com isto Davi encerra seu caso. Agora é hora de Saul responder, o que ele faz.
Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. Disse a Davi: Mais justo és do que eu; pois tu me recompensaste com bem, e eu te paguei com mal. Mostraste, hoje, que me fizeste bem; pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. Portanto, jura-me pelo SENHOR que não eliminarás a minha descendência, nem desfarás o meu nome da casa de meu pai. Então, jurou Davi a Saul, e este se foi para sua casa; porém Davi e os seus homens subiram ao lugar seguro.
Saul fica em estado de choque ao ouvir seu nome. Ele mal pode crer em seus ouvidos, que é realmente Davi quem chama por ele. Saul eleva sua voz, chorando, chamando Davi de ”filho”. Como isto fica mais fácil depois que Davi o chama de “pai” no verso 11 e se curva diante dele como um servo fiel a seu rei. É óbvio que Davi tem a vida de Saul em suas mãos, e que ele o poupa. Como Davi é diferente dele! Saul confessa que Davi é justo, mas ele não. Ele fez o mal para Davi e, mesmo assim, Davi lhe retribuiu com o “bem”. Davi não o teria deixado ir se fosse seu inimigo; portanto, ele deve ser seu amigo. E assim Saul invoca a bênção de Deus sobre ele.
O verso 20 é uma espantosa confissão de Saul. Pela primeira vez registrada nas Escrituras, Saul diz a verdade. Samuel lhe disse que seu reino não iria durar (13:14), e que ele foi rejeitado por Deus como rei de Israel (15:26). No capítulo 18 (versos 8-9), Saul menciona que Davi é tão popular, que a única coisa que lhe falta é a posse do reino. Em 20:31, Saul diz a Jônatas que ele não herdará o trono enquanto Davi estiver vivo. Em outro lugar, Saul trata Davi como um traidor, que planeja matá-lo e se apossar do reino (ver 22:6-13). Mas, aqui, pela primeira vez, Saul reconhece que Deus está tirando seu reino e dando-o a Davi. Ele admite a ascensão de Davi ao trono como certa.
Por isso, Saul suplica que Davi jure que não irá matar seus descendentes (24:21). As preocupações de Saul não são totalmente infundadas. Eliminar todos os possíveis herdeiros era uma prática comum para os homens que ascendiam ao trono, especialmente os descendentes do rei que ele havia deposto ou substituído (ver II Re. 10:11; 15-17; 11:1). A ironia do pedido de Saul é que esta questão já havia sido tratada na aliança entre Davi e Jônatas (I Sam. 20:14-17; 41-42). Apesar disto, Davi promete a Saul que ele não irá destruir nenhum de seus descendentes.
Os dois vão-se embora. Davi sobe para o lugar seguro, enquanto Saul volta prá casa (24:22). É provável que Davi tenha esperanças de que seus problemas com Saul tenham terminado, mas ele não é tolo. Saul já se “arrependeu” outras vezes (ver 19:1-7), mas não durou muito. Davi vai ver o que é uma resposta duradoura de Saul observando à distância. O outro lado da moeda talvez seja que, na verdade, Davi está servindo a Saul de maneira indireta. Será que as pessoas estão se voltando para Davi e desprezando Saul? Então, Davi manterá distância, ficando fora de vista, para que a popularidade de Saul não seja diminuída.
Esta história é realmente incrível. Quem teria pensado que um “chamado da natureza” acabaria numa despedida pacífica entre Davi e Saul? Deus é soberano. Ele está no controle absoluto de todas as coisas, e “todas as coisas” incluem coisas elementares como um “chamado da natureza”. Devido a este acontecimento tão natural (nossos filhos diriam “nojento”, ou coisa parecida), algumas coisas sobrenaturais aconteceram. Primeiro, Davi e Saul se encontraram e se separaram; no entanto, sem qualquer derramamento de sangue. Saul confessou coisas que jamais esperaríamos dele. Davi não só se arrependeu de cortar um pedaço do manto de Saul, como impediu seus homens de matá-lo. E todas estas coisas são conseqüência de Saul procurar um lugar para parar e achar a mesma caverna onde Davi e seus homens “tinham acabado” de se esconder. Deus é capaz de empregar a “natureza” para alcançar Seus propósitos. Que Deus maravilhoso nós servimos!
Em seu livro Liderança Espiritual, J. Oswald Sanders fala sobre três princípios que governam a liderança espiritual:
Soberania
Sofrimento
Sujeição
Creio que este querido irmão esteja absolutamente certo, e que estes três princípios podem ser vistos na vida de Davi enquanto Deus o prepara para a liderança espiritual. Vamos considerar cada um dos três.
O primeiro fator em liderança espiritual é a soberania de Deus. Participei de um encontro onde Sanders nos contou sobre como Deus o chamou à liderança. Ele estava engajado num tipo de ministério bem diferente, no qual esteve durante a maior parte de sua vida, quando foi contatado para se tornar o líder de uma grande organização missionária. Levou um ano para que Sanders (e a esposa) reconhecesse a persistência dessa organização como evidência do soberano chamado de Deus. Deus é quem soberanamente levanta líderes espirituais (ver a maneira como Deus levantou Saulo/Paulo em Atos).
A soberania de Deus também é um dos principais fatores no pensamento de Davi sobre liderança. Deus soberanamente levantou Saul como rei de Israel. Embora Samuel tenha ungido Davi como o futuro rei, Davi crê que é Deus quem destituirá Saul e que esta tarefa não é sua. Enquanto Deus mantiver Saul no poder, levantar a mão contra ele é levantar a mão contra Deus. As circunstâncias podem ter sido favoráveis a Davi ou a um de seus homens para matar Saul, no entanto, a crença de Davi na soberania de Deus o impediu de fazê-lo.
Satanás se rebelou contra o governo soberano de Deus. Ele não estava disposto a servir a Deus, mas queria liderar, como Deus. Pecado é rebelião contra Deus, contra Sua soberania. É tentar se elevar acima de Deus. Davi se submete à soberania de Deus. E ele o faz deixando a vingança para Deus. O comentário de John Murray de Romanos 12:19 é muito pertinente:
“Aqui temos a essência da verdadeira religião. A essência da pecaminosidade é que ousamos assumir o lugar de Deus, tomando as coisas em nossas mãos. Fé é nos entregarmos a Deus, lançando nossos cuidados sobre Ele e investindo todos os nossos interesses Nele. Quanto ao assunto em questão, as injustiças de que somos vítimas, o jeito da fé é reconhecer que Deus é o juiz e deixar que Ele execute a vingança e a retribuição.”
O segundo fator em liderança espiritual é o sofrimento. Oswald Sanders nos contou sobre um de seus primeiros sermões (de uns 65 anos atrás!). Ele disse que depois de sua mensagem, não pôde deixar de ouvir duas mulheres discutindo sobre seu sermão. Uma delas perguntou à outra: “Bem, o que você achou?” Ao que a segunda respondeu: “Não foi mal, mas ele será muito melhor quando tiver sofrido”. Sanders, então, prosseguiu, descrevendo como Deus o fez passar pelo sofrimento com a morte de duas esposa e uma sobrinha. Quando ouço alguns músicos cristãos contemporâneos, sinto-me como aquela mulher que ouviu o primeiro sermão de Sanders. Creio que serão muito melhores depois de terem experimentado o sofrimento. Eles sempre escrevem e cantam suas músicas como pessoas jovens e inexperientes. A maioria ainda não provou a taça de sofrimento e dor. O sofrimento muda você e sua mensagem.
Desde quando foi ungido até a época em que é designado rei, Davi passa por muito sofrimento. A maior parte de seu sofrimento vem das mãos de Saul. A ascensão de Davi ao trono não é a despeito de seu sofrimento, mas por meio dele. O sofrimento é o meio mediante o qual Deus prepara Davi para a liderança. E isto não é exceção. O sofrimento de José às mãos de seus irmãos o preparou para liderar e um meio de salvação para sua família. O sofrimento de Israel no Egito preparou o povo de Deus para o êxodo e sua vida como homens e mulheres livres. O sofrimento de nosso Senhor O preparou para o ministério que Ele terá como o Rei dos reis e Senhor dos senhores. O nosso sofrimento faz exatamente a mesma coisa.
Seus homens estão tentando Davi para que ele mate Saul, a fim de encurtar seu sofrimento e apressar seu governo como rei. Sua tentação não é diferente da tentação de Satanás a nosso Senhor no deserto, no início de Seu ministério público (ver Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-12). Nós também somos tentados a evitar o sofrimento e ir direto para a glória, mas sofrer é o meio designado por Deus para nos levar para a glória. Davi está disposto a sofrer para obedecer a Deus, mesmo que isto pareça inconsistente com seu futuro reinado.
O fator final que Sanders descreve em relação à liderança espiritual é a sujeição. Em minha mente, sujeição e submissão estão intimamente relacionadas. Ambas estão muito envolvidas na preparação de Deus para o reinado de Davi. Servo é aquele que serve fielmente a outrem. Davi é um servo fiel de Saul, mesmo quando Saul procura tirar sua vida. Submissão é sujeitar seus próprios interesses para servir a outrem.
Davi serve seu senhor, Saul, fielmente. Sua consciência o atormenta quando ele corta um pedaço do manto de Saul. Isto não é servi-lo fielmente. Ele se recusa a considerar a morte de Saul, ou a permitir que seus homens o façam. Isto não é servir Saul. Sofrimento é o preço que Davi está disposto a pagar para servir Saul fielmente. Saul, em certo sentido, é inimigo de Davi, e Deus colocou sua vida nas mãos de Davi. No entanto, Davi crê que, para fazer o que lhe parece certo, ele terá que servir Saul, não destruí-lo. E, a fim de servir Saul, ele terá que colocar em risco sua própria vida. Assim, Davi deixa Saul sair e depois se revela a ele fora da caverna. Davi chega a repreender humildemente Saul, mostrando-lhe que não é seu inimigo e que só tem feito o bem para ele. Davi jamais deixará de servir humildemente Saul, enquanto ele estiver vivo e enquanto for o rei de Deus. Davi lhe faz o “bem”, como o próprio Saul confessa, e ele o faz sofrendo às suas mãos, servindo-o e submetendo-se a ele, esperando, enfim, pela justiça e retribuição do Deus soberano.
Estes princípios: soberania, sofrimento e sujeição - capacitam Davi a discernir a vontade de Deus em quaisquer circunstâncias. Os homens de Davi (I Samuel 24:4), assim como Saul (I Samuel 23:7), discernem a vontade de Deus com base nas circunstâncias favoráveis: Deus lhes dá a oportunidade de matar Saul, então deve ser a vontade de Deus que eles o façam. Davi discerne a vontade de Deus por princípio. Ele decide lutar com Golias, não porque que a vitória pareça certa (embora ele tenha certeza, ninguém mais tem), mas porque este homem blasfema contra Deus. Davi não está disposto a tirar vantagem das circunstâncias, pois ele pensa como um líder espiritual, do ponto de vista da soberania de Deus, do sofrimento como parte da vontade de Deus e da sujeição.
Atualmente vejo bem menos discernimento a respeito da vontade de Deus como o de Davi, do que vejo como o de Saul ou dos homens de Davi. Ouço muitos cristãos que pensam e ensinam que o sofrimento não é da vontade de Deus, e que a verdadeira fé será recompensada por bênçãos imediatas e pela ausência de dor. Encontro muitas pessoas discernindo a vontade de Deus olhando apenas para as circunstâncias favoráveis, em vez de viver pela fé na palavra de Deus, e não pela vista. Vejo muitos cristãos recebendo orientação de cristãos desorientados, em vez de se firmarem em princípios bíblicos. Sejamos como Davi a este respeito, e não como seus homens que só querem por um fim ao sofrimento, matando o ungido de Deus. Essa visão interesseira é justamente o que vemos nos escribas e fariseus (junto com as multidões, incluindo os romanos), quando rejeitaram a Cristo e O crucificaram, libertando Barrabás em Seu lugar.
Vejo na vida de Davi, como descrito em I Samuel, um exemplo e ilustração de muitos textos bíblicos a respeito de sofrimento, sujeição e submissão. Ainda que não possamos considerá-los agora, deixe-me simplesmente relacionar alguns textos para sua posterior meditação: Salmo 7, Mateus 5:44, Romanos 12:17, 19, I Pedro 2:11-22, 4:12-19. Procuremos ser homens e mulheres como Davi, com um coração segundo o coração de Deus, para Sua glória e para o nosso bem.
Às vezes, não como muita freqüência, sinto ter feito alguma coisa certa. O pior é que parece que, logo em seguida, faço algo estúpido e pecaminoso. Meu único consolo (não desculpa, veja bem) é que muita gente me faz companhia nesse estado de espírito. A primeira pessoa em que penso é Pedro (quem não pensa?), o primeiro discípulo a dar a resposta certa à pergunta de nosso Senhor “quem dizeis que eu sou?” (Mateus 16:13-20). Nosso Senhor o elogiou por isto, e no entanto, momentos depois, Ele o repreendeu com estas palavras “Arreda, Satanás” (verso 23), por Pedro tentar convencê-lO a não morrer na cruz do Calvário. Mais tarde, Pedro garante ao Senhor que, mesmo que todos os outros apóstolos O neguem, ele Lhe será fiel (Lucas 22:3134). Apenas alguns versos e poucas horas depois Pedro nega o Senhor, não uma, mas três vezes (Lucas 22:54-62).
No Velho Testamento, vemos a mesma inconstância de fé e obediência, mesmo num homem tão querido (hoje) como Davi. O capítulo 24 de I Samuel certamente é um dos mais marcantes em relação à sua fé. O rei Saul decide parar numa caverna para utilizá-la como banheiro e, inconscientemente, coloca sua vida nas mãos de Davi e de seus homens, escondidos no interior da caverna. Davi se recusa a levantar a mão contra o rei e proíbe seus homens de fazer mal a ele. Ele mesmo lamenta sua atitude de cortar um pedaço do manto de Saul. Finalmente, ele se coloca em grande risco ao se revelar ao rei para lhe mostrar que é um servo fiel, e não um criminoso à espera do momento certo para tirar sua vida.
Um capítulo depois, Davi perde a cabeça por ser insultado por um tolo. Davi está disposto a matar não apenas este ricaço doido, mas também a todos os homens de sua casa. Uma sábia mulher, por sua conta e risco, é quem age de forma a poupar a vida de seu marido e impedir Davi de agir como louco. Creio que o autor de I Samuel quer que vejamos Abigail, a esposa de Nabal, não apenas como uma mulher sábia e bonita, mas como um exemplo de submissão cristã. Uma vez que sua submissão tem uma forma incomum, precisamos prestar bastante atenção ao texto que vamos estudar.
“Faleceu Samuel; todos os filhos de Israel se ajuntaram, e o prantearam, e o sepultaram na sua casa, em Ramá. Davi se levantou e desceu ao deserto de Parã.”
Samuel foi um dos principais personagens do I livro de Samuel, que tem esse nome por sua causa. Foi ele quem designou e ungiu Saul como o primeiro rei de Israel (capítulos 9 e 10). Foi ele também o profeta que comunicou a Saul que seu reinado seria retirado dele (capítulos 13 e 15). Samuel foi o profeta que ungiu Davi como substituto de Saul (capítulo 16). Samuel foi um homem para quem Davi poderia fugir quando estivesse sendo perseguido por Saul (19:18-24). E agora, Samuel está morto. Que grande perda para Davi. Samuel está morto, ele se encontrou com seu querido amigo Jônatas pela última vez (capítulo 23), e sua esposa, Mical, que também é filha de Saul, foi dada por esposa a outro homem (25:44). Além de tudo isto, os pais de Davi estão sob os cuidados do rei de Moabe (22:3). É verdade que Davi tem 600 homens com ele, mas nenhum deles parece partilhar de suas convicções a respeito de sua submissão ao rei Saul. Como Davi deve estar solitário.
Davi, junto com muitos outros israelitas, vai à casa de Samuel em Ramá, onde pranteia por este grande homem de Deus. Terminado o tempo de luto, Davi uma vez mais se refugia no deserto de Parã. Este é o deserto onde Agar e seu filho Ismael viveram depois que foram mandados embora por Abraão e Sara (Gênesis 21:21). Também é o lugar onde os israelitas acamparam depois de deixar o Monte Sinai, e de onde os doze espias foram enviados para espiar a terra de Canaã (Números 10:12; 13:13). Agora, é o lugar do refúgio de Davi.
Havia um homem, em Maom, que tinha as suas possessões no Carmelo; homem abastado, tinha três mil ovelhas e mil cabras e estava tosquiando as suas ovelhas no Carmelo. Nabal era o nome deste homem, e Abigail, o de sua mulher; esta era sensata e formosa, porém o homem era duro e maligno em todo o seu trato. Era ele da casa de Calebe. Ouvindo Davi, no deserto, que Nabal tosquiava as suas ovelhas, enviou dez moços e lhes disse: Subi ao Carmelo, ide a Nabal, perguntai-lhe, em meu nome, como está. Direis àquele próspero: Paz seja contigo, e tenha paz a tua casa, e tudo o que possuis tenha paz! Tenho ouvido que tens tosquiadores. Os teus pastores estiveram conosco; nenhum agravo lhes fizemos, e de nenhuma coisa sentiram falta todos os dias que estiveram no Carmelo. Pergunta aos teus moços, e eles to dirão; achem mercê, pois, os meus moços na tua presença, porque viemos em boa hora; dá, pois, a teus servos e a Davi, teu filho, qualquer coisa que tiveres à mão.
Aqui somos apresentados a dois personagens muito importantes de nossa história, um homem chamado Nabal, e sua esposa, Abigail. Nabal é um homem muito abastado (pelos padrões de antigamente). Sua casa fica em Maon, e seu gado é mantido no monte Carmelo, a algumas milhas dali. É aqui, próximo ao Carmelo, que Davi e seus homens se escondem durante algum tempo. O nome Nabal significa tolo, e é o que ele é. Está escrito que ele é rude e maligno em seu trato (verso 3). Sua esposa é um contraste animador. Abigail é uma bela mistura de boa aparência e boa cabeça.
Davi fica sabendo que Nabal está tosquiando suas ovelhas. Quando a tosquia é feita, há um período de comemoração para todos os trabalhadores, e para qualquer um nas proximidades que não seja tão afortunado. Foi nesta época que Judá subiu a Timna e ali engravidou sua nora, Tamar (Gênesis 38:12-16). Foi durante esta comemoração que Absalão persuadiu Davi a deixar seus filhos virem à sua casa, possibilitando que ele se vingasse de Amnom e o matasse (II Samuel 13:23-29). Sabemos que em tais ocasiões a lei de Moisés instruía os israelitas a serem generosos com aqueles que não fossem tão afortunados (ver Dt. 14:28-29; 26:10-13; Nm. 8:10-12). Assim sendo, Davi pedir um presente a Nabal, não é nenhum pouco incomum. E, uma vez que os homens de Davi contribuíram para o bem-estar e prosperidade de Nabal, o pedido é ainda mais razoável.
Davi envia dez de seus rapazes a Nabal, os quais o cumprimentam em seu nome e pronunciam uma bênção sobre ele e sua casa. Eles chamam a atenção de Nabal para o fato de ser época de tosquia, lembrando-lhe que a presença deles não lhe foi prejudicial, mas que lhe prestaram um grande serviço. Os homens de Davi não fizeram nenhum mal aos servos de Nabal. Pelo contrário, Davi e seus homens protegeram o rebanho de Nabal e seus pastores. Nabal é encorajado a perguntar a seus servos e verificar a veracidade destas palavras. E assim é que, com muita educação, eles solicitam uma oferta a Nabal, esperando paciente e ansiosamente por sua resposta.
“Chegando, pois, os moços de Davi e tendo falado a Nabal todas essas palavras em nome de Davi, aguardaram. Respondeu Nabal aos moços de Davi e disse: Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos são, hoje em dia, os servos que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm? Então, os moços de Davi puseram-se a caminho, voltaram e, tendo chegado, lhe contaram tudo, segundo todas estas palavras. Pelo que disse Davi aos seus homens: Cada um cinja a sua espada. E cada um cingiu a sua espada, e também Davi, a sua; subiram após Davi uns quatrocentos homens, e duzentos ficaram com a bagagem.”
Lá estão os dez homens de Davi diante de Nabal aguardando sua resposta, ou melhor, sua oferta. Nabal tem várias opções: 1) Ele pode mandá-los de volta com uma palavra de agradecimento e uma oferta generosa; 2) Pode mandá-los de volta com uma oferta não tão generosa, simplesmente para cumprir sua obrigação; 3) Pode mandá-los de volta com uma desculpa (ou uma palavra de agradecimento), mas sem nenhuma oferta; 4) E pode mandá-los de volta sem nenhuma oferta, insultando-os junto com a recusa. Para seu total prejuízo, Nabal escolhe a última opção.
À primeira vista, pelas palavras de Nabal, parece que ele nem mesmo sabe quem seja Davi. Se isso fosse verdade, Nabal estaria simplesmente se recusando a dar uma oferta a um estranho. Mas ele sabe quem é Davi. Ele nos diz, com suas próprias palavras, que Davi é “o filho de Jessé”. Ele sabe que Davi é descendente de Judá, tal como ele. Nabal é “da casa de Calebe” (verso 3), e sabemos que Calebe foi o representante da tribo de Judá enviado à Canaã para espiar a terra (Números 13:6). Em outras palavras, Davi é um parente distante de Nabal; contudo, ele se mostra indiferente ao pedido de Davi nesta época de comemoração.
Entretanto, Nabal sabe bem mais do que isso. Ele não só sabe que Davi é um “filho de Jessé”, mas também está totalmente ciente da tensão existente entre ele e Saul. Nabal fala de Davi como um ”servo de Saul”, que está “fugindo de seu senhor”. Abigail, a mulher de Nabal, sabe que Davi é aquele que foi designado para reinar em lugar de Saul (versos 30-31). Nabal fala de Davi apenas como um servo que foge de seu senhor, como se ele fosse simplesmente um escravo fugitivo. Não acho que Nabal recuse o pedido de Davi por temer uma represália de Saul, sabendo o que aconteceu a Abimeleque, e aos sacerdotes, quando este deu a Davi do pão sagrado, junto com a espada de Golias. Sua mensagem a Davi não é por medo de represália, mas por puro egoísmo e maldade. Ele não dividirá com Davi e seus homens qualquer coisa que seja sua (repare na repetição do pronome “meu” no verso 11).
As últimas palavras da recusa de Nabal são dignas de nota. Ele diz aos mensageiros de Davi: “Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (verso 11, ênfase minha). Se compreendo bem suas palavras, aqui ele revela todo seu orgulho e arrogância. Nabal é da “casa de Calebe”. Ele vem de uma família proeminente. Por outro lado, Davi e seus homens parecem vir de alguma raiz obscura e desconhecida. Por que um homem da posição de Nabal deveria dar qualquer coisa a essa gentalha? A grande ironia é que Davi e Nabal vêm da mesma raiz, Judá. E se Nabal pensa que pode se gabar por Calebe fazer parte de sua árvore genealógica, ele deveria se tocar e perceber que ele não é nada parecido com seu antepassado, Calebe, mas Davi é exatamente esse mesmo tipo de herói.
Os homens de Davi voltam de mãos vazias. Eles repetem as palavras de Nabal e Davi “perde completamente a paciência”. “Cinjam suas espadas!” ele ordena, enquanto agarra sua espada e parte para fazer Nabal pagar de um jeito bem diferente: com a sua vida e a de todos os homens de sua casa. Em termos atuais, Davi “perde a cabeça”. Nos versos 21 e 22, Davi ainda está fumegando e, quando suas palavras são reveladas, entendemos o por quê:
Ora, Davi dissera: Com efeito, de nada me serviu ter guardado tudo quanto este possui no deserto, e de nada sentiu falta de tudo quanto lhe pertence; ele me pagou mal por bem. Faça Deus o que lhe aprouver aos inimigos de Davi, se eu deixar, ao amanhecer, um só do sexo masculino dentre os seus.
Davi fica furioso porque aquilo que fez não trouxe o resultado esperado. Ele não está pensando na questão “a longo prazo”. De seu ponto de vista, ele tratou Nabal de modo amigável, e agora é a vez de Nabal tratá-lo da mesma maneira. Mas, em vez de abençoar Davi e seus homens, ele os insulta e manda embora com as mãos abanando. Davi conclui que todas as coisas boas que fez foram à toa. E se Nabal devolve o bem com o mal, Davi agora tem uma justificativa para devolver o mal com o mal.
Seria bom que fizéssemos uma pausa para refletir sobre a atitude e as ações de Davi. Deixe-me resumir seu raciocínio.
Davi faz coisas boas para Nabal e sua família.
Davi espera que Nabal responda com bondade e, em vez disso, recebe apenas um insulto.
Davi agora se sente justificado em sua intenção de matar Nabal e os homens de sua família.
Quase todos nós raciocinamos da mesma forma que Davi. No entanto, preciso lhe dizer que ele está errado, absolutamente errado. Ele não tem razão em esperar que o bem que fazemos seja retribuído da mesma forma. Ele fez o bem para Saul; ele o serviu fielmente e se recusou a tirar sua vida quando teve oportunidade para isso. Mas Saul retribuiu com o mal ao invés de com o bem, o que confessou a Davi:
Pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. (I Sam. 24:17b-18).
Por alguma razão, Davi está disposto a relevar o tratamento que lhe é dispensado por Saul, mas não os insultos de Nabal. Por quê? Acho que talvez tenhamos uma pista. Primeiro, Saul é o superior de Davi, em questão de autoridade. Davi é seu servo. Ele está disposto a aceitar um tratamento injusto de seu superior. Segundo, o reino foi prometido a Davi, já que Saul está fora do páreo. Davi pode lidar com os maus tratos de Saul porque sabe que em pouco tempo ocupará seu trono.
Nabal não é seu superior e Davi não gosta nenhum pouquinho do tratamento recebido dele. Além do mais, quando sai para matar Nabal e os homens de sua família, Davi não está pensando ou agindo como um homem de fé. Ele espera um “retorno” imediato de seu “investimento” em Nabal. Ele espera que a retribuição venha já. Portanto, ele não procura uma recompensa celestial.
Quantos de nós não ministram aos outros com uma fita métrica nas mãos? Estamos dispostos a amar e a servir aos outros com sacrifício, mas com algumas expectativas. Esperamos que o amor e o sacrifício sejam retribuídos. Quando, em retribuição pelas coisas boas que fazemos, nosso próximo nos paga com o mal, ficamos loucos da vida e procuramos um jeito de nos vingar, da mesma forma que Davi. A gente se esquece que, como Cristo, nossas palavras e ações podem trazer perseguição e sofrimento, em vez de aprovação e gratidão. Nossa recompensa no céu será grande, mas talvez não haja tais recompensas na terra. Sejamos diligentes em fazer boas obras para o Senhor, esperando Nele a nossa recompensa, e não naqueles que são alvo de nosso sacrifício. Davi talvez tenha descoberto que o problema em agir como servo é que as pessoas começam a tratá-lo como tal. Uma coisa é servir para ser promovido; outra, totalmente diferente, é servir para ser rebaixado.
Nesse meio tempo, um dentre os moços de Nabal o anunciou a Abigail, mulher deste, dizendo: Davi enviou do deserto mensageiros a saudar a nosso senhor; porém este disparatou com eles. Aqueles homens, porém, nos têm sido muito bons, e nunca fomos agravados por eles e de nenhuma coisa sentimos falta em todos os dias de nosso trato com eles, quando estávamos no campo. De muro em redor nos serviram, tanto de dia como de noite, todos os dias que estivemos com eles apascentando as ovelhas. Agora, pois, considera e vê o que hás de fazer, porque já o mal está, de fato, determinado contra o nosso senhor e contra toda a sua casa; e ele é filho de Belial, e não há quem lhe possa falar.
Um dos rapazes que servem a Nabal observa o encontro entre seus servos e os servos de Davi. Ele sabe o quanto Davi e seus homens beneficiaram seu senhor e o quanto a resposta de Nabal será ofensiva a Davi. De alguma forma ele sabe que Davi está vindo e que, se algo dramático não for feito imediatamente, todos terão muitos problemas. Ele também sabe que Nabal é louco, alguém com quem não se pode argumentar. Assim, o servo não fala com Nabal, mas rapidamente coloca Abigail a par da situação e da necessidade de uma ação imediata. Parece que este servo tem grande respeito por Abigail e seu discernimento, e é por isso que ele a procura. Ele não sugere a Abigail o que fazer, simplesmente lhe conta os fatos e a incentiva a agir com sua reconhecida sabedoria.
Então, Abigail tomou, a toda pressa, duzentos pães, dois odres de vinho, cinco ovelhas preparadas, cinco medidas de trigo tostado, cem cachos de passas e duzentas pastas de figos, e os pôs sobre jumentos, e disse aos seus moços: Ide adiante de mim, pois vos seguirei de perto. Porém nada disse ela a seu marido Nabal. Enquanto ela, cavalgando um jumento, descia, encoberta pelo monte, Davi e seus homens também desciam, e ela se encontrou com eles. Ora, Davi dissera: Com efeito, de nada me serviu ter guardado tudo quanto este possui no deserto, e de nada sentiu falta de tudo quanto lhe pertence; ele me pagou mal por bem. Faça Deus o que lhe aprouver aos inimigos de Davi, se eu deixar, ao amanhecer, um só do sexo masculino dentre os seus.
Precisamos observar que Abigail não pergunta ou informa a Nabal sobre o que está fazendo. Ela não pergunta porque sabe qual será sua resposta. E não o informa porque, sem dúvida, ele ordenará a seus servos que não sigam suas instruções. Logo veremos que a atitude de Abigail é um exemplo de verdadeira submissão, mesmo que aparentemente não seja.
Agindo rapidamente, Abigail reúne porções generosas de alimento, que envia adiante dela por seus servos. Rapidez é essencial. Davi está a caminho, e está determinado a matar todos os homens que encontrar na casa de Nabal, incluindo o próprio Nabal. Parece que os suprimentos alcançam Davi e seus homens antes de Abigal, embora isto não esteja explícito. Só está escrito que ela envia os suprimentos adiante de si, para não retardar sua entrega a Davi.
Não posso deixar de imaginar onde Abigail conseguiu todos esses suprimentos com tanta rapidez. Acho que sei e, se estiver certo, realmente é uma situação muito engraçada. Sabemos que Abigail envia a Davi 200 pães, 2 odres de vinho, 5 ovelhas já preparadas, além de uma generosa porção de trigo, uvas passas e figos. Também sabemos que, enquanto Abigail está indo, Nabal está dando uma festa em sua casa, uma festa digna de um rei (verso 36). Creio que os suprimentos que ela envia a Davi venham dos suprimentos que Nabal planeja consumir em sua festa. Você pode imaginar a cara dele quando entra na despensa e descobre que uma boa parte de seu banquete desapareceu? Mesmo assim, é evidente que nada vai faltar.
Tendo enviado os alimentos à sua frente, Abigail avança montanha abaixo, fora da vista de Davi e seus homens. Da mesma forma, Davi vem de um ponto mais alto, só que ainda está remoendo os insultos de Nabal e ensaiando o que fará quando puser as mãos naquele déspota ingrato. Sem que qualquer dos dois grupos perceba, Davi e Abigail se encontram e, de repente, estão face a face.
Vendo, pois, Abigail a Davi, apressou-se, desceu do jumento e prostrou-se sobre o rosto diante de Davi, inclinando-se até à terra. Lançou-se-lhe aos pés e disse: Ah! Senhor meu, caia a culpa sobre mim; permite falar a tua serva contigo e ouve as palavras da tua serva. Não se importe o meu senhor com este homem de Belial, a saber, com Nabal; porque o que significa o seu nome ele é. Nabal é o seu nome, e a loucura está com ele; eu, porém, tua serva, não vi os moços de meu senhor, que enviaste. Agora, pois, meu senhor, tão certo como vive o SENHOR e a tua alma, foste pelo SENHOR impedido de derramar sangue e de vingar-te por tuas próprias mãos. Como Nabal, sejam os teus inimigos e os que procuram fazer mal ao meu senhor. Este é o presente que trouxe a tua serva a meu senhor; seja ele dado aos moços que seguem ao meu senhor. Perdoa a transgressão da tua serva; pois, de fato, o SENHOR te fará casa firme, porque pelejas as batalhas do SENHOR, e não se ache mal em ti por todos os teus dias. Se algum homem se levantar para te perseguir e buscar a tua vida, então, a tua vida será atada no feixe dos que vivem com o SENHOR, teu Deus; porém a vida de teus inimigos, este a arrojará como se a atirasse da cavidade de uma funda. E há de ser que, usando o SENHOR contigo segundo todo o bem que tem dito a teu respeito e te houver estabelecido príncipe sobre Israel, então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar ao coração o sangue que, sem causa, vieres a derramar e o te haveres vingado com as tuas próprias mãos; quando o SENHOR te houver feito o bem, lembrar-te-ás da tua serva.
Repentinamente os caminhos de Abigail e Davi se cruzam, e Abigail imediatamente desmonta, prostrando-se sobre seu rosto diante de Davi (exatamente como Davi fez com Saul no capítulo passado). Tudo o que Abigail faz e diz demonstra sua submissão. Por seis vezes neste parágrafo ela fala de si mesma como serva de Davi, e por catorze vezes se dirige a ele como “meu senhor” (seis e oito vezes em Português - ARA). Ela começa suplicando que ele lance toda a culpa sobre ela, somente sobre ela. Davi não planeja se vingar, matando Nabal e todos os homens de sua família? Abigail suplica que Davi desconte sua raiva nela, se ele quiser. Assim, não só ela tenta salvar a vida de seu marido, como também a de todos os homens de sua família.
Além de se oferecer como bode expiatório para a ira de Davi, Abigail insiste em que ele escute o que ela tem a lhe dizer. Nesse sentido, Davi é bem diferente de Nabal, que não escuta ninguém (verso 17). Para o seu próprio benefício, Davi escuta. Ela começa suplicando que ele não leve a sério seu marido. Ela diz que não fez parte da decisão de Nabal de insultar Davi e despachar seus servos de mãos vazias. As jumentas que estão por ali, carregadas com os suprimentos, certamente dão credibilidade à sua afirmação. Ela diz a Davi que o caráter de seu marido é tal qual seu nome, que quer dizer “louco”.
Como é que esta mulher pode chamar seu marido de “louco” e ser tão considerada, como é óbvio em nosso texto? A resposta não é tão difícil. Seu marido é louco. Sem discussão. Seu servo sabe disso (verso 17) e todos os que o conhecem. Mas, em nosso texto, há uma boa razão para Abigail chamá-lo de louco. Talvez seja o que o mantenha vivo. Lembra-se de quando Davi procurou refúgio em Gate, a cidade de Golias? Quando percebeu que sua vida estava em perigo, Davi fingiu ser um lunático. Sem dúvida o rei o teria matado, se pensasse que ele era são. Mas, quando ficou convencido de que Davi estava doido, ele não o matou, somente o expulsou da cidade. Não há honra, nem status em matar gente louca. Fingir-se de louco salvou a vida de Davi. Chamar Nabal de louco pode ter salvo sua vida.
Se Abigail conseguiu convencer Davi de que matar Nabal não valerá o esforço, agora ela insiste em lhe mostrar o quanto a vingança lhe será prejudicial. Ela inicia mostrando a Davi que o Senhor o impediu de derramar sangue e de se vingar com suas próprias mãos (verso 26). Será que ela se refere a este exato momento ou está falando da maneira como Deus o impediu de se vingar de Saul, um capítulo antes? Não tenho certeza. Mas, com estas palavras ela indica que a mão de Deus está em todas as coisas, que Deus está impedindo Davi de derramar sangue inocente e de se vingar. Ela tem certeza de que, se Davi deixar a vingança para Deus, Ele lidará com Nabal da maneira apropriada, assim como com todos os outros que intentarem o mal contra Davi.
Abigail suplica que Davi aceite seu presente e o divida com seus homens. Ela implora que ele perdoe sua transgressão contra ele, como se toda a culpa fosse dela. A seguir, ela tem seu melhor momento. Seu marido, Nabal, despreza Davi como se ele fosse um joão-ninguém, um simples arruaceiro? Pois ela, não. Abigail lhe assegura que ele se tornará o rei de Israel e que seu reino permanecerá. Davi luta as batalhas do Senhor, diz ela, e por isso, nele não será achado mal em todos os seus dias. Se alguém se levantar contra ele para lhe tirar a vida, ele deve saber que sua vida é preciosa para Deus. Por outro lado, a vida de seus inimigos não tem valor. Deus as arrojará como se as atirasse da cavidade de uma funda.
Para Abigail não há dúvida de que Davi será o próximo rei de Israel. A promessa de Deus a ele a esse respeito será cumprida, e Deus o estabelecerá no governo de Israel (verso 30). Que trágico seria para Davi ter uma nuvem negra sobre seu reinado, uma nuvem produzida por uma atitude intempestiva em busca vigança e derramamento de sangue inocente. A Lei de Moisés no Velho Testamento estabelece um princípio de justiça: olho por olho, dente por dente (ver Êxodo 21:24; Levítico 24:20; Deuteronômio 19:22; ver também Mateus 5:38). Nabal insultou Davi. Esse crime é seu. Pelo que é dito, os homens de sua família não fizeram nada de errado para Davi ou seus homens. Matar Nabal e os homens de sua família por ele ser egoísta e ofensivo é derramar sangue inocente, pois o castigo é pior do que o delito.
Abigail assegura a Davi que Deus fará o bem que disse a seu respeito. Se os planos de Deus são para o bem, por que Davi tem tanta intenção em fazer o mal? Sua atitude e seu comportamento não estão de acordo com a vontade e as palavras de Deus. Davi é um homem segundo o coração de Deus, por isso, ele verdadeiramente se arrependerá de todas as coisas que intenciona fazer neste momento. Ele lamentará e sentirá o coração pesado por aquilo que está prestes a fazer. Da mesma forma que sua consciência o acusou quando ele estava na caverna no capítulo 24, ela o acusará novamente. Por que não acabar logo com isso, deixando de lado essa raiva descabida?
Alguns poderiam se perguntar se Abigail ouviu algum comentário sobre o encontro de Davi com Saul naquela caverna, que fica nas proximidades, conforme descrito no capítulo anterior. Se ela ouviu, ela se utiliza daquilo que sabe. Se não, Deus colocou em sua boca as palavras que fazem Davi pensar naquele incidente. Abigail simplesmente incentiva Davi a agir de acordo com seus próprios padrões, com seus princípios, como ele os expressou no capítulo 24. Abigail o encoraja a lidar com Nabal da mesma forma que lidou com Saul. Deixando a vingança para Deus, sem derramar sangue inocente.
Quando Davi se recordar deste incidente e reconhecer que Abigail lidou com ele com sabedoria, ele se lembrará dela. Não creio que ela perceba as implicações do que está dizendo, ou de como Deus em breve a abençoará, dando cabo de Nabal e tornando-a esposa de Davi. Suas palavras soam como as palavras de José, ditas ao copeiro de Faraó em Gênesis 40:14-15.
Então, Davi disse a Abigail: Bendito o SENHOR, Deus de Israel, que, hoje, te enviou ao meu encontro. Bendita seja a tua prudência, e bendita sejas tu mesma, que hoje me tolheste de derramar sangue e de que por minha própria mão me vingasse. Porque, tão certo como vive o SENHOR, Deus de Israel, que me impediu de que te fizesse mal, se tu não te apressaras e me não vieras ao encontro, não teria ficado a Nabal, até ao amanhecer, nem um sequer do sexo masculino. Então, Davi recebeu da mão de Abigail o que esta lhe havia trazido e lhe disse: Sobe em paz à tua casa; bem vês que ouvi a tua petição e a ela atendi.
As palavras de Abigail soam verdadeiras a Davi. O que ela lhe diz se enquadra em tudo o que Deus tem ensinado a ele. Ele sabe que ela tem razão, e admite isso elogiando-a na frente de seus homens. Davi reconhece que Abigail, literalmente, é uma dádiva de Deus, e que por meio de sua atitude e de suas palavras, Deus o impediu de fazer a coisa errada vigando-se de Nabal, derramando, assim, sangue inocente. Se ela não tivesse agido rapidamente, Davi teria concretizado seu plano. Ela o salvou de agir com estupidez e culpa e, ao mesmo tempo, poupou a vida de seu marido e de todos os homens de sua família. Atendendo ao seu pedido, Davi aceita seu presente e a manda para casa em paz.
“Voltou Abigail a Nabal. Eis que ele fazia em casa um banquete, como banquete de rei; o seu coração estava alegre, e ele, já mui embriagado, pelo que não lhe referiu ela coisa alguma, nem pouco nem muito, até ao amanhecer. Pela manhã, estando Nabal já livre do vinho, sua mulher lhe deu a entender aquelas coisas; e se amorteceu nele o coração, e ficou ele como pedra. Passados uns dez dias, feriu o SENHOR a Nabal, e este morreu.”
Totalmente sem noção da estupidez de sua atitude, e do quanto esteve próximo da morte, Nabal está festejando como um rei em sua casa, quando Abigail regressa. Ele está com o coração alegre, o que, provavelmente, só acontece quando está bêbado, como agora. Sabiamente, Abigail não lhe diz nesse momento o que aconteceu durante o dia. Quando amanhece, Nabal acorda com a cabeça mais desanuviada, e então Abigail o informa de tudo o que aconteceu no dia anterior. A cor some do rosto de Nabal quando ele começa a compreender a magnitude de sua loucura. Ele fica paralisado de medo. Nosso texto diz “e se amorteceu nele o coração, e ficou ele como pedra”. Talvez isto signifique que ele tenha tido um ataque do coração. Dez dias depois, o Senhor o fere de morte. Como foi melhor este louco morrer pelas mãos do Senhor do que pelas mãos de Davi.
“Ouvindo Davi que Nabal morrera, disse: Bendito seja o SENHOR, que pleiteou a causa da afronta que recebi de Nabal e me deteve de fazer o mal, fazendo o SENHOR cair o mal de Nabal sobre a sua cabeça. Mandou Davi falar a Abigail que desejava tomá-la por mulher. Tendo ido os servos de Davi a Abigail, no Carmelo, lhe disseram: Davi nos mandou a ti, para te levar por sua mulher. Então, ela se levantou, e se inclinou com o rosto em terra, e disse: Eis que a tua serva é criada para lavar os pés aos criados de meu senhor. Abigail se apressou e, dispondo-se, cavalgou um jumento com as cinco moças que a assistiam; e ela seguiu os mensageiros de Davi, que a recebeu por mulher. Também tomou Davi a Ainoã de Jezreel, e ambas foram suas mulheres, porque Saul tinha dado sua filha Mical, mulher de Davi, a Palti, filho de Laís, o qual era de Galim.”
Davi recebe a notícia de que Nabal está morto. Ele reage com surpresa e gratidão. Ele louva ao Senhor por pleitear sua causa e afastar sua represália contra Nabal. Ele declara que Deus realmente o impediu de fazer o mal. Agora ele percebe como foi melhor deixar a vingança para Deus. O Senhor eliminou Nabal, não Davi. É assim que deve ser, e tudo devido à sabedoria de uma mulher, Abigail.
Mensageiros de Davi chegam à casa de Abigail. Eles têm uma mensagem simples. Não é bem uma proposta de casamento, parece mais como uma convocação: “Davi nos mandou a ti, para te levar por sua mulher.” Não é preciso pedir duas vezes a esta mulher decidida. Rapidamente ela se prosta em terra, aceitando humildemente a proposta. Ela não se considera como rainha de Davi, mas como uma serva, que lavará com alegria os pés de seus servos. Ela se levanta, e acompanhada por cinco de suas criadas, segue os homens de Davi até seu esconderijo, onde se torna sua esposa.
Os versos finais deste capítulo nos informam que Abigail é a segunda mulher de Davi. Ele já havia tomado por esposa a Ainoã de Jezreel. Mical também foi sua esposa, mas na época em que ele se escondia de Saul, o rei a deu por esposa a Palti, o filho de Laís.
Cada um dos personagens principais deste capítulo tem algo a nos ensinar. Vamos concluir observando as lições que podemos aprender de Abigail, Nabal e Davi.
O capítulo 25 de I Samuel parece começar e terminar com comentários casuais sem nenhuma relação entre eles. O verso um diz que Samuel morreu. Nos versos 43 e 44, somos informados que, enquanto Davi ganhou uma segunda esposa, ele perdeu outra (Mical). Não acho que estas observações sejam casuais. Creio que foram incluídas com um propósito específico. Davi sofreu a perda de duas pessoas importantes em sua vida. Samuel foi o profeta de Deus que o ungiu e aquele a quem ele poderia recorrer quando fosse perseguido por Saul (ver 19:18-24). Realmente não sabemos muita coisa sobre Ainoã, a primeira esposa de Davi. Sabemos que era uma Jezreelita, e que foi a mãe de Amnon (II Samuel 3:2), o filho de Davi que violentou sua irmã, Tamar (II Samuel 13). Mical, no entanto, foi a segunda filha oferecida por Saul a Davi como esposa (I Samuel 18), e parece ter havido um amor especial entre eles, pelo menos a princípio (18:20-29). O fato de ela ter sido dada a outro homem como esposa deve ter sido um duro golpe prá Davi.
Pela seqüência dos acontecimentos descritos no capítulo 25, concluo que Deus providencia uma companheira muito sábia para Davi para compensá-lo pela perda de Samuel e Mical. As palavras de Abigail soam praticamente como um eco das profecias de Samuel a respeito de Davi. Sua sabedoria permite que ela seja íntima e conselheira de seu marido. Sua beleza deve ter ido muito além de amenizar a perda de Mical. Modificando a expressão bíblica, temos: ”o SENHOR o tomou e o SENHOR o deu” (ver Jó 1:21). Como a providência de Deus é maravilhosa. É Ele quem cuida de Nabal, muito melhor do que Davi. É Ele quem dá, então, a viúva de Nabal a Davi, uma mulher que ele pode amar e respeitar. Deus fielmente provê as nossas necessidades, no tempo em que Ele sabe que precisamos.
Abigail é uma ilustração (um tipo, se preferir) da providência de Deus para a salvação do homem. Devido à loucura de Nabal, toda a família de Abigail está em perigo. Todos os homens estão condenados à morte. A menos que ela faça alguma coisa, eles serão mortos por Davi. Com sabedoria e humildade, Abigail se apresenta, assumindo a culpa por todos os condenados, oferecendo-se em seu lugar (ver o verso 24). Este não é um retrato, um tipo de nosso Senhor Jesus Cristo? Devido ao pecado de Adão, e ao nosso próprio pecado, todos fomos condenados à morte. O dia do julgamento se aproxima, mas o Senhor Jesus Cristo (que foi totalmente inocente e sem culpa) Se apresentou, levando sobre Si os nossos pecados e a nossa culpa. Ele Se ofereceu em nosso lugar na cruz do Calvário. Ele suportou a pena pelos nossos pecados. E, mediante a fé Nele, podemos entrar na vida eterna. E, Nele, nos tornamos a noiva de Cristo.
Além disso, Abigail ilustra as características da verdadeira submissão. Sem dúvida, esta afirmação o pegará de surpresa. Como uma mulher, que se recusa a consultar o marido, que age contrariamente à sua vontade e à sua ordem, e que o chama de louco, pode ser considerada uma esposa submissa? Gostaria de sugerir que ela parece insubmissa somente na aparência. É claro que ela age independentemente de seu marido. O que ele se recusa a fazer é exatamente o que ela faz. No entanto, em seu íntimo, ela é realmente submissa. Pensar que submissão é mera obediência cega, ou sujeição à vontade e aos desejos de uma autoridade superior, é insuficiente para caracterizar a verdadeira submissão. Verdadeira submissão é buscar eficazmente o bem de outra pessoa, pela sujeição de nossos próprios interesses. A verdadeira submissão está definida em Filipenses 2:
Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há entranhados afetos e misericórdias, completai a minha alegria, de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento. Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.
Abigail não age de forma que pareça ser por interesse pessoal. Seria muito melhor agir como uma esposa perfeita, fazendo exatamente o que Nabal quer. Se ela tivesse simplesmente ficado em casa, servindo outro drinque a Nabal, ela seria “libertada” por Davi. Seu marido inútil teria sido morto, e ela ficaria livre de sua tirania. Abigail é verdadeiramente submissa naquilo que procura salvar seu marido (e todos os outros homens de sua família). Ao procurar salvá-los, ela coloca sua vida em risco. Ela sai, sozinha, para se encontrar com um homem que está disposto e é capaz de matar toda a sua família. Quando ela se encontra com Davi, ela pede que ele lance toda a sua raiva sobre ela, somente sobre ela. Ela é submissa ao agir de maneira que beneficie seu marido, mesmo que seja às suas próprias custas. Não fazer nada (parecendo, assim, submissa), favorecerá a ela às custas de seu marido.
Quero ser muito cuidadoso naquilo que estou dizendo, e naquilo que você pensa que estou dizendo. Na maioria das vezes, a submissão é demonstrada pela obediência a alguma autoridade superior. Na maioria das vezes, nossa submissão é demonstrada quando procuramos honrar alguém a quem estamos sujeitos. Mas há vezes em que a submissão irá se parecer com algo além. Há vezes em que devemos agir de modo contrário aos desejos daquele a quem estamos sujeitos. Isto só pode acontecer quando a vontade de Deus é claramente contraditória à vontade e aos desejos de nosso superior. Isto só pode acontecer quando agirmos de forma que nos seja custosa, mas verdadeiramente benéfica para o outro.
Estou tentanto dizer que esta forma de submissão - a de Abigail - é uma exceção, não a regra. No entanto, há vezes em que procuramos nos consolar “sujeitando-nos” àquilo que é errado, e chamamos a isso de submissão. A submissão cristã sempre se submete primeiro a Deus, e depois aos homens que estão em conformidade com a submissão a Deus. A submissão cristã sempre procura o interesse dos outros acima de seus próprios interesses. E, às vezes, a submissão cristã requer até mesmo agir de modo contrário à vontade e aos desejos daquele a quem estamos sujeitos. Eu disse essas coisas não para que você jogue fora sua definição de submissão, mas para que você a amplie. Tenhamos muito cuidado para não fazer disto um pretexto para o nosso próprio pecado.
Finalmente, aprendamos com Abigail que submissão talvez seja a melhor postura para admoestar e corrigir um irmão crente. Você reparou que Abigail não tenta corrigir Nabal? Tenho a impressão de que seja porque ela já tentou argumentar com ele antes e descobriu que não é sensato tentar corrigir um tolo. Seu servo também sabia disso, conforme indicado por suas palavras. Mas desejo mostrar que Abigail não é apenas submissa a seu marido, ela também é submissa ao seu futuro rei. Como poderia Abigail submeter-se a Deus sem também submeter-se a Davi como futuro rei? Nosso texto deixa bem claro que Abigail, com toda humildade e submissão, procura repreender e admoestar Davi. No momento, ele está de cabeça quente e agindo como tolo. A atitude dela, e suas palavras, o fazem mudar de idéia. E isto acontece devido à sua submissão.
Estar sujeito a outra pessoa (especialmente a outro crente) não é desculpa para fazer vista grossa ao ver alguém agindo de modo contrário à vontade e à Palavra de Deus. Com muita freqüência ouço as pessoas se isentarem do dever fraterno de advertir e repreender alguém porque estão sujeitos a essa pessoa. De acordo com nosso texto, gostaria de sugerir que atitude e conduta submissas sejam a melhor postura para procurar corrigir alguém. Quando procuramos corrigir “de cima para baixo” é muito mais difícil demonstrar humildade e santo temor. Encaremos nossa responsabilidade procurando aquilo que é melhor para os nossos superiores, repreendendo-os quando for necessário, de maneira que continue a demonstrar nossa humildade e submissão.
“Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana. Mas prove cada um o seu labor e, então, terá motivo de gloriar-se unicamente em si e não em outro. Porque cada um levará o seu próprio fardo.”
Já mostrei que Davi erra ao buscar recompensa por seus esforços na vida presente, não na eternidade. Ele está disposto a ajudar Nabal, mas só se sentir que isso vale a pena. Quando percebe que Nabal não tem nenhuma intenção de demonstrar gratidão, Davi está pronto a se vingar. Uma vez mais, ele quer se vingar nesta vida em vez de deixar o problema com Deus. Nesse momento, Davi vive para o aqui e agora, não para a eternidade. Os apóstolos do Novo Testamento nos exortam a viver agora à luz da eternidade:
“Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra contra a alma, mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação.”
“Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus.”
A galeria da fé de Hebreus 11 está cheia de homens e mulheres que viveram suas vidas terrenas à luz das promessas de Deus e, desta forma, na certeza das recompensas eternas.
A vida de Abraão é um exemplo de nossa instabilidade como cristãos, da inconstância da nossa fé e obediência. Alguns poderiam pensar que depois das conseqüências dolorosas de fazer Sara se passar por sua irmã no Egito, ele jamais faria isso de novo. No entanto, quando lemos Gênesis 20, vemos que Abraão tinha este artifício acerca de sua esposa como questão de política externa, que ele usava onde quer que fossem (20:13). Os triunfos do passado não garantem as vitórias do futuro. Devemos sempre estar atentos à nossa falibilidade, e sempre depender de Deus, por intermédio de Sua Palavra e de Seu Espírito.
Davi, como todos nós, fracassa na área da “conectividade”. Ele podia ver a “conexão” entre sua fé, as promessas de Deus e sua atitude para com Saul na caverna (capítulo 24). Mas, por alguma razão, os mesmos princípios que o guiaram no capítulo 24 são completamente ignorados no capítulo 25. As sábias palavras de Abigail o raelembram da “conexão” destas verdades com os insultos e a loucura de Nabal. Penso nos apóstolos e líderes da igreja em Jerusalém, conforme descrito em Atos 10 e 11. Eles desceram a lenha em Pedro por ir à casa de um gentio e pregar o evangelho àqueles que estavam ali reunidos. Logo depois chegaram à conclusão de que Deus realmente salvava tanto gentios como judeus (Atos 11:18). No entanto, quando saíam para pregar, continuavam evangelizando apenas os judeus (Atos 11:19). Eles não viam a “conexão” entre a lição dada por Deus e suas vidas. E assim é com cada um de nós.
Davi é um lembrete da maravilhosa graça que Deus nos concede, especialmente (neste capítulo) por Suas intervenções divinas que nos impedem de agir com estupidez. Sabemos que somos salvos somente pela graça de Deus, sem quaisquer obras de nossa parte. Sabemos também que as coisas boas e que são claras em nossa vida são resultados da graça de Deus. Como uma senhora certa vez se exprimiu com bastante entusiasmo: “É tudo de graça.” E é, e, dentre as coisas que fazem parte da graça, está a intervenção divina que nos afasta do pecado e da nossa própria loucura. Não estou dizendo que Deus nos afasta de todos os pecados; estou dizendo que, não fosse a intervenção de Deus em nossos afazeres diários, haveria muito mais pecado do que há. Se fosse deixado por sua conta, Davi teria feito realmente uma grande confusão quando atacasse Nabal e sua casa. Pergunto-me quantas coisas estúpidas faríamos se Deus não bloqueasse nosso caminho, da mesma forma que o anjo de Deus bloqueou o caminho de Balaão. Graças a Deus por Suas intervenções!
Finalmente, aprendemos com Davi sobre sua disposição em aprender com um subordinado. Davi é o homem designado como próximo rei de Israel. Ele tem consigo 600 homens, incluindo Abiatar, o sacerdote, e também a “estola sacerdotal”, pela qual a vontade de Deus pode ser consultada. A despeito de todos estes meios de orientação divina, ele se dispõe a ouvir as palavras desta mulher, Abigail. Davi talvez esteja agindo como tolo, mas, pelo menos, está disposto a reconhecer a sabedoria das palavras de Abigail. Ele a ouve e entende. Ele parece compreender que a verdade nem sempre segue uma ordem hierárquica. Algumas pessoas só ouvirão alguém que tenha autoridade sobre elas. Elas pensam que não podem aprender com um subordinado. Muitos maridos não conseguem compreender que a sabedoria de Deus pode lhes ser transmitida através de suas esposas, e até mesmo de seus filhos. Devemos reconhecer que a sabedoria e os dons espirituais não correspondem, necessariamente, ao posto ou ao lugar de alguém na cadeia de comando. Vamos aprender a reconhecer a sabedoria e a recebê-la de qualquer fonte usada por Deus.
Nabal representa grande parte daquilo que há de pior nos homens. Ele é arrogante e autosuficiente. Não reconhece que sua prosperidade vem de Deus. Ele julga os homens por padrões externos, tais como seus antepassados e sua popularidade. Ele não dá valor à sabedoria e não ouvirá aqueles que poderiam poupá-lo de muitos problemas, e até mesmo salvar sua vida. Ele não dá valor à sua esposa e à sabedoria que Deus lhe deu. Ele acha que a riqueza é a medida de um homem e, desta forma, sente que não precisa de ninguém além de si mesmo. Ele é um homem que não tem a mínima noção da destruição que jaz à sua frente. Nabal é o pior tipo de homem que existe. Ele é totalmente carente da graça de Deus, mas completamente confiante naquilo que pode fazer por si mesmo. Nabal não é capaz, e nem o será, de reconhecer o rei de Deus quando o vir, nem quando lhe for apresentado. Nabal é um homem destinado à morte.
Nabal é o que há de pior, e Davi também não tão parece bom, exceto pelo ministério de Abigail. Vamos considerar o valor desta mulher por sua sabedoria, e dar a ela a honra que ela merece:
“Enganosa é a graça, e vã, a formosura, mas a mulher que teme ao SENHOR, essa será louvada. Dai-lhe do fruto das suas mãos, e de público a louvarão as suas obras.”
O raciocínio de alguns estudiosos, quando tratam de nosso texto, seria algo como: “Os acontecimentos do capítulo 26 são incrivelmente parecidos com os do capítulo 24. A semelhança pode ser explicada se presumirmos que os textos sejam apenas narrativas diferentes de um mesmo incidente.” É difícil chegar a esta conclusão sem pensar que o texto das Escrituras esteja de alguma forma corrompido e, por isso, não seja inerrante. É verdade que existem muitas semelhanças entre os dois capítulos. Por exemplo, em ambos os zifeus vão até Saul para informá-lo do paradeiro de Davi. Mas, por que é tão difícil entender os dois capítulos de forma literal e presumir que aquilo que os zifeus não conseguem da primeira vez, eles tentam na segunda?
Os estudiosos têm razão, creio, em apontar as semelhanças entre os dois capítulos. Eles não têm razão, em minha opinião, quando tentam explicar essas semelhanças baseando-se na suposição de que um dos dois, ou ambos os relatos bíblicos, tenham algum problema. Existe uma solução bem mais fácil (e melhor). E começa com a assunção de que a Bíblia é, tal como afirma ser, a Palavra inspirada de Deus, inerrante. Vamos admitir que a proximidade e a semelhança entre as duas narrativas do encontro de Saul com Davi sejam por desígnio divino. Vamos admitir também que o autor (Autor) coloca as narrativas bem perto uma da outra propositadamente, a fim de que notemos sua semelhança. E vamos supor ainda que o autor tenha a intenção de que percebamos tanto as semelhanças quanto as diferenças. Pode ser que as diferenças entre as duas narrativas seja a chave para o entendimento de ambas.
Deixe-me ilustrar o que estou sugerindo. No livro de Gênesis, lemos que os irmãos de José o vendem como escravo para o Egito. Eles o vendem porque estão com ciúmes dele e o odeiam porque é o filho favorito de Jacó. Eles não se importam com o fato de que a venda de José como escravo irá partir o coração de seu pai. Quando José, finalmente, se torna o segundo em comando de Faraó, seus irmãos descem ao Egito para comprar cereal, sem saber que ele é, na realidade, seu irmão. José, então, cria uma situação em que eles devem trazer o irmão mais novo, Benjamim, junto com eles, quando retornarem ao Egito para comprar mais cereal. Depois, ele cria um incidente que faz com que Benjamim pareça culpado de roubo. José dá a seus irmãos a oportunidade de trair seu irmão, Benjamim, deixando-o como escravo no Egito, e retornando a salvo para seu pai. Em resumo, José dá a seus irmãos a chance de, literalmente, reviver sua traição de aproximadamente 20 anos antes. O que importa nesta situação “semelhante” no Egito é a diferença na maneira como reagem os irmãos de José - especialmente Judá. A compaixão deles por Jacó e a preocupação com Benjamim mostram a José que eles realmente se arrependeram de seu pecado contra ele. Propositadamente, a situação é muito parecida com a traição cometida contra José, a fim de que o arrependimento de seus irmãos seja evidenciado nas diferenças entre o segundo e o primeiro incidentes.
Esta situação é bem parecida com a que o autor de I Samuel relata no capítulo 26. No capítulo 24, Davi está com a consciência culpada por ter cortado uma parte do manto de Saul. Embora ele faça muitas coisas certas ao tratar com Saul no capítulo 24, ele não aplica de forma consistente os mesmos princípios ao tratar com Nabal no capítulo 25. Só depois de ser gentilmente repreendido por Abigail é que ele deixa a vingança com Deus e desiste de seu plano de executar Nabal, junto com todos os seus servos. No capítulo 26, encontramos Davi em circunstâncias semelhantes àquelas do capítulo 24. Creio que Deus esteja lhe dando outra oportunidade, uma chance de “fazer a coisa certa”. E ele fará, como veremos. As semelhanças entre os capítulos 24 e 26 nos informam que Davi tem uma segunda chance. As diferenças entre os dois capítulos nos dizem como ele se saiu bem, uma vez mais.
“Vieram os zifeus a Saul, a Gibeá, e disseram: Não se acha Davi escondido no outeiro de Haquila, defronte de Jesimom? Então, Saul se levantou e desceu ao deserto de Zife, e com ele, três mil homens escolhidos de Israel, a buscar a Davi. Acampou-se Saul no outeiro de Haquila, defronte de Jesimom, junto ao caminho; porém Davi ficou no deserto, e, sabendo que Saul vinha para ali à sua procura, enviou espias, e soube que Saul tinha vindo. Davi se levantou, e veio ao lugar onde Saul acampara, e viu o lugar onde se deitaram Saul e Abner, filho de Ner, comandante do seu exército. Saul estava deitado no acampamento, e o povo, ao redor dele.”
Já vimos os zifeus antes. No capítulo 23 está escrito que eles foram até Saul em Gibeá, informando-o sobre o paradeiro de Davi e prometendo entregá-lo a ele (23:19-20). Saul queria ter certeza de que Davi não escorregaria pelo vão de seus dedos, por isso mandou a delegação dos zifeus de volta prá casa, com instruções para identificar todos os possíveis esconderijos de Davi, a fim de garantir sua captura na campanha seguinte (23:21-23). Eles voltaram prá casa e Saul prontamente saiu em intensa perseguição a Davi. Quando Davi soube de sua aproximação, ele se dirigiu mais para o sul, onde quase caiu na cilada armada por Saul na montanha do deserto de Maon. Não fosse pela chegada oportuna de um mensageiro, informando que os filisteus tinham atacado Israel, Saul o teria capturado (23:24-29).
Após seu retorno da perseguição aos filisteus, Saul retomou sua caça a Davi. Aconteceu que Saul fez uma parada para descanso justamente na mesma caverna em que Davi e seus homens estavam escondidos. Enquanto Saul estava na caverna, Davi, sem ser visto, cortou um pedaço de seu manto, mas não permitiu que ninguém lhe fizesse mal. Depois, ele se apresentou a Saul, demonstrando sua inocência ao lhe mostrar o pedaço do manto que acabara de cortar. Naquele momento Saul “se arrependeu” e os dois homens se separaram em paz (capítulo 24). Foi ali que Davi publicamente adotou a posição de que seria errado para ele (ou para qualquer outro) tirar Saul do trono, causando-lhe algum dano, uma vez que isto seria se opor ao ungido de Deus. Davi não faria mal a seu rei; ele buscaria somente o seu bem.
No capítulo 25, vemos que o compromisso assumido por Davi em relação ao bem estar de Saul era algo que ele não estava disposto a estender a Nabal. Davi havia enviado uma delegação de dez homens para pedir a Nabal uma contribuição em alimentos, pois este comemorava o período de tosquia. Rudemente, Nabal se recusa a ceder qualquer alimento, acrescentando à injustiça uma porção de ofensas a Davi e seus seguidores. Davi fica tão irado que se prepara para matar Nabal e todos os homens de sua casa. Devido à sábia intervenção de Abigail, a esposa de Nabal, Davi poupa a vida deste, sendo impedido, desta forma, de agir de forma insensata. Abigail, em seu apelo a Davi, o relembra dos princípios que ele adotou no capítulo 24.
Agora, uma vez mais, encontramos os zifeus denunciando Davi para Saul. Quando eles vão até Saul, este não está no deserto de Zife ameaçando a vida daqueles que poderiam reter informações sobre o paradeiro de Davi. Ele está em sua casa em Gibeá, tendo abandonado a perseguição a Davi, pelo menos por algum tempo. No entanto, com a chegada destes úteis informantes, Saul novamente é compelido a perseguir Davi. Os zifeus são descendentes de Calebe e, por isso, de Judá; eles são compatriotas de Davi, e mesmo assim, denunciam seu futuro rei a um benjamita como Saul.
Saul volta ao deserto de Zife, acompanhado por 3.000 de seus melhores soldados. Desta vez ele não pretende deixar Davi escapar. Saul assenta acampamento no outeiro de Haquila, perto da estrada. Davi permanece na parte mais remota do deserto. Desta vez as coisas vão ser bem diferentes do que na última vez em que os dois se encontraram neste lugar. Da primeira vez Davi procurava escapar, enquanto Saul avançava. Agora é Saul, com seus homens, que estão acampados, e Davi quem toma a iniciativa. Os espiões localizam o acampamento de Saul e informam Davi, que se aproxima com seus homens. Davi olha para baixo e vê Saul dormindo no meio do acampamento, facilmente identificado por seu tamanho, por sua armadura ou vestimenta e, com toda certeza, por sua lança. Ao lado de Saul está deitado seu tio e comandante do exército, Abner. Ao redor de Saul e Abner estão espalhados seus 3.000 soldados, dispostos em ondas concêntricas, tal como quando uma pedra é lançada numa lagoa tranqüila.
“Disse Davi a Aimeleque, o heteu, e a Abisai, filho de Zeruia, irmão de Joabe: Quem descerá comigo a Saul, ao arraial? Respondeu Abisai: Eu descerei contigo. Vieram, pois, Davi e Abisai, de noite, ao povo, e eis que Saul estava deitado, dormindo no acampamento, e a sua lança, fincada na terra à sua cabeceira; Abner e o povo estavam deitados ao redor dele. Então, disse Abisai a Davi: Deus te entregou, hoje, nas mãos o teu inimigo; deixa-me, pois, agora, encravá-lo com a lança, ao chão, de um só golpe; não será preciso segundo. Davi, porém, respondeu a Abisai: Não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do SENHOR e fique inocente? Acrescentou Davi: Tão certo como vive o SENHOR, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto. O SENHOR me guarde de que eu estenda a mão contra o seu ungido; agora, porém, toma a lança que está à sua cabeceira e a bilha da água, e vamo-nos. Tomou, pois, Davi a lança e a bilha da água da cabeceira de Saul, e foram-se; ninguém o viu, nem o soube, nem se despertou, pois todos dormiam, porquanto, da parte do SENHOR, lhes havia caído profundo sono.”
Os observadores de Davi localizam o acampamento de Saul e, acompanhado por pelo menos dois de seus homens, Davi vai até lá. Dois parecem estar junto dele, Aimeleque, o hitita (não confundir com Aimeleque, o sacerdote, que foi morto por Saul), e Abisai, filho de Zeruia, irmão de Joabe e Azael (II Samuel 2:18). Davi conversa com eles, pedindo que um dos dois desça com ele ao acampamento. Aimeleque parece ficar em silêncio, enquanto Abisai se oferece como voluntário.
Imagine por alguns instantes que você seja Abisai. Saul cuidadosamente se posicionou na parte mais interna do círculo feito por suas tropas. Abner, um heróico guerreiro e guarda-costas de Saul, está deitado bem ao lado do rei. Cuidadosamente, você abre caminho por entre esse labirinto de corpos humanos, temendo que, a qualquer momento, alguém acorde. Parece impossível que alguém dentre esses 3.000 homens não esteja de guarda. Você ouve um soldado roncando muito alto e se pergunta se deveria virá-lo de lado, para não acordar os outros. Você pisa num galho seco e ele estala - seu coração quase pára. Você mal pode acreditar que realmente esteja fazendo isso, enquanto está ali, ao lado de Davi, vendo Saul dormir tranqüilamente, com Abner a seu lado. Próximo à cabeça de Saul está sua lança fincada no chão, e sua vasilha d’água.
Se você fosse Abisai, não levaria muito tempo para compreender o que viria a seguir. Sabendo, pelo incidente na caverna, que Davi é sensível quanto à questão de matar Saul, Abisai sussurra: “Deus te entregou, hoje, nas mãos o teu inimigo; deixa-me, pois, agora, encravá-lo com a lança, ao chão, de um só golpe; não será preciso segundo.” Abisai raciocina: “É bem verdade que Davi se recusou a matá-lo na caverna, mas, com certeza, agora ele aprendeu a lição. Se ele relutar, eu o farei. Com certeza, ele não pediu um voluntário para descer até aqui, só para olhar o rei e depois ir embora.” Que debate interessante deve ter havido entre Davi e Abisai, enquanto eles discutem violentamente, mesmo tentando desesperadamente impedir que Saul ou qualquer um de seus homens acordem.
Davi proíbe Abisai de matar Saul basicamente pelas mesmas razões que apresentou na caverna, no capítulo 24. Ninguém pode levantar a mão contra o ungido do Senhor sem incorrer em culpa. No verso 10, Davi vai ainda mais além do que havia dito anteriormente: “Tão certo como vive o SENHOR, este o ferirá”, ele assevera. Davi não sabe como, mas, depois de sua experiência com Nabal e Abigail, ele sabe que Deus pode realizar Sua vontade de diversas maneiras. Ele poderia ferir Saul de morte, Saul poderia morrer de causas naturais, ou ser morto em batalha. Estas são apenas algumas maneiras pelas quais Deus poderia tirar Saul do trono, mas, em todos os casos, isto não será pelas mãos de Davi, nem pelas mãos de qualquer um de seus homens.
Davi foi até lá por causa da lança de Saul e de sua vasilha d’água, e isso é tudo. Assim, ele pega a lança e a jarra, dizendo a Abisai para acompanhá-lo. Posso até ver Abisai balançando a cabeça, enquanto retornam pelo meio daquele labirinto de corpos humanos ao redor de Saul e, finalmente, se esgueiram para a segurança da escuridão. “Que missão suicida! Tudo isso só para pegar uma lança e uma vasilha d’água!” O autor de nosso texto nos informa que este não foi apenas um golpe de sorte, ou uma excelente manobra militar, soubessem eles, ou não. Deus, miraculosamente, fez com que estes 3.000 homens adormecessem. Davi e Abisai poderiam ter gritado um com o outro (será possível que tenham feito?), e ninguém teria acordado. Abisai poderia ter tropeçado e despencado em cima de alguns deles, e ainda assim estariam a salvo. Pergunto-me quantas vezes na história os homens admitiram ter realmente escapado por milagre, ou ter tido um desempenho fantástico em alguma empreitada, sem sequer saber que a mão de Deus estava por trás de tudo.
“Tendo Davi passado ao outro lado, pôs-se no cimo do monte ao longe, de maneira que entre eles havia grande distância. Bradou ao povo e a Abner, filho de Ner, dizendo: Não respondes, Abner? Então, Abner acudiu e disse: Quem és tu, que bradas ao rei? Então, disse Davi a Abner: Porventura, não és homem? E quem há em Israel como tu? Por que, pois, não guardaste o rei, teu senhor? Porque veio um do povo para destruir o rei, teu senhor. Não é bom isso que fizeste; tão certo como vive o SENHOR, deveis morrer, vós que não guardastes a vosso senhor, o ungido do SENHOR; vede, agora, onde está a lança do rei e a bilha da água, que tinha à sua cabeceira.”
A mãe de Davi não criou nenhum tolo. Ele deixa para gritar depois de ter atravessado o que parece ser um vale. Então, estando no topo de uma montanha, longe do alcance de Saul, ele brada ao povo, em geral, e a Abner, em particular. Provavelmente ainda é noite escura, ou a meia claridade das primeiras horas da manhã. Os soldados de Saul, ao que parece, são despertados pelo som da sua voz. Sem distinguir quem está chamando, Abner não reconhece a voz de Davi.
Há uma razão para Davi gritar para os soldados e para Abner, em particular. Ele acusa o grupo todo de não proteger adequadamente seu rei. Por isso, ele insiste que esta falha deve lhes custar a vida. Ao lermos as palavras de Davi para Abner e para os outros, começamos a entender as razões por detrás da desconcertante invasão ao acampamento de Saul. Davi não foi até lá sem mais nem menos, como uma espécie de travessura impulsiva. Ele tinha um plano, que saiu exatamente como o esperado. Quando pediu um voluntário, Abisai se apresentou, tal como suspeito que Davi tenha previsto. Veja, Abisai era um de seus valentes, conforme descrito em II Samuel 23:18-19:
“Também Abisai, irmão de Joabe, filho de Zeruia, era cabeça de trinta; e alçou a sua lança contra trezentos e os feriu. E tinha nome entre os primeiros três. Era ele mais nobre do que os trinta e era o primeiro deles; contudo, aos primeiros três não chegou.”
Abisai é um soldado arrojado, um homem que não tem escrúpulos em tirar a vida dos outros. Davi o levou consigo, sabendo perfeitamente que ele queria matar Saul quando chegassem ao acampamento.
Aqueles a quem Davi se dirige são soldados. Eles estão ali para prender Davi, descrito por alguns como um perigoso fora-da-lei, determinado a matar Saul para se apossar de seu trono. Se fosse assim (ou mesmo se não fosse), eles fazem parte do serviço secreto de Saul. Davi lhes diz que eles falharam no cumprimento de seu dever mais importante - o de proteger o rei. Ele afirma que um suposto assassino foi bem sucedido em penetrar suas defesas e chegar ao rei, com toda intenção de lhe fazer o mal. O rei só respira porque Davi o deteve (a Abisai). Davi tem razão! Apesar de ele não ter se aproximado de Saul para lhe causar algum dano, com certeza esta era a intenção de Abisai. A única razão pela qual Abisai não matou Saul foi porque Davi o deteve. Se algum deles duvidava de que alguém pudesse chegar tão perto de Saul, que procurasse a lança do rei e sua vasilha d’água. Imagine o terror, especialmente de Abner, quando olham para o chão, a algumas polegadas da cabeça de Saul, e vêem o buraco onde a ponta da lança estava encravada e o lugar da vasilha d’água desaparecida e, talvez até um par de pegadas indo e voltando em direção à lança. Davi pede que a segurança de Saul envie um homem até ele para retirar os objetos subtraídos. Ele tem a lança, e prova o que disse.
Na verdade, Davi salvou a vida de Saul. Como comandante-em-chefe de suas forças, Abner é o responsável por esta terrível violação da segurança que pôs a vida do rei em perigo. Ele é o homem no comando. Foi na sua vigília, por assim dizer, que a vida do rei esteve em perigo. E era ele quem estava deitado ao lado do rei, ao alcance de quem o poderia ter morto. Abner é o soldado mais renomado do exército de Saul. Que mancha este incidente coloca em seu currículo! No entanto, a coisa é bem pior, pois falhar em proteger o rei é um crime punível com a morte. Neste caso, não apenas Abner, mas cada um dos 3.000 soldados é culpado de um pecado imperdoável.
Alguém me falou de uma notícia que ouviu no rádio. Ao que parece houve uma tentativa contra a vida do filho de Saddam Hussein. Ele não foi morto, mas, por falharem na sua proteção, todos os membros de sua equipe de segurança foram executados. Davi não está exagerando e, cada um dos soldados perto de Saul deve se perguntar qual será a reação do rei.
“Então, reconheceu Saul a voz de Davi e disse: Não é a tua voz, meu filho Davi? Respondeu Davi: Sim, a minha, ó rei, meu senhor. Disse mais: Por que persegue o meu senhor assim seu servo? Pois que fiz eu? E que maldade se acha nas minhas mãos? Ouve, pois, agora, te rogo, ó rei, meu senhor, as palavras de teu servo: se é o SENHOR que te incita contra mim, aceite ele a oferta de manjares; porém, se são os filhos dos homens, malditos sejam perante o SENHOR; pois eles me expulsaram hoje, para que eu não tenha parte na herança do SENHOR, como que dizendo: Vai, serve a outros deuses. Agora, pois, não se derrame o meu sangue longe desta terra do SENHOR; pois saiu o rei de Israel em busca de uma pulga, como quem persegue uma perdiz nos montes.”
Lentamente Saul começa a despertar, sem dúvida ainda meio grogue, de sua soneca sobrenatural. Ele ouve meio indistintamente a conversa entre Abner e uma voz distante. Ele conhece essa voz; é a voz de nenhum outro que não Davi. Ele já ouviu o bastante para acalmá-lo. Não é a tua voz, meu filho Davi? Davi confirma que de fato é ele. Daqui em diante, Davi assume o comando, perguntando a Saul por que ele o está perseguindo novamente. Ele pergunta que mal fez a Saul que requeira tal atitude. Não há, é claro, nenhuma boa resposta.
O que se segue é ainda mais intrigante. Davi suplica que Saul ouça suas palavras e leve em consideração aquilo que vai dizer. Não é justo Saul procurar matá-lo, pois ele nada fez de errado ao rei. Na verdade, ele acabou de salvar sua vida. Depois disto, Davi vai mais a fundo na questão, do ponto de vista das implicações teológicas. Nos versos 19 e 20 Deus é enfatizado, bem como as conseqüências espirituais da perseguição de Saul a Davi.
É óbvio que Saul acredita que Davi seja culpado de alguma coisa para que tenha de ser caçado e eliminado. Davi mostra que só pode haver duas fontes para Saul chegar a essa conclusão. Por um lado, é possível que ele, Davi, tenha realmente pecado, e que o Senhor tenha induzido Saul a resolver o problema. Se for assim, Saul só precisa dizer qual é o pecado de Davi, para que ele possa expiá-lo, oferecendo um sacrifício aceitável a Deus. Se for assim, não há necessidade de Saul persegui-lo e puni-lo, visto que Deus já o perdoou.
Há ainda outra possibilidade. Se Davi é inocente, então, houve alguém que o acusou injustamente diante de Saul, descrevendo-o como um bandido perigoso, digno de morte. Se esta segunda possibilidade é verdadeira, então esses falsos acusadores estão debaixo da maldição do Senhor. Não é Davi quem é digno de morte, mas aqueles que o acusaram injustamente.
“O que justifica o perverso e o que condena o justo abomináveis são para o SENHOR, tanto um como o outro.” (Pv. 17:15)
“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!” (Is. 5:20)
O pecado desses homens vai muito além de fazer falsas acusações contra Davi. Ao incitarem Saul a persegui-lo, eles obrigaram um homem inocente a fugir de sua pátria. Foram eles, ajudados por Saul, que expulsaram Davi de Israel. As implicações espirituais são imensas. Deixar a pátria, como Davi o fez, é “não ter parte na herança do SENHOR” (verso 19). Obrigar um verdadeiro israelita a deixar sua terra é o mesmo que dizer: “Vai, serve a outros deuses.” (verso 19)
Este ponto é muito importante, mas é bem mais difícil para nós entendermos do que o foi para os israelitas do Antigo Testamento, como Davi. Quando Deus criou o mundo e a raça humana, Ele colocou Adão e Eva num lugar especial, o Jardim do Éden. Era ali que Deus se relacionava com eles. Quando pecaram, eles foram expulsos desse lugar de bênção e companheirismo. Quando Deus chamou Abraão, Ele separou um homem a quem abençoaria, e cujos descendentes Ele também abençoaria. No entanto, Ele também estabeleceu um lugar de bênção. Foi para este lugar que Abraão foi instruído a ir, deixando para trás sua família e sua terra natal. Deus também escolheu a terra de Israel como o lugar onde habitaria de maneira especial.
Quando Jacó enganou seu irmão Esaú, ele, literalmente, foi obrigado a deixar este lugar especial, Israel. Ao deixar Israel (ou aquele lugar que se tornou a terra de Israel), em direção a Padã-Harã, Deus apareceu num sonho a Jacó:
“E sonhou: Eis posta na terra uma escada cujo topo atingia o céu; e os anjos de Deus subiam e desciam por ela. Perto dele estava o SENHOR e lhe disse: Eu sou o SENHOR, Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaque. A terra em que agora estás deitado, eu ta darei, a ti e à tua descendência. A tua descendência será como o pó da terra; estender-te-ás para o Ocidente e para o Oriente, para o Norte e para o Sul. Em ti e na tua descendência serão abençoadas todas as famílias da terra. Eis que eu estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores, e te farei voltar a esta terra, porque te não desampararei, até cumprir eu aquilo que te hei referido. Despertado Jacó do seu sono, disse: Na verdade, o SENHOR está neste lugar, e eu não o sabia. E, temendo, disse: Quão temível é este lugar! É a Casa de Deus, a porta dos céus. Tendo-se levantado Jacó, cedo, de madrugada, tomou a pedra que havia posto por travesseiro e a erigiu em coluna, sobre cujo topo entornou azeite. E ao lugar, cidade que outrora se chamava Luz, deu o nome de Betel. Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta jornada que empreendo, e me der pão para comer e roupa que me vista, de maneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então, o SENHOR será o meu Deus; e a pedra, que erigi por coluna, será a Casa de Deus; e, de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo. (Gênesis 28:12-22, ênfase minha)”
Neste sonho Deus transmitiu a Jacó uma mensagem muito importante. A mensagem era que Canaã era um lugar muito especial; era o lugar onde o céu e a terra se encontravam, um lugar onde Deus habitava de maneira especial. Foi esta mensagem que motivou Jacó a voltar a este lugar e a não continuar em Padã-Harã. Da mesma forma que Deus escolheu um povo, em meio ao qual Ele habitaria, Ele também escolheu um determinado lugar onde habitaria. É por isso que Jacó foi enterrado na terra prometida, mesmo tendo morrido no Egito (Gênesis 47:27-31; 49: 29-33). José, da mesma forma, deu instruções para que seus ossos fossem levados para essa terra, quando a nação de Israel voltasse para lá (Gênesis 50:22-26; Êxodo 13:19)
Quando os israelitas estavam prestes a entrar na terra prometida, Deus deixou bem claro que eles somente deveriam adorá-Lo no lugar determinado por Ele:
“Mas buscareis o lugar que o SENHOR, vosso Deus, escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome e sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas. Lá, comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos alegrareis em tudo o que fizerdes, vós e as vossas casas, no que vos tiver abençoado o SENHOR, vosso Deus. Não procedereis em nada segundo estamos fazendo aqui, cada qual tudo o que bem parece aos seus olhos, porque, até agora, não entrastes no descanso e na herança que vos dá o SENHOR, vosso Deus. Mas passareis o Jordão e habitareis na terra que vos fará herdar o SENHOR, vosso Deus; e vos dará descanso de todos os vossos inimigos em redor, e morareis seguros. Então, haverá um lugar que escolherá o SENHOR, vosso Deus, para ali fazer habitar o seu nome; a esse lugar fareis chegar tudo o que vos ordeno: os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e toda escolha dos vossos votos feitos ao SENHOR, e vos alegrareis perante o SENHOR, vosso Deus, vós, os vossos filhos, as vossas filhas, os vossos servos, as vossas servas e o levita que mora dentro das vossas cidades e que não tem porção nem herança convosco. Guarda-te, não ofereças os teus holocaustos em todo lugar que vires; mas, no lugar que o SENHOR escolher numa das tuas tribos, ali oferecerás os teus holocaustos e ali farás tudo o que te ordeno. (Dt. 12:5-14)”
Obrigar Davi a fugir do território de Israel era obrigá-lo a fugir do lugar onde Deus habitava de maneira especial; era obrigá-lo a deixar o lugar que Deus providenciara para que os homens O adorassem. Portanto, obrigar alguém a fugir de Israel era mais ou menos como dizer: Vai, serve a outros deuses. Você se recorda da história de Rute? No livro que tem o seu nome, Noemi e seu marido deixam Israel na época da fome e vão para o território de Moabe. Quando seu marido e seus dois filhos morrem, Noemi decide voltar a Israel. Suas noras eram moabitas. Noemi pretendia deixá-las em sua própria terra, voltando sozinha para Israel. Repare no que ela lhes diz, e como Rute responde:
“Tornai, filhas minhas! Ide-vos embora, porque sou velha demais para ter marido. Ainda quando eu dissesse: tenho esperança ou ainda que esta noite tivesse marido e houvesse filhos, esperá-los-íeis até que viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não, filhas minhas! Porque, por vossa causa, a mim me amarga o ter o SENHOR descarregado contra mim a sua mão. Então, de novo, choraram em voz alta; Orfa, com um beijo, se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o SENHOR o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” (Rute 1:12-17)
Para todos os efeitos, dizendo-lhes para ficar em Moabe em vez de voltar com ela para Israel, ela as incentivou a servir seus deuses. Deixar Israel é deixar a terra onde se pode adorar a Deus (devido à Sua presença especial ali, particularmente junto à Arca da Aliança e, conseqüentemente, ao Templo).
No livro de II Reis, lemos sobre a cura e conversão de Naamã, o sírio. Quando estava prestes a retornar à sua própria terra, ele fez um pedido muito incomum ao profeta Eliseu:
“Disse Naamã: Se não queres, peço-te que ao teu servo seja dado levar uma carga de terra de dois mulos; porque nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao SENHOR.” (II Re. 65:17)
Naamã percebeu que o Deus de Israel era o único e verdadeiro Deus. Ele também reconheceu que Deus habitava de forma especial em Israel, e que era ali que Ele devia ser adorado. O que fez, então, Naamã? Pediu um pouco de terra do solo israelita para levar consigo para a Síria, a fim de que pudesse adorar o Deus de Israel em solo israelita.
Tempos depois na história de Israel, Deus mandaria Seu povo para o cativeiro, para fora da terra. Este foi um golpe devastador, como pode ser visto em um dos Salmos escritos durante o cativeiro judaico na Babilônia:
“Às margens dos rios da Babilônia, nós nos assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros que lá havia, pendurávamos as nossas harpas, pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções, e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo: Entoai-nos algum dos cânticos de Sião. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do SENHOR em terra estranha? Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita. Apegue-se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti, se não preferir eu Jerusalém à minha maior alegria.” (Salmo 137:1-6)
Davi fugiu para Gate na Filistia (21:10-15), e depois para Moabe (22:3-4). Creio que ele estava fora do território de Israel quando o profeta Gade lhe apareceu, instruindo-o a deixar o lugar seguro e retornar para o território de Judá (22:5). O motivo não é dito no texto, e acho que também não foi dito a Davi. No entanto, creio que agora ele entenda por quê. Ele compreende uma verdade muito importante - que Israel é o lugar que Deus escolheu para habitar de forma especial e onde deve ser adorado. De fato, ali é o lugar onde o céu encontra a terra, tal como no sonho de Jacó. Davi também compreende as implicações desta verdade à medida que ela se aplica à perseguição feita por Saul e seus homens, obrigando-o a fugir do país. Aqueles que instigaram Saul contra Davi obrigaram-no a fugir de sua pátria, e, assim, é como se tivessem dito a ele: Vai, serve a outros deuses. Este crime é passível de morte:
“Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não conheceste, nem tu, nem teus pais, dentre os deuses dos povos que estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma até à outra extremidade da terra, não concordarás com ele, nem o ouvirás; não olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-ás até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão. E todo o Israel ouvirá e temerá, e não se tornará a praticar maldade como esta no meio de ti. (Dt. 13:6-11, ver também os versos 12 a 18)”
A acusação e perseguição a Davi são realmente um assunto muito sério. São injustas, pois Davi é inocente. Aqueles que o estão perseguindo se colocaram numa posição muito perigosa. Ao lado de quem estes homens supõem que Deus esteja? Davi conseguiu entrar e sair de seu acampamento. Ele conseguiu chegar perto de Saul e pegar sua lança, sem qualquer resistência. Se ele quisesse, poderia ter matado Saul. E, mesmo assim, é ele quem salva a vida do rei, não seus homens. Eles falharam na proteção ao rei! Eles, não Davi, são dignos de morte. E, uma vez que todos os soldados de Saul deixaram de protegê-lo, todos são culpados de uma ofensa capital. Eles merecem morrer. Eles merecem morrer não só nas mãos de Saul, mas nas mãos de Deus. Ao acusar Davi e obrigá-lo a fugir do país, eles promovem a adoração de falsos deuses. Eles são homens condenados. Eles estão encrencados, com seu rei e com seu Deus. Este incidente mostra que não é a vida de Davi que está em perigo, mas a daqueles que o perseguem, ou que falsamente o acusam. Parece que os culpados estão ali naquela noite. A lança de Saul não é arremessada, mas as palavras de Davi penetram o coração de cada homem.
No verso 20, Davi suplica a Saul que seu sangue não seja derramado fora de sua pátria, longe da presença do Senhor. Não há necessidade de Saul persegui-lo com tanta intensidade. Sair em busca de Davi é como sair em busca de uma pulga, como perseguir uma perdiz nos montes. É muito trabalho por pouca coisa. É trabalho sem sentido, prá não dizer perigoso. O rei deve abandonar sua perseguição e parar de dar ouvidos àqueles que o colocam contra Davi.
“Então, disse Saul: Pequei; volta, meu filho Davi, pois não tornarei a fazer-te mal; porque foi, hoje, preciosa a minha vida aos teus olhos. Eis que tenho procedido como louco e errado excessivamente. Davi, então, respondeu e disse: Eis aqui a lança, ó rei; venha aqui um dos moços e leve-a. Pague, porém, o SENHOR a cada um a sua justiça e a sua lealdade; pois o SENHOR te havia entregado, hoje, nas minhas mãos, porém eu não quis estendê-las contra o ungido do SENHOR. Assim como foi a tua vida, hoje, de muita estima aos meus olhos, assim também seja a minha aos olhos do SENHOR, e ele me livre de toda tribulação. Então, Saul disse a Davi: Bendito sejas tu, meu filho Davi; pois grandes coisas farás e, de fato, prevalecerás. Então, Davi continuou o seu caminho, e Saul voltou para o seu lugar.”
Davi não usa a lança de Saul contra ele, mas Saul capta a mensagem. Ele reconhece seu próprio pecado no relacionamento com Davi. Mas, a palavra mais importante é volta. Saul tomou parte no pecado de expulsar Davi do país, longe de poder adorar seu Deus? Então ele confessa seu pecado, e abandona sua perseguição, a fim de que Davi possa voltar em segurança ao lugar de adoração. Uma vez que Davi considera preciosa a vida de Saul, Saul promete considerar a vida de Davi da mesma forma. Ele confessa que pecou, e que, em seu pecado, se tornou culpado do terrível erro a que Davi se refere.
Em resposta à confissão de Saul e sua promessa de anistia, Davi grita: “Eis aqui a lança, ó rei; venha aqui um dos moços e leve-a.” Parece realmente que, como alguns já observaram, a lança, antigamente, era símbolo de autoridade. Davi não ousa manter aquilo que pertence a Saul, e assim ele pede que alguém vá buscá-la.
Será que alguns chamariam Davi de pecador, traidor e inimigo de Saul? Nos versos 23 e 24 Davi conclui sua defesa, expressando sua justiça. Ele relembra a seus perseguidores que é o Senhor quem retribuirá a justiça e lealdade de cada um. Deus o faz de forma individual (“cada um”). Embora o Senhor entregue Saul em suas mãos, Davi não lhe causa nenhum dano, pois Saul é o ungido do Senhor. Portanto, Davi espera que a recompensa por sua atitude nesta noite venha do Senhor.
Ainda que Saul e seus homens tenham se arriscado, acusando e perseguindo Davi como pecador e criminoso, Davi tem certeza de que sua vida está segura nas mãos de Deus. Da mesma forma que Davi deu muito valor à vida de Saul, ele sabe que Deus dá valor à sua vida e, por isso, tem certeza de que Deus de fato o livrará de todas as suas aflições (verso 24).
As palavras finais de Saul são de bênção sobre Davi, com a garantia de ele que fará grandes coisas e de que, finalmente, prevalecerá (verso 25). Com estas palavras, os dois homens se separam pela última vez. Eles não se encontrarão novamente, pois a época da morte de Saul se aproxima. Saul retorna a seu lugar, mas Davi prossegue em seu caminho. Davi sabe muito bem que o arrependimento de Saul não durará por muito tempo.
Eis aqui uma mensagem para aqueles que, como Saul e seus homens, acusaram Davi injustamente. Deus defende aqueles que são Seus. Não existe maneira do ungido de Deus ser afastado antes do tempo estabelecido por Ele. Isto foi verdade com relação a Saul; e também com relação a Davi. Deus defende o inocente, e Ele fará justiça ao aflito. Em pouco tempo Deus virou a mesa sobre os inimigos de Davi. Não era Davi quem corria grande perigo, mas aqueles que se opunham a ele. Que os inimigos dos eleitos de Deus tomem nota e que Seus eleitos tomem coragem.
Os acontecimentos deste capítulo são muito relevantes para a compreensão de Davi a respeito da fidelidade de Deus, e para sua aplicação em sua vida. Davi foi corajoso fora da caverna no capítulo 24, mas ele é ainda mais corajoso aqui no capítulo 26. Ele confia na proteção e no cuidado de Deus, e Nele, como aquele que recompensará sua justiça e julgará seus acusadores. Se no capítulo 24 vemos Davi repreendendo gentilmente seu rei, no capítulo 26 vemo-lo repreendendo aqueles que colocaram o rei contra ele. Agora, Davi vê sua fuga em termos de suas implicações espirituais.
Se Davi cresce espiritualmente devido aos acontecimentos do capítulo 24, e este crescimento é evidente no capítulo 26, devemos concluir que Abigail desempenha papel significativo nesse crescimento. As verdades ditas por Davi no capítulo 26 são exatamente as mesmas que ela lhe diz. Se ele tem alguma dúvida acerca de ser rei, Abigail lhe garante que ele será o rei de Israel (25:30). Embora ele queira se vingar de seus inimigos (quer dizer, de Nabal), ela o relembra de que a vontade de Deus cuidará melhor desse assunto, e que, deixando tudo em Suas mãos, evitará que ele se lamente (25:31). Davi teme ser morto? Ela lhe garante que sua vida está segura nas mãos de Deus (25:29). Dizem que, por trás dos grandes homens, há sempre uma grande mulher. Com certeza isso é verdade com relação a Davi e Abigail.
Os estudiosos se torturam porque o capítulo 26 é parecido demais com o capítulo 24? É parecido porque é uma espécie de reprise. Quando Deus quer nos ensinar alguma coisa, se não conseguimos aprender a lição na primeira vez, ele continuará a nos fazer passar por experiências que irão nos confrontar com o mesmo tipo de teste. Creio que a razão para haver um segundo incidente no capítulo 26, tão semelhante ao do capítulo 24, é que Deus queria que Davi fizesse o teste novamente a fim de receber uma nota maior.
Lembro-me de uma conversa que tive há alguns anos com um amigo que estava passando por algumas dificuldades. Enquanto conversávamos, meu amigo mencionou que, além dos problemas em questão, ele também enfrentara muitos outros. Sondei-o com algumas perguntas e ficou claro que, em todas as situações, os problemas e os casos eram muito parecidos. Então lhe perguntei: “Já lhe ocorreu que Deus continua levando-o de volta ao mesmo problema porque você ainda não lidou com ele como deveria?” Ele reconheceu que, provavelmente, era isso mesmo. Acho que talvez tenha acontecido o mesmo com Davi, e também aconteça conosco. Quando deixamos de tratar certas questões como deveríamos, Deus continua nos dando outra chance de fazer a coisa certa.
Finalmente, creio que haja algo para aprendermos sobre o “lugar da bênção” para os cristãos atuais. Para os santos do Antigo Testamento, como vimos, habitar no território de Israel era um privilégio e fonte de bênçãos. Lá eles poderiam oferecer sacrifícios e adorar a Deus com total liberdade. Em qualquer outro lugar Deus poderia ser adorado e servido, mas com certas restrições. É claro que alguns poderiam permanecer ali e distantes de Deus, devido à sua incredulidade e desobediência. E, da mesma forma, estar num lugar distante, mas ainda andando intimamente com Deus. No entanto, o ideal era viver em Israel, lugar da presença e das bênçãos de Deus.
O que isso quer dizer para nós, cristãos do Novo Testamento, que vivemos longe da terra prometida? A resposta do Novo Testamento é bem clara sobre esse assunto. Em João 1, Jesus Se apresenta como o Messias de Israel. Jesus chama Filipe para segui-Lo, e Filipe encontra Natanael, dizendo-lhe que o Messias prometido já veio e que é Jesus de Nazaré (João 1:43-44). Quando Natanael se aproxima de Jesus, o Senhor lhe diz “Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira” (1:48). Natanael é persuadido e diz a Jesus: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (1:49). As palavras de nosso Senhor a Natanael são fantásticas:
“Ao que Jesus lhe respondeu: Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás. E acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem.” (João 1:50-51)
Com estas palavras, Jesus leva Natanael, e a nós também, de volta ao sonho de Jacó em Gênesis 28. Neste sonho Jacó vê os anjos subindo e descendo uma escada que vai até o céu, mas que está na terra. Jacó fica muito impressionado com o lugar onde a escada está - em Israel - e com a natureza especial deste lugar como o lugar da morada de Deus. Jesus agora retoma esta imagem enquanto conversa com Natanael. Natanael tinha acabado de se objetar a afirmação de Pedro, baseado somente no lugar de onde viera Jesus - Nazaré (João 1:46). Agora Jesus lhe diz que embora ele estivesse preocupado com o lugar onde estava a escada, Jesus é a escada! O lugar é importante, mas a Pessoa de Jesus é ainda mais importante. Jesus é o meio designado por Deus para unir o céu e a terra, para providenciar o acesso dos homens ao céu. Não era Israel, o lugar, mas Israel, a pessoa, que salvaria os homens de seus pecados e os levaria para o céu.
No evangelho de Mateus, lemos sobre o nascimento de nosso Senhor Jesus, e depois sobre a fuga de José, Maria e a criança para o Egito. Após a morte de Herodes, José traz sua família de volta a Israel. Quando ele o faz, Mateus escreve:
“Dispondo-se ele, tomou de noite o menino e sua mãe e partiu para o Egito; e lá ficou até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: DO EGITO CHAMEI MEU FILHO.”
Estas palavras, DO EGITO CHAMEI MEU FILHO, são encontradas em Oséias 11:1. Elas se referem ao fato de Deus ter tirado Israel, Seu filho (ver Êxodo 4:22-23) do Egito. Agora, por inspiração, Mateus aplica estas palavras ao menino Jesus. Tal como Israel foi o filho de Deus, que Ele tirou do Egito, assim o menino Jesus é o Filho de Deus, que Ele também trouxe do Egito. Deus resumiu numa só Pessoa, o Senhor Jesus Cristo, todo o Israel e suas esperanças. Israel é o lugar onde Deus se encontra com os homens, mas Jesus é o Filho, a pessoa por meio de quem Deus salva os homens. Israel é o lugar aonde veio a pessoa do Messias. E agora que Ele veio, é Ele que deve ser importante, não o lugar.
Quando Jesus se encontra com a mulher samaritana, a questão sobre “lugar” de adoração é levantada. Quero que prestem bastante atenção ao que a mulher diz a Jesus e ao que nosso Senhor lhe diz em resposta:
“Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta. Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade. Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo.” (João 4:19-26)
A mulher samaritana conhece muito bem as diferenças existentes entre samaritanos e judeus a respeito do lugar apropriado para adoração. Ela traz o assunto à baila em sua discussão com Jesus. Mas Jesus não conversa sobre o lugar apropriado. Ele lhe diz que, agora, a questão da adoração se concentra numa Pessoa, não num lugar. Aqueles que adoram a Deus em espírito e em verdade devem adorá-Lo por intermédio do Messias prometido. A mulher concorda, mas erroneamente supõe que Ele ainda não tenha vindo. Jesus lhe diz: Eu... sou Ele. Aqueles que adoram a Deus devem adorá-lo por intermédio de Jesus Cristo. Portanto, a adoração não é mais uma questão de estar no lugar certo, mas de adorar por intermédio da Pessoa certa.
Desde a vinda de Jesus Cristo, o Messias de Israel, adorar a Deus não é mais uma questão de estar no lugar certo, mas de estar na Pessoa certa. Em João 15, Jesus fala a Seus discípulos sobre permanecer Nele como o ramo permanece na videira. Nos capítulos 14 e 16 Jesus fala a Seus discípulos sobre a vinda do Espírito Santo. Jesus promete habitar em cada verdadeiro crente, por intermédio do Espírito Santo. E é desta forma que encontramos a salvação, a santificação e as bênçãos espirituais descritas como conseqüências de estar “em Cristo”, nas epístolas do Novo Testamento.
“Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus.” (Romanos 3:23-24, ênfase minha)
“Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Romanos 6:11, ênfase minha)
“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 6:23, ênfase minha)
“Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Romanos 8:1)
“Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 8:38-39, ênfase minha)
“À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para ser santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.” (I Co. 1:2, ênfase minha)
“Sempre dou graças a meu Deus a vosso respeito, a propósito da sua graça, que vos foi dada em Cristo Jesus.” (I Co. 1:4, ênfase minha)
“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção.” (I Co. 1:30, ênfase minha)
“Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.” (I Co. 15:22, ênfase minha)
“Graças, porém, a Deus, que, em Cristo, sempre nos conduz em triunfo e, por meio de nós, manifesta em todo lugar a fragrância do seu conhecimento.” (II Co. 2:14, ênfase minha)
“E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.” (II Co. 5:17, ênfase minha)
“E isto por causa dos falsos irmãos que se entremeteram com o fim de espreitar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus e reduzir-nos à escravidão.” (Gl. 2:4, ênfase minha)
Termino esta mensagem com uma nota um tanto triste, mas doce. Meu amigo e companheiro de Conselho, Lee Crandell, faleceu na semana que sucedeu a pregação desta mensagem. Lembro-me de suas últimas palavras. Ele ressaltou o quanto gostou da mensagem e, especialmente, de sua aplicação. Sei o que ele quis dizer. Lee amava o Senhor Jesus Cristo, e amava ouvir e proclamar a mensagem do evangelho. Ele sabia o que significava estar em Cristo. Lee morreu, em Cristo. Que consolo:
“Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes como os demais, que não têm esperança. Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem. Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.” (I Ts. 4:13-18, ênfase minha)
Estar em Cristo é ser perdoado de nossos pecados. É ser nova criatura, as coisas velhas ficaram prá trás, e tudo se fez novo. Estar em Cristo é ter certeza da ressurreição da morte, de passar a eternidade na presença de Jesus Cristo. Meu amigo, Lee, estava em Cristo. Se estivesse aqui hoje, faria a você somente uma pergunta: Você está em Cristo? Ser salvo, ser cristão, ter certeza do perdão dos pecados e da vida eterna, não é uma questão de estar no lugar certo, mas de estar na Pessoa certa. A maneira de estar em Cristo é reconhecer seu pecado contra Deus e confiar somente em Jesus Cristo como o meio providenciado por Deus para a sua salvação. Pela fé em Cristo, Seu sofrimento e Sua morte pagam a penalidade por seus pecados. Pela retidão de Cristo e Sua ressurreição da morte, você é justificado e levantado em novidade de vida. Se você não confia na morte, sepultamento e ressurreição de Jesus em seu favor, eu lhe digo que faça isso neste exato momento. Estar em Cristo é estar no lugar designado por Deus para salvação e bênção para sempre.
O Que Um Homem Como Você Faz Num Lugar Como Esse?
No ano passado encontrei-me fazendo coisas que jamais sonhei fazer. A saúde de uma antiga vizinha declinava rapidamente. Num determinado momento olhamos pela janela e a vimos sentada em sua cadeira, à mesa da cozinha. No instante seguinte, a cadeira estava vazia. Sabíamos que ela estava no chão e que eu teria que ir até lá para ajudá-la. À medida que o tempo passava, uma cadeira reclinável se tornou sua base de operações, e a seguir uma cama de hospital. Às vezes me encontrava numa mercearia comprando coisas de que mal ouvira falar.
Um dia, a enfermeira da casa de saúde veio lhe fazer a visita de costume. Vi seu carro e dei um pulo até lá para lhe perguntar como iam as coisas. Ela me informou que as coisas estavam piorando, e que teríamos que empregar o método de transferência total. Lancei-lhe um olhar confuso, sem saber exatamente o que ela queria dizer. Sem hesitação, ela respondeu: “Venha, vou lhe mostrar. Antes mesmo de saber o que estava acontecendo, eu estava em pé, ali na varanda da minha vizinha, com a enfermeira demonstrando o que era uma “transferência total. Ela colocou suas pernas por fora das minhas, e depois seus braços em volta do meu pescoço. Agora sei o que é uma transferência total, a qual, provavelmente, eu teria que usar para levar a paciente de um lugar para outro. Meu problema era que eu estava parado na varanda da minha vizinha numa posição que talvez parecesse bem diferente daquilo que realmente era. Posso até imaginar os vizinhos espreitando pela janela e correndo para pegar um binóculo ou uma câmera fotográfica! Como eu poderia explicar? O que eu fazia numa posição como aquela?
Quando leio a narrativa da fuga de Davi para Gate, e sua aliança com Aquis, o rei de Gate, preciso fazer a mesma pergunta. No final de nosso texto, encontramos Davi no exército, saindo com seu rei, pronto para batalhar. O problema é que Davi está no exército filisteu, e está saindo para batalhar com os israelitas. Lemos que ele garante ao rei filisteu que está pronto e disposto a mostrar o que ele e seus homens podem fazer, contra o povo de Deus. O que um cara como Davi está fazendo num lugar como esse? Esperamos conhecer a resposta para esta pergunta estudando esta intrigante passagem. Vamos pedir ao Espírito Santo de Deus que ilumine nosso coração e nossa mente, para que possamos entender as lições que Deus tem para nós.
Davi é ungido por Samuel como o próximo rei de Israel no capítulo 16. No capítulo 17, ele se levanta contra Golias, o campeão filisteu da cidade de Gate, e o mata. No capítulo 18, Saul começa a ficar nervoso com a popularidade de Davi diante do povo e dá início aos planos para ocasionar sua morte. A princípio, ele quer que isso pareça um acidente, mas depois dá ordens expressas para que Davi seja morto. Finalmente, Davi é obrigado a fugir para salvar sua vida, vivendo como fugitivo da justiça.
A fuga de Davi começa com sua inesperada aparição em Nobe, onde ele inventa uma história para Aimeleque, o sacerdote, para explicar porque veio sem seus homens. A pedido de Davi, o sumo sacerdote lhe dá do pão sagrado e a espada de Golias. De Nobe, Davi foge para Aquis, rei de Gate. O rei está disposto a lhe dar proteção, até que alguns de seus servos o fazem recordar de que a reputação de Davi não deve ser negligenciada. Sabendo que está em perigo, Davi finge-se de louco, perambulando pela cidade, babando e arranhando os portões. Aquis não se sente ameaçado por um doido, mas também não vê nenhuma vantagem em lhe dar proteção, por isso expulsa Davi de Gate. Daí em diante, Davi começa a reunir um grupo de descontentes e é obrigado a se esconder nas regiões remotas de Judá, principalmente depois da exortação de Gade (22:5).
No capítulo 24, ocorre que Saul e Davi procuram a privacidade da mesma caverna. Os homens de Davi interpretam este encontro providencial como sinal de que Deus quer que eles matem Saul e acabem com seus problemas. Davi não pensa assim. Até mesmo cortar um pedaço do manto do rei faz Davi ficar com peso na consciência. Ele deixa Saul sair da caverna e então revela sua presença, mansamente repreendendo o rei por persegui-lo sem motivo. Davi lhe assegura que não tem intenção de lhe fazer mal, e que seu relacionamento com Saul está aos cuidados de Deus. Saul parece se arrepender, e os dois se separam pacificamente.
No capítulo 25, Davi é insultado por Nabal, um tolo descendente de Calebe que, de forma alguma, está à altura de sua herança. Davi parte atrás de Nabal, pretendendo tirar não só a sua vida, como a de todos os homens de sua casa. Somente pela intervenção sábia e abnegada de Abigail, a esposa de Nabal, Davi desiste de sua vingança impulsiva. Nesse encontro, Abigail assegura a Davi que ele será rei de Israel e que o melhor a fazer é deixar a vingança com Deus. Davi concorda, e os dois se separam pacificamente.
O capítulo 26 parece ser o ponto alto da vida espiritual de Davi. Uma vez mais, Saul está em sua perseguição. Davi é informado de sua presença e envia espiões, que localizam o local exato do acampamento de Saul. Davi e Abisai, então, entram no acampamento, enquanto os soldados de Saul dormem um sono profundo causado por um sedativo divino (26:12). Davi não permite que Abisai mate Saul, como é óbvio que ele pretende fazer (26:8-9,15). Em vez disto, apenas a lança e a vasilha d’água são levadas, como prova do quanto eles estiveram perto do rei, sem, contudo, serem detidos por qualquer um de seus homens.
Davi inicia o confronto censurando Abner, e depois o resto dos soldados, por permitirem que um assassino se aproximasse do rei. Davi faz com se lembrem de que este é um crime passível de morte, e depois lhes diz que foi ele quem salvou a vida do rei, não qualquer um deles. Como pode, pergunta Davi, alguém que salva a vida do rei ser caçado como assassino, enquanto dignos de morte são aqueles que procuram tirar sua vida?
Davi também tem uma palavra para o rei. Uma vez mais ele afirma sua lealdade a Saul e lhe pergunta por que procura tirar sua vida. Davi mostra ao rei que deve haver alguém que o está instigando contra ele, e injustamente. Ele não é nenhuma ameaça ao rei. Mas, em sua perseguição a Davi, o rei o está expulsando do país e, assim, do lugar de adoração a Deus e de Suas bênçãos. É como se o rei estivesse lhe dizendo para adorar outros deuses. Davi suplica que Saul não o obrigue a deixar sua pátria, para que seu sangue não seja derramado em solo estrangeiro (26:17-20). Saul confessa seu pecado e reconhece que Davi terá grandes realizações e certamente prevalecerá (26:25). Indiretamente, ele promete que cessará sua perseguição, e por isso, convida Davi a retornar (26:21). Acho que ele está dizendo a Davi para voltar a adorar, sem receio.
Contudo, apesar de todas as confirmações de que será o próximo rei de Israel, e de suas próprias declarações de fé, encontramos Davi deixando o país e voltando para Gate. Isto é realmente espantoso.
“Disse, porém, Davi consigo mesmo: Pode ser que algum dia venha eu a perecer nas mãos de Saul; nada há, pois, melhor para mim do que fugir para a terra dos filisteus; para que Saul perca de todo as esperanças e deixe de perseguir-me por todos os limites de Israel; assim, me livrarei da sua mão. Dispôs-se Davi e, com os seiscentos homens que com ele estavam, passou a Aquis, filho de Maoque, rei de Gate. Habitou Davi com Aquis em Gate, ele e os seus homens, cada um com a sua família; Davi, com ambas as suas mulheres, Ainoã, a jezreelita, e Abigail, a viúva de Nabal, o carmelita. Avisado Saul de que Davi tinha fugido para Gate, desistiu de o perseguir.
O porém do verso 1 parece sugerir uma clara proximidade entre os acontecimentos do capítulo 26 e os do capítulo 27. Não temos a indicação de qualquer espaço de tempo significativo, nem a descrição de qualquer tipo de crise, que expliquem a repentina mudança de Davi. Justamente ele, que estava tão confiante na proteção de Deus à sua vida (24:15) e que fora assegurado disto por Abigail (25:29), agora fala de sua morte como uma coisa certa, caso ele não fuja para território filisteu, onde afirma ter segurança (27:1). Davi, que no capítulo anterior, disse ser Saul quem morreria, agora diz ser ele quem perecerá. E Davi, que suplica a Saul para não ser obrigado a deixar sua terra, agora se sente compelido a deixá-la, mesmo Saul tendo lhe dado certa garantia de segurança. Isto é ainda mais espantoso.
A palavra empregada por Davi (traduzida por “perecer” na versão ARA) é significativa, principalmente porque ele conhece a Lei de Moisés. A palavra é empregada 18 vezes de Gênesis a Juízes - isto é, até Davi empregá-la em 26:10 e 27:1. Três dessas vezes ela é usada para se referir ao julgamento de Deus sobre os inimigos de Israel. Onze vezes se refere ao julgamento de Israel como inimigo de Deus, por desobedecê-Lo e desrespeitar Sua lei. Não é interessante que Davi, que acabara de falar de si mesmo como inocente e dos outros como culpados, agora use este termo para expressar o temor de que Saul o destrua? Davi realmente está perdido. Dale Ralph Davis escreve que: “... o pensamento que levou Davi a este ponto indica crises de enfraquecimento da fé (como são chamadas por H. L. Ellison):
“Disse, porém, Davi consigo mesmo: Pode ser que algum dia venha eu a perecer nas mãos de Saul; nada há, pois, melhor para mim do que fugir para a terra dos filisteus; para que Saul perca de todo as esperanças e deixe de perseguir-me por todos os limites de Israel; assim, me livrarei da sua mão.” (27:1)
Não se passou muito tempo desde a primeira vez que Davi procurou refúgio em Gate. Isso foi um desastre tremendo para ele. Ele sobreviveu, mas foi expulso como um lunático babão e arranhador. Qualquer um teria pensado que, ao deixar os portões de Gate, Davi tenha dito a si mesmo: “Jamais farei isso de novo!” E, no entanto, hei-lo aqui, mas, desta vez, ele não está só. Desta vez ele tem 600 seguidores, mais suas mulheres e famílias (27:2-3). As duas mulheres de Davi também estão com ele.
Davi tem razão sobre uma coisa. Quando Saul fica sabendo que ele fugiu para Gate, não o procura mais. Será que isto significa que Saul teria tentado acuar Davi se este tivesse permanecido em território israelita? Realmente não é nenhuma surpresa que Saul não procure capturá-lo em território filisteu. Afinal, ele nunca foi muito enérgico na sua luta contra os filisteus. Jônatas, seu filho, é quem foi. No entanto, para ser “justo” a respeito da desistência de Saul, isto não significa que Davi esteja certo em fugir para lá, como acho que o Autor quer deixar claro.
“Disse Davi a Aquis: Se achei mercê na tua presença, dá-me lugar numa das cidades da terra, para que ali habite; por que há de habitar o teu servo contigo na cidade real? Então, lhe deu Aquis, naquele dia, a cidade de Ziclague. Pelo que Ziclague pertence aos reis de Judá, até ao dia de hoje. E todo o tempo que Davi permaneceu na terra dos filisteus foi um ano e quatro meses.”
Pode imaginar o enorme impacto que Davi, os 600 guerreiros e suas famílias devem ter causado na cidade de Gate? No entanto, não é por consideração a Aquis, ou a Gate, que Davi faz um pedido ao rei. Ele se aproxima de Aquis com uma solicitação. Ele pede que, se puder, Aquis lhe dê uma cidade onde ele, seus seguidores e suas famílias possam viver, e que não seja muito próxima. Parece um pedido razoável, e Aquis dá a Davi a cidade de Ziclague. Esta cidade fica a aproximadamente 25 milhas ao sul e a leste de Gate. É um tanto fora de mão, da perspectiva dos filisteus, e não muito distante das cidades israelitas. Davi e seus seguidores recebem um “lugar somente seu”, numa região onde suas atividades não serão monitoradas por Aquis. É mais ou menos como se mudar longe o suficiente dos familiares para ter sua própria vida. Davi mora um ano e quatro meses na Filistia, mas a cidade de Ziclague se torna possessão permanente dos reis israelitas (versos 6 e 7).
“Subia Davi com os seus homens, e davam contra os gesuritas, os gersitas e os amalequitas; porque eram estes os moradores da terra desde Telã, na direção de Sur, até a terra do Egito. Davi feria aquela terra, e não deixava com vida nem homem nem mulher, e tomava as ovelhas, e os bois, e os jumentos, e os camelos, e as vestes; voltava e vinha a Aquis. E perguntando Aquis: Contra quem deste hoje? Davi respondia: Contra o Sul de Judá, e o Sul dos jerameelitas, e o Sul dos queneus. Davi não deixava com vida nem homem nem mulher, para os trazer a Gate, pois dizia: Para que não nos denunciem, dizendo: Assim Davi o fazia. Este era o seu proceder por todos os dias que habitou na terra dos filisteus. Aquis confiava em Davi, dizendo: Fez-se ele, por certo, aborrecível para com o seu povo em Israel; pelo que me será por servo para sempre.”
Davi e seus homens recebem um lugar para viver. Eles também precisam de meios de sobrevivência. A solução que Davi encontra para este problema é realmente engenhosa. Ele usa Ziclague como seu quartel-general, sua base de operações. Dali, ele e seus homens tomam conta da região, invadindo as cidades e os campos dos inimigos de Israel. Nós já conhecemos alguns desses povos, tais como os amalequitas. Mas, de outros, como os geruzitas, nada sabemos. De maneira geral, sabemos que estes são os povos que habitaram a terra nos tempos antigos. Por isso, talvez seja seguro concluir que todos sejam “cananeus”, os quais devem ser banidos da terra (ver Êxodo 23:23; Números 21:3; Deuteronômio 7:1-5; Juízes 1:17).
Se for assim (talvez tenhamos uma pequena dúvida quanto aos gersitas, por exemplo), então o massacre total desses “cananeus” parece justificado. No entanto, devo assinalar que, apesar de Davi matar todas as pessoas das vilas invadidas, incluindo as crianças, ele não mata todo o gado. Ele “tomava as ovelhas, e os bois, e os jumentos, e os camelos, e as vestes” (versa 9). Se ele estiver atacando estes povos para obedecer à ordem de Deus, então ele não é mais obediente do que Saul, que deixou vivo apenas o rei e o melhor do gado. Por isso, parece que ele ataca estes povos por razões mais práticas, tais como providenciar alimento para a sua família e as de seus soldados. Ele mata todas as pessoas, sem deixar sobreviventes, não porque este seja um mandamento de Deus, mas porque é o único meio de continuar com sua fraude (verso 11).
Davi talvez esteja fazendo a coisa certa (isto é, aniquilando todos a quem Deus sujeitou ao banimento), mas por razões totalmente erradas. Muitas vezes Deus realiza Sua vontade por meio do interesse de homens que, só inconscientemente, fazem o que Deus determinou. Isto foi verdade em relação aos irmãos de José (ver Gênesis 50:20), e também parece ser em relação a Davi em território filisteu.
Davi pode não ter sido sábio ao se refugiar em território filisteu, mas, com certeza, ele é inteligente e perspicaz. O rei Aquis talvez se ache muito esperto, mas creio que seja simplório e ingênuo. Davi vai até ele como “desertor”, mas Aquis acha que Davi é um grande prêmio, um “verdadeiro achado”. A presença de Davi entre os filisteus lhe parece uma grande aquisição. Afinal, aparentemente, Davi está lutando ao lado dos filisteus contra os israelitas (27:10). Talvez isto signifique que os israelitas não o recebam de volta e, com certeza, não como seu rei (compare 21:11; 27:12). Em vez de consumir os recursos de Aquis, Davi contribui com ele. Após cada invasão, parece que Davi lhe faz um relatório e lhe dá uma parte dos despojos (27:9). Aquis pensa que tem Davi na palma da mão e que pode continuar ”usando-o” em seu próprio benefício.
Aquis não é muito perspicaz. Davi não está matando nenhum israelita, está matando os inimigos de Israel, e tudo de seu refúgio em Ziclague. Mesmo que este texto não diga, logo saberemos que Davi partilha os despojos de guerra com o povo que supostamente está matando - seus compatriotas:
“Chegando Davi a Ziclague, enviou do despojo aos anciãos de Judá, seus amigos, dizendo: Eis para vós outros um presente do despojo dos inimigos do SENHOR: aos de Betel, aos de Ramote do Neguebe, aos de Jatir, aos de Aroer, aos de Sifmote, aos de Estemoa, aos de Racal, aos que estavam nas cidades dos jerameelitas e nas cidades dos queneus, aos de Horma, aos de Borasã, aos de Atace, aos de Hebrom e a todos os lugares em que andara Davi, ele e os seus homens. (I Sam. 30:26-31)”
Percebe o contraste teatral entre a maneira como Davi representa para Aquis e como ele realmente se conduz? Ele diz que está lutando contra seus irmãos israelitas, levando o rei filisteu a concluir que ”Fez-se ele, por certo, aborrecível para com o seu povo em Israel; pelo que me será por servo para sempre.” (27:12) A verdade é que ele está matando os inimigos de Israel, e depois partilhando os despojos com seus irmãos israelitas, fazendo visitas freqüentes às suas cidades (30:26-31). Davi ganha o favor dos israelitas, enquanto vive sob a proteção dos filisteus. Podemos dizer que ele está “jogando dos dois lados”.
Durante essa época, Davi deve ter mentalmente se cumprimentado: “não dá prá ser melhor”. Ele não tem de se esconder num deserto “abandonado por Deus” do território de Israel; pode ir livremente aonde quiser, com dignidade. Pode até fazer uma visitinha ao rei. Não precisa “implorar” uma esmola para seus homens; mas, pelo contrário, pode viver dignamente dos despojos de suas invasões. Não precisa temer que os israelitas o traiam, pois sempre visita suas vilas e povoados, levando presentes dos despojos de guerra aos seus líderes. E, se Saul não dá um jeito nos inimigos que rondam a nação, ele dá. Davi parece ter o melhor dos dois mundos (israelita e filisteu). Realmente parece, mas não por muito tempo. O castigo, como dizemos, está vindo a cavalo.
“Sucedeu, naqueles dias, que, juntando os filisteus os seus exércitos para a peleja, para fazer guerra contra Israel, disse Aquis a Davi: Fica sabendo que comigo sairás à peleja, tu e os teus homens. Então, disse Davi a Aquis: Assim saberás quanto pode o teu servo fazer. Disse Aquis a Davi: Por isso, te farei minha guarda pessoal para sempre.”
Nos últimos meses, várias famílias decidiram que seus filhos participariam junto com elas da aula das 11 horas, onde este estudo é ministrado. Algumas semanas atrás, um de meus amiguinhos já havia contribuído para o título da lição. Ele também me deu de presente um desenho sobre ela. Quando estava entregando esta mensagem e cheguei a este ponto, uma jovenzinha da família exclamou: “Oh, oh!”. Ela tinha razão. Esta não foi uma boa hora para Davi. Por isso, dei o título de “Epa” aos dois primeiros versos do capítulo 28 .
Os filisteus estão continuamente em guerra com Israel, como temos visto em I Samuel. Parece que seus comandantes decidem que já é tempo de uma nova investida militar. Aquis fala sobre seus planos com Davi e o “honra” dizendo-lhe que decidiu torná-lo, e a seus homens, parte de sua divisão. Não sei o quanto Davi fica surpreso com a notícia, mas sua resposta ao rei certamente surpreende o leitor: “Assim saberás quanto pode o teu servo fazer.”
Isso parece conversa de macho. “Meu, vou te levar comigo prá guerra.” “Tudo bem, cara, você ainda não viu nada.” Será que Davi quis mesmo dizer o que disse? Será que ele realmente sabe o que significa? Duvido. Talvez esteja tão surpreso que mal saiba o que dizer. Certamente ele dá a resposta que Aquis quer ouvir, pois o rei reage à sua fanfarrice contando-lhe que pretende torná-lo seu guarda-costas pessoal. Que incrível! Davi, que já foi escudeiro de Saul (16:1), agora é designado como guarda-costas de um rei filisteu e está prestes a guerrear contra Israel. Com certeza o leitor é obrigado a se perguntar: “Mas o que é que um cara como você faz num lugar como esse?”
Para finalizar nosso estudo, a primeira coisa que devemos dizer é que o texto não termina aqui. O autor habilmente nos deixa coçando a cabeça, levando-nos a uma história ainda mais surpreendente (a consulta de Saul à médium de Endor em 28:3-25). A história que começa aqui no capítulo 27 é concluída nos capítulos 29 a 31. Mas não teremos respostas rápidas e fáceis; ficaremos com perguntas inquietantes, para nos fazer refletir. O autor não nos conta um conto de fadas de “final feliz”; ele conta uma história real, que confunde a nossa cabeça. Queremos que a Bíblia nos diga tudo, para não termos de sofrer ou pensar por nós mesmos? Não é assim, mesmo que isso seja aquilo que prefiramos. Muitas vezes a Bíblia nos diz coisas inquietantes e depois nos deixa pensando sobre elas. A Bíblia não faz todo o trabalho para nós; ela procura estimular nosso pensamento. Não devemos pensar independentemente da Palavra de Deus, mas com base Nela. O que o resto da Bíblia nos ensina a fazer com esta história?
Também aprendemos em nosso texto (e em muitos outros) que a Bíblia não procura nos tornar adoradores de heróis. Tanto nos círculos cristãos, quanto nos não cristãos, as pessoas são propensas a ter seus heróis. É isso o que Hollywood fornece para muitos de nossos jovens. Nós, adultos, gostamos de pensar que somos mais sofisticados. Muitas vezes os tele-evangelistas são os heróis daqueles que os assistem e lhes enviam fielmente ofertas para o seu sustento. Quando um de nossos heróis cristãos cai, ficamos arrasados. Temos vontade de jogar a toalha, completamente desiludidos por percebermos que nossos heróis não são aquilo que alegam ser. Se nossos líderes não podem viver à altura de nossos padrões, dizemos a nós mesmos, como alguém pode esperar que vivamos? O fracasso de um líder cristão famoso com freqüência tem efeito dominó na comunidade cristã.
A Bíblia não nos dá tais heróis, homens ou mulheres que tenham o toque de Midas, bem sucedidos em tudo o que fazem, que parecem nunca falhar. A Bíblia nos dá homens e mulheres com todas as suas falhas, homens e mulheres exatamente como nós, ou, como Tiago os chama, homens “semelhantes a nós” (Tg. 5:17). Abraão, o homem que estava disposto a oferecer seu filho, Isaque, também estava disposto a “oferecer” sua esposa Sara, fazendo-a se passar por sua irmã (e mais de uma vez, ver Gênesis 12:13; 20:10-13). Jacó foi um homem que não preencheria nem os requisitos de vendedor de uma loja popular de carros usados, mesmo que seu “tio” fosse o dono da loja. Estamos começando a ver as fraquezas de Davi e, certamente conhecemos as fraquezas de homens como Gideão, Jonas e Pedro. Na Bíblia não existem maridos perfeitos, nem pais perfeitos, nem esposas perfeitas. Deus não deseja que “adoremos” os homens ou façamos deles nossos ídolos. Ele quer que nós O adoremos. Quando idolatramos os homens, não somos apenas tolos, mas também colocamos a nós mesmos, e aqueles a quem idolatramos, em sérios problemas.
Agora, vamos ao ponto principal. O que o autor pretendia ensinar com esta passagem aos leitores de sua época, e o que o texto diz para nós hoje? Vamos começar com a mensagem para a época do autor. Não sabemos exatamente quando o livro de I Samuel foi escrito, mas sabemos que foi algum tempo depois dos acontecimentos nele descritos, pois é dito, por exemplo, que alguém anteriormente chamado de “vidente” era chamado de “profeta” nos dias de seus leitores (I Samuel 9:9). Também é dito que a cidade de Ziclague, dada a Davi em I Samuel 27, permanece sob a posse dos reis de Israel até a época de seus leitores (I Samuel 27:6). Parece que os acontecimentos de nosso texto seriam muito instrutivos para os ”reis” daquela época. Será que eles perceberam o perigo das alianças com estrangeiros? Provavelmente sim, pois este foi um perigo constante na história de Israel. As lições que Davi aprendeu como “futuro rei” foram lições para todos os reis e “futuros reis”.
Há ainda muitas outras lições para as pessoas comuns daquela época, e que também se aplicam a nós hoje. Quando chegamos aos dois primeiros versos do capítulo 28, certamente precisamos perguntar: “Como é que Davi se meteu numa enrascada dessas?” Onde foi que ele errou? Onde falhou? Vamos meditar nestas questões cuidadosamente, em oração, pois meu ponto de vista é que os cristãos de hoje falham da mesma forma que falharam séculos atrás. Os problemas e soluções daquela época são os mesmos ainda hoje. Deixe-me sugerir alguns pontos onde Davi fracassou.
Antes de mais nada, Davi caiu na “síndrome da solidão”. Davi é beneficiado pelo ministério de várias pessoas. Havia Samuel, que não só o ungiu como o futuro rei de Israel, mas a quem Davi podia recorrer quando Saul o perseguisse (I Sam. 19:18-24). Havia também Abiatar, o único herdeiro sobrevivente de Aimeleque, e que se juntou a Davi, junto com a estola sacerdotal (I Sam. 22:20-23; 23:6). Depois houve Jônatas, que estava sempre ao seu lado, asseverando que ele seria o próximo rei (I Sam. 20:12-17,41-42; 23:15-18). E também Abigail, que o incentivou a fazer a coisa certa como futuro rei de Israel (I Sam. 25:26-31).
Embora estivesse junto de muitas pessoas, parece que, de certa forma, ele se havia se fechado em si mesmo. Sua conversa em 27:1 é consigo mesmo (literalmente, o texto nos informa que ele “disse consigo mesmo”). Davi sofre daquilo que chamo de a “síndrome do patrulheiro solitário”. É aquela sensação enganosa de “estar sozinho” em sua luta espiritual, dor e sofrimento. Até o profeta Elias foi pego por esse mal:
“Ali, entrou numa caverna, onde passou a noite; e eis que lhe veio a palavra do SENHOR e lhe disse: Que fazes aqui, Elias? Ele respondeu: Tenho sido zeloso pelo SENHOR, Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derribaram os teus altares e mataram os teus profetas à espada; e eu fiquei só, e procuram tirar-me a vida. (I Re. 19:9-10, ênfase minha)”
“Ouvindo-o Elias, envolveu o rosto no seu manto e, saindo, pôs-se à entrada da caverna. Eis que lhe veio uma voz e lhe disse: Que fazes aqui, Elias? Ele respondeu: Tenho sido em extremo zeloso pelo SENHOR, Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derribaram os teus altares e mataram os teus profetas à espada; e eu fiquei só, e procuram tirar-me a vida.”
Sempre que pensamos estar sozinhos em nossas lutas espirituais, estamos enganando a nós mesmos e prontos a cair espiritualmente. Davi parece estar nesse estado de espírito de ”Patrulheiro Solitário”. Aqui, certamente, ele não está buscando um bom conselho ou a vontade de Deus, meios disponíveis se ele quisesse se valer deles.
Segundo, parece que Davi se esqueceu das coisas que deveria se lembrar. Este mal é realmente muito grave. O povo de Israel sempre se esquecia de como o Senhor os tinha fielmente conduzido e cuidado no passado, mesmo em seu passado recente. No livro de Deuteronômio, Moisés continuamente exorta os israelitas a “se lembrarem” de tudo quanto Deus fizera por eles, dizendo-lhes para não “se esquecerem” dessas coisas. Davi esqueceu-se bem depressa, preferindo fugir do território de Israel e buscar proteção e segurança em território filisteu. Ele esqueceu-se das palavras que o Senhor lhe disse por intermédio de Samuel e de muitos outros. Ele esqueceu-se de como o Senhor o salvou vezes e mais vezes de Saul. Ele esqueceu-se da instrução do profeta Gade para deixar o lugar seguro (aparentemente fora do território de Israel) e voltar para Judá (I Samuel 22:5). Ele esqueceu-se de suas próprias palavras, ditas há tão pouco tempo, sobre a bênção de estar em Israel, e a maldição de ser obrigado a partir (capítulo 26). Davi parece até ter se esquecido do desastre que foi quando fugiu para Aquis, o rei de Gate (21:10-15). O esquecimento (dos mandamentos, das promessas e da fidelidade de Deus) com freqüência é o ponto de partida para erros graves.
Terceiro, parece que Davi tem os olhos fechados para as implicações e conseqüências de seus atos, enquanto minimiza a gravidade de seu erro. Davi não tem intenção de falhar. Ele não pretende acabar no exército filisteu, indo para a batalha contra Saul, Jônatas e os demais soldados israelitas. Tudo que ele pretende fazer é deixar Israel por uns tempos, o suficiente para Saul desistir de sua perseguição. Mas o pecado tem um jeito de abrir caminho para outro pecado e depois outro. É isto o que acontece com Davi. A situação vai ficando de mal a pior, e Davi vai tão fundo que parece não haver saída. E tudo começa com o que parece ser um pequeno deslize na fé, mas que termina numa situação das mais graves, onde Davi se encontra prestes a assumir o lugar de Golias contra Saul e Israel.
Quarto, a decisão de Davi tem como base a “vista”, não a “fé”. Davi não vê a sua situação com os olhos da fé, mas com olhos humanos. Sua avaliação é meramente humana. Esse tipo de avaliação ignora a providência de Deus, Suas promessas ou Suas profecias. Davi olha com olhos humanos e tudo o que vê é a certeza da morte, se permanecer em Israel. Sua única “esperança” está na benevolência, no poder e nos recursos de um rei pagão. Aqui, não é sua fé, mas seu medo, que vence.
Quinto, o fracasso de Davi não ocorre devido a uma derrota esmagadora, uma tentação irresistível ou uma grande crise. Creio que tudo seria bem mais fácil se as decisões de Davi neste capítulo fossem tomadas em momentos de pânico, problemas monumentais, oposição ou tentação. O fato é que nosso texto não indica nada desse tipo. O fracasso de Davi no capítulo 27 vem logo após seu “sucesso” no capítulo 26. Acontece a mesma coisa com Elias, que literalmente se encaverna (desculpe o trocadilho) depois da grande vitória no Monte Carmelo.
O que, então, explica o fracasso de Davi no capítulo 27? Acho que sei a resposta. Um dos maiores inimigos enfrentados pelos cristãos - a fadiga. Ouça estas exortações sobre a fadiga:
“E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos. (Gl. 6:9)”
“E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem. (II Ts. 3:13)”
“Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma. (Hb. 12:3)”
“Ao anjo da igreja em Éfeso escreve: Estas coisas diz aquele que conserva na mão direita as sete estrelas e que anda no meio dos sete candeeiros de ouro: Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar homens maus, e que puseste à prova os que a si mesmos se declaram apóstolos e não são, e os achaste mentirosos; e tens perseverança, e suportaste provas por causa do meu nome, e não te deixaste esmorecer. (Ap. 2:1-3)”
Creio que Davi simplesmente se cansou de fazer a coisa certa. Pense nisso. Ele está em fuga já há algum tempo. Saul oferece uma recompensa por sua cabeça. E agora, até mesmo aqueles que são de sua própria tribo, Judá (isto é, os zifeus) o denunciam para Saul. Indiretamente Davi é responsável pela morte dos sacerdotes e de suas famílias. Saul o afastou de seus filhos, Jônatas e Mical. Davi pôs em risco a vida de sua própria família, quando achou que devia deixá-los aos cuidados do rei de Moabe. Ele acumulou 600 seguidores, todos com esposas e famílias para se preocupar. Este tipo de fardo pode abater qualquer um. Davi não “estoura”, por assim dizer. Ele se “apaga”. Simplesmente ele desiste.
É errada, mas esta é a maneira como muitas pessoas do povo de Deus têm falhado ao longo dos séculos. No entanto, não precisa ser assim. Aqueles de nós que estão abatidos somente precisam buscar forças em Deus. Precisamos entender que é em nossa fraqueza que Deus demonstra Sua força:
“Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o SENHOR, o Criador dos fins da terra, nem se cansa, nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento. Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no SENHOR renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam. (Is. 40:28-31)”
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mt. 11:28-30)”
“E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte. (II Co. 12:7-10)”
Conheço muitos jovens cristãos que se comprometem com Jesus e se propõem a viver sua vida de forma agradável a Deus. Estas moças e rapazes dizem não à pornografia, ao sexo antes do casamento, a relacionamentos comprometedores e às drogas. Mas, um dia, de uma hora para outra, eles se cansam e jogam fora toda restrição e o compromisso de seguir a Deus. Talvez não seja uma queda imediata, mas um comprometimento, uma concessão, que levam ao desastre.
Conheço muitos casamentos que, neste exato momento, estão à beira do desastre. Maridos e mulheres ficam frustrados com seus companheiros e com seu casamento. Como Davi, eles afirmaram seu compromisso com os princípios bíblicos e reafirmaram que seu casamento é para sempre. Eles reconheceram e aceitaram o fato de que o casamento é uma representação de Cristo e Sua igreja. Mas, um dia, simplesmente se cansam da luta e desistem, jogando fora o compromisso com seu cônjuge, e até seu compromisso com Deus e Sua igreja. Muitos casamentos cristãos que tenho observado desmoronam-se em conseqüência da fadiga, de um ou de ambos os parceiros.
A mesma coisa acontece com os cristãos nos negócios. Estes crentes sabem que marcham num ritmo diferente do ritmo de seus concorrentes. Eles procuram não só obedecer às leis do país, mas viver de acordo com os princípios da Palavra de Deus. Quando oferecem um serviço, dão valores exatos, sabendo que seus concorrentes irão engabelar o cliente, só para extorqui-lo mais tarde. Mas, um dia, este profissional cristão se cansa de perder contratos, ou rendimentos, e começa a pensar e a conduzir seus negócios em termos humanos, em vez de agir com fé e obediência.
Meu amigo, vamos aprender com Davi que mesmo aqueles que têm um coração sincero diante de Deus nunca estão longe da possibilidade de falhar. As boas novas são: mesmo quando nossa fé falha, Deus permanece fiel:
“Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo. (II Tm. 2:13)”
Lancemo-nos sobre Ele, que é fiel e dá força ao abatido. Reconheçamos nossas fraquezas e dependamos da Sua força.
Recentemente, milhões de pessoas ficaram furiosas com a AOL (American On Line). Bem na época do Natal eles iniciaram um novo programa. Por US$ 19.95 ao mês (aproximadamente R$ 40,00), uma pessoa poderia ter acesso ilimitado à Internet através da AOL. O problema foi que todo mundo achou que esse era um “negócio da China”. As pessoas que já assinavam a AOL, começaram a usar ainda mais seus serviços - afinal, usar o provedor durante 15 horas por mês não custaria mais do que usá-lo por 5 horas. E muitas outras pessoas, ouvindo a respeito desse “negócio da China”, se tornaram novos assinantes. O resultado foi desastroso para quase todo mundo. Simplesmente havia gente demais tentando usar a AOL ao mesmo tempo.
Um dos computadores lá de casa está conectado pela AOL e, durante algumas semanas, por diversas vezes não conseguimos acessar o sistema. Não conseguíamos sequer checar nossos e-mails. Durante várias semanas houve uma porção de clientes descontentes, alguns dos quais ficaram bem mais do que descontentes. Eles se asseguraram de que a AOL soubesse disso. Ameaças foram feitas e ações foram ajuizadas; de modo geral, a coisa ficou bem feia durante algumas semanas, e tudo porque as pessoas não podiam fazer rapidamente, ou tão bem, aquilo que vinham fazendo poucos meses antes. Poucos pareciam se lembrar de que há alguns anos atrás ninguém sequer sonhava que poderia fazer tais coisas.
Se uma falha parcial de um provedor da Internet levantou tamanho furor, imagine o que seria perder a conexão com Deus. É exatamente isto o que acontece ao rei Saul. Em nosso texto ocorre uma série de acontecimentos que deixam Saul morto de medo. Ele tem um caso agudo de ”religião de trincheira” (quando os soldados começam a rezar ao ouvir o zunido das balas sobre suas cabeças). Ele procura “consultar o Senhor” para saber o que deve fazer para sair da confusão em que se meteu. Apesar de inúmeras tentativas, fracassam todos os seus esforços de consultar o Senhor. Deus está ali, mas está em silêncio. Em termos contemporâneos, Saul tenta desesperadamente se “conectar”, mas todos os “provedores” estão fora do ar. Saul está com sérios problemas e mesmo assim não consegue orientação divina que seja a chave para a vitória. O que ele fará? Resposta: fará algo que jamais fez antes, e que nem fará outra vez.
De longe, estes são os dias mais negros da vida de Saul. Logo veremos o quanto são negros e por que ele se encontra nesse dilema. Vamos procurar discernir as lições que encontramos aqui, tanto para os antigos israelitas, quanto para nós também. Prepare-se, pois este é um dos capítulos mais difíceis de I Samuel. Não é uma história de “final feliz”; na verdade, é justamente o contrário. Vamos ouvir e aprender, para que não venhamos nós mesmos a seguir os passos de Saul.
“Sucedeu, naqueles dias, que, juntando os filisteus os seus exércitos para a peleja, para fazer guerra contra Israel, disse Aquis a Davi: Fica sabendo que comigo sairás à peleja, tu e os teus homens. Então, disse Davi a Aquis: Assim saberás quanto pode o teu servo fazer. Disse Aquis a Davi: Por isso, te farei minha guarda pessoal para sempre. Já Samuel era morto, e todo o Israel o tinha chorado e o tinha sepultado em Ramá, que era a sua cidade; Saul havia desterrado os médiuns e os adivinhos. Ajuntaram-se os filisteus e vieram acampar-se em Suném; ajuntou Saul a todo o Israel, e se acamparam em Gilboa. Vendo Saul o acampamento dos filisteus, foi tomado de medo, e muito se estremeceu o seu coração. Consultou Saul ao SENHOR, porém o SENHOR não lhe respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas. Então, disse Saul aos seus servos: Apontai-me uma mulher que seja médium, para que me encontre com ela e a consulte. Disseram-lhe os seus servos: Há uma mulher em En-Dor que é médium.”
Todos nós temos um daqueles dias em que absolutamente tudo dá errado. Este é um desses dias para Saul (por acaso, o dia de Davi também não vai bem). Os problemas de Saul são incríveis. Primeiro, os filisteus estão guerreando contra os israelitas e, desta vez, estão levando a sério. Os filisteus sempre atormentaram os israelitas durante o reinado de Saul. Mas, desta vez, parece que os reis filisteus estão determinados a destruir o poderio militar de Israel de uma vez por todas. É isto o que eles pretendem ao reunir suas forças armadas em Afeca (29:1). Dali eles marcharão para o norte, através da planície de Esdraelon até Suném (28:3-5). Sua estratégia parece ser separar e conquistar Israel, dividindo a nação ao meio e depois operando na região norte e na região sul independentemente. Enquanto os filisteus lutarão com força total, os israelitas não. Os batedores de Saul o informam sobre a localização e o tamanho das forças filistéias. Os números são incríveis. Além de tudo, eles estão acampados em território mais baixo, a fim de fazer uso total de seus carros. Até posso ouvir Saul murmurando baixinho a gente já era.
Segundo, Saul pode muito bem ter ouvido que Davi está entre os filisteus que se reuniram para atacar Israel. Se Saul teme um confronto direto com o exército filisteu, talvez também esteja abalado por saber que Davi está entre eles. Nosso capítulo começa com a narrativa de Aquis, o rei filisteu, informando a Davi que ele e seus homens irão consigo para a batalha contra os israelitas. Davi lhe garante que se mostrará um aliado valioso, ao que Aquis responde informando que ele será seu guarda pessoal para sempre. Sabemos, pelo capítulo 29, que Davi e seus homens estão com Aquis em Afeca, e é aqui que eles serão instruídos a voltar para casa em Ziclague. Talvez os batedores de Saul tenham localizado Davi e seus homens entre os filisteus reunidos em Afeca. Você pode imaginar como Saul se sente levantando-se contra Davi, principalmente depois do que ele mesmo lhe disse?
Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. (I Sam. 24:20)
Então, Saul disse a Davi: Bendito sejas tu, meu filho Davi; pois grandes coisas farás e, de fato, prevalecerás. Então, Davi continuou o seu caminho, e Saul voltou para o seu lugar. (I Sam. 26:25)
Terceiro, Saul está ciente do que perigo que corre e está apavorado. Lembra-se que Saul parece ter sido um medroso (ou, no mínimo, retraído) desde o princípio? Ele queria abandonar a procura pelas jumentas de seu pai (9:5). Ele não contou a seu tio (Abner?) o que Samuel lhe dissera (10:14-16). Ele se escondeu entre a bagagem quando a sorte foi lançada para identificar o rei (10:22). Pelo que lemos em I Samuel, ele jamais toma a iniciativa de atacar os filisteus, mesmo que a libertação de Israel de sua oposição seja uma parte importante de seu chamado como rei (9:16). Depois que o espírito maligno da parte do Senhor se apossou dele, ele ficou medroso, e às vezes apavorado (ver 16:14; 17:11; 18:12). Este ataque maciço e em larga escala dos filisteus tem todos os sinais de uma derrota devastadora para Saul e seu exército, e assim o autor nos informa que ele está morto de medo (verso 5).
Quarto, embora agora Saul procure desesperadamente consultar o Senhor, ele não consegue obter nenhuma resposta de Deus. Saul não é muito experiente em buscar a vontade de Deus, como nosso texto tem mostrado até este ponto. Diferentemente de Davi (ver I Sam. 22:10, 15), ele não está acostumado a procurar orientação divina. Não foi idéia sua procurar um vidente para saber onde estariam as jumentas perdidas de seu pai (I Sam. 9:5-9). No lançamento de sortes, para saber quem Deus escolhera como rei de Israel, ele não tomou parte do processo; estava escondido (10:22). Ele não procurava orientação divina para saber quando lutar com os filisteus. Não havia necessidade, pois geralmente era Jônatas quem tomava a iniciativa, atacando-os (tal como quando atacou sua guarnição em Geba - 13:3). Mais tarde, no capítulo 13, Saul se obrigou a ir prosseguir e oferecer o holocausto, em vez que de continuar esperando por Samuel. Ao fazer isto ele desobedeceu a ordem que ele lhe dera no capítulo 10, uma ordem relacionada à orientação divina:
Tu, porém, descerás adiante de mim a Gilgal, e eis que eu descerei a ti, para sacrificar holocausto e para apresentar ofertas pacíficas; sete dias esperarás, até que eu venha ter contigo e te declare o que hás de fazer. (I Sam. 10:8, ênfase minha)
Saul é instruído a esperar por Samuel para obter orientação divina, mas ele não espera.
No capítulo 14, o ataque secreto de Jônatas provocou um terremoto e uma grande confusão entre os guerreiros filisteus. Saul vê tudo a distância e depois pede que a arca de Deus seja trazida a ele (14:18). Quando o sacerdote está consultando o Senhor, Saul observa que os filisteus estão fugindo, e assim interrompe o sacerdote no meio da consulta e começa a persegui-los (14:19 ss). Uma ordem insensata de sua parte atrapalha muito esta perseguição, fazendo com que muitos soldados israelitas pequem ao comer o sangue dos animais que devoram devido à sua fome (14:24-35). Depois que os homens se alimentam, Saul está pronto para começar a perseguição aos filisteus, mas o sacerdote insiste em que eles se cheguem a Deus (14:37). Quando não há respostas naquele dia, Saul conclui que é devido a pecado (de Jônatas) e ordena que a sorte seja lançada entre os israelitas de um lado, e ele e Jônatas de outro. Saul e seu filho são indicados. A sorte é lançada novamente entre ele e Jônatas. Jônatas é indicado; Saul pretende usar o lançamento de sortes para justificar a condenação de seu próprio filho à morte, e o teria feito se o povo não tivesse se recusado a permitir que isto acontecesse. Saul está bem longe de ser modelo de alguém que busca orientação divina.
Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra o SENHOR, por causa da palavra do SENHOR, que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante e não ao SENHOR, que, por isso, o matou e transferiu o reino a Davi, filho de Jessé. (I Cr. 10:13-14)
Está escrito que Saul consultou o Senhor (28:6), mas esta não é uma verdadeira consulta. Pelo contrário, é antes uma tentativa desesperada de conseguir que Deus o livre dos problemas em que ele mesmo se meteu. Encontramos no livro de Jeremias a descrição de uma tentativa semelhante de consultar o Senhor:
Palavra que veio a Jeremias da parte do SENHOR, quando o rei Zedequias lhe enviou Pasur, filho de Malquias, e o sacerdote Sofonias, filho de Maaséias, dizendo: Pergunta agora por nós ao SENHOR, por que Nabucodonosor, rei da Babilônia, guerreia contra nós; bem pode ser que o SENHOR nos trate segundo todas as suas maravilhas e o faça retirar-se de nós. (Jr. 21:12, ênfase minha)
A inquietação de Saul passa do medo para o terror e do terror para pânico absoluto. Ele precisa fazer alguma coisa drástica, já! É como se ele estivesse revivendo os acontecimentos do capítulo 13, só que desta vez a sensação de tragédia iminente é ainda maior. Os filisteus estão acampados em Suném, e Saul e seu exército em Gilboa (verso 4). Os filisteus estão posicionados para o ataque, e Saul sabe que não tem nenhuma chance. Ele precisa agir, e rápido - ou assim ele supõe. Portanto, ele toma uma decisão desesperada e muito perigosa. Uma vez que parece não conseguir a atenção de Deus de nenhuma forma convencional, ele decide que deve consultar uma médium.
“Então, disse Saul aos seus servos: Apontai-me uma mulher que seja médium, para que me encontre com ela e a consulte. Disseram-lhe os seus servos: Há uma mulher em En-Dor que é médium. Saul disfarçou-se, vestiu outras roupas e se foi, e com ele, dois homens, e, de noite, chegaram à mulher; e lhe disse: Peço-te que me adivinhes pela necromancia e me faças subir aquele que eu te disser. Respondeu-lhe a mulher: Bem sabes o que fez Saul, como eliminou da terra os médiuns e adivinhos; por que, pois, me armas cilada à minha vida, para me matares? Então, Saul lhe jurou pelo SENHOR, dizendo: Tão certo como vive o SENHOR, nenhum castigo te sobrevirá por isso. Então, lhe disse a mulher: Quem te farei subir? Respondeu ele: Faze-me subir Samuel. Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz; e a mulher disse a Saul: Por que me enganaste? Pois tu mesmo és Saul. Respondeu-lhe o rei: Não temas; que vês? Então, a mulher respondeu a Saul: Vejo um deus que sobe da terra. Perguntou ele: Como é a sua figura? Respondeu ela: Vem subindo um ancião e está envolto numa capa. Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosto em terra e se prostrou.”
Como não é capaz de se conectar com Deus de maneira convencional, Saul decide procurar uma forma bem diferente. Samuel é o único profeta que conhecemos que lhe dava instruções de Deus. Havia muitos outros profetas, mas eles não são mencionados no texto. Samuel está morto (verso 3), mas Saul tem uma idéia. Talvez ainda possa conversar com ele. Talvez possa persuadir uma médium a invocá-lo, para que possa falar lhe falar. Saul instrui seus servos a encontrarem uma mulher que seja médium. Eles conhecem uma que vive em En-Dor.
Esse negócio de consultar uma médium tem uma porção de problemas, os quais podemos ver em nosso texto.
Primeiro, Deus proibiu estritamente o uso de médiuns. Uma porção de textos do Velho Testamento proíbem a presença de médiuns e outros espíritas no território de Israel e também proíbem os israelitas de consultarem tais pessoas. Considere estas proibições na lei de Moisés:
Não vos voltareis para os necromantes, nem para os adivinhos; não os procureis para serdes contaminados por eles. Eu sou o SENHOR, vosso Deus. (Lv. 19:31)
Quando alguém se virar para os necromantes e feiticeiros, para se prostituir com eles, eu me voltarei contra ele e o eliminarei do meio do seu povo. (Lv. 20:6)
O homem ou mulher que sejam necromantes ou sejam feiticeiros serão mortos; serão apedrejados; o seu sangue cairá sobre eles. (Lv. 20:27)
Não se achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR, teu Deus, os lança de diante de ti. Perfeito serás para com o SENHOR, teu Deus. Porque estas nações que hás de possuir ouvem os prognosticadores e os adivinhadores; porém a ti o SENHOR, teu Deus, não permitiu tal coisa. (Dt. 18:10-14)
O segundo problema é que, pelo menos uma vez, Saul fez a coisa certa: Saul havia desterrado os médiuns e os adivinhos. (verso 3b) Isto é realmente espantoso. Pelo menos uma vez, ao que parece, Saul realmente fez alguma coisa certa. Agora, na iminência de um ataque filisteu, ele deseja localizar uma médium e fazer aquilo que a lei do Velho Testamento proibia. O maior obstáculo a isto é sua própria obediência, que havia desterrado essas pessoas. Entenda: Saul agora lamenta uma das poucas coisas que parece ter feito direito.
Há ainda um terceiro problema, um problema logístico. Os filisteus estão acampados em Suném; Saul e os israelitas estão acampados em Gilboa. En-dor fica aproximadamente oito milhas ao norte de Gilboa, e para ir até lá, Saul tem que rodear os filisteus.
Há um quarto problema: Saul não pode se dar ao luxo de ser identificado. Saul não ousa ser identificado por qualquer um que encontre pelo caminho. Matar um rei oponente é meio caminho andado para vencer o inimigo, portanto, o rei é o alvo principal. Um rei poderia, como precaução, se disfarçar (ver I Re. 22:29-36). Além disto, Saul não deseja ser reconhecido pela médium. Se ela souber quem ele é certamente não concordará em invocar um morto, sabendo que foi Saul quem expulsou os médiuns e espíritas de Israel (ver verso 9). Sua solução é viajar à noite, disfarçando suas roupas. Ele não usará suas vestes reais nesta missão.
Quando Saul chega à casa da médium, ele vai direto ao assunto. Primeiro procura fazer com que ela se comprometa a invocar qualquer um que ele chame. Ela resiste, temendo que esta possa ser uma das ciladas de Saul. Ela não quer ser pega desobedecendo diretamente as ordens do rei. Afinal, estes homens são estrangeiros, ou ela pensa que sejam. Ironicamente, Saul jura pelo nome do Senhor que ela não será punida por fazer o que ele lhe pede (verso 10). Assim, ele pede que ela invoque Samuel. Ela não precisa pedir maiores esclarecimentos. Ela dá um berro quando vê Samuel. Ela não só o reconhece, mas agora também reconhece que aquele que lhe pede para invocá-lo é nenhum outro senão o próprio Saul. Quase posso ouvi-la exclamando eu já era.
Saul uma vez mais garante que não lhe fará mal, e depois pede que ela descreva a pessoa que vê diante de si. Sua reação ao ver Samuel, bem como sua descrição dele, parecem indicar que esta não é uma invocação comum. Ela diz a Saul que vê um ser divino (a versão ARA traduz por deus). O texto hebraico usa a palavra elohim (deus), e a Septuaginta usa a palavra grega theous (deus). O que ela vê não é exatamente um espírito, mas um ser divino. Não é de admirar que ela esteja apavorada. Ela descreve este ser divino para Saul como alguém que se parece com um ancião, envolto numa capa. Pela sua descrição deste ser divino Saul o identifica como Samuel. E assim Saul se prosta com o rosto em terra fazendo reverência a ele (verso 14).
Samuel disse a Saul: Por que me inquietaste, fazendo-me subir? Então, disse Saul: Mui angustiado estou, porque os filisteus guerreiam contra mim, e Deus se desviou de mim e já não me responde, nem pelo ministério dos profetas, nem por sonhos; por isso, te chamei para que me reveles o que devo fazer. Então, disse Samuel: Por que, pois, a mim me perguntas, visto que o SENHOR te desamparou e se fez teu inimigo? Porque o SENHOR fez para contigo como, por meu intermédio, ele te dissera; tirou o reino da tua mão e o deu ao teu companheiro Davi. Como tu não deste ouvidos à voz do SENHOR e não executaste o que ele, no furor da sua ira, ordenou contra Amaleque, por isso, o SENHOR te fez, hoje, isto. O SENHOR entregará também a Israel contigo nas mãos dos filisteus, e, amanhã, tu e teus filhos estareis comigo; e o acampamento de Israel o SENHOR entregará nas mãos dos filisteus.
Na época em que Saul e Samuel estavam vivos, Samuel falava diretamente com Saul por Deus. Samuel não lhe dizia o que ele queria ouvir. Na verdade, Samuel às vezes temia por sua vida quando fazia aquilo que sabia que enfureceria Saul (ver 16:2). Nos capítulos 13 e 15, Samuel repreendeu Saul por seus pecados e lhe disse que ele estava prestes a perder seu reino. À luz destas coisas, o que é que Saul espera que Samuel lhe diga agora? Se ele espera qualquer coisa diferente só porque uma médium invocara Samuel dos mortos, ele vai cair do cavalo.
Tenho cinco filhas, e algumas delas não são o que eu chamaria de “madrugadoras” (francamente, também não sou nenhum “madrugador”). Saul sabe que invocar Samuel dos mortos é como acordar uma de minhas filhas de manhã cedo. Pode ser como acordar uma ursa. Costumo brincar dizendo que para entrar no quarto é preciso cutucar a dorminhoca com uma varinha, sem chegar muito perto. De qualquer forma, Samuel parece um tanto “irritado”, se é que esta é a maneira correta de descrevê-lo: “Por que me inquietaste, fazendo-me subir?” Ele poderia ter dito isto porque não gostou de ser perturbado por Saul. (Por acaso, ele parece se sentir mais livre para “dar uma bronca” em Saul agora do que quando estava vivo. Agora não é preciso temer que ele o mate!) Ou, ele poderia ter dito isto como uma reprimenda a Saul, por fazer algo que não deveria ter feito - invocar o espírito de alguém que está morto. De qualquer forma, a desaprovação de Samuel é clara.
Saul soa como um colegial que acabou de ser pego com a mão no pote de biscoitos e ficou com os dedos presos. Ele procura justificar sua atitude dizendo a Samuel que está muito angustiado. Ele acrescenta que a razão é que os filisteus estão guerreando contra ele e que Deus se afastou e não responde mais suas consultas. É como se ele dissesse “Eu tinha que chamar você, Samuel. Você tem que me dizer o que fazer. Sei que é contra as regras, mas é uma emergência.”
Samuel não fica impressionado. Ele não diz a Saul o que fazer. Na verdade, ele repreende Saul por lhe pedir para fazer o que é impossível. Pedir a Samuel para falar por Deus, quando Deus o deixou, é como pedir a Balaão para amaldiçoar o povo de Deus, quando Deus escolhera abençoá-los. Samuel não pode e não dirá a Saul o que fazer. Saul está sozinho. Mas, uma vez que Saul se esforçou para invocá-lo, Samuel lhe dirá como as coisas estão entre ele e Deus, e o que o amanhã lhe reserva. A situação em que ele se encontra agora é exatamente aquela que Samuel lhe revelou quando falou por Deus nos capítulos 13 e 15. Saul agora vive o cumprimento das profecias de Samuel.
Em poucas palavras Samuel diz a Saul o que lhe acontecerá e por que. Conforme indicara anteriormente, Deus tirou o reino de suas mãos. Ele está dando esse reino a Davi, o companheiro” de Saul. Isto é devido à desobediência de Saul ao falhar em cumprir totalmente as instruções de Deus a respeito de Amaleque. Samuel diz ao rei que as palavras de sua profecia, ditas no capítulo 15, agora estão sendo cumpridas. No dia seguinte, Deus entregará Israel, Saul e seus filhos aos filisteus. Saul e seus filhos serão mortos. Samuel diz sem rodeios “Amanhã, você e seus filhos estarão comigo”. Estas notícias são inquietantes. Certamente não é o que Saul esperava ouvir. Ele invoca um profeta, e consegue um. Mesmo do túmulo, Samuel não muda o tom.
De súbito, caiu Saul estendido por terra e foi tomado de grande medo por causa das palavras de Samuel; e faltavam-lhe as forças, porque não comera pão todo aquele dia e toda aquela noite. Aproximou-se de Saul a mulher e, vendo-o assaz perturbado, disse-lhe: Eis que a tua serva deu ouvidos à tua voz, e, arriscando a minha vida, atendi às palavras que me falaste. Agora, pois, ouve também tu as palavras da tua serva e permite que eu ponha um bocado de pão diante de ti; come, para que tenhas forças e te ponhas a caminho. Porém ele o recusou e disse: Não comerei. Mas os seus servos e a mulher o constrangeram; e atendeu. Levantou-se do chão e se assentou no leito. Tinha a mulher em casa um bezerro cevado; apressou-se e matou-o, e, tomando farinha, a amassou, e a cozeu em bolos asmos. E os trouxe diante de Saul e de seus servos, e comeram. Depois, se levantaram e se foram naquela mesma noite.
O que acontece a seguir não é uma visão muito bonita. Quando Saul chegou à casa da médium em En-Dor naquela noite ele estava com muito medo. Depois do que acaba de acontecer, literalmente ele tem um colapso. Seus joelhos se dobram ante as palavras de Samuel. Ele cai no chão como se tivesse sido fulminado por um raio paralizante. Em parte, é conseqüência dele não ter se alimentado. Além disto, ele está cansado da viagem de oito milhas ou mais desde o acampamento em Gilboa até En-dor. No entanto, a maior parte é por puro terror. Até posso imaginar que, a esta altura, a médium esteja começando a ficar preocupada e bastante ansiosa para que ele parta.
A mulher apela para Saul ouvi-la e aceitar seu conselho. Afinal, isto é o mínimo que ele pode fazer depois que ela arriscou a vida por sua causa. Ela implora ao rei que a deixe arranjar-lhe algo para comer, algo que lhe dê força suficiente para ir embora. Ele se recusa. Seu apetite se foi. Tanto a mulher, quanto os homens de Saul o persuadem a comer, não porque ele esteja com fome, mas porque deve ganhar forças para retornar ao acampamento. Como o pai do filho pródigo, a médium de En-dor mata e prepara um bezerro cevado (ver Lucas 15:22-24, 29), mas não é para nenhuma comemoração, ou porque o pródigo tenha se arrependido e voltado. É mais como um velório. Ela abate o bezerro e o prepara, junto com alguns pães. O rei come e depois parte noite a fora. Este é, até agora, o dia mais negro da vida de Saul; mas um dia ainda mais negro está por vir - o dia seguinte - quando as profecias de Samuel serão cumpridas.
Temos uma expressão que diz: “Tudo vai bem quando termina bem”. Se isto é verdade, tudo não vai bem, pelo menos no que se refere a Saul. Dale Ralph Davis intitula o capítulo de seu comentário deste texto das Escrituras “E Era Noite. Este título certamente foi propiciado pela dupla referência em nosso texto a acontecimentos que tiveram lugar na escuridão da noite (28:8, 25). Também parece ser um jogo com as palavras de João 13:30, onde é dito que Judas deixou nosso Senhor e os discípulos para consumar sua traição. Ali João nos diz veladamente: “e era noite”.
Sem dúvida, este é o dia mais negro da vida de Saul - até agora. O dia seguinte (e último) será ainda mais negro. Eis o rei de Israel, tão debilitado pela fome e pelo terror que mal consegue ficar em pé. Suas roupas são uma tentativa patética de disfarce, mas isto também falhou. Ele está na casa de uma médium, procurando consultá-la. E quando consegue falar com Samuel, o profeta só lhe diz uma antiga versão do “eu te disse”. E ainda diz mais: que Saul e seus filhos morrerão em batalha no dia seguinte. Ele não dá a Saul nenhum incentivo, nenhuma esperança, nenhuma chance para arrependimento. Simplesmente é tarde demais. Que trágico retrato de Saul vemos aqui.
Quarenta anos antes, Saul era um jovem governante promissor e um maravilhoso espécime físico que sobressaía dos ombros para cima a seus compatriotas israelitas (9:1-2). Ele iniciou sua carreira militar libertando o povo de Jabes-Gileade, com uma vitória estrondosa sobre os amonitas (capítulo 11). Como é que, então, as coisas ficaram tão ruins a ponto dele terminar como uma massa trêmula no chão de uma médium proibida? De acordo com Samuel, a resposta é muito simples - desobediência. A primeira grande falha de Saul (pelo que o texto nos diz) foi em Gilgal, quando ele não espera por Samuel para oferecer o sacrifício, como havia sido instruído (ver 10:7-8). Ao invés de esperar por Samuel para oferecer o sacrifício e lhe dizer o que devia fazer (por orientação divina), Saul foi em frente e ofereceu ele mesmo o sacrifício.
Sua segunda maior falha é quase insignificante, mas, como dizemos, é a gota d´água. Samuel lhe dá uma orientação muito clara da parte de Deus. Como rei de Israel, é dever de Saul aniquilar os amalequitas pela forma com que eles trataram Israel na época do êxodo. Todos os amalequitas devem ser mortos, incluindo o rei. Na verdade, Samuel deixa claro que o rei não deve ser poupado (15:1-3). Nem as crianças e o gado devem ser poupados também. A despeito desta ordem, Saul e povo poupam o rei Agague e melhor do gado. Samuel pressiona Saul para assumir a responsabilidade pessoal por seu pecado. Quando Saul procura minimizar seu pecado afirmando que estava poupando o melhor do gado amalequita para sacrificar ao Senhor, Samuel estabelece um princípío que ecoará pelo resto do Velho e do Novo Testamento:
“Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (I Sam. 15:22-23)
Saul parece pensar que os sacrifícios dos homens são as coisas que Deus mais valoriza, mesmo que isto signifique desobedecê-Lo. Samuel entende exatamente o contrário. Deus Se deleita na obediência do homem, mais do que em seus sacrifícios. A obediência a Deus é a melhor coisa. Portanto, a desobediência, é a pior. Será que Saul supõe que Deus verá com bons olhos a desobediência que tornou tal sacrifício possível? Não verá. Na verdade, Deus considera tal rebelião da mesma forma que considera o pecado de advinhação, e a insubordinação da mesma forma que a iniqüidade e a idolatria. Saul pensa que Deus verá com prazer aquilo que ele e os israelitas fizeram. Samuel lhe diz que Deus considera suas ações como se fossem a coisa mais vil que ele pudesse fazer.
Embora não tenha pensado nisto antes, agora estou inclinado a ver I Samuel 15:22-23 à luz de I Samuel 28:3. Aqui o Autor nos diz que Saul já tinha livrado Israel dos médiuns e espíritas. Agora, relembrando o capítulo 15, estou inclinado a entendê-lo como a seguir. Saul já havia removido os médiuns e espíritas de Israel. Provavelmente ele se sente muito bem a este respeito, uma vez que fez o que a lei de Moisés ordenava. No entanto, algum tempo depois, ele é ordenado a livrar a terra dos amalequitas. Ele o faz pela metade, e, como lembrado anteriormente, obediência parcial, na verdade, é desobediência. Quando Deus o repreende por meio de Samuel, Ele diz ao rei que a desobediência dele é tão ofensiva quanto a idolatria e a feitiçaria. Será que Saul se sente satisfeito por ter removido os médiuns e espíritas? Será que ele concorda que essas pessoas e suas práticas são abomináveis? Sua desobediência é vista no mesmo nível que tais práticas. A magnitude de seu pecado de obedecer parcialmente a Deus, com relação à remoção dos amalequitas, é a mesma do pecado de feitiçaria.
Acho que as palavras de censura de Samuel no capítulo 15 vão ainda mais além. Ele insinua que, se Saul não se arrepender de sua desobediência e de sua rebelião, elas o levarão à idolatria e à feitiçaria. Em outras palavras, Samuel está profetizando que se Saul não se arrepender de seu pecado relativo aos amalequitas, ele será culpado dos mesmos “pecados” que acaba de condenar ao remover os médiuns e espíritas.
Os acontecimentos do capítulo 28 sucedem com a estranha sensação de que Saul falha em levar a sério o seu próprio pecado e a repreensão de Samuel. Vejo uma importante similaridade entre os capítulos 13 e 15. Nos dois capítulos Saul peca por desobedecer deliberadamente a ordem de Deus. Em ambos os casos, quando Samuel o confronta, ele tenta colocar a culpa (ou pelo menos parte dela) em alguém mais. No capítulo 13, ele se desculpa dizendo que Samuel está atrasado (a culpa é dele), e que o povo está indo embora (a culpa é deles). No capítulo 15 novamente ele procura se eximir da responsabilidade. Primeiro ele afirma ter obedecido totalmente a Deus; Samuel encerra rapidamente o assunto. Então ele culpa o povo, como se eles tivessem retido o melhor do gado sozinhos. Por fim ele admite ter ficado com medo do povo, mas, ainda assim não assume a responsabilidade que é sua como rei. Em ambos os capítulos Saul vê suas ações como exigidas por uma situação emergencial. Ele declarou mentalmente um “estado de emergência”, onde sua própria forma de “lei marcial” põe de lado as leis de Deus. Finalmente, depois que todas as suas desculpas esfarrapadas são descartadas, seu “arrependimento” mal chega à forma de “lamento”.
Assim, vemos o porquê das coisas acontecerem como no capítulo 28. Saul começou bem, mas bem depressa se tornou descuidado em obedecer aos mandamentos de Deus. Mesmo quando repreendido por seus pecados, ele não se arrepende totalmente, e, assim, a repetição desses pecados é inevitável. Considerando a declaração profética de Samuel no capítulo 15, é difícil nos surpreendermos por encontrar Saul em busca de orientação divina por meio de uma médium. Se uma pessoa acha que os mandamentos de Deus são repulsivos, também acha fácil rejeitá-los. Será estranho que ela se volte para os médiuns e feiticeiras (ou qualquer outro meio de direção), sendo que tais pessoas a “encaminham” da forma como sempre quis andar (compare II Tm. 4:3-4)? Vemos que o fim da vida de Saul é trágico, mas isto não deveria ser nenhuma surpresa. É a conseqüência lógica do caminho que ele escolheu.
Enquanto lemos esta história humilhante de Saul na casa da médium de En-dor, gostaríamos de nos consolar pensando que é uma situação estranha, bizarra, um caso fortuito. Insisto em que não é um caso fortuito. De fato, creio que o que vemos aqui é a regra. Saul é uma demonstração viva da “regra” e não da “exceção”. Saul é uma espécie de tipo da nação de Israel. Vemos em sua vida (e morte) um microcosmo, uma versão em miniatura da história de Israel. Israel, como Saul, não foi escolhido por sua posição, mas a despeito de não ter uma nobre descendência (compare Dt. 7:7-8, I Sam. 9:21, 10:22. 15:17). Como a nação de Israel, Deus levantou Saul para “destruir completamente os cananeus (comparece Dt. 7:12; I Sam. 15:1-3). Saul, como a nação de Israel, devia confiar em Deus e guardar Seus mandamentos, e não imitar os gentios (compare Dt. 7:2-5, 9:16; I Sam. 15:20-23). E, como Israel, Deus destruiria Saul por sua flagrante e persistente rebelião (compare Dt. 7:4; I Cr. 10:13-14). Repare como estes dois assuntos estão entremeados no capítulo 12:
Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais. Ponde-vos também, agora, aqui e vede esta grande coisa que o SENHOR fará diante dos vossos olhos. Não é, agora, o tempo da sega do trigo? Clamarei, pois, ao SENHOR, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade, que tendes praticado perante o SENHOR, pedindo para vós outros um rei. Então, invocou Samuel ao SENHOR, e o SENHOR deu trovões e chuva naquele dia; pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao SENHOR, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o SENHOR, mas servi ao SENHOR de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são. Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo. Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o SENHOR, deixando de orar por vós; antes, vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.
Finalmente, a nação de Israel foi escolhida por Deus para ser reino de sacerdotes (Ex. 19:6), mas seu governo como filhos de Deus não durou muito, devido à sua desobediência (ver Ex. 4:23). Depois foram os reis de Israel que deviam ser os filhos de Deus, governando a nação (ver II Sam. 7:14; Sl. 2:4-9). Enfim, há apenas um rei bom e perfeito, o único Filho de Deus, no qual podemos ser salvos de nossos pecados, e no qual podemos reinar (João 1:12, Rm. 8:14-25).
Saul não é apenas um tipo da nação de Israel, ele é um trágico exemplo do que pode acontecer a cada um e a todos nós. Aqueles que desejam conhecer e fazer a vontade de Deus a conhecerão, pois Deus lhes revelará (ver João 7:17). Mas, se nos rebelarmos obstinadamente contra Deus, Ele não ouvirá nossas orações e cessará Sua manifestação e a revelação de Sua vontade a nós (Ele não “lançará pérolas aos porcos”; ver também o Sl. 18:8; João 2:23-25; Marcos 4:20-25). Finalmente, aqueles que resistem e desobedecem a vontade de Deus e Sua Palavra (que apenas pode ser distinguida) acabam procurando em outros lugares o ensino dito “cristão”, ainda que não seja (ver II Tm. 3:1-13; 4:14).
Creio que haja um “ponto sem retorno” na vida de uma pessoa. Há uma determinada época em que Deus cessa de convencer o pecador de seus pecados, e em vez disso endurece seu coração, devido à persistente rejeição ao evangelho. Há uma determinada época em que, humanamente falando, é tarde demais. Aqueles que tolamente supõem que podem continuar a viver em pecado e rejeitar o evangelho, achando que Deus sempre “estará lá para ajudá-los”, estão errados.
“E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também vos exortamos a que não recebais em vão a graça de Deus (porque ele diz: EU TE OUVI NO TEMPO DA OPORTUNIDADE E TE SOCORRI NO DIA DA SALVAçãO; eis, agora, O TEMPO SOBREMODO OPORTUNO, eis, agora, O DIA DA SALVAçãO)” (II Co. 6:1-2)
Também creio que haja um “ponto sem retorno” para um cristão que vive em constante e deliberada rebelião. Não é que esta pessoa vá perder sua salvação, mas ela perderá a “alegria” da salvação. Ela pode muito bem perder a segurança da salvação. Com toda a certeza perderá a sensação de intimidade e companheirismo que poderia e deveria ter com Cristo e Sua igreja. Talvez ele até perca sua vida, tal como Saul (ver I Co. 5:1-5: I Tm. 1:18-20; I Jo. 5:13-17).
Embora este não seja um pensamento reconfortante, somos mais parecidos com Saul do que gostaríamos de crer. Há muito de “Saul” em cada um de nós. É por isso que devemos habitar em Cristo e em Sua Palavra. É por isso que devemos orar para ter forças e não cair em tentação. É por isso que precisamos “não deixar de nos congregar” e admoestar os irmãos e irmãs crentes, e nos acautelar do pecado persistente e deliberado (Hb. 10:19-31).
Fica claro que nosso texto não é um conto de fadas. Saul não vive “um final feliz”, como as pessoas dos contos de fadas vivem. Nem qualquer um que falhe em confiar e obedecer a Deus. Sejamos humilhados e abatidos por Saul, reconheçamos nossas fraquezas, e dependamos exclusivamente da Sua força.
Tenho uma porção de jovens amigos de quem gosto muito. Recentemente, um deles fez uma visita ao meu gabinete enquanto eu terminava de imprimir o sermão do domingo anterior. Meu amiguinho de 9 anos de idade, Luke, perambulou pelo gabinete para ver o que eu fazia. “O que é isso na tela”, perguntou. “Esse é o meu sermão da semana passada”, respondi. “Meio longo, né?”, disse ele. “Bem, talvez seja”, respondi. Enquanto continuava a trabalhar em minha mensagem e passava para a página 10, Luke conversava e observava com um interesse despreocupado. “Espera aí, tio Bob!”, disse ele, “acho que vi alguma coisa. Poderia voltar um pouquinho - só um pouquinho?” Explorando meu monitor, Luke apontou para uma frase em meu sermão onde eu escrevera: “Saul comandante de mil, esperando que Davi fosse morto”. “É isso mesmo que o senhor queria dizer?”, perguntou. “Não”, admiti, um tanto embaraçado e completamente espantado. Arrumei a frase para a satisfação de Luke, e minha também, mudando-a para “Saul designou a Davi comandante de mil, esperando que ele fosse morto.” Enquanto Luke perdia o interesse e saía de meu gabinete, perguntei a mim mesmo “Com é que ele fez isso?”.
Às vezes recebemos ajuda de lugares inesperados. Com toda a certeza, esse é o caso de Davi em I Samuel 29. Ele consegue se meter numa verdadeira enrascada. Depois de ser liberto das mãos de Saul em diversas ocasiões, ele se cansa de viver como fugitivo. Num momento de desespero, ele acha que sua única esperança é fugir de Saul para o território dos filisteus. Davi está convencido de que, quando Saul souber onde ele está, desistirá de sua perseguição. Ele e seus 600 homens, acompanhados por suas esposas e filhos, encontram refúgio em território filisteu. Davi persuade Aquis, o rei filisteu, a permitir que eles deixem Gate e se estabeleçam em Ziclague, uma cidade bem distante dali. De sua base de operações, Davi faz uma série de ataques contra os inimigos de Israel. Em todos os casos, ele engana Aquis dizendo-lhe que acabou de invadir alguma das vilas de Israel ou alguma cidade das vizinhanças. Para garantir que ninguém informe Aquis sobre o que realmente aconteceu, ele cuidadosamente elimina todas as pessoas, não deixando nenhum sobrevivente. Davi parece dividir alguns despojos de guerra com Aquis (ver 27:9), enquanto também leva uma parte (pelo menos em uma ocasião) a seus irmãos israelitas (ver 30:26-31), as mesmas pessoas que Aquis pensa que ele esteja matando. Em resumo, Davi está jogando dos dois lados.
Davi parece estar escapando impune em sua farsa. De repente as coisas tomam um rumo inesperado, e agora parece que ele está num beco sem saída. O rei Aquis o informa que os comandantes filisteus estão unindo suas forças para fazer um ataque maciço contra Israel. Ele, então, diz a Davi que ele e seus 600 homens vão ter a honra de lutar por ele e com ele. Davi enerva o leitor de I Samuel 28 garantindo a Aquis que lutará valentemente pelos filisteus. Ele promete mostrar a Aquis toda a sua habilidade quando for para a batalha com ele. Aquis reage à assertiva de Davi oferecendo-lhe o que acredita ser uma grande recompensa por seus fiéis serviços - um emprego vitalício como seu guarda-costas pessoal. Quem sequer teria imaginado que Davi, que uma vez serviu como escudeiro de Saul, seria agora designado como guarda-costas de um rei filisteu?
A esta altura dos acontecimentos o autor nos deixa completamente aturdidos, enquanto volta nossa atenção para o rei Saul e a narrativa de sua visita à médium de En-dor. No capítulo 29, encontramos um Saul em pânico e aterrorizado. Ele não consegue mais ter a atenção de Deus, nem receber Suas instruções para livrá-lo e a seu exército de uma derrota certa às mãos dos filisteus. Em absoluto desespero, Saul busca conselho com uma médium que vive em En-dor. Quando fica sabendo que Deus não virá salvá-lo, mas vai entregá-lo, e a seus soldados, aos filisteus, ele perde a força e a coragem. Literalmente ele fica paralisado de medo. Finalmente, depois de ser persuadido a comer, ele recobra força suficiente para partir noite adentro e voltar para seus homens e para a batalha. Agora ele sabe como essa batalha terminará.
Durante toda esta angustiante experiência de Saul em En-dor, nossos pensamentos toda hora se voltavam para Davi, que se meteu numa situação das mais perigosas. Até parece um “ardil 22” (filme sobre pilotos da II Guerra que fazem de tudo para voltar prá casa), sem saída para ele e seus homens. Se Davi realmente lutar ao lado de Aquis, junto com os soldados filisteus, estará lutando contra seu próprio povo (os israelitas), seu rei (Saul), e seu querido amigo, Jônatas. Se ele não lutar ao lado dos filisteus, é quase certo que terá que se voltar contra eles na batalha. Isto também traz problemas quase insuperáveis. A intenção de Deus é entregar os israelitas aos filisteus e tirar a vida de Saul e de seus filhos na batalha. Se Davi lutar contra os filisteus, estará lutando (como se estivesse) contra os propósitos de Deus. O que ele deve fazer? Passar para o lado dos filisteus pareceu-lhe um movimento brilhante na primeira parte do capítulo 27. Ele conseguiu ficar a salvo, fora do alcance de Saul, e foi bem sucedido em agradar tanto aos filisteus quanto aos israelitas. Mas agora, de uma hora para outra, ele está num beco sem saída, sem nenhuma solução aparente. É neste exato momento que vem auxílio de uma fonte das mais improváveis - dos príncipes filisteus.
Antes de tentarmos acompanhar os acontecimentos da história que nosso autor tão habilmente nos conta, vamos tomar nota de algumas coisas que poderão nos ajudar a entender melhor o texto.
Primeiro, repare que não é dito por que Davi faz o que faz. Por inspiração divina, nosso autor é perfeitamente capaz de nos dizer quais são os motivos e as intenções de Davi. Por exemplo, anteriormente em I Samuel é dito que Saul promove Davi à liderança e lhe oferece suas filhas em casamento. A razão talvez não seja evidente àqueles à volta de Saul, mas o autor de I Samuel informa a seus leitores os motivos e intenções dele: ele está com ciúmes e se sente ameaçado por Davi e pretende matá-lo, ficando, portanto, livre dele como rival ao trono. No capítulo 27 é dito o porquê de Davi fugir para Aquis, procurando se refugiar de Saul: ele está com medo e não crê que haja alguma outra forma de se salvar, a não ser buscando asilo na Filistia. Agora, na hora em que gostaríamos muito de saber o que ele planeja fazer e por que, nada é dito.
Uma coisa sabemos com certeza: o autor retém esta informação de propósito. Ele não deseja que saibamos o que Davi pretende fazer por várias razões: (1) O autor parece querer que adivinhemos o que Davi está pensando, o que aumenta o clima de mistério e suspense. Um bom escritor prende nossa atenção tanto pelo que retém quanto pelo que revela. (2) O autor não está tentando dizer que Davi é um santo, mas retratá-lo como um “homem sujeito às mesmas paixões, que tem dúvidas, medos, e que comete erros, tal como eu e você. (3) Se fosse dito o que Davi pretendia fazer e por que, facilmente concordaríamos com ele. Poderíamos desculpá-lo.
Vivemos numa época em que os princípios circunstanciais são muito comuns. Estes princípios não julgam uma atitude como sendo errada - dizer imoralidades, por exemplo - mas procuram distinguir o “que é certo” e o “que é errado” com base nos motivos. Se um homem cometer adultério, mas for por “amor” ou por se “importar” com a outra pessoa, então sua atitude não é errada. Embora haja um certo elemento de verdade nisto, algumas coisas simplesmente são erradas, e nossa motivação e atitude ao fazê-las não as tornarão certas. O autor não parece querer que “entendamos” porque Davi agiu como agiu, mas que soframos porque ele agiu dessa forma.
Segundo, nestes capítulos o autor deixa de lado a ordem estritamente cronológica. No capítulo 28, encontramos os israelitas acampados em Gilboa, enquanto os filisteus estão em Suném (28:4). Isto é ao norte e totalmente fora da verdadeira batalha entre os dois exércitos (31:1). Mas, no capítulo 29, os filisteus estão reunidos em Afeca, enquanto os israelitas estão em Jezreel. Isto é bem ao sul do lugar descrito no capítulo 28, o que significa que os acontecimentos do capítulo 29 precedem aqueles do capítulo 28. O autor propositadamente trocou a seqüência cronológica dos acontecimentos por uma seqüência mais temática. Ele está mais interessado em mostrar seu ponto de vista do que de nos dar uma ordem cronológica. Parece que a intenção do autor é revezar entre Saul e Davi com o propósito de estar sempre comparando estes dois homens.
Terceiro, o autor não prova seu ponto de vista dando muitas explicações, ou mesmo dando abertamente o crédito a Deus pelo que está acontecendo. Isto estragaria a trama da história e o propósito pelo qual ele a está contando desta forma. Há poucas “palavras de Deus” nesta passagem, e aquilo que “Deus fala” encontramos vindo de um rei pagão, não de Davi. Creio que o autor não queira insultar seus leitores dizendo-lhes o que devem pensar em cada momento da história. Ele espera que a leiamos como história sagrada, com a estrutura teológica estabelecida na lei de Moisés. Ele quer que o leitor pense por si mesmo e tire conclusões bíblicas.
Quarto, ainda que Davi seja o personagem principal - a estrela - da história, ele não é o orador principal. Davi fala pouco neste texto. Aquis e os príncipes filisteus têm a maioria das falas.
“Ajuntaram os filisteus todos os seus exércitos em Afeca, e acamparam-se os israelitas junto à fonte que está em Jezreel. Os príncipes dos filisteus se foram para lá com centenas e com milhares; e Davi e seus homens iam com Aquis, na retaguarda. Disseram, então, os príncipes dos filisteus: Estes hebreus, que fazem aqui? Respondeu Aquis aos príncipes dos filisteus: Não é este Davi, o servo de Saul, rei de Israel, que esteve comigo há muitos dias ou anos? E coisa nenhuma achei contra ele desde o dia em que, tendo desertado, passou para mim, até ao dia de hoje. Porém os príncipes dos filisteus muito se indignaram contra ele; e lhe disseram: Faze voltar este homem, para que torne ao lugar que lhe designaste e não desça conosco à batalha, para que não se faça nosso adversário no combate; pois de que outro modo se reconciliaria como o seu senhor? Não seria, porventura, com as cabeças destes homens? Não é este aquele Davi, de quem uns aos outros respondiam nas danças, dizendo: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares?”
Os filisteus escolheram Afeca como base para o agrupamento de seus exércitos na preparação para o ataque a Israel. Aqui, cada um dos cinco príncipes filisteus (ver capítulos 5 e 6) chegam com os homens a seu comando. (Parece também que cada um deles é o rei de uma das cinco principais cidades filistéias. Aquis é o rei de Gate, e assim comandante das tropas de sua área). As tropas são passadas em revista (por seus comandantes), por centenas e milhares. Quatro dos cinco comandantes ficam chocados e furiosos pelo que vêem.
Às vezes as pessoas dizem: “Gostaria de ter sido ’uma mosquinha’ para ouvir o que se passou quando...” Elas querem dizer que gostariam muito de ter estado presentes para ouvir ou ver o que aconteceu em certo lugar e em certa época. Por inspiração divina, é permitido que nos tornemos uma “mosquinha” virtual na tenda dos filisteus – a tenda onde os cinco comandantes mantêm uma calorosa discussão.
A “retaguarda” do exército filisteu não é outra senão Davi e seus homens. Levou algum tempo (e um certo empurrãozinho) para que eu compreendesse o significado disto, uma vez que não tenho nenhuma experiência militar. Você se recorda de que Aquis “honrou” Davi tornando-o seu guarda-costas pessoal. Entendo que, das cinco divisões de soldados que passaram por ali naquele dia, a quinta divisão é a que é liderada por Aquis. Davi está na retaguarda de todo o exército. Esta é uma posição crucial, pois sempre que for possível, o exército inimigo tentará flanquear o inimigo e depois atacá-lo pelas costas, assim como pela frente. Aqueles que ficam na retaguarda são os melhores, mais valentes e mais hábeis guerreiros. Esta honra é dada a Davi e seus homens.
Aquilo que Aquis considera uma “honra” é visto como um “horror” pelos outros príncipes filisteus. Apesar de não ser dito o que Davi está pensando ou planejando, é permitido que ouçamos a discussão entre Aquis e seus quatro colegas em comando durante esta reunião da alta cúpula militar. Os outros comandantes ficam lívidos. Eles mal conseguem imaginar como Aquis poderia ser tão ingênuo a ponto de levar Davi para a batalha com eles, e ainda colocá-lo na posição mais estratégica. Eles não estão nenhum pouco contentes com a situação e, sem perder tempo, intimam Aquis a dar satisfação de sua estupidez. Mas o que é que Davi e seus 600 guerreiros (hebreus) estão fazendo no exército filisteu?
Aquis vê exatamente o oposto dos outros comandantes. Ele considera Davi um trunfo, justamente por ele ser quem é. Davi é um desertor, um homem que é fiel a ele ao invés de Saul. Quem é que não percebe o valor de ter um dos homens mais confiáveis de Saul como aliado, depois que ficou evidente que ele realmente mudou de lado? Agora Davi é um deles. Não há possibilidade de ele voltar a Israel. Ele garante que não há absolutamente nada com que se preocupar. Durante todo o tempo, desde que Davi desertou de Saul, Aquis não achou nele nenhuma culpa. “Confiem em mim, camaradas, Davi é um dos nossos, e ele pode fazer muitas coisas boas para nós”. Os quatro comandantes não ficam nenhum pouco impressionados com a confiança de Aquis ou com suas garantias. De qualquer forma, a resposta de Aquis os deixa ainda mais furiosos. Como é que este homem pode ser enganado desse jeito por Davi? Como pode ser tão estúpido? Como não percebe o que Davi realmente é capaz de fazer? Davi é hebreu. É um hebreu no exílio. Fará qualquer coisa para ganhar o favor do rei Saul. Que melhor forma de fazer isto do que fingir lealdade aos filisteus, e depois se voltar contra eles no calor da batalha? Será que Aquis já se esqueceu da genialidade e da força militar de Davi, e de sua popularidade entre seu próprio povo? Que ele ouça mais uma vez a canção: “Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.”
Os outros comandantes não dão nenhuma opção a Aquis. Eles lhe dizem para mandar Davi de volta prá casa - para Ziclague. Ele não vai mais se juntar a eles na batalha, ou para ser mais preciso, eles não vão mais se juntar a ele. Se Aquis quiser continuar oferecendo asilo a Davi em Ziclague, tudo bem. Esse lugar é tão remoto que Davi pode até causar alguns estragos por lá. Que seja mandado de volta a Ziclague, mas que não vá para a guerra com o exército filisteu. E ponto final.
“Então, Aquis chamou a Davi e lhe disse: Tão certo como vive o SENHOR, tu és reto, e me parece bem que tomes parte comigo nesta campanha; porque nenhum mal tenho achado em ti, desde o dia em que passaste para mim até ao dia de hoje; porém aos príncipes não agradas. Volta, pois, agora, e volta em paz, para que não desagrades aos príncipes dos filisteus. Então, Davi disse a Aquis: Porém que fiz eu? Ou que achaste no teu servo, desde o dia em que entrei para o teu serviço até hoje, para que não vá pelejar contra os inimigos do rei, meu senhor? Respondeu, porém, Aquis e disse a Davi: Bem o sei; e que, na verdade, aos meus olhos és bom como um anjo de Deus; porém os príncipes dos filisteus disseram: Não suba este conosco à batalha. Levanta-te, pois, amanhã de madrugada com os teus servos, que vieram contigo; e, levantando-vos, logo que haja luz, parti. Então, Davi de madrugada se levantou, ele e os seus homens, para partirem e voltarem à terra dos filisteus. Os filisteus, porém, subiram a Jezreel.”
Aquis agora tem a desagradável tarefa de “desapontar” Davi e lhe dizer que ele deve ir prá casa. Ele o faz usando uma linguagem que não se encaixa num verdadeiro pagão: “Tão certo como vive o SENHOR...” (29:6). Este não é o termo pagão para “deuses”, mas o termo hebraico Yaweh, para o único Deus verdadeiro, o Deus de Israel. Depois, no verso 9, este rei filisteu diz a Davi que ele é “como um anjo de Deus”. Realmente estas palavras são estranhas. Não é Davi quem está falando “palavras de Deus”, mas Aquis. Pode ser que ele esteja escolhendo cuidadosamente as palavras para se adequar à fé de Davi. Pode ser que a fé de Davi esteja fazendo efeito em Aquis.
É quase engraçado ler as coisas boas que Aquis diz sobre Davi. São tão lisonjeiras, e tão iludidas. Aquis lhe diz que ele tem sido agradável a seus olhos, que desde o primeiro dia em que chegou, não fez nada de errado contra ele. Será que Aquis se sentiria desse jeito e diria as mesmas coisas se soubesse o que Davi realmente estava fazendo, a quem ele estava saqueando e matando, e que seus relatórios eram falsos? Acho que não! Mas Aquis tem mais coisas boas a dizer sobre Davi. Ele lhe diz que ele é “como um anjo de Deus” a seus olhos (verso 9). Ele é completamente enganado por Davi, e a enormidade desta farsa fica clara nas palavras elogiosas deste rei pagão. Aquis não só o elogia, mas também lhe pede desculpas. Ele explica que, apesar dele querer que Davi o acompanhe na batalha contra Israel, seus colegas não estão de acordo com este plano. Davi e seus homens devem voltar a Ziclague pela manhã.
Davi não pára de me surpreender. Se eu estivesse em seu lugar, estaria dançando pelas ruas depois de ouvir o que Aquis acabou de dizer. No entanto, ei-lo aqui, na mesma situação aparentemente sem esperanças, num beco sem saída. Os quatro comandantes filisteus se recusam a permitir que ele vá com eles para a batalha, e Aquis acanhadamente lhe dá as “más notícias”. Más notícias? Isto é fantástico! Ele não tem que lutar contra os israelitas, com Saul ou com Jônatas. Nem tem que lutar contra Aquis ou qualquer outro filisteu. Tudo o que precisa fazer é ir para sua própria casa em Ziclague. Mas, ao invés de se submeter humildemente ao comando de Aquis e dos comandantes filisteus, ele protesta, como se tentasse dissuadi-los de sua decisão, como se fosse obrigado e estivesse determinado a ir para a guerra. Considerando ser “uma saída”, ele parece inverter a situação.
Dale Ralph Davis não perde o bom humor nesta troca de gentilezas entre Aquis e Davi, escrevendo:
“Há muito mais do que um pouco de humor nesta cena (v. 6-8). Aquis fica ali se desculpando, ressaltando porque ele acha que Davi deveria ir com eles nesta campanha e exaltando sua fidelidade, a qual ele não tem nenhuma razão para exaltar. Por outro lado, Davi, com expressão incrédula e voz exasperada, protesta a rejeição contra a qual ele não tem nenhuma razão para protestar. O enganado defende seu enganador, e o aliviado discute seu alívio!”
Se as palavras de protesto de Davi são uma encenação, ele é um excelente ator. Graças a Deus, a opinião dos comandantes filisteus não pode ser mudada. Davi voltará a Ziclague pela manhã.
Logo cedo na manhã seguinte, tanto Davi quanto os guerreiros filisteus se levantam para seguir seu caminho. Os filisteus partem para Jezreel, onde os israelitas estão acampados, e Davi lidera a volta para Ziclague. Davi foi salvo, e isto devido à reação furiosa de quatro comandantes filisteus que rejeitam os planos de Aquis.
“Sucedeu, pois, que, chegando Davi e os seus homens, ao terceiro dia, a Ziclague, já os amalequitas tinham dado com ímpeto contra o Sul e Ziclague e a esta, ferido e queimado; tinham levado cativas as mulheres que lá se achavam, porém a ninguém mataram, nem pequenos nem grandes; tão-somente os levaram consigo e foram seu caminho. Davi e os seus homens vieram à cidade, e ei-la queimada, e suas mulheres, seus filhos e suas filhas eram levados cativos. Então, Davi e o povo que se achava com ele ergueram a voz e choraram, até não terem mais forças para chorar. Também as duas mulheres de Davi foram levadas cativas: Ainoã, a jezreelita, e Abigail, a viúva de Nabal, o carmelita. Davi muito se angustiou, pois o povo falava de apedrejá-lo, porque todos estavam em amargura, cada um por causa de seus filhos e de suas filhas; porém Davi se reanimou no SENHOR, seu Deus.”
Enquanto Davi e seus homens estão com Aquis em Afeca, os amalequitas estão saqueando Ziclague. Se aprendemos alguma coisa, é que falhar em cumprir totalmente a Palavra de Deus tem conseqüências devastadoras. O fracasso de Saul a respeito dos amalequitas está fazendo seu governo como rei chegar ao fim. Isto lhe custará sua própria vida e a vida de seus filhos. As invasões de Davi, enquanto estava em Ziclague, são contra os inimigos de Israel, entre os quais estão os amalequitas (ver 27:8). Será que esta invasão é uma retaliação? Por alguma razão, os amalequitas se aproveitam dos movimentos militares dos filisteus e atacam suas vilas e cidades indefesas. Dentre elas está Ziclague. A cidade é totalmente destruída e queimada. Providencialmente, todo o povo é poupado, junto com o gado. Davi não trata os amalequitas com tanta gentileza.
Para Davi e seus homens, a viagem de Afeca a Ziclague deve ter sido bem descontraída, meio parecida com um ônibus lotado de estudantes em férias a caminho das montanhas para um passeio de esqui. Posso imaginar o alívio que Davi e seus homens sentem quando deixam as tropas filistéias e voltam para Ziclague. Eles sobreviveram a esta estranha situação com dignidade, não com vergonha. Aquis ainda pensa muito bem a respeito de Davi, e os quatro comandantes filisteus ainda parecem temê-lo. Eles não têm que batalhar contra seus compatriotas israelitas, nem que se voltar contra os filisteus. Eles foram salvos. Nenhuma vida foi perdida em batalha. Tudo o que precisam fazer é voltar para Ziclague e desfrutar um pouco de tempo com suas famílias. Como diz o comercial da TV, como eles “soletram alívio”? Z I C L A G U E.
À medida que se aproximam de Ziclague, eles começam a ver, e talvez a sentir o cheiro, de fumaça. Um sentimento crescente de medo cai sobre este pequeno exército. Podemos imaginar que os olhares confusos se transformam em olhares de inquietação, a conversa cessa, substituída por um silêncio gelado. A cidade está em ruínas, totalmente queimada. Não há absolutamente nenhum sinal de vida. Nem qualquer corpo. Alguns ainda podem estar vivos, mas aqueles que estão vivos podem desejar que estivessem mortos.
Talvez este seja o dia mais negro da vida de Davi até aqui. Neste momento, ninguém parece pensar em perseguir aqueles que fizeram isto, quem quer que seja. As duas esposas de Davi foram levadas, e também todas as famílias de seus homens. Os homens ficam deprimidos. Eles não poderiam ter imaginado coisa pior. Todos choram até não terem mais forças.
Esta não é uma bela visão, mas fica ainda pior. À medida que a dura realidade começa a aparecer, os homens de Davi começam a pensar no que teria acontecido. Tudo é culpa de Davi. Eles os trouxe para Gate e depois para Ziclague. Ele os fez trazer suas famílias junto com eles. Ele ordenou os ataques contra povos como os amalequitas. Seus negócios escusos fizeram com que fossem promovidos no exército filisteu. Devido ao relacionamento de Davi com Aquis, todos estavam muito longe, em Afeca, quando suas famílias foram aterrorizadas e seqüestradas. Eles já tinham o suficiente de Davi e de sua liderança. Eles estão muito desgostosos e prontos para descarregar sua raiva. Um rumor sobre apedrejar Davi começa a circular entre eles.
Agora as coisas estão tão ruins quanto Davi pode imaginar. Ele fora rejeitado por Saul, e depois por muitos de seus compatriotas israelitas. Alguns de seus parentes estavam dispostos e prontos para entregá-lo a Saul para ser condenado à morte. Rejeitado por Saul e os israelitas, Davi foge para Aquis, que o recebe de braços abertos. Mas agora ele é rejeitado pelo exército filisteu e mandado de volta prá casa. E, quando chega em casa, descobre que sua família e as famílias de seus homens se foram, o gado tomado, e a cidade em ruínas. Além de tudo isto, agora ele está sendo rejeitado por muitos de seus próprios homens, que também gostariam de vê-lo morto. Tudo o que poderia dar errado aconteceu.
Fazendo uma pausa em nosso estudo desse momento negro da vida de Davi, vamos refletir sobre o que aconteceu e o que podemos aprender com isto.
A primeira lição que aprendemos (ou que vem à nossa mente) é que as conseqüências do pecado muitas vezes demoram, mas são inevitáveis. Aquilo que lemos em nosso texto é o resultado de uma péssima decisão que Davi tomou um ano antes. Essa decisão foi deixar Israel e fugir para Aquis, em território filisteu, para procurar segurança e proteção (27:1 ss). À luz das palavras de Davi para Saul no capítulo 26, poderíamos questionar esta decisão de levar seus homens e suas famílias para o território filisteu. No mínimo foi contrária às suas próprias convicções, declaradas com tanta paixão e clareza a Saul. O resultado imediato parecia favorável. Davi e seus homens poderiam estar com suas famílias. Eles foram bem recebidos por Aquis e viveram confortavelmente enquanto atacavam e saqueavam seus inimigos. Eles até conquistaram o favor de muitos israelitas (30:26-31). Eles estavam jogando dos dois lados, e tudo ia bem.
E então, como sempre, as conseqüências do pecado começam a aparecer. Davi ficou popular demais com Aquis. Em vez de ser um refugiado, um exilado, ele se torna o guarda-costas de um rei filisteu e líder de 600 homens no exército filisteu. Davi se encontra num beco sem saída. A época de por em prática aquilo que ele diz chegou. Agora ele é obrigado a travar batalha com o ungido do Senhor, e com seu filho Jônatas, seu querido amigo. O vôo de Davi para o lado dos filisteus, que tinha a intenção de “salvar” seus homens e suas famílias, e lhes dar tempo juntos, agora fez com que fossem capturados por invasores desconhecidos. Os homens de Davi, em cujo benefício aparentemente ele agiu ao fugir para a Filistia, agora estão prontos a apedrejá-lo. Como diz um certo provérbio “o castigo sempre vem a cavalo”. Aqui, com certeza.
Deus e Satanás são completamente diferentes. Deus deixa muito claras as conseqüências do pecado. Embora haja muitos detalhes, podemos resumir tudo na afirmação: “o salário do pecado é a morte” (Romanos 6:23). Até quando são discipuladas – para seguir a Cristo - nosso Senhor quer que as pessoas saibam tanto o preço à vista, quanto a longo prazo. Deus não procura nos “tentar” a fazer o que é certo colocando uma etiqueta com o preço em letras miúdas. Satanás sim. Ele minimiza o custo do pecado e muitas vezes o nega completamente (por exemplo, “É certo que não morrereis - Gn. 3:4). Mas, esteja certo de que o pecado tem um preço muito alto.
Anos atrás, quanto nossa família esteve em Six Flags Over Texas (um parque de diversões), junto com uma outra família, algo me fez lembrar do custo do pecado. Depois de pagar um preço bem alto pela entrada e de ficar esperando na fila, conseguimos fazer um passeio bastante procurado. Depois do passeio, voltei-me para o pai da outra família e disse: “Esta é uma boa ilustração do pecado. O preço é alto, mas o passeio é curto!” E é assim. Para Davi, o passeio terminou. Agora é hora de pagar o preço.
O sábio é cauteloso e desvia-se do mal, mas o insensato encoleriza-se e dá-se por seguro. (Pv. 14:16)
Segundo, devemos perceber em nosso texto que as conseqüências prejudiciais de nossos pecados vão além de nós mesmos e, muitas vezes, causam dor e sofrimento àqueles que mais amamos. Tenho certeza de que Davi deve ter pensado que estava agindo no melhor interesse de sua família ao levá-los para a terra dos filisteus. Mas, ao fazer isto, aquilo que era errado para ele (capítulo 26), também se tornou errado para sua família. Sabemos que na realidade este incidente acaba bem. Mas durante aqueles dias em que estas famílias foram aterrorizadas e traumatizadas, um alto preço foi pago - por eles! Quando Abrão disse a Sarai para mentir a respeito de ser sua esposa, tanto ele quanto ela passaram algumas noites angustiantes separados um do outro, preço por seu pecado.
Asafe, o salmista dos tempos antigos, escreveu um salmo sobre uma época crítica de sua vida, o Salmo 73. Ele começa este Salmo afirmando um princípio bíblico:
Com efeito, Deus é bom para com Israel, para com os de coração limpo. (Sl. 73:1)
Depois ele prossegue dizendo-nos que, ao olhar ao seu redor, simplesmente parece que isto não é verdade. Os justos parecem sofrer, e os perversos parecem prosperar. E enquanto os maus prosperam, eles escarnecem de Deus. Asafe está prestes a atirar a toalha, quando percebe que se ele pecar, outros irão sofrer:
Se eu pensara em falar tais palavras, já aí teria traído a geração de teus filhos. (Sl. 73:15)
Essa é a maneira como o pecado funciona. Ele não apenas tem conseqüências dolorosas para o pecador, mas também atinge muitas outras pessoas. Entre estas “outras pessoas” estão aquelas a quem mais amamos. Quando um marido ou uma esposa decidem renunciar aos votos de casamento e cometer adultério, eles causam grande sofrimento, não apenas para o seu companheiro, mas também às suas famílias. O pecado jamais satisfaz, nunca vale seu preço. Mas aqueles que pagam caro por nossos pecados muitas vezes são aqueles a quem amamos. Por amor a Deus, por amor a si mesmo, e por amor àqueles que você ama, veja o pecado como ele é, e o que ele faz. O pranto que vemos em nosso texto é parte do preço pelo pecado, de Davi. Já disse isto antes àqueles que contemplam o pecado deliberado, e agora digo outra vez àqueles de nós que talvez estejam brincando com um determinado pecado (ou persistindo nele). Ainda estou para ver o homem que escolhe pecar olhar para trás com um sorriso no rosto, como se tivesse valido a pena.
Terceiro, embora nosso texto ressalte o alto preço do pecado, ele também nos dá esperança - ele nos lembra que há uma saída. Tenho um amigo que diz: “Não tenho somente pés de barro; sou todo de barro até as axilas!” Davi também era “todo de barro até as axilas”. Mas, vejamos o contraste que o autor faz entre Davi e Saul. Tanto um quanto outro se meteram em sérias complicações, situações que parecem sem esperança. Tanto um quanto outro estão profundamente angustiados, a ponto de perderem as forças. Quando Saul sai, ele sai “à noite”. Quando Davi deixa os filisteus, é “de manhã”. É como se o escritor quisesse que percebamos as diferenças entre ambos, até no meio das semelhanças.
A última parte do verso 6 é uma pista importante, não apenas para a diferença entre Davi e Saul, mas para a fonte desta diferença: “porém Davi se reanimou no SENHOR, seu Deus” (verso 6).
Saul vai consultar uma feiticeira; Davi se fortalece no Senhor seu Deus. Eis a diferença. Saul parece nunca se arrepender, nunca ter um coração para Deus. Davi tem mesmo um coração para Deus e verdadeiramente se arrepende. Ele, como a maioria de nós, descobre seus momentos mais importantes nos tempos de sofrimento e tristeza, nas épocas negras de sua vida. Mas, no seu dia mais negro, quando não tem mais ninguém a quem recorrer, ele recorre a Deus.
Como é que ele faz? Como ele se fortalece no Senhor seu Deus? Devemos observar que o autor nos dá muito poucos detalhes. Ele não nos dá uma fórmula, uma série de passos infalíveis. Vivemos em dias em que as pessoas querem uma solução rápida com cura garantida e, muitas vezes, seguindo uma série de passos visivelmente planejados - uma fórmula. Numa análise final, não creio que a vida cristã seja vivida por meio de fórmulas, mas por verdades e princípios. Há faça e não faça, mas isto não é uma fórmula. Observemos que Davi encontra sua força espiritual no Senhor seu Deus.
Tendo dito que aqui não há nenhuma fórmula, o que realmente encontramos são dicas que podem ser úteis àqueles que desejam se fortalecer em Deus. Podemos nos recordar de um episódio anterior quando Jônatas ajudou no fortalecimento de Davi no Senhor:
“Vendo, pois, Davi que Saul saíra a tirar-lhe a vida, deteve-se no deserto de Zife, em Horesa. Então, se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi para Davi, a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus, e lhe disse: Não temas, porque a mão de Saul, meu pai, não te achará; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo, o que também Saul, meu pai, bem sabe. E ambos fizeram aliança perante o SENHOR. Davi ficou em Horesa, e Jônatas voltou para sua casa.” (I Sam. 23:15-18)
Se Davi se fortaleceu no Senhor, é possível inferirmos que, da mesma forma que Jônatas fez anteriormente, Davi deve ter se recordado do caráter e das promessas de Deus. Se Deus é quem é, em Seu caráter (Seus atributos), podemos estar certos de que aquilo que Ele promete, Ele faz. Paulo coloca isto desta forma:
Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus. (Fp. 1:6)
“e, por isso, estou sofrendo estas coisas; todavia, não me envergonho, porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia.” (II Tm. 1:12, ver também Judas 1:24)
Outro fator relacionado ao fortalecimento de Davi vem logo depois do verso 6:
“Disse Davi a Abiatar, o sacerdote, filho de Aimeleque: Traze-me aqui a estola sacerdotal. E Abiatar a trouxe a Davi. Então, consultou Davi ao SENHOR, dizendo: Perseguirei eu o bando? Alcançá-lo-ei? Respondeu-lhe o SENHOR: Persegue-o, porque, de fato, o alcançarás e tudo libertarás. Partiu, pois, Davi, ele e os seiscentos homens que com ele se achavam, e chegaram ao ribeiro de Besor, onde os retardatários ficaram. Davi, porém, e quatrocentos homens continuaram a perseguição, pois que duzentos ficaram atrás, por não poderem, de cansados que estavam, passar o ribeiro de Besor.” (I Sam. 30:7-10)
Davi não só se fortalece no Senhor, ele consulta o Senhor. Ele busca a Deus. Ele busca conhecer a vontade de Deus nesta situação, e depois ele a coloca em prática. Como Davi é diferente de Saul a este respeito. A força de Davi, então, parece vir da percepção de quem Deus é, do que Ele promete, e do que Ele quer que façamos. Davi talvez tenha se metido, e aos outros, numa grande confusão, devido a uma decisão imprudente, mas ele também recorre a Deus, em quem ele confia.
Quarto, esta passagem tem muitas coisas encorajadoras a nos ensinar sobre Deus. Este texto nos relembra da fidelidade de Deus, mesmo quando necessitamos de fé.
“se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo.” (II Tm. 2:13)
Deus ungiu Davi como futuro rei de Israel. Deus ia cuidar para que ele fosse o futuro rei. Nem Saul, nem os israelitas infiéis, nem os reis filisteus, nem os soldados de Davi, e nem mesmo o próprio Davi poderiam impedir que ele se tornasse rei de Israel. Os propósitos e as promessas de Deus são certos.
Deus não é somente fiel, como vemos em nosso texto, Ele também é misericordioso. Davi simplesmente se meteu na maior confusão. Seria muito fácil dizermos que já que ele fez a bagunça, que limpe tudo. Como seria bom deixá-lo cozinhando lentamente em seu próprio molho. Deus realmente permite que ele sinta as dolorosas conseqüências de seu pecado, mas Ele não tem prazer em fazer isso; Ele tem prazer em mostrar misericórdia. E Ele o faz salvando Davi, seus homens e todas as suas famílias e bens. Isto veremos em breve.
A soberania de Deus fica muito clara no livramento de Davi e de seus homens do serviço militar, serviço a favor dos filisteus e contra Israel. Deus usa Davi, e até mesmo seu pecado, para alcançar Seus propósitos finais. Deus não faz Davi pecar, nem desculpa seu pecado. No entanto, a soberania de Deus (controle absoluto) é tão grande que Ele pode até empregar a desobediência e os pecados dos homens para alcançar Seus propósitos. Ele usou a traição pecaminosa dos irmãos de José para salvar a nação de Israel. E assim Deus usa homens pecaminosos em nosso texto. Ele usou Davi, como vimos. Ele usa a ingenuidade de um rei como Aquis e o bom senso e a perspicácia de quatro comandantes filisteus. Ele usará até um ataque amalequita para um bom propósito. Amo o que Davis diz sobre Deus usar Seus inimigos:
“Vejamos outra vez. Que instrumentos Yahweh usa para salvar Seu servo deste dilema? Os oficiais em comando do exército filisteu. Esta não foi a primeira vez que Yahweh transformou inimigos em salvadores (ver 23:19-28). Os filisteus se tornam tais servos, inconscientes, mas eficazes! Quem foi Seu conselheiro?! (cf. Isaías 40:13-14)”
“O que nosso texto realmente nos ensina é que mesmo em nossos ataques de insensatez e fraqueza, ainda não somos páreo para Deus, que tem milhares de maneiras inimagináveis de salvar Seu povo - até pela boca dos filisteus. Ele pode fazer o inimigo nos servir como amigo. Ele não só nos prepara a mesa na presença de nossos inimigos, mas também tem o talento especial de fazer com que os inimigos preparem a mesa!”
Penso que às vezes inconscientemente supomos que Deus seja um Deus salvador somente na cruz do Calvário. O fato é que Deus foi e ainda é um Deus salvador. Ele salva os homens desde o início da história. Deus é um salva-vidas. Ele salvou Noé e sua família do dilúvio (Gênesis 6-9). Salvou Ló e suas filhas de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19). Salvou Jacó e sua família da extinção, como uma nação separada (Gênesis 37 e ss). Salvou os israelitas de faraó, e da mão perversa de muitos outros reis e nações. Salvou constantemente Israel dos inimigos à sua volta nos dias dos juízes. Se Deus precisasse de prática para salvar os homens (o que, com toda certeza, Ele não precisa!), Ele já seria muito bom a esta altura.
Mas, todos estes livramentos do passado não se comparam ao grande livramento final que Ele trouxe aos homens na morte sacrificial, no sepultamento e na ressurreição de Jesus Cristo. Ele morreu por nossos pecados, suportando a nossa punição. Ele não só tomou nossos pecados sobre Si, Ele nos ofereceu Sua justiça para que pudéssemos ter a vida eterna e habitar com Ele por toda a eternidade. E Deus realizou isto por meio da traição pecaminosa de Judas, do ciúme e das maquinações dos líderes religiosos judaicos, da cooperação de um governador gentil romano (que procurava ser politicamente correto), e da passividade (e até mesmo participação) do povo. Ele fez isto para que homens pecaminosos pudessem ser perdoados de seus pecados e receber a justiça que Ele oferece na pessoa de Jesus Cristo.
Você já foi salvo? Já percebeu a enrascada em que seu pecado o colocou? Deus providenciou “uma saída” de uma forma que ninguém jamais poderia esperar ou pedir - por meio do sangue de Jesus Cristo, derramado na cruz do Calvário. Tudo o que você precisa fazer é receber este perdão, como um presente da graça e da misericórdia de Deus. Que coisa maravilhosa é ser liberto e perdoado, ser salvo por Deus. A Deus seja toda a glória.
Lembro-me da história de um livro fascinante intitulado Shantung Compound, escrito por Langdon Gilkey. O livro descreve como o confinamento afetou a vida das pessoas que foram mantidas em Shantung Compound, um antigo acampamento de igreja mal-adaptado para alojar todos estrangeiros ocidentais que residiam na China durante a invasão japonesa na Segunda Guerra Mundial. Homens de negócio, diplomatas, professores, missionários e muitos outros ficaram confinados juntos em alojamentos precários. Não era bem um campo de prisioneiros; parecia mais uma prisão de segurança mínima. As condições eram tais que Shantung Compound revelou o que havia de pior, e de melhor, daqueles que ali se encontravam. O autor do livro era um dos que ficaram nestas instalações.
Quando o Natal se aproximava, um veículo da Cruz Vermelha chegou lotado de suprimentos para os reclusos de Shantung Compound. Alguns poderiam pensar que a distribuição desses suprimentos seria uma coisa fácil, que só precisariam dividir o número de pacotes pelo número de pessoas. Se fossem 600 pessoas e 1200 pacotes, cada pessoa receberia 2 pacotes. No entanto, esta tarefa simples e “automática” acabou se transformando num enorme problema. Veja, alguns americanos perceberam que os pacotes eram da Cruz Vermelha Americana, e consideraram que haviam sido designados especificamente para eles, americanos. Eles argumentaram que os pacotes deveriam ser igualmente divididos entre eles. Se alguém quisesse dividir seus presentes com os outros, era um direito seu.
No capítulo 30 de I Samuel acontece algo muito parecido. Davi e seus homens perseguem um bando de salteadores amalequitas que havia saqueado e destruído Ziclague e levado suas esposas, filhos e bens. Eles foram guiados até o acampamento principal destes salteadores, onde os destruíram completamente, recuperando tudo o que haviam perdido. Somado a isso, os despojos desta vitória incluem tudo o que os amalequitas haviam tomado das cidades israelitas e filistéias que foram invadidas e saqueadas além de Ziclague. Alguns dos soldados de Davi não estavam dispostos a dividir estes despojos com os 200 homens que ficaram para trás com as bagagens.
São muitas as lições de nosso texto. Aquilo que à primeira vista parece ser uma história “antiga e longínqua” tem relevância e aplicação direta às nossas próprias vidas hoje. Uma vez que esta mensagem está sendo pregada no domingo de Páscoa, com certeza você deve estranhar porque não estou ensinando uma mensagem de Páscoa. Minha resposta seria que nosso texto é uma mensagem de Páscoa. Na verdade, ouso dizer que há em nosso texto muito mais do que apenas coisas relativas à Páscoa. Talvez alguns estejam duvidando, por isso, peço que mantenham suas mentes abertas para aquilo que o Espírito de Deus nos ensina neste texto.
“Sucedeu, pois, que, chegando Davi e os seus homens, ao terceiro dia, a Ziclague, já os amalequitas tinham dado com ímpeto contra o Sul e Ziclague e a esta, ferido e queimado; tinham levado cativas as mulheres que lá se achavam, porém a ninguém mataram, nem pequenos nem grandes; tão-somente os levaram consigo e foram seu caminho. Davi e os seus homens vieram à cidade, e ei-la queimada, e suas mulheres, seus filhos e suas filhas eram levados cativos. Então, Davi e o povo que se achava com ele ergueram a voz e choraram, até não terem mais forças para chorar. Também as duas mulheres de Davi foram levadas cativas: Ainoã, a jezreelita, e Abigail, a viúva de Nabal, o carmelita. Davi muito se angustiou, pois o povo falava de apedrejá-lo, porque todos estavam em amargura, cada um por causa de seus filhos e de suas filhas.”
Não demora muito para que a notícia de que os filisteus estão em indo direção norte travar uma grande batalha contra Israel se espalhe. Os amalequitas, que pareciam fazer dos ataques às vilas e cidades filistéias e israelitas do sul um meio de subsistência (não muito diferente de Davi), não poderiam ter recebido notícia melhor. Uma vez que os homens em idade de combate tinham ido para guerra, poucos ou nenhum foi deixado prá trás para defender as cidades israelitas e filistéias, incluindo Ziclague. Enquanto Davi e seus homens estão sendo passados em revista junto com o exército filisteu (29:2), os amalequitas estão saqueando Ziclague. Os salteadores levam todo o gado e todos os bens, raptam todas as mulheres e crianças, e queimam totalmente a cidade.
Quando Davi e seus homens se aproximam de Ziclague, ficam horrorizados ao ver que a cidade fora destruída e suas famílias levadas cativas. Ninguém foi morto, mas tudo o que tinha vida foi levado. É de pouco conforto que suas famílias ainda estejam vivas. Cada um imagina o que esteja acontecendo (ou que acontecerá em breve) com sua esposa e filhos. Na melhor das hipóteses eles se tornarão escravos, para um trabalho duro e tratamento cruel. Na pior... eles não queriam nem pensar. As duas esposas de Davi também foram levadas.
Estes 600 guerreiros estão muito angustiados pelo que aconteceu à sua cidade e às suas famílias. Eles choram até não terem mais lágrimas. Então, começam a pensar sobre como isto veio a acontecer. Fora idéia de Davi trazê-los para território filisteu (27:1-4); foi pedido seu que vivessem nesta cidade remota (27:5-6), e foi ele quem os levou a lutar com os filisteus, deixando suas famílias vulneráveis a esse ataque. Alguns estão tão furiosos que falam em apedrejar Davi.
Porém Davi se reanimou no SENHOR, seu Deus. Disse Davi a Abiatar, o sacerdote, filho de Aimeleque: Traze-me aqui a estola sacerdotal. E Abiatar a trouxe a Davi. Então, consultou Davi ao SENHOR, dizendo: Perseguirei eu o bando? Alcançá-lo-ei? Respondeu-lhe o SENHOR: Persegue-o, porque, de fato, o alcançarás e tudo libertarás. Partiu, pois, Davi, ele e os seiscentos homens que com ele se achavam, e chegaram ao ribeiro de Besor, onde os retardatários ficaram. Davi, porém, e quatrocentos homens continuaram a perseguição, pois que duzentos ficaram atrás, por não poderem, de cansados que estavam, passar o ribeiro de Besor.”
Conforme Davis demonstra, desde o capítulo 23 Davi não busca a vontade de Deus por meio da estola sacerdotal, e desde o capítulo 26 ele não menciona o nome do Senhor. Como sempre, a tragédia faz o coração de Davi se voltar para Deus. Este capítulo é outro de seus melhores momentos. Primeiro ele se fortalece no Senhor, depois recorre a Ele para uma orientação específica a respeito de suas famílias e daqueles que os raptaram. Davi pede ao Senhor que revele se ele deve, ou não, perseguir aqueles que levaram seus entes queridos. Se persegui-los, ele os alcançará? A resposta a estas perguntas é “Sim!” Deus lhe assegura que ele não só alcançará o bando, mas também recuperará tudo o que foi levado.
Precisamos nos lembrar das condições físicas e mentais destes homens. Eles acabam de viajar quase 60 milhas de Afeca até Ziclague, sem dúvida apertando o passo para chegar logo em casa. Eles podem descansar em Ziclague quando chegarem, ou assim eles pensam. Então, ao encontrar seus entes queridos seqüestrados, seu gado roubado e sua cidade destruída pelo fogo, eles se cansam de tanto chorar (verso 4); agora eles saem em perseguição de seus inimigos. O grupo de salteadores tem uma vantagem considerável, e seu rastro está esfriando. Eles podem facilmente desaparecer no deserto. Se devem ser alcançados a tempo de salvar seus entes queridos, Davi e seus homens precisam andar logo.
Imagino que Davi e seus homens estejam marchando a passos largos. À medida que o tempo passa e o calor do sol os afeta, eles vão ficando cansados. Quando chegam ao ribeiro de Besor, um terço dos homens simplesmente não agüenta prosseguir. Eles têm motivos de sobra - suas famílias estão em perigo e eles querem estar lá para resgatá-los - mas, simplesmente, não têm forças para continuar. Duzentos homens desmoronam ali próximo ao ribeiro, incapazes de sair do lugar. Mesmo que sigam em frente, só retardarão os demais. Davi e os outros 400 homens prosseguem, deixando a maior parte da bagagem para trás com os que ficam, a fim de se moverem mais rápido, gastando menos energia.
“Acharam no campo um homem egípcio e o trouxeram a Davi; deram-lhe pão, e comeu, e deram-lhe a beber água. Deram-lhe também um pedaço de pasta de figos secos e dois cachos de passas, e comeu; recobrou, então, o alento, pois havia três dias e três noites que não comia pão, nem bebia água. Então, lhe perguntou Davi: De quem és tu e de onde vens? Respondeu o moço egípcio: Sou servo de um amalequita, e meu senhor me deixou aqui, porque adoeci há três dias. Nós demos com ímpeto contra o lado sul dos queretitas, contra o território de Judá e contra o lado sul de Calebe e pusemos fogo em Ziclague. Disse-lhe Davi: Poderias, descendo, guiar-me a esse bando? Respondeu-lhe: Jura-me, por Deus, que me não matarás, nem me entregarás nas mãos de meu senhor, e descerei e te guiarei a esse bando.”
O rastro tinha esfriado. Parece que Davi e seus homens nem mesmo sabem quem são os salteadores (é dito no verso 1, mas Davi e seus homens parecem ter conhecimento desta informação somente nos versos 13 e 14). Eles devem estar se perguntando que direção devem tomar. Nesse momento crucial, “acontece” justamente deles cruzarem com um homem que tinha sido deixado semimorto naquela região. O homem está tão fraco que não consegue falar. Para alguns pode parecer ”perda de tempo” o fato Davi e seus homens pararem e prestarem socorro a este homem. Se é por absoluta compaixão (fazendo de Davi uma espécie de bom samaritano), seus esforços são bem recompensados. Pão e água, um pedaço de pasta de figo e uvas passas trazem este homem de volta à vida, uma vez que ele passou três dias e três noite sem comer, nem beber.
Quando finalmente o homem tem força suficiente para falar, Davi começa a lhe fazer perguntas. As respostas devem animar o espírito de Davi e seus homens, pois o homem conta que é egípcio, escravo de um amalequita. Seu senhor o deixou três dias atrás porque ele estava doente e atrasando os demais. Seu senhor o deixou ali para morrer, sem água e sem comida. Ele, então, diz a Davi que estava com o bando de amalequitas que saqueou Ziclague.
Davi pergunta ao jovem se ele estaria disposto a guiá-los até o acampamento amalequita. Normalmente, tenho certeza que ele não faria uma coisa dessas. Mas, uma vez que seu senhor e os outros o deixaram para trás para morrer, ele está disposto a cooperar, em troca da garantia de Davi de que não será morto ou devolvido a seu senhor. Este servo semimorto dá nova vida à busca de Davi pelo bando amalequita e seus prisioneiros.
“E, descendo, o guiou. Eis que estavam espalhados sobre toda a região, comendo, bebendo e fazendo festa por todo aquele grande despojo que tomaram da terra dos filisteus e da terra de Judá. Feriu-os Davi, desde o crepúsculo vespertino até à tarde do dia seguinte, e nenhum deles escapou, senão só quatrocentos moços que, montados em camelos, fugiram. Assim, Davi salvou tudo quanto haviam tomado os amalequitas; também salvou as suas duas mulheres. Não lhes faltou coisa alguma, nem pequena nem grande, nem os filhos, nem as filhas, nem o despojo, nada do que lhes haviam tomado: tudo Davi tornou a trazer. Também tomou Davi todas as ovelhas e o gado, e o levaram diante de Davi e diziam: Este é o despojo de Davi.”
Não havia mais necessidade de tentar seguir o rastro do bando de salteadores. Graças ao escravo egípcio que eles reanimaram, agora seriam guiados ao acampamento amalequita. Davi e seus homens chegam ao acampamento, encontrando os amalequitas totalmente vulneráveis. Afinal, eles supõem que os filisteus (junto com Davi e seus homens), e os israelitas, estejam bem longe, em guerra na região norte. Quem viria atrás deles? Eles festejam a missão bem-sucedida; agora estão em casa, onde podem se esbaldar com o resultado de suas vitórias. Os amalequitas estão espalhados sobre toda a região (verso 16), o que dá a entender que não estejam agrupados, o que seria a melhor posição defensiva (nos filmes de faroeste as carroças sempre andavam em círculos quando estavam sendo atacadas, colocando as mulheres e as crianças no meio). Se a expressão “divida e conquiste” é verdadeira, esse pessoal já tinha se dividido quando se espalhou. Além do mais, eles estão comendo, bebendo e dançando. Em resumo, estão tão bêbados que mal conseguem ficar em pé, quanto mais lutar.
Se este for o acampamento principal dos amalequitas, então há muito mais pessoas do que apenas o bando de salteadores. Portanto, Davi e seus homens estão em grande desvantagem. No entanto, devido ao estado de embriaguez dos amalequitas, eles são presas fáceis. Davi e seus homens atacam, um massacre que dura várias horas. Nenhuma só pessoa escapa, exceto 400 homens que fogem em seus camelos. Todas as pessoas e tudo o que os amalequitas tinham tomado de Ziclague é recuperado. Davi e seus homens não sofrem absolutamente nenhuma perda (exceto por aquilo que já fora queimado em Ziclague). As duas esposas de Davi estão entre os reféns resgatados. O autor é muito específico. Nada está faltando. Davi traz tudo de volta. Exatamente como Deus mostrou, eles alcançaram os inimigos e prevaleceram. Esta missão não poderia ter sido mais bem-sucedida.
“Chegando Davi aos duzentos homens que, de cansados que estavam, não o puderam seguir e ficaram no ribeiro de Besor, estes saíram ao encontro de Davi e do povo que com ele vinha; Davi, aproximando-se destes, os saudou cordialmente. Então, todos os maus e filhos de Belial, dentre os homens que tinham ido com Davi, responderam e disseram: Visto que não foram conosco, não lhes daremos do despojo que salvamos; cada um, porém, leve sua mulher e seus filhos e se vá embora. Porém Davi disse: Não fareis assim, irmãos meus, com o que nos deu o SENHOR, que nos guardou e entregou às nossas mãos o bando que contra nós vinha. Quem vos daria ouvidos nisso? Porque qual é a parte dos que desceram à peleja, tal será a parte dos que ficaram com a bagagem; receberão partes iguais. E assim, desde aquele dia em diante, foi isso estabelecido por estatuto e direito em Israel, até ao dia de hoje. Chegando Davi a Ziclague, enviou do despojo aos anciãos de Judá, seus amigos, dizendo: Eis para vós outros um presente do despojo dos inimigos do SENHOR: aos de Betel, aos de Ramote do Neguebe, aos de Jatir, aos de Aroer, aos de Sifmote, aos de Estemoa, aos de Racal, aos que estavam nas cidades dos jerameelitas e nas cidades dos queneus, aos de Horma, aos de Borasã, aos de Atace, aos de Hebrom e a todos os lugares em que andara Davi, ele e os seus homens.”
A vitória é conquistada e tudo o que havia sido perdido foi recuperado. Na realidade, Davi e seus homens não recuperaram só o que haviam perdido, eles conquistaram também uma porção de coisas mais. Eles conquistaram os despojos que os amalequitas haviam obtido em suas invasões às cidades filistéias e israelitas. Estes despojos agora representam o principal problema de Davi. Alguns dos 400 homens que derrotaram os amalequitas estão se recusando a reparti-los com os 200 homens que ficaram para trás.
Só uma parte dos 400 homens que lutaram contra os amalequitas é de homens ”maus e filhos de Belial”. Nem todos são assim, só alguns deles. Mas, estes que são maus e filhos de Belial parecem estar assumindo o comando. O raciocínio deles é: somente 400 homens lutaram de verdade; os outros 200 não tiveram parte na batalha ou na vitória conquistada. Aos 200 deveria ser devolvido aquilo que perderam. Mas não deveriam receber uma parte dos despojos extras da guerra, dos despojos que os amalequitas tomaram dos filisteus e israelitas. Estes despojos deveriam ser repartidos só entre os 400 guerreiros. A recusa destes homens em partilhar os despojos com os outros 200 parece ter como base algumas suposições errôneas:
(1) Eles presumem que os despojos sejam seus para repartirem como quiserem, e deixam bem claro que se recusam a repartir com os demais os “seus” despojos.
(2) Eles presumem que os outros 200 não tiveram parte na batalha ou na vitória, só porque não estavam com eles quando lutaram e venceram os amalequitas.
(3) Eles presumem que a vitória foi deles, algo pelo que pudessem levar o crédito, e pelo que devessem esperar uma recompensa.
(4) Estes homens não estão pedindo uma parte maior dos despojos, eles estão exigindo. Eles não estão buscando a orientação de Davi, ou estão usurpando sua liderança, ou, pelo menos, tentando.
Davi não deixa que prevaleçam. Ele se dispõe a tratar de suas exigências e administra tudo muito bem. Ele se recusa a permitir que façam as coisas do seu jeito, enquanto lhes mostra por que estão errado em sua exigência. Veja o raciocínio de Davi:
(1) Eles não merecem estes despojos, como supõem. Tanto a vitória quanto os despojos são um presente gracioso de Deus (e, desta forma, sem méritos). Deus deu os despojos da mesma forma que deu a vitória. Como, então, eles podem fazer esta reclamação como se merecessem alguma coisa?
(2) A vitória é do grupo todo, e o grupo é bem maior do que os 400 homens. Quando Davi emprega a palavra nos, parece claro que ele inclui todos os 600 homens. “Deus nos deu a vitória”, ele argumenta, “para todos os 600 homens, não apenas para 400”.
(3) Os 600 homens de Davi são todos irmãos (verso 23). Não é somente uma porção de indivíduos; é uma irmandade. Estes homens são uma família. Quando o bando amalequita retorna a seu acampamento, todo mundo celebra a vitória; todo mundo partilha os despojos. Os homens de Davi devem fazer menos?
(4) A batalha é uma ação coletiva, cada membro desempenhando um papel diferente. Só porque 200 ficaram para trás não significa que não tiveram parte na vitória. Eles ficaram com as bagagens (pelo que entendo, a bagagem de todos os 600 homens) e, desta forma, também contribuíram para a vitória. A vitória é uma vitória coletiva, e assim, cada homem deve ter uma parte igual dos despojos.
Davi se recusa a permitir que estes “homens maus e filhos de Belial” estraguem a vitória que Deus lhes deu. Ele cuida para que os despojos sejam igualmente distribuídos entre todos os 600 homens. No entanto, eles não ficam com todos os despojos desta vitória. Nos versos 26 a 31, vemos que Davi faz bom uso de uma parte dos despojos partilhando-a com algumas cidades israelitas que ele e seus homens costumavam freqüentar.
Estas cidades talvez tivessem sido atacadas pelos amalequitas e sofrido algumas perdas. Talvez alguns despojos sejam deles.
(1) Estas cidades são aquelas que Davi e seus homens freqüentavam.
(2) Estas são algumas das cidades que Davi deu a entender a Aquis que ele mesmo tinha invadido e saqueado.
(3) Alguns homens destas cidades são anciãos; homens de considerável influência.
(4) Alguns homens destas cidades são amigos de Davi.
(5) Estas cidades são israelitas; na verdade, estão no território de Judá. Portanto, são parentes de Davi.
(6) Muito em breve estes beneficiários da generosidade de Davi serão os primeiros a abraçá-lo como seu rei.
A decisão de Davi tem um longo alcance, muito maior do que ele possa imaginar neste momento. Muitas decisões têm longo alcance. Ele jamais imaginou, por exemplo, qual seria o resultado de fugir para o território filisteu. Ele jamais imaginou as conseqüências de enfrentar Golias e matá-lo. No calor do momento, Davi tinha uma decisão a tomar. Deveria fazer a vontade de uns poucos homens maus e filhos de Belial, deixando-os dividir os despojos só entre os 400? Ou deveria ficar firme naquilo que é certo? Davi escolhe ficar firme naquilo que é certo, e nesse processo, ele estabelece um princípio que subsistirá além dele. O bem ou o mal que escolhemos estabelece um precedente para o futuro.
Lição um: A Providência de Deus. Como a providência de Deus é espantosa! Ela é vista muitas vezes e com muita clareza em I Samuel, e agora em nosso texto. A providência de Deus é Sua mão “invisível” nos acontecimentos da vida, assegurando e alcançando Seus propósitos e Suas promessas. Davi fora escolhido e ungido como o próximo rei de Israel. Deus cuidou dele e o protegeu, e a seus homens, de formas incríveis, formas que, necessariamente, não reconheceríamos como providência de Deus na época em que aconteceram. Lemos que Davi estava pronto e disposto a acompanhar Aquis e seus comandantes na batalha. Ele parece ficar muito desapontado ao ser rejeitado pelos comandantes filisteus e mandado de volta prá Ziclague. Contudo, agora vemos que foi isto que contribuiu para que ele e seus homens atacassem os amalequitas e recuperassem tudo o que haviam perdido.
Deus orientou Davi e seu pequeno exército por meio de um sacerdote e de uma estola sacerdotal, guiando-os na perseguição aos amalequitas, garantindo que eles os alcançassem e resgatassem tudo o que haviam perdido. Mas, além desta orientação, Deus providenciou para que um escravo egípcio de um senhor amalequita ficasse tão doente que tivesse que ser deixado para trás para morrer. Assim, este homem seria encontrado e reanimado por Davi e seus homens. Este homem, então, serviria como guia para dirigi-los ao acampamento amalequita.
Mas espere, tem mais! Na providência de Deus, aparentemente o bando amalequita tinha atacado Ziclague por último. Eles não tinham saqueado só Ziclague, mas também muitas outras cidades filistéias e israelitas. Davi e seus homens não recuperaram somente seus bens, mas também os bens de muitas outras pessoas. Davi dividiu estes despojos com uma porção de cidades israelitas, caindo assim nas graças de seus parentes. Ziclague foi queimada, a única perda irrecuperável. Contudo, esta “perda” foi útil para fazê-lo retornar mais rápido ao território de Judá, onde ele foi constituído Rei de Judá. “Todas as coisas realmente cooperam para o bem dos que amam a Deus, daqueles que são chamados segundos o Seu propósito.” (Romanos 8:28)
Lição 2: O Princípio da Graça. Este princípio é o mais importante, pois ele nos obriga a repensar e revolucionar nosso ministério como membros do corpo de Cristo. A vitória de Davi e seus homens sobre os amalequitas, na realidade, foi uma vitória de Deus. É claro que os homens desempenharam seu papel, mas, em última análise, foi uma vitória de Deus. Que os homens não ousem tomar o crédito (e as recompensas) por aquilo que Deus faz. Este não é um ponto de somenos. Lembra-se do que aconteceu a Herodes quando ele permitiu que os homens o louvassem como se fosse um deus? Ele foi ferido por Deus e morto, porque não deu a glória a Deus (ver Atos 12:20-23). Jesus ensinou “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21). Não devemos tomar o crédito das coisas que são de Deus, mas dar a glória a Ele. Paulo ensinou claramente este princípio quando aplicado aos dons e ministérios espirituais que Deus dá aos membros individuais do corpo de Cristo:
“Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (I Co. 4:7)
Graça significa não termos de fazer alguma coisa para alcançar o perdão, a salvação e as bênçãos de Deus. Tudo o que temos a fazer é receber aquilo que Deus, em graça, nos dá. Mas graça também significa que quando recebemos o que não merecemos, não podemos ousar levar o crédito por isso, como se o merecêssemos. O princípio da graça significa que os homens não levam o crédito por aquilo que Deus faz.
Lição 3: O Princípio da Pluralidade (ou do trabalho em equipe). Ainda que Deus tenha lhes dado a vitória, Davi e seus homens têm um papel muito importante da batalha. Todos eles tomam parte na batalha. Os 200 homens que ficam para trás guardam a bagagem. Se eles tivessem ido junto, teriam retardado os demais, pois estavam muito cansados. Se não tivessem guardado a bagagem, os outros 400 teriam arriado. Os que ficaram para trás agiram no melhor interesse de todos os 600. Mas cada um dos 600 homens contribuiu para a causa. Foi um esforço de equipe.
Havia muitas divisões na igreja de Corinto. Algumas parecem ter como fundamento o fato de que os coríntios possuíam diferentes dons espirituais. Alguns destes dons eram mais valorizados do que outros. Aqueles que possuíam dons considerados mais importantes ficaram orgulhosos, desprezando os que supostamente tinham dons menores. E aqueles que tinham dons supostamente menores começaram a pensar que não eram necessários e talvez até não fizessem parte do corpo de Cristo (I Coríntios 12). Paulo mostra que todos os dons são dons da graça, para que ninguém se glorie naquilo que lhe foi dado. Ele também enfatiza que cada dom tem um papel importante, e todos são necessários. A igreja é o corpo de Cristo e cada membro individual tem um dom ou dons que desempenham uma função vital no corpo. Cada membro do corpo depende dos outros membros. Ninguém é sem importância. Todos fazem parte da equipe. O trabalho de nosso Senhor - o trabalho do corpo de Cristo, a igreja - só pode ser desempenhado como parte de um todo, como membros de uma equipe. Aqueles que pensam de forma individualista estão errados.
Lição 4: Lições Sobre a Páscoa. Mencionei anteriormente que esta passagem contém pelo menos uma mensagem de Páscoa. Agora é hora de fazer bom uso desta afirmação. Como nosso texto pode se relacionar com a Páscoa? Porque a Bíblia, o Velho e o Novo Testamento falam de fé, e fé bíblica é fé na ressurreição.
Para os santos do Novo Testamento, fé na ressurreição de nosso Senhor Jesus é uma parte vital, inseparável da mensagem do evangelho que cremos:
“Porém que se diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração; isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação.” (Romanos 10:8-10; ver I Coríntios 15:1 e ss).
É pela fé que cremos que ressuscitaremos da morte, como Cristo:
“Mas, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem. Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo. Cada um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda.” (I Coríntios 15:20-23)
Celebramos a Páscoa todos os anos porque sabemos destas coisas. A fé cristã é fé na ressurreição. Esta foi uma verdade para os santos do Novo Testamento. E quero lembrá-lo ainda que a fé dos santos do Antigo Testamento também foi fé na ressurreição. Sabemos que foi verdade para Abraão:
“Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de todos nós, como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí.), perante aquele no qual creu, o Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem. Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência. E, sem enfraquecer na fé, embora levasse em conta o seu próprio corpo amortecido, sendo já de cem anos, e a idade avançada de Sara, não duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera. Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça. E não somente por causa dele está escrito que lhe foi levado em conta, mas também por nossa causa, posto que a nós igualmente nos será imputado, a saber, a nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação.” (Romanos 4:16-25)
Como demonstra o escritor da carta aos Hebreus, isto também foi verdade para todos os outros santos do Antigo Testamento. Todos foram salvos pela fé e não pelas obras - esta fé era fé na ressurreição:
“Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade. Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também, figuradamente, o recobrou. Pela fé, igualmente Isaque abençoou a Jacó e a Esaú, acerca de coisas que ainda estavam para vir. Pela fé, Jacó, quando estava para morrer, abençoou cada um dos filhos de José e, apoiado sobre a extremidade do seu bordão, adorou. Pela fé, José, próximo do seu fim, fez menção do êxodo dos filhos de Israel, bem como deu ordens quanto aos seus próprios ossos.” (Hebreus 11:13-22, ênfase minha).
Desde o início da história humana, Deus tem demonstrado que Ele é o doador da vida, um Deus que dá vida aos mortos:
(1) Nos dois primeiros capítulos do livro de Gênesis, vemos Deus criando a vida.
(2) Já vimos que, no que diz respeito a ter filhos, Abrão e Sarai estavam “mortos”, e, no entanto, Deus lhes deu um filho (Romanos 4:16-25). Quando Deus pediu a Abraão para oferecer seu filho como sacrifício, Abraão estava disposto a obedecer, confiando que Deus o ressuscitaria dentre os mortos (Hebreus 11:17-19).
(3) Os irmãos de José o odiavam e o colocaram numa cisterna, planejando matá-lo. Ele estava praticamente “morto”, mas Deus, providencialmente, trouxe um grupo de mercadores midianitas que o compraram como escravo. José parecia sem esperanças como escravo, e depois, na prisão, como condenado, mas Deus deu vida a este morto, por assim dizer, ao elevá-lo à segunda posição mais alta do Egito (ver Gênesis 37 e ss).
(4) Os israelitas se tornaram escravos dos egípcios e foram insultados e maltratados. Faraó expediu uma ordem para que todos os bebês do sexo masculino fossem lançados no Nilo para morrer. Moisés estava praticamente morto. E, no entanto, Deus arranjou para que a filha de Faraó o tirasse do rio, anulando, desta forma, a ordem de Faraó que determinava a morte de todos os bebês meninos hebreus. Pelo salvamento desde pequenino, Deus libertou a nação inteira do jugo do Egito, e todos os poderes que ameaçavam os israelitas foram afogados no Mar Vermelho (Êxodo 1-15).
(5) Inúmeras vezes os inimigos circunvizinhos invadiram Israel, ameaçando sua existência (vida); no entanto, Deus levantou os juízes (ver o livro de Juízes).
(6) Ana era estéril e sem filhos, mas queria desesperadamente ter uma criança: ela “estava praticamente morta” para dar à luz, no entanto, Deus lhe deu Samuel e outros filhos e filhas (I Samuel 1 e 2).
(7) Os israelitas estão em guerra com os filisteus. Eles levam a arca da Aliança com eles. Israel é derrotado, os dois filhos de Eli são mortos, Eli morre, e sua nora também: posso até ouvir um murmúrio israelita “estamos todos mortos”. Mas Deus deu nova vida à nação. Ele afligiu tanto os filisteus que eles não só devolveram a arca da Aliança, como também mandaram junto um “agrado” (isto é, ouro; ver I Samuel 4-6).
(8) Os israelitas se reúnem em Mispa para renovar sua aliança com Deus; os filisteus ouvem falar deste grande ajuntamento e presumem erroneamente que seja algum tipo de operação militar. Eles enviam um vasto exército, que cerca os israelitas. Os filisteus têm carros de ferro e lanças. Com certeza os israelitas pensam: “Estamos todos mortos!” Mas Deus envia uma tempestade elétrica e os filisteus são derrotados (I Samuel 7).
(9) Os filisteus ocupam Israel e Jônatas os provoca atacando uma de suas guarnições. Uma vasta força armada vem dar uma lição em Israel. Saul tem somente 600 homens com ele, pois o restante desertou. Muitos que ficaram também estão pensando em como escapar. Saul deve estar dizendo a si mesmo “estou perdido”. Deus usa a coragem e a fé de Jônatas para iniciar um ataque aos filisteus e depois manda um terremoto, que resulta na vitória israelita sobre os filisteus (I Samuel 13 e 14).
(10) Os filisteus vêm novamente travar batalha com Israel. Golias insulta os israelitas e seu Deus. Saul e seus homens estão mortos de medo, e ninguém quer enfrentar Golias. Os israelitas, uma vez mais, pensam “estamos mortos!” Deus lhes manda um jovem pastor, que confia em Deus e não tem medo de enfrentar Golias; por meio de Davi Deus dá nova vida a Israel (I Samuel 17).
(11) Davi e seus homens caem numa cilada preparada por Saul numa montanha do deserto de Maon. Saul e seus homens estão prontos para lançar a armadilha. Ao lermos esta narrativa não podemos deixar de pensar “estão todos mortos”. De repente, um mensageiro chega informando a Saul que os filisteus atacaram Israel e ele tem que partir. Davi e seus homens ganham nova vida (I Samuel 23).
(12) Em nosso texto, Davi e seus homens fogem para Aquis em território filisteu, procurando refúgio de Saul. Davi quase vai para a guerra contra Israel, junto com os filisteus; ou ele faz isto ou terá que se voltar contra Aquis. Parece não haver saída; então, quando Davi e seus homens são mandados de volta para Ziclague, damos um suspiro de alívio, só até sabermos que Ziclague foi invadida pelos amalequitas e que todas as famílias e seus bens tinham desaparecido. “Estão todos mortos”, dizemos a nós mesmos, “já eram”. Mas Deus dá fé, coragem e direção a Davi, e coloca um escravo semimorto em seu caminho. No fim deste capítulo aparentemente sem esperanças, Deus transforma a morte em vida.
(13) Quando Elias se escondia de Acabe, rei de Israel, ele foi sustentado por uma viúva que vivia com seu filho. Este filho ficou doente e morreu, mas, por meio de Elias, Deus trouxe a criança de volta à vida (I Reis 17:17-24). Uma ressurreição muito parecida com esta aconteceu pelas mãos de Eliseu, conforme descrito em II Reis 4.
(14) O profeta Jonas não quer obedecer a Deus e pregar o evangelho aos ninivitas; assim, ele foge de Israel e embarca num navio em direção oposta, para Nínive. Uma tormenta violenta ameaça o navio onde Jonas está, junto com a carga e a tripulação. Jonas diz à tripulação o motivo da tormenta e os convence a lançá-lo no mar. Ele afunda nas ondas pela última vez e nós, junto com ele, dizemos, “morreu”. Mas, de repente, um grande peixe aparece, traga Jonas, e depois o vomita em terra seca. Isto, como o Próprio Senhor notou, é um tipo de Sua ressurreição (ver Jonas, Mateus 12:38-40).
(15) Daniel e seus três amigos são hebreus cativos vivendo na Babilônia. Eles estão determinados a servir a Deus, mesmo que isso signifique desobedecer o rei mais poderoso de sua época. O rei coloca os três amigos de Daniel numa fornalha ardente e lança Daniel numa cova de leões: “Estão mortos”, dizemos a nós mesmos. Mas Deus dá aos três homens uma companhia na fornalha e impede que sejam machucados pelas chamas e pelo calor. Ele fecha a boca dos leões, que normalmente teriam devorado Daniel. Deus ama dar vida àqueles que estão praticamente mortos. No Antigo Testamento vemos que é assim que Ele tem feito desde o princípio da história do homem.
A mesma coisa acontece no Novo Testamento. Deus está constantemente trazendo vida da morte:
(1) Isabel e seu marido estão velhos e não podem ter filhos. Deus lhes dá um filho, a quem Zacarias chama de João. Deus traz vida da morte.
(2) Uma jovem virgem chamada Maria está comprometida com um homem chamado José, mas ainda não é casada com ele. Ela jamais teve relações sexuais com um homem. Pelo poder do Espírito Santo, Deus faz com que fique grávida do Messias prometido. Deus traz vida de uma morte virtual.
(3) Uma viúva da cidade de Naim tem apenas um filho, que morre e está sendo levado para o enterro. Ele está morto, literalmente. Para os que estão à espera, não há esperanças. Tudo acabou para o rapaz. E, no entanto, Jesus pára o funeral e ordena ao jovem que se levante, o que, com toda a certeza, ele faz. Jesus dá vida ao morto (Lucas 7:11-15).
(4) Lázaro é irmão de Maria e Marta, todos são amigos de Jesus. Lázaro fica gravemente doente, e Jesus deliberadamente se atrasa. Quando Jesus e seus discípulos chegam, Lázaro não está apenas morto, está no túmulo há 3 dias. Está realmente morto. Mas Jesus o chama para fora do túmulo, e ele volta à vida (João 11).
Estas e tantas outras experiências “da morte para vida” descritas no Antigo e no Novo Testamento, nada mais são do que um prelúdio da “maior” de todas, a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus de Nazaré vem ao mundo e proclama ser o Filho de Deus. Ele vive uma vida perfeita e interpreta as Escrituras do Antigo Testamento como Deus queria que fossem entendidas e praticadas. Os líderes religiosos judaicos, com a ajuda dos oficiais romanos, conspiram contra Jesus e O crucificam na cruz do Calvário. Ele é declarado morto e sepultado numa tumba. “Jesus está morto”, admitem tristemente os discípulos. Está acabado. E então, ao terceiro dia, eles encontram a tumba vazia e vêem nosso Senhor ressuscitado dos mortos. Eles jamais serão os mesmos novamente. Deus ressuscitou Jesus dos mortos.
Encontrar assuntos relacionados à ressurreição na Bíblia (Deus trazendo vida da morte) é quase como encontrar Cristo nas cartas de Paulo. A ressurreição é parte integrante da fé e das Escrituras. O que importa é: “Você já teve uma experiência pessoal da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo?” Já foi trazido da morte para a vida, ao confiar em Jesus para perdão dos seus pecados e para o presente da vida eterna? A Bíblia nos diz que todos nós estamos “mortos em nossos delitos e pecados” (Efésios 2:1), a não ser pela fé em Jesus Cristo. Nós sequer podemos agradar a Deus guardando Seus mandamentos. Precisamos reconhecer nossos pecados e o fato de que merecemos a ira eterna de Deus como justa punição para eles. Pela simples aceitação do presente da salvação por meio da vida, morte e ressurreição de nosso Senhor, nascemos de novo, experimentamos pessoalmente a ressurreição de Jesus Cristo. Daí por diante, nós vivemos; temos a vida eterna. Você já recebeu este presente de vida? É isso que é a Páscoa. O negócio de Deus é fazer homens mortos viverem pelos séculos e, com certeza, Ele pode fazer isto por você.
“Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos, e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” (Efésios 2:1-10)
É de vital importância que você e eu, em vida, venhamos a ter fé em Jesus Cristo, morrendo para o pecado e ressuscitando em novidade de vida, em Cristo. Mas isto não é o fim. A ressurreição é muito mais do que uma experiência de vida. Não basta celebrar a ressurreição de nosso Senhor uma vez por ano. Ela deve ser celebrada na igreja a cada semana (ver I Coríntios 11:26; Lucas 22:19; Atos 20:7). E ainda mais, a ressurreição é um meio de vida. A ressurreição deve ser vivida e experimentada todos os dias pelo cristão:
“Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que abunde a graça? De modo nenhum. Nós, que já morremos para o pecado, como viveremos ainda nele? Ou, porventura, ignorais que todos quantos fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele pelo batismo na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se temos sido unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente também o seremos na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado fosse desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado. Pois quem está morto está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos, sabendo que, tendo Cristo ressurgido dentre os mortos, já não morre mais; a morte não mais tem domínio sobre ele. Pois quanto a ter morrido, de uma vez por todas morreu para o pecado, mas quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Romanos 6:1-11)
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Se, porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da justiça. Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita.” (Romanos 8:9-11)
Em nosso texto há mais um assunto relacionado à Páscoa que não podemos negligenciar. Ele deve ficar claro à luz das palavras de Paulo em Efésios 4:
“E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens. Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia descido até às regiões inferiores da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor.” (Efésios 4:7-16)
Paulo está falando sobre dons espirituais, os quais Deus dá a cada um e a todos os crentes em Jesus Cristo. Ele está dizendo que estes dons - que são a capacitação divina para o ministério no corpo e para o corpo de Cristo - são o resultado e a expressão da vitória de Cristo sobre Satanás e o pecado, através de Sua morte e, especialmente, de Sua ressurreição dos mortos. Quando Jesus derrotou Satanás e o pecado, Ele deu dons àqueles que são Seus, como manifestação de Sua vitória.
Paulo chama nossa atenção para a prática militar resultante da vitória sobre os inimigos. Ele compara os dons espirituais dados por nosso Senhor à Sua igreja aos prêmios dados pelos líderes militares a seus homens em caso de vitória. Eu lhe pergunto, onde, em toda a Bíblia, isto é expresso com maior clareza do que bem aqui neste texto? Quando Davi distribui os despojos de sua vitória sobre os amalequitas, ele está prefigurando o Rei dos reis, que deu “dons espirituais” a Sua igreja como indicação da magnitude de sua vitória.
Nosso Deus é um Deus salvador, um Deus doador da vida. E Ele dá vida àqueles que estão mortos. Não é de admirar que Ele nos salve quando ainda estamos “mortos em nossos delitos e pecados”. Não é de admirar que devamos nos considerar mortos, a fim de que Sua vida seja manifestada em nós e por meio de nós. A Deus seja a glória. Somente Ele dá vida aos mortos.
“Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer.” (João 5:21)
“Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida. Contudo, já em nós mesmos, tivemos a sentença de morte, para que não confiemos em nós, e sim no Deus que ressuscita os mortos;” (II Coríntios 1:8-9)
Nos livros de I e II Samuel, o autor conta a história de modo semelhante ao modo que as principais redes de televisão utilizam na cobertura das Olimpíadas. Uma vez que muitas competições diferentes são realizadas ao mesmo tempo, a rede não tem condições de fazer a cobertura simultânea de todas elas. Mas as maravilhas da comunicação moderna providenciaram uma solução: enquanto uma competição é transmitida ao vivo, as demais são gravadas. Depois elas são cuidadosamente intercaladas, para que a cobertura completa não pareça incoerente. Se não soubéssemos que algumas competições são videoteipe, poderíamos muito bem achar que elas acontecem na seqüência em que aparecem.
O autor de I Samuel faz algo parecido. Ele rastreia simultaneamente a vida de dois homens - Saul e Davi - os quais, na maior parte das vezes, estão em lugares diferentes. Seu interesse principal não é dispor os acontecimentos em ordem cronológica, na seqüência exata em que ocorrem, mas contar a história de forma que mostre o contraste entre Saul e Davi. É por isso que nos capítulos finais de I Samuel, vamos e voltamos entre eles e, nesse processo, a seqüência exata dos acontecimentos se perde, pois o autor não a considera importante para sua história.
Com um pouco de esforço, nestes últimos capítulos podemos perceber, em determinados momentos, a seqüência dos acontecimentos; em outros, é impossível. De qualquer forma, devemos seguir o entendimento do autor de que isto não é a chave para a compreensão do texto. Se pudermos ligar os acontecimentos da vida de Davi aos de Saul, muito bem; senão, isto não deve nos incomodar.
O que devemos nos esforçar para perceber em nosso texto é a ligação entre a história da morte de Saul e suas implicações para nós hoje. Com certeza há uma ligação muito clara entre a sua morte e a vida de alguém que lê esta narrativa escrita há tanto tempo atrás. Além disto, nosso texto levanta uma das questões morais e legais mais discutidas de nossa época. Fique comigo, portanto, enquanto tentamos compreender o significado e a mensagem desta passagem para nossa vida.
“Entretanto, os filisteus pelejaram contra Israel, e, tendo os homens de Israel fugido de diante dos filisteus, caíram feridos no monte Gilboa. Os filisteus apertaram com Saul e seus filhos e mataram Jônatas, Abinadabe e Malquisua, filhos de Saul. Agravou-se a peleja contra Saul; os flecheiros o avistaram, e ele muito os temeu.”
Quando Davi e seus homens se separam de Aquis e dos filisteus, estes se dirigem para norte, para Jezreel, enquanto Davi e seus homens voltam para o sul, em direção a Ziclague. Imagino que eles tenham alcançado seu destino mais ou menos ao mesmo tempo. Isto significa que Saul e o exército israelita estão lutando contra os filisteus quase na mesma hora em que Davi e seus homens estão perseguindo o bando amalequita. Pelo menos é isto que ficamos sabendo, uma vez que está escrito que Davi sabe da morte de Saul três dias após terem chegado a Ziclague, após a vitória sobre os amalequitas (II Samuel 1:1-2). Providencialmente, Deus tira Davi deste conflito, desviando sua atenção bem mais para o sul. Portanto, não é permitido que Davi lute com ou contra os filisteus. A vontade de Deus é que, nesta batalha entre Israel e os filisteus, os filisteus vençam e Saul e seus filhos pereçam.
Muitos detalhes trágicos desta batalha são omitidos. Os homens de Israel fogem ao ataque filisteu. Muitos soldados israelitas caem mortos no Monte Gilboa; agora cai por terra qualquer esquema defensivo que tenham providenciado para Saul (lembre-se de 26:5). Os filisteus começam a apertar o ataque contra Saul e seus filhos. Saul deve ter se refugiado no ponto mais alto e mais protegido do Monte Gilboa, observando com terror enquanto seus filhos tentam fazer a última linha de defesa para seu pai. A tentativa falha e os três filhos de Saul jazem mortos, enquanto os arqueiros localizam Saul e começam a usá-lo para a prática do tiro ao alvo. Nenhum dos ferimentos de Saul é fatal, embora ele não possa mais atacar, muito menos se defender. É só uma questão de tempo e Saul sabe disso.
“Então, disse Saul ao seu escudeiro: Arranca a tua espada e atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes incircuncisos, e me traspassem, e escarneçam de mim. Porém o seu escudeiro não o quis, porque temia muito; então, Saul tomou da espada e se lançou sobre ela. Vendo, pois, o seu escudeiro que Saul já era morto, também ele se lançou sobre a sua espada e morreu com ele. Morreu, pois, Saul, e seus três filhos, e o seu escudeiro, e também todos os seus homens foram mortos naquele dia com ele.”
O “pedido” de Saul, na verdade, é uma exigência. Ele ordena que seu escudeiro desembainhe a espada e o atravesse com ela. Talvez este não seja um pedido tão incomum, tanto naquela época quanto agora. No capítulo nove do livro de Juízes, Abimeleque faz o mesmo pedido. Abimeleque é um dos muitos filhos de Gideão, embora sua mãe seja uma concubina. Ele convence seus parentes em Siquém a torná-lo seu líder, e depois mata seus 70 irmãos sobre uma pedra (versos 1-5). O relacionamento entre os líderes de Siquém e Abimeleque fica hostil, o que acaba em conflito. Abimeleque derrota os homens de Siquém e encurrala os líderes na torre da cidade. Ele está prestes a incendiá-la, quando uma mulher joga uma pedra de moinho de cima da torre e o golpeia na cabeça. Ele é mortalmente ferido e sabe que está morrendo. Para evitar o estigma de ter sido morto por uma mulher, ele ordena a seu escudeiro que desembainhe sua espada e o mate. O jovem faz o serviço para Abimeleque, e ele morre. A morte de Abimeleque está muito longe de ser nobre e não é um precedente ao qual alguém quisesse recorrer.
Saul está numa situação parecida. Uma porção de flechas dos filisteus acerta o alvo e ele fica gravemente ferido. De um jeito ou de outro, ele sabe que sua morte está próxima, e assim ordena a seu escudeiro que acabe com ele. Ele dá ao escudeiro duas razões, as quais ele parece achar que sejam incontestáveis: (1) ele não quer morrer pelas mãos de algum pagão “incircunciso”; (2) ele não quer que seus inimigos escarneçam dele (verso 4). No entanto, suas razões não são incontestáveis o bastante para seu escudeiro. Alguns poderiam esperar uma resposta do escudeiro que mencionasse o fato de Saul ser o “ungido do Senhor” (compare com II Samuel 1:14, 16). Por isso, não podemos ter certeza de que ele se recuse a agir por causa de seus princípios. No entanto, é dito que ele deixa de agir por medo. Aliás, é dito que ele tem muito medo (verso 4).
Saul está desesperado. Ele não tem forças para lutar contra os filisteus e menos ainda para se matar. Mas há uma coisa que ele pode fazer: cair sobre sua própria espada; e é o que ele faz. Quando preguei esta mensagem e cheguei a este ponto, tenho certeza de que algumas pessoas da congregação pensaram que eu tinha perdido completamente o juízo, pois joguei a cabeça para trás e comecei a rir. Vendo os olhares confusos, expliquei que não pude evitar, pois até isto Saul não consegue fazer direito. Ele errou o alvo! Você consegue imaginar a cena? Ele não erra apenas quando tenta acertar Davi com sua lança (no mínimo duas vezes), e Jônatas; agora, nem quando mira a si mesmo ele consegue acertar o alvo.
Digo isto não pelo que lemos no capítulo 31, mas pelo que lemos em II Samuel 1. Sabemos pelas palavras de um amalequita, que Saul não consegue terminar o serviço. Este jovem encontra Saul apoiado sobre sua lança (II Samuel 1:6). Saul tenta se matar e, simplesmente, não consegue fazer o serviço direito. Se Deus não permitiu que Saul tirasse a vida de Davi, Seu ungido, tampouco permitirá que ele tire sua própria vida, pois ele também é Seu ungido. Aquilo que o escudeiro não fez a Saul, ele faz a si mesmo. O escudeiro morre, deixando Saul sozinho, pelo menos por alguns instantes.
“Vendo os homens de Israel que estavam deste lado do vale e daquém do Jordão que os homens de Israel fugiram e que Saul e seus filhos estavam mortos, desampararam as cidades e fugiram; e vieram os filisteus e habitaram nelas. Sucedeu, pois, que, vindo os filisteus ao outro dia a despojar os mortos, acharam Saul e seus três filhos caídos no monte Gilboa. Cortaram a cabeça a Saul e o despojaram das suas armas; enviaram mensageiros pela terra dos filisteus, em redor, a levar as boas-novas à casa dos seus ídolos e entre o povo. Puseram as armas de Saul no templo de Astarote e o seu corpo afixaram no muro de Bete-Seã.”
O autor de nosso texto usa uma técnica muito popular entre os escritores de filmes para televisão. Você se lembra dos filmes onde o herói está num lugar perigoso e, de repente, acontece alguma coisa horrível e deixam que o telespectador presuma o pior... durante os comerciais? No entanto, de alguma maneira, depois do intervalo comercial, descobrimos que o herói realmente não morreu conforme fomos levados a pensar. É isto que o autor faz em nosso texto. Ele deixa que pensemos que Saul deu fim a si mesmo, seguido por seu escudeiro. E então, de repente, no capítulo 1 de II Samuel, descobrimos que ele não estava realmente morto.
Um jovem amalequita vai a Davi com a coroa e o bracelete de Saul, e a história de como, afinal, ele morre. Ele vai a Ziclague informar Davi sobre a derrota de Israel para os filisteus e lhe diz que havia escapado do arraial israelita. Ele diz que encontrou Saul por acaso, e que o rei estava apoiado sobre sua espada próximo da morte, mas ainda com vida. Saul lhe pediu que se aproximasse e o matasse, e o jovem sentiu-se obrigado a fazê-lo. Ele vai, então, a Davi, achando que poderia ser recompensado. Com toda certeza Davi ficará encantado ao ouvir que seu inimigo está morto. Este é o segundo erro do dia deste jovem, e ambos lhe custam a vida.
A morte de Saul e seus filhos é uma recordação da morte de Eli e seus filhos no capítulo 4. Em ambas as ocasiões, a morte e a derrota vêm pelas mãos dos filisteus. Em ambos os casos, pai e filhos morrem no mesmo dia. Em ambas as derrotas, não morrem somente os líderes, mas também muitos israelitas. A vitória dos filisteus é uma catástrofe individual (para Saul e Eli, e para seus filhos), não uma catástrofe nacional (para Israel).
O autor de nosso texto decide claramente enfocar mais Saul do que seus filhos ou a nação de Israel. Por exemplo, não é dito como Jônatas morre, embora queiramos muito saber e embora esperemos que ele morra como o grande guerreiro que foi, lutando até o último suspiro. Antes de vermos como Saul morre, vamos fazer uma pausa para relembrar que, quando ele é morto, muitos israelitas também morrem, e muitos outros batem em retirada, conforme lemos no verso 7. Os que estão do outro do vale e daquém do Jordão (que não estão no foco do ataque filisteu) vêem a derrota de Israel e a morte de Saul e seus filhos, e sabem que não há esperanças de derrotarem os filisteus. Eles fogem, abandonando as cidades, que depois são ocupadas pelos filisteus. Esta grande derrota não reduz só o tamanho do exército de Israel, reduz o tamanho de Israel.
É importante observar que Israel, bem como Saul, estão sendo divinamente disciplinados. Você deve se lembrar que Saul foi o rei exigido pelos israelitas no capítulo 8, e que esta exigência era uma evidência de que eles tinham rejeitado a Deus como seu rei (I Samuel 8:7-8). Não é só por causa dos pecados de Saul que Israel é derrotado e muitos perecem; é também pelos pecados de Israel. Em I Samuel 12, Samuel faz uma ligação muito clara entre a conduta de Israel e seu rei e seu destino:
“Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais. Ponde-vos também, agora, aqui e vede esta grande coisa que o SENHOR fará diante dos vossos olhos. Não é, agora, o tempo da sega do trigo? Clamarei, pois, ao SENHOR, e dará trovões e chuva; e sabereis e vereis que é grande a vossa maldade, que tendes praticado perante o SENHOR, pedindo para vós outros um rei. Então, invocou Samuel ao SENHOR, e o SENHOR deu trovões e chuva naquele dia; pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao SENHOR e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao SENHOR, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o SENHOR, mas servi ao SENHOR de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são. Pois o SENHOR, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo. Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o SENHOR, deixando de orar por vós; antes, vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (I Samuel 12:13-25, ênfase minha).
Nos versos 8 a 10, vemos que Saul não consegue o que quer. Seu escudeiro não atende seu duplo desejo:
(1) Não ser morto por um incircunciso.
(2) Que ninguém escarneça dele (talvez como os filisteus fizeram com Sansão - Juízes 16:23-25).
O pedido de Saul não é concedido. Primeiro, ele é morto por um incircunciso. Ele não é morto por sua espada, nem pela espada de seu escudeiro. São as flechas dos filisteus (31:3) e a espada de um amalequita (II Sam. 1:9-10) que o matam. Saul realmente é morto por mãos incircuncisas. É exatamente como Deus queria que fosse e como disse que seria:
“Porque o SENHOR fez para contigo como, por meu intermédio, ele te dissera; tirou o reino da tua mão e o deu ao teu companheiro Davi. Como tu não deste ouvidos à voz do SENHOR e não executaste o que ele, no furor da sua ira, ordenou contra Amaleque, por isso, o SENHOR te fez, hoje, isto. O SENHOR entregará também a Israel contigo nas mãos dos filisteus, e, amanhã, tu e teus filhos estareis comigo; e o acampamento de Israel o SENHOR entregará nas mãos dos filisteus.” (I Sam. 28:17-19)
Não é por mera coincidência que ele é morto pelas mãos dos filisteus (28:19) e pela mão de um amalequita (28:18). Temos aqui uma espécie de justiça poética. Saul está colhendo o que ele mesmo plantou. Ele é morto por mãos de incircuncisos porque Deus disse que seria assim que ele morreria. Não importa o quanto Saul tente mudar seu destino, ele não consegue ser bem sucedido em frustrar a vontade de Deus ou Sua palavra. Será que sua morte não é mais uma tentativa de desobedecer a Deus, um ato final de rebelião?
Tal qual o primeiro, o segundo desejo de Saul - que seus inimigos não escarneçam dele -também é negado. Primeiro, ele é atingido por uma porção de flechas dos filisteus, as quais, literalmente, drenam sua vida. Sua morte lenta e agonizante não é uma bela visão. Saul não chega ao fim com bom aspecto. Depois que ele morre, sua armadura é retirada e sua cabeça é cortada fora. Os filisteus devem realmente gostar disto. Eles, então, pegam sua armadura e sua cabeça e desfilam por suas cidades, levando-as ao templo de seu deus. Todas estas coisas zombam não só de Saul, mas de seu Deus. A afronta final a Saul é que seu corpo, junto com o de seus filhos, é fixado no muro de Bete-Seã. As afrontas sofridas por Saul em sua morte não poderiam ser piores.
“Então, ouvindo isto os moradores de Jabes-Gileade, o que os filisteus fizeram a Saul, todos os homens valentes se levantaram, e caminharam toda a noite, e tiraram o corpo de Saul e os corpos de seus filhos do muro de Bete-Seã, e, vindo a Jabes, os queimaram. Tomaram-lhes os ossos, e os sepultaram debaixo de um arvoredo, em Jabes, e jejuaram sete dias.”
Esta não é uma bela visão, nem um conto de fadas com final “felizes para sempre”. Mas é como tudo termina para Saul. Para que o leitor não fique muito pesaroso pelas afrontas sofridas por Saul e pela derrota e morte que sobrevêm a Israel, o autor relata um ato muito corajoso da parte dos homens de Jabes-Gileade. Quando ouvem que Saul e seus filhos foram mortos e seus corpos foram publicamente expostos no muro de Bete-Seã, estes homens sabem o que devem fazer. Eles marcham noite adentro para Bete-Seã e depois retornam a Jabes-Gileade. É provável que a viagem de ida e volta seja de mais de 20 milhas. Eles descem os corpos do muro e os carregam todo o caminho de volta para Jabes. Lá, eles queimam os corpos e depois enterram os ossos sob um arvoredo.
O que leva os homens desta cidade a fazer aquilo que ninguém mais pensa fazer? O povo desta cidade guarda boas recordações de Saul e de seu auxílio. O episódio está descrito em I Samuel 11. Naás, o comandante dos amonitas, e seu exército sitiam Jabes-Gileade e exigem sua rendição. No entanto, Naás exige bem mais do que uma simples “rendição incondicional”. Ele insiste em vazar o olho direito de cada israelita da cidade. Os anciãos de Jabes pedem tempo para pensar e apelam para o auxílio de seus irmãos. A notícia se espalha por Israel e chega aos ouvidos de Saul, que, embora tenha sido designado rei de Israel, ainda está trabalhando em sua casa. Saul fica furioso no Espírito e dilacera uma junta de bois, enviando os pedaços a cada tribo de Israel. Ele avisa que, aquele que não aparecer para defender Jabes-Gileade também encontrará seus bois estraçalhados. 330.000 israelitas aparecem para a batalha e a cidade de Jabes é salva.
Os homens de Jabes não se esqueceram do que Saul fez por eles. Na hora da necessidade, Saul chegou com o auxílio que os salvou. Agora, na hora da necessidade de Saul, eles encontram um jeito de ajudá-lo. Os corpos de Saul e seus filhos, suspensos no muro da cidade de Bete-Seã, estão lá para serem ridicularizados. Os homens de Jabes marcham noite adentro, descem o corpo do rei e de seus filhos, e os levam de volta a Jabes, onde são enterrados - um magnífico gesto de consideração e respeito. Como a coragem de Saul frente aos amonitas em Jabes é o seu melhor momento (pelo menos em I Samuel), este é o melhor momento dos homens de Jabes.
Vamos agora destacar algumas lições que este texto nos reserva, tal como reservou para os antigos israelitas.
Primeiro, devemos aprender com a morte de Saul, que é o foco principal de nossa passagem. Saul morreu, tal como Deus disse que morreria. Sua morte foi exatamente no tempo previsto. Ele morre da maneira que Deus disse que seria. Ele morre nas mãos dos filisteus e de um amalequita. Saul morre de maneira totalmente coerente com a maneira que viveu. Mesmo no fim de sua vida, ele não morre como um homem de coragem. Ele não quer sofrer e pede que outros tirem sua vida e até tenta tirá-la ele mesmo.
A palavra de Deus é absolutamente fiel. Deus cumpre o que promete. Ele tratará o pecado e a rebelião com juízo; Ele tratará a confiança e a obediência com bênção. Saul é removido do trono e da vida; Davi é preservado das conspirações de Saul e logo será empossado como rei de Judá (e depois de Israel). Antes que o primeiro homem pecasse, Deus disse que a pena do pecado era a morte (Gênesis 2:16-17). Daí em diante, Deus falou claramente aos homens a respeito do pecado. Sua palavra não só define o que é pecado, ela explica nos mínimos detalhes a conseqüência do pecado - a morte (Romanos 3:23; 6:23). Deus deu a Saul tempo para se arrepender, mas ele não o fez. E, assim, sua morte ocorreu exatamente como Deus dissera. Se você ainda não confia em Cristo para a salvação, Deus está lhe dando neste momento oportunidade para arrependimento. Você pode, como Saul, escolher usar este tempo para aumentar seus pecados. Mas, esteja certo de uma coisa, seus pecados o encontrarão. O salário do pecado é a morte. Se você se arrepender, reconhecendo seu pecado e confiando em Jesus para a salvação, terá a vida eterna. Tenha certeza de que as promessas de Deus - tanto de juízo quanto de salvação - são certas. Saul nos relembra desta verdade.
Segundo, entendemos melhor nosso texto quando levamos em consideração o texto paralelo de I Crônicas 10:
“Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra o SENHOR, por causa da palavra do SENHOR, que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante e não ao SENHOR, que, por isso, o matou e transferiu o reino a Davi, filho de Jessé.” (I Cr. 10:13-14)
Os doze primeiros versos de I Crônicas 10 são praticamente idênticos ao texto de I Samuel 31. Mas os versos 13 e 14 (acima), não. Estes versos deixam absolutamente claras muitas questões que estão implícitas em I Samuel. Numa análise final, não foram os homens que mataram Saul (quer filisteus, israelitas ou amalequitas), foi Deus. Estes versos também informam que Saul foi morto por Deus por causa de seu pecado, de seu persistente pecado. Finalmente, é dito que Saul foi morto por Deus não apenas para cumprir Suas advertências a ele, mas também para cumprir Suas promessas a Davi.
Por que o autor de I Samuel não inclui esta informação? Acho que ele crê que devamos concluir por nós mesmos. Como não chegaremos a esta conclusão, se temos como base tudo o que foi dito e feito antes deste capítulo? Mas, para os que não chegam a esta conclusão, ela é claramente afirmada num relato paralelo, para que ninguém deixe de compreendê-la.
Esta passagem enfoca diretamente um problema muito em evidência nos nossos dias e na nossa época. Deixe-me mencionar apenas um nome e o assunto ficará claro: Dr. Jack Kervorkian. O assunto é o suicídio assistido. Nas cortes e órgãos legislativos da América, Canadá e outras partes do mundo, os homens estão debatendo o suicídio assistido.
Seria muito útil à nossa reflexão se fôssemos claros na definição de suicídio assistido. Encontrei esta definição na Internet, fazendo uma pequena busca: Suicídio assistido é o ato de uma pessoa se matar intencionalmente com a assistência de outra pessoa que lhe forneça os meios ou o conhecimento para tal, ou ambos.
Suicídio assistido não é o mesmo que eutanásia. Eutanásia é tirar a vida de outra pessoa, sem que ela peça ou consinta com isto. O suicídio assistido é iniciado e solicitado por alguém que deseja morrer. Suicídio assistido não é permitir que a morte siga seu curso natural, recusando medidas especiais. Suicídio assistido é causar a morte de outra pessoa, tomando medidas especiais.
Saul pede o suicídio assistido. Nosso texto deixa claro que ele está errado. Ele está errado porque está tentando minimizar o sofrimento causado pelo julgamento divino. Está errado porque está tentando alterar os meios do julgamento divino. Ele quer morrer de maneira diferente daquela predita por Deus. Ele está errado porque está tentando matar o ungido do Senhor. Tal como era errado para qualquer outro fazer mal ao rei (como Davi ou o jovem amalequita), também é errado para o próprio rei. E, do mesmo modo, é errado para o escudeiro ou para o jovem amalequita. O amalequita pagou por seu pecado com a própria vida. Nosso texto não sanciona o suicídio assistido. Tanto em Juízes 9 quanto aqui, esta não é maneira de lidar com o sofrimento, mesmo que nos dois casos a morte seja iminente.
É importante reconhecer que a hipocrisia de Saul é evidente nas duas vezes em que pede para ser morto, primeiro ao escudeiro e depois ao amalequita. Vamos colocá-las lado a lado e compará-las:
Então, disse Saul ao seu escudeiro: Arranca a tua espada e atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes incircuncisos, e me traspassem, e escarneçam de mim. Porém o seu escudeiro não o quis, porque temia muito; então, Saul tomou da espada e se lançou sobre ela. (I Sam. 31:4) |
Então, me disse: Arremete sobre mim e mata-me, pois me sinto vencido de cãibra, mas o tino se acha ainda todo em mim. (II Sam. 1:9) |
O segundo pedido de Saul revela a hipocrisia do primeiro. O primeiro é feito ao escudeiro, que, com toda certeza, é israelita. Ele não quer ser morto por um incircunciso. No entanto, ele pede a um amalequita (um gentil incircunciso) que o mate. A verdadeira razão para Saul querer ser assistido em seu suicídio é dada no segundo pedido: ele não quer sofrer. Ele quer morrer para por fim à dor, para acabar com seu sofrimento. Indo direto ao assunto, ele está mais interessado em evitar o sofrimento do que em obedecer a Deus (não fazer mal a Seu ungido). Da mesma forma que Saul estava disposto a matar Davi por causa da dor que este lhe causava, agora ele está disposto a se matar por causa da dor que está sofrendo.
Para os cristãos, é errado cometer suicídio, quer assistido ou não. Para os cristãos, é errado ajudar alguém a se suicidar. Quando homens e mulheres chegam a ponto de preferir morrer a viver, precisamos nos esforçar para lhes mostrar Cristo, para a vida eterna. Quando os cristãos chegam ao ponto onde a morte parece próxima e onde a dor é intensa, devemos ansiar por estar com o Senhor, mas não por nossas próprias mãos. Não precisamos permitir que a tecnologia médica prolongue a dor e o processo da morte, mas não devemos procurar por fim à vida que Deus dá, e que só Ele pode tirar (Jó 1:21). Todas as vezes que os homens da Bíblia desejaram morrer, isto não é elogiado; é claramente visto como falta de fé.
Sem dúvida, há alguns lendo esta mensagem que já consideraram (ou estão considerando) pegar a saída mais fácil. Este texto deve falar claramente a vocês. Mas gostaria de lembrar que muitas outras pessoas agem de maneira bastante parecida e pecaminosa, e não reconhecem sua atitude como suicida. No fundo, o pecado de Saul é tentar escapar da situação, da dor, que ele mesmo criou e que Deus decretou como disciplina. Saul quer “evitar a dor” de maneira pecaminosa, e muitos de nós também. Alguns procuram evitar a dor de forma espiritual. Paulo crê e pratica a cura sobrenatural. Ele pede a Deus que remova seu espinho na carne, mas seu pedido é negado (II Co. 12:7-10). Deus tem um propósito mais sublime para o sofrimento de Paulo, e este propósito é humilhá-lo e proporcionar-lhe manifestações ainda maiores de Seu poder e graça. Por que alguns crentes não podem aceitar que Deus não acalme a dor, não remova o sofrimento, porque tem um propósito ao usá-los para o nosso próprio bem e para a Sua glória? Por que buscamos espiritualizar nosso pecado, agindo como se nossa resistência ao sofrimento divinamente enviado fosse um ato de fé? Vamos procurar não fugir daquilo que Deus nos dá para enfrentar.
Há outros meios de “fuga” que são muitos comuns hoje em dia, mesmo entre os cristãos. Alguns tentam fugir do sofrimento emocional divorciando-se ou separando-se. Outros, desejando manter as aparências de um casamento, simplesmente colocam um muro entre eles e seu companheiro (e talvez sua família), para “evitar o sofrimento”. Quero lembrar que isto é apenas outra forma de suicídio. Relações sexuais ilícitas, drogas, álcool e outras formas de vício são, na realidade, tentativas ímpias e não bíblicas de fugir do sofrimento. Seja o entusiasmo passageiro e o prazer de uma experiência sexual ilícita ou o êxtase das drogas e do álcool, tudo é fuga momentânea. No entanto, a Bíblia diz que estas coisas são realmente desastrosas, pois levam a um passo da morte (ver Pv. 7).
Jamais gostei do termo “facilitador”, pois procura descrever pecar em termos seculares, não bíblicos. Pergunto-me, no entanto, se o que algumas pessoas chamam de facilitador não seja a mesma coisa que Saul queira de seu escudeiro, e o que o amalequita virá a ser - alguém que auxilia no suicídio. Ver um irmão em pecado e não agir de forma que ele o deixe é ajudá-lo em sua busca da morte. Vamos pensar seriamente se estamos facilitando o pecado e a morte dos outros ou se estamos incentivando-os a buscar o caminho da vida, Cristo.
Finalmente, vejo em Saul um contraste gritante com a pessoa e a obra de Jesus Cristo. O pecado de Saul, e seu desejo de morrer, é egoísta, egocêntrico. Seu pecado causa não apenas a sua própria morte, mas também a morte de seus filhos e de muitos israelitas, e o sofrimento de muitas outras pessoas. Sua liderança não é uma bênção, mas uma maldição para Israel. Como foi diferente da morte de nosso Senhor. Nosso Senhor não tinha desejo de morrer, humanamente falando. Ele não foi um suicida. Ele orou no Jardim do Getsêmani para que o “cálice” fosse retirado Dele (Mateus 26:39). Ele morreu em obediência à vontade do Pai, não em desobediência (Mateus 26:39; João 6:38; Filipenses 2:3-8). Ele não morreu para Se livrar do sofrimento; Ele morreu para suportar todo o sofrimento que estava reservado a nós por causa de nossos pecados (Isaías 53; II Co. 5:21; Hb. 2:17-18). Foi por isso que ele não quis beber o vinho com fel (Mateus 27:33-34). Ele não queria tomar nenhum “medicamento” que entorpecesse a dor que Ele devia suportar em nosso lugar. Sua morte não é um trágico fracasso de sua parte que tentamos esquecer (como um suicídio), mas um magnífico sacrifício por nós, o qual celebramos a cada Santa Ceia. Sua morte não foi egoísta, mas sacrificial. Foi uma morte que Ele sofreu por causa dos nossos pecados e para a nossa salvação. E tudo o que temos a fazer é aceitá-la como meio de Deus para perdoar os nossos pecados e nos dar a vida eterna.
Muitas vezes há um ponto crítico para onde Deus leva o pecador, um ponto onde o suicídio pode ser considerado como saída. As pessoas vêem o pecado que cometeram e se sentem desesperadamente dominadas pela culpa e pelas conseqüências desse pecado. Talvez elas pensem que a morte (por suicídio) seja a única saída. Não é a saída, pois a morte encerra a oportunidade de nos arrependermos e sermos salvos:
“E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo.” (Hb. 9:27)
A solução para o seu problema não é morrer em pecado; é morrer para o pecado. A única maneira de você fazer isto é pela fé em Jesus Cristo - quando reconhecer seu pecado e sua culpa e confiar Naquele que morreu em seu lugar, que sofreu a dor eterna de nossos pecados. É em Cristo que você morre para o pecado, e entra para a vida eterna. Se você ainda não o fez, eu o incentivo a fazê-lo já. Tal como a promessa da salvação de Deus é certa, assim a Sua promessa de juízo e morte eterna. Vamos aprender com a morte de Saul.