O livro de I Samuel termina tragicamente com o rei Saul literalmente louco. Ele se volta contra seu amigo e servo leal, Davi. Em sua paranoia, Saul procura matá-lo como se Davi fosse um traidor. Saul desobedece a Palavra de Deus e, por isso, ocasiona sua própria queda e destituição. Ele chega ao ponto de consultar uma médium. O capítulo final de I Samuel relata sua morte pelas mãos dos filisteus e por suas próprias mãos. Por mais triste que isso possa parecer, soltamos um suspiro de alívio, pois agora os dias de Davi como fugitivo de Saul se acabaram. Agora, Davi reinará no lugar de Saul.
No entanto, as coisas não acontecem com tanta rapidez, ou com tanta facilidade. Graças às intrigas de homens como Abner e Joabe, Israel temporariamente se torna uma nação dividida - um prenúncio dos tempos vindouros. Finalmente Davi se torna o rei de todo Israel. No início do seu reinado, ele parece fazer tudo certo, tendo a bênção de Deus claramente sobre si.
Não obstante, ele ainda é um homem com “pés de barro”. Seu pecado contra Bate-Seba e seu marido, Urias, estabelece um curso inteiramente novo para os acontecimentos. Dias negros estão por vir; bem mais negros do que ele jamais vira.
Seu filho recém-nascido morre; um de seus filhos violenta sua meia-irmã e outro mata seu meio-irmão. Para completar, seu filho Absalão se rebela contra ele e tenta matá-lo. Por meio de todas essas coisas, Deus conduz Davi ao arrependimento e, por fim, à restauração. De forma alguma Deus faz vista grossa para os pecados de Davi, pois o restante de II Samuel descreve as consequências do seu pecado com Bate-Seba.
Em II Samuel podemos avaliar a magnitude da majestade de Davi, e também compreender suas fraquezas. Se deve haver um rei que ocupará para sempre o seu trono (II Samuel 7:12-14), esse rei tem de ser maior do que ele. Se Davi é o melhor de todos os reis de Israel, então Deus terá de providenciar, Ele mesmo, um Rei ainda melhor. E assim Ele fará. II Samuel é um grande livro, merecedor de um estudo sério da nossa parte. Vejamos como Deus trabalha em nossa vida por meio desse estudo.
Tradução: Mariza Regina de Souza
O texto do primeiro capítulo de II Samuel me faz lembrar da história de um jovem piloto americano muito desastrado. Tudo o que ele fazia parecia sempre dar errado. Durante a II Guerra Mundial, ele servia a bordo de um porta-aviões e todos achavam que ele não conseguiria levantar vôo, pois não se sabia o que poderia acontecer. Certo dia, ele recebeu uma missão e tudo parecia correr bem. Ele localizou e afundou um navio de guerra japonês; depois, derrubou uma porção de Zeros (aviões japoneses de combate). Sem munição e quase sem combustível, ele tentou voltar à base no porta-aviões, mas não conseguia localizá-lo. De repente, as nuvens se abriram e lá estava, bem abaixo dele, o porta-aviões. Por incrível que pareça, seu pouso foi perfeito. Com o avião em segurança, ele pulou para fora e correu até o oficial de comando, ansioso para contar os detalhes de sua missão bem-sucedida. Ele disse que tinha afundado um navio de guerra japonês e abatido muitos inimigos — ao que o comandante respondeu: “Ha So!”. Sua missão bem-sucedida e seu pouso impecável terminaram num porta-aviões japonês!
Esse piloto de combate me faz lembrar do mensageiro amalequita de II Samuel 1, que se aproxima de Davi esperando receber um elogio, ou até mesmo uma recompensa em dinheiro, como expressão de gratidão. Ele chega trazendo a trágica notícia da derrota de Israel, esperando que Davi considere as mortes de Saul e Jônatas como um tremendo golpe de sorte, uma bênção inesperada, que o livra de seu inimigo (Saul) e de seu concorrente (Jônatas), e abre caminho para ele se tornar o rei de Israel. Ninguém jamais teria esperado a reação de Davi. Extremamente comovido com a notícia da morte de Saul e de seu filho, Jônatas, Davi não dá um suspiro de alívio, agradecido porque Saul, seu inimigo, está morto, e satisfeito por poder assumir o trono em seu lugar; ele lamenta profundamente e, quando fica sabendo que foi o jovem amalequita que matou Saul, ele manda executá-lo.
O autor do texto habilmente usa a comparação para despertar a nossa curiosidade e comunicar uma mensagem muito importante. A primeira metade do capítulo descreve como o amalequita trata Saul. A segunda, como Davi trata Saul. Com base nessa comparação, o autor explica porque Davi trata o amalequita da maneira como o faz. A primeira parte do texto chama a atenção para este jovem, o qual chega com as roupas rasgadas e sinais de pesar, trazendo a notícia da morte de Saul, junto com os seus símbolos de poder (a coroa e o bracelete). Ele tem informações sobre a derrota de Israel, sobre a morte de muitos israelitas e, em especial, sobre a morte de Saul e seu filho, Jônatas. Sua narrativa, primeiramente, causa profundo pesar em Davi e seus homens e, depois, a sua própria morte, por ter tirado a vida de Saul. A última parte do capítulo contém um salmo de lamentação de Davi, o qual ele escreve para ser ensinado aos filhos de Judá. A ênfase principal do capítulo parece recair sobre o contraste entre Davi e o amalequita, e também sobre a importância da lição transmitida ao leitor. Daremos especial atenção a esse contraste, enquanto procuramos entender o significado e a mensagem do texto.
Lendo esse trecho, mal sentimos a mudança de um livro para outro, de I para II Samuel. A transição parece literalmente ininterrupta, o que, na realidade, é como está no texto original. Nele, não temos dois livros, I e II Samuel; apenas um, englobando os dois. Este único livro do texto hebraico, mais tarde, foi dividido pelos tradutores da Septuaginta. Desde então, todas as Bíblias subsequentes seguiram o mesmo procedimento, chamando aos dois livros de I e II Samuel. Por isso é tão natural passarmos de um livro para outro sem perceber.
“Depois da morte de Saul, voltando Davi da derrota dos amalequitas e estando já dois dias em Ziclague, sucedeu, ao terceiro dia, aparecer do arraial de Saul um homem com as vestes rotas e terra sobre a cabeça; em chegando ele a Davi, inclinou-se, lançando-se em terra. Perguntou-lhe Davi: Donde vens? Ele respondeu: Fugi do arraial de Israel. Disse-lhe Davi: Como foi lá isso? Conta-mo. Ele lhe respondeu: O povo fugiu da batalha, e muitos caíram e morreram, bem como Saul e Jônatas, seu filho. Disse Davi ao moço que lhe dava as novas: Como sabes tu que Saul e Jônatas, seu filho, são mortos? Então, disse o moço portador das notícias: Cheguei, por acaso, à montanha de Gilboa, e eis que Saul estava apoiado sobre a sua lança, e os carros e a cavalaria apertavam com ele. Olhando ele para trás, viu-me e chamou-me. Eu disse: Eis-me aqui. Ele me perguntou: Quem és tu? Eu respondi: Sou amalequita. Então, me disse: Arremete sobre mim e mata-me, pois me sinto vencido de cãibra, mas o tino se acha ainda todo em mim. Arremessei-me, pois, sobre ele e o matei, porque bem sabia eu que ele não viveria depois de ter caído. Tomei-lhe a coroa que trazia na cabeça e o bracelete e os trouxe aqui ao meu senhor.”
Davi e seus homens certamente são gratos pela vitória sobre os amalequitas e pela recuperação de suas famílias e bens. No entanto, esta vitória deve ser suplantada pela preocupação com as coisas que estão ocorrendo em Israel. Quando ele deixou Aquis para retornar a Ziclague, os filisteus tinham reunido um enorme contingente de soldados para atacar Israel. Davi sabe muito bem o quanto aquela manobra militar foi impressionante, pois ele e seus homens já tinham desfilado à retaguarda daquele exército. Desde que se separou dos filisteus, Davi deve andar muito preocupado com Saul e seu querido amigo Jônatas, sem falar no resto de seus compatriotas. Durante sua perseguição aos saqueadores amalequitas, e na batalha subsequente, ele teve pouco tempo para pensar no que estava ocorrendo em Israel. Agora, há três dias em Ziclague, ele e seus homens devem estar pensando em como vai a guerra, ou talvez, em como foi.
É o terceiro dia em Ziclague quando irrompe no acampamento de Davi um jovem completamente sem fôlego, pois há dias que está correndo. Ele deve ter percorrido aproximadamente 160 km para chegar até lá. Sua aparência diz quase tudo, pois suas roupas estão rasgadas e há terra em sua cabeça. Isso é sinal de pesar. A notícia não vai ser boa. Quando se aproxima de Davi, o jovem se lança em terra diante dele, prostrando-se como diante de um nobre, como se estivesse na presença de um rei.
Na mesma hora, Davi começa a interrogar o jovem, querendo saber, antes de mais nada, de onde ele vem. É provável que ele já tenha presumido o pior, mas, mesmo assim, faz perguntas para saber se o homem tem, ou não, notícias de Saul. O jovem responde que veio do arraial de Saul. Na verdade, suas palavras são bem mais sombrias, pois ele diz a Davi que escapou do arraial de Saul. Isso não soa nada bem. Davi, então, pergunta como foram as coisas na batalha. O jovem, agora, revela aquilo que Davi já devia ter presumido. Israel sofreu uma derrota - terrível. Muitos soldados foram mortos e o restante fugiu. Entre os mortos na batalha estão Saul e seu filho Jônatas.
Davi se recusa a aceitar a história do homem sem verificá-la. Será que o mensageiro tem certeza absoluta de que Saul e Jônatas foram mortos? O jovem explica o que aconteceu. Não estou bem certo se ele realmente pretendia dizer a Davi tudo o que revelou. Pelos detalhes fornecidos, creio que ele esteve mesmo com Saul, e que o matou nos últimos momentos de vida. Quando combinamos esta história com os fatos narrados no capítulo anterior (I Samuel 31), podemos ter um quadro bastante aproximado do que ocorreu.
Quando encontra Saul no monte Gilboa, o jovem está ali por acaso. Ele não conta exatamente porque estava lá. Se tivesse que dar um palpite, eu diria que não foi para defender Saul dos filisteus, mas para saquear o acampamento antes da chegada deles. É óbvio que ele não está defendendo Saul. Quando eles se cruzam, Saul ainda está vivo. Ele está no chão, ou como diz o texto, “caído” (1:10). Sua espada está encravada em seu corpo, crivado de flechas filistéias. Apesar de tudo, ele ainda não está morto. Parece que ele se apoia em sua lança, o que, provavelmente, alivia a dor e a pressão das flechas e da espada.
Olhando à sua volta, Saul vê o jovem se aproximar e avaliar a situação. Ele o chama, e este responde: “Eis-me aqui”. Saul, então, pergunta-lhe quem é ele. Seria muito estranho se o rapaz fosse filisteu, pois estes estão apertando o ataque e logo estarão sobre Saul (verso 6). O rapaz informa que é amalequita. Saul, então, suplica que ele acabe com seu sofrimento.
Estou em débito com meu amigo e colega de conselho, Hugh Blevins, por sua compreensão deste trecho. Hugh mostra que o autor dá muita importância ao fato do rapaz ser amalequita. Isso parece encorajar Saul. Afinal, ele acabara de pedir a mesma coisa a seu escudeiro e este se recusara a fazê-lo. Um amalequita não terá tais escrúpulos para matar o rei de Israel. Na verdade, quando Saul ordenou aos seus servos que matassem Abimeleque e os outros sacerdotes, eles se recusaram, por isso, ele pediu a Doegue, o edomita, que de bom grado cumpriu suas ordens (ver I Samuel 22:16-19). Portanto, mesmo que um israelita se recuse a matar Saul, o rei tem quase certeza de que um amalequita não se recusará.
Saul pede que o jovem se aproxime, “fique sobre” ele e o mate (“arremete sobre mim”, ARA). A interpretação dada pela versão NASB é mais genérica: “Por favor, fique ao meu lado e mate-me” (verso 9). A versão King James é mais rigorosa em sua interpretação destas palavras: Fique, peço-te, sobre mim e mate-me... O jovem, então, responde: Por isso, fiquei sobre ele e o matei (verso 10, KJV) (“Arremessei-me, pois, sobre ele e o matei”, ARA). O que gostaria de enfatizar com estas palavras é que o jovem deve ter “estado lá e feito aquilo”, para ser tão preciso na descrição dos últimos momentos e da morte de Saul. Saul está no chão, parcialmente escorado por sua lança (não pela espada). Ele suplica que o jovem se aproxime e fique sobre ele porque ele está no chão, e o jovem precisaria fazer isso para matá-lo. O jovem amalequita favorece Saul, matando-o. Nada é dito sobre a arma usada por ele ou como ele a usa para matar Saul. A ironia é que, de qualquer forma, Saul estaria morto em poucos minutos. Esse “assassinato” (recontado como se fosse um ato de misericórdia) priva Saul somente de mais alguns minutos de vida. Ainda assim, é assassinato.
O amalequita confessa ter matado Saul e depois, no verso 10, tenta justificar sua atitude. Ele arremeteu sobre Saul e o matou, mas foi porque sabia que, tendo caído, Saul não se levantaria novamente. De qualquer forma, ele teria morrido bem ali, naquele lugar. Além do mais, ele fez exatamente o que Saul implorou que ele fizesse. Saul queria ficar livre de sua agonia e o jovem prestou-lhe um favor. Será que isso não foi ato de misericórdia? Ele acha que talvez receba uma recompensa por isso, mas acaba recebendo muito mais do que esperava. Ele fez o que Saul queria e o que, supostamente, achou que Davi quisesse. Ele pensou que não seria culpado por fazer o que Saul e Davi desejavam. Ele retirou a coroa e o bracelete do corpo de Saul e correu para levá-los a Davi, seu “senhor” (verso 10). Será que já não é tempo de Davi assumir seu posto como rei?
Antes de voltarmos nossa atenção para a reação de Davi ao relato do amalequita, talvez seja útil resumir os elementos-chave deste incidente:
Então, apanhou Davi as suas próprias vestes e as rasgou, e assim fizeram todos os homens que estavam com ele. Prantearam, choraram e jejuaram até à tarde por Saul, e por Jônatas, seu filho, e pelo povo do SENHOR, e pela casa de Israel, porque tinham caído à espada. Então, perguntou Davi ao moço portador das notícias: Donde és tu? Ele respondeu: Sou filho de um homem estrangeiro, amalequita. Davi lhe disse: Como não temeste estender a mão para matares o ungido do SENHOR? Então, chamou Davi a um dos moços e lhe disse: Vem, lança-te sobre esse homem. Ele o feriu, de sorte que morreu. Disse-lhe Davi: O teu sangue seja sobre a tua cabeça, porque a tua própria boca testificou contra ti, dizendo: Matei o ungido do SENHOR.”
Enquanto leio este capítulo de II Samuel, lembro-me daquela antiga piada sobre as “boas e as más notícias”. Vou dar um exemplo. Acho que o mensageiro está pensando em termos de “boas e más notícias”, quando fala com Davi. Acho que ele esperava abordar Davi desta forma: “Davi, tenho boas e más notícias. As más são que Israel foi derrotado pelos filisteus. Muitos homens foram mortos e muitos mais fugiram da batalha, e até de suas cidades e do país. As boas são que Saul está morto, e que seu herdeiro, Jônatas, também. Isso significa que agora você pode colocar esta coroa na cabeça e governar Israel.”
Para Davi, todas as notícias são ruins. Ele fica triste pela derrota de Israel e pela morte de Saul; mas fica arrasado pela morte de seu melhor amigo, Jônatas. Qualquer pensamento de vantagem pessoal às custas dos outros é descartado.
Como lemos no livro de Eclesiastes, “há tempo de prantear” (Eclesiastes 3:4b). Davi dá o tom da lamentação que se inicia em resposta às palavras do mensageiro. Seus homens prontamente o seguem. Isto nos faz lembrar da época em que eles queriam ver Saul morto. Tudo bem, nem por isso, Davi ou eles puderam fazê-lo. Contudo, alguém o fez, e isto poderia ser visto como razão para algum tipo de contentamento; mas não enquanto Davi estiver por perto! Davi rasga suas vestes, e todos fazem o mesmo. Eles pranteiam, choram e jejuam até o anoitecer. Eles lamentam pela casa de Israel, pelo rei Saul e por Jônatas.
Ora, ainda há outro assunto a ser resolvido, mas que pode esperar enquanto Davi e seus homens expressam seu pesar pela derrota de Israel e pelas mortes de Saul, Jônatas e muitos outros israelitas. O mensageiro confessou ter matado Saul. Isto pode não parecer errado para ele, mas é um ultraje para Davi. Quantas vezes Davi se recusou a matar Saul, mesmo que ele pudesse ter alegado defesa própria? No entanto, este amalequita não teve reservas em dar cabo de Saul.
O mensageiro amalequita não tem a mínima ideia da encrenca em que se meteu. Lembro-me de uma história que minha filha mais velha gostava de contar quando era pequena, sobre a rã boca-aberta. Dona Rã andava por aí perguntando para as outras mães com o que elas alimentavam seus filhotes. Ela ia de animal em animal fazendo perguntas. Até que um dia encontrou uma cobra e lhe disse: — Dona Cobra, com o que a senhora alimenta seus filhotes? (Era desse ponto da história que minha filha Beth mais gostava, pois ela abria bem a boca, numa expressão exagerada). Dona Cobra respondeu: — Alimento meus filhotes com rãs boca-aberta. — Aí, com os lábios franzidos e bem apertados, Beth prosseguia, imitando a Dona Rã: — Ah, é assim?
Dona Rã não percebeu que havia armando uma cilada para si mesma; nem o mensageiro amalequita. Ele diz abertamente que é amalequita, sem se dar conta do que está falando. Ele quase se gaba de ter matado Saul, sem qualquer hesitação ou senso de perigo iminente. Ele também fala com displicência da morte de Jônatas, o melhor amigo de Davi. Esse rapaz coloca a corda no próprio pescoço e só percebe quando já é tarde demais.
O amalequita diz tudo o que Davi precisava saber. Praticamente ele é um homem morto. Ainda assim, Davi lhe pergunta, pela segunda vez, de onde ele vem. Devo admitir estar um tanto confuso com a razão pela qual Davi faz, literalmente, duas vezes a mesma pergunta. Acho que estou começando a entender sua intenção. Com frequência, perguntamos duas vezes a mesma coisa não porque não ouvimos a resposta, mas porque ela nos pega de surpresa e nos confunde. Quando Davi pergunta pela primeira vez, o jovem responde que veio do arraial de Saul (verso 3). Depois, quando o mensageiro fala sobre o que aconteceu no monte Gilboa, ele inclui ter dito a Saul que é amalequita (verso 8). Durante o período de lamentação, talvez Davi tenha dito a si mesmo: “Como é que um amalequita poderia estar no arraial de um rei israelita, justamente quando os amalequitas são inimigos de Israel?” Talvez o mensageiro esteja começando a compreender a pergunta de Davi; por isso, ele tenta esclarecer, respondendo que é filho de um estrangeiro, que é amalequita.
Porém, sua resposta é fraca demais e tardia demais para lhe proporcionar algum bem. Não importa qual seja sua explicação, ele “estendeu a mão para matar o ungido do Senhor”, e se gabou disso. Ele não tem desculpa, é condenado por suas próprias palavras. Davi ordena que seja executado. O Bible Knowledge Commentary traz uma nota bastante perspicaz sobre este trecho:
“É irônico que Saul tenha perdido seu reino por não ter aniquilado totalmente os amalequitas e, agora, alguém, que se diz amalequita, morre por ter afirmado que destruiu Saul.”
A questão é muito simples e clara para Davi e não é como o jovem parece vê-la. O rapaz vê Saul como inimigo de Davi, um obstáculo à sua ascensão ao trono. Ele acha que a notícia de sua morte é boa para Davi. Ele acha que matar Saul é “por fim ao seu sofrimento”, da mesma forma que atirar num cavalo que está com a perna quebrada. Davi vê as coisas de modo muito mais simples: o jovem matou o ungido do Senhor. Não importa que, de qualquer forma, Saul teria morrido; não importa que ele tenha tornado a vida de Davi um inferno. Não importa que Saul estivesse sofrendo. Não importa que ele quisesse morrer ou só tivesse mais alguns instantes de vida. Não importa que os filisteus logo estariam sobre ele. O amalequita matou o ungido do Senhor. Agora, Davi ordena que seja morto.
Pranteou Davi a Saul e a Jônatas, seu filho, com esta lamentação, determinando que fosse ensinado aos filhos de Judá o Hino ao Arco, o qual está escrito no Livro dos Justos. A tua glória, ó Israel, foi morta sobre os teus altos! Como caíram os valentes! Não o noticieis em Gate, nem o publiqueis nas ruas de Asquelom, para que não se alegrem as filhas dos filisteus, nem saltem de contentamento as filhas dos incircuncisos. Montes de Gilboa, não caia sobre vós nem orvalho, nem chuva, nem haja aí campos que produzam ofertas, pois neles foi profanado o escudo dos valentes, o escudo de Saul, que jamais será ungido com óleo. Sem sangue dos feridos, sem gordura dos valentes, nunca se recolheu o arco de Jônatas, nem voltou vazia a espada de Saul. Saul e Jônatas, queridos e amáveis, tanto na vida como na morte não se separaram! Eram mais ligeiros do que as águias, mais fortes do que os leões. Vós, filhas de Israel, chorai por Saul, que vos vestia de rica escarlata, que vos punha sobre os vestidos adornos de ouro. Como caíram os valentes no meio da peleja! Jônatas sobre os montes foi morto! Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; tu eras amabilíssimo para comigo! Excepcional era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres. Como caíram os valentes, e pereceram as armas de guerra!
Vamos ser honestos, é difícil saber o que dizer ou não dizer num funeral, especialmente se você é o pregador que está ministrando o ofício fúnebre. Já ouvi uma porção de mentiras em funerais, muitas ditas por pregadores. Ouvi mentiras a respeito de Deus (por exemplo, “Que não foi culpa de Deus. Que Ele não sabia ou não tinha poder sobre o que aconteceu.”) e mentiras a respeito daquele que morreu. Geralmente, as mentiras a respeito de quem partiu tendem a exagerar suas virtudes e minimizar seus defeitos. Lembro-me de ter ouvido a história de um pregador que, durante o funeral de um patife, foi muito franco a seu respeito. No meio do serviço fúnebre, ele fitou os olhos da viúva e disse: Millie, você sabe que Ralph era um cafajeste. Se você se casar de novo, veja se arranja um cara melhor. — Isso é que é honestidade.
Embora já tenha feito muitos ofícios fúnebres (e alguns deles bem complicados), acho que um dos mais difíceis seria o de Saul. Suponha, por exemplo, que você tivesse que agir de acordo com o ditado “Se não tem nada de bom a dizer sobre alguém, não diga nada.” O que faria, tendo 45 minutos de silêncio em memória de Saul? Em nosso texto, Davi é quem conduz o funeral de Saul, ou, pelo menos, uma cerimônia equivalente. Obviamente, essa cerimônia não é aquilo que eu esperava. Creio poder dizer também que não é o que jovem amalequita esperava. Como não temos tempo suficiente, nem espaço, para expor em detalhes a elegia (ou lamentação) de Davi, vamos nos concentrar apenas em algumas características gerais.
Esta eulogia, ou lamento, é um salmo de Davi, um trabalho especial feito com amor. Meu pai é professor escolar aposentado e, há muitos anos, compõe poemas. Ele os compôs para os seus amigos quando se aposentaram. Ele compõem para todos os filhos no dia de seus aniversários e, quando ainda não tinha muitos netos, para cada um deles também. Sei muito bem o que o pessoal da Hallmark (site de cartões eletrônicos) diria sobre os cartões de meu pai, mas um poema dele significa muito mais do que um simples e-card. É um trabalho feito com amor. Sabemos que ele leva muito tempo pensando na pessoa para quem está compondo o poema. Sabemos que esse é o seu jeito de nos dizer o quanto nos ama. É isso também o que a eulogia de Davi está dizendo. Nela, ele exprime seu amor por Saul e por Jônatas, da maneira mais maravilhosa que existe.
A eulogia de Davi é um salmo de pesar pelas mortes de Saul e Jônatas. Davi chora pela derrota de Israel e pela perda de muitos israelitas, mas este não é o foco principal do salmo. O salmo exprime sua tristeza pelas mortes de Saul e Jônatas. O mensageiro amalequita acha que a notícia dessas mortes será boa para Davi. Ele está errado. O salmo nos diz que Davi tem um profundo sentimento de perda e de tristeza por suas mortes. A notícia lhe causa um sofrimento genuíno.
A eulogia de Davi não diz nada negativo sobre Saul. Quando Davi lamenta a morte de Saul, não há a menor alusão a qualquer mal ou coisa ruim que Saul tenha feito a ele ou a outras pessoas. Como teria sido fácil incluir alguns detalhes de suas ações, ter reivindicado algum tipo de justiça divina; mas Davi não o faz.
O salmo de Davi enaltece tanto Saul quanto Jônatas como heróis. Davi não só se abstém de falar mal de Saul, como também o enaltece, e a Jônatas, como heróis de guerra, dignos de honra e respeito.
O salmo de Davi inicia com o foco Saul e termina com o foco em Jônatas. Mesmo que tenha coisas boas a dizer sobre seu rei, é evidente, neste salmo, que Davi tem profundo sentimento por Jônatas e firme compromisso com ele. O que talvez fosse um assunto particular enquanto Jônatas estava vivo, agora torna-se público. Eis algo que o amalequita desconhecia completamente. Parece que ele pensava que Jônatas era inimigo de Davi, não seu melhor amigo.
O salmo de Davi parece ser expressão e consequência da aliança existente entre ele e Jônatas. Vimos que a aliança feita entre eles (I Samuel 18) foi colocada em prática (capítulo 19:1-7) e, depois, ampliada e reafirmada (capítulos 20 e 23). Em sua eulogia, Davi já está abençoando Jônatas e seus descendentes quando o enaltece como herói, cuja memória deve ser preservada.
O salmo de Davi é escrito para um público infinitamente maior do que apenas seus 600 homens. O salmo é escrito e registrado no “Livro dos Justos”. Vemos que há referência a esse “livro” no livro de Josué:
“Então, Josué falou ao SENHOR, no dia em que o SENHOR entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel; e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeão, e tu, lua, no vale de Aijalom. E o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no Livro dos Justos? O sol, pois, se deteve no meio do céu e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro. Não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele, tendo o SENHOR, assim, atendido à voz de um homem; porque o SENHOR pelejava por Israel.” (Josué 10:12-14)
No texto de Josué, lemos a respeito da vitória dada por Deus a Israel sobre os amorreus, com o auxílio do sol que se deteve no céu. Aquele episódio foi tão impressionante e tão incrível que foi registrado para que as gerações posteriores o lessem e ficassem impressionadas. Davi não deseja apenas enaltecer Saul e Jônatas, ele quer que todos os “filhos de Judá se unam a ele” (II Samuel 1:18), por isso, dá instruções para que a canção lhes seja ensinada. Creio que isto significa que, não somente aquela geração, mas todas as futuras gerações devem aprendê-la, para enaltecer Saul e Jônatas.
Não estou bem certo se podemos entender a importância do que Davi está fazendo. Aqueles que ascendem ao topo do poder em uma nação, em geral, tomam todos os tipos de precaução para impedir que qualquer rival derrube sua administração e assuma o poder em seu lugar. Com frequência, isso significa a execução de toda a família da dinastia que está sendo removida do poder. Pode significar a re-escrita da história, para que a família caia em desgraça e desprezo. Davi faz justamente o oposto. Ele honra Saul e Jônatas e se assegura de que as futuras gerações os considerem como heróis nacionais. Ele exalta Saul e Jônatas entre os “filhos de Judá”. Os “filhos de Judá” não são parentes de Saul; são parentes de Davi, o mesmo grupo que ele espera que o apoie como rei. Davi faz uma coisa realmente extraordinária, escrevendo e preservando esta eulogia.
A reação de Davi à morte de Saul é simplesmente notável, mas será que é sincera? Será que ele não está só tentando dourar a pílula? Será que ele não está tentando varrer todas as maldades de Saul para debaixo do tapete? Será que não é hipocrisia de sua parte? Creio que podemos concluir que ele é absolutamente sincero. Não há nenhuma hipocrisia neste salmo. Acho que tudo o que ele diz é verdade.
Isto leva a um princípio muito importante, que muitas vezes é desrespeitado em nossos dias: para ser honesto e sincero não é preciso dizer tudo o que poderia ser dito, ou tudo o que sabemos ser verdade. Davi é honesto e sincero, e temente a Deus, ainda que não diga tudo o que sabe a respeito de Saul. Um dos princípios da psicologia popular sustenta que devemos “por tudo para fora”, todas as frustrações devem ser descarregadas, todas as injustiças manifestadas e todos os pensamentos externados. A Bíblia simplesmente não ensina nada disso. O livro de Provérbios, em particular, ensina que o homem sábio escolhe cuidadosamente suas palavras e como e quando as dirá. Algumas coisas não devem ser ditas de forma alguma. O Novo Testamento contém um princípio muito importante, que deveria governar aquilo que dizemos, ou não: “Devemos falar apenas aquilo que edifica (constrói ou beneficia) o(s) ouvinte(s)” (ver I Coríntios 14:4-5, 17, 26). O capítulo 14 de I Coríntios nos ensina que a igreja é edificada tanto pelo nosso silêncio, quanto pelas nossas palavras. Não é pecado deixar de dizer aquilo que não venha a ser útil, mesmo que seja verdade. Davi não diz nada que não seja verdade a respeito de Saul. Ele só diz o que é verdade. Ele não mente. Mesmo assim ele não diz tudo. É assim que deve ser.
Devo dizer também que, quando Saul pecou e Davi teve que falar com ele, Davi o confrontou com seu pecado (ver I Samuel 24 e 26). Existe um tempo certo para falar com o pecador sobre o seu pecado. Porém, agora, Saul está morto. Davi não fará bem algum a ele, expondo seus pecados. Falando “mal do morto”, Davi estaria apenas magoando e prejudicando os descendentes de Saul, aos quais prometeu abençoar.
Assim, vemos que Davi é justo e prudente não mencionando os pecados de Saul neste momento. O povo sabia muito bem quem era Saul e quais eram os seus pecados. Davi quer que Saul seja lembrado e honrado pela contribuição positiva que trouxe aos israelitas a quem governou. Porém, isto gera uma questão importante: “Como Davi faz isso? Como ele consegue falar tão bem de Saul, depois de todo sofrimento que este lhe causou?”
Há muitas respostas para esta pergunta. Primeiro, Davi confia no Deus a quem serve. Davi sabe que seu Deus é um Deus poderoso. Seu Deus está no controle de todas as coisas. Por isso, Ele permitiu que Saul perseguisse e atormentasse Davi. Davi também sabe que Deus permitiu seu sofrimento às mãos de Saul para o instruir no caminho da retidão. Saul foi usado por Deus como instrumento no preparo de Davi para o papel de liderança que ele em breve iria assumir. O sofrimento de Davi não foi em vão; assim, ele não precisa se sentir mal por causa de Saul. Da mesma forma que José conseguiu ser agradecido pela providência de Deus em meio ao seu sofrimento (ver Gênesis 50:20), Davi também pode fazer o mesmo.
Segundo, parece que Davi não sente mágoa pelos pecados que Saul cometeu contra ele, pois já o perdoou. Parece ter sido por esse motivo que José tratou com bondade a seus irmãos, a despeito de todo o mal que fizeram contra ele. Creio que Davi já perdoou Saul, e é por isso que não guarda, nem demonstra amargura. É muito triste guardar rancor, pois se a pessoa já está morta, é um pouco tarde para perdoá-la. Davi não precisa desenterrar o passado, pois tem pouca coisa para prestar contas.
Terceiro, de acordo com o que li, tenho que admitir que Davi tem muito mais consideração por Saul do que eu. Preciso confessar que não gosto muito de Saul. Não gosto de pensar bem dele, por isso, minha tendência é sempre pensar o pior e não o melhor a seu respeito. Acho que nosso autor pensa como Davi, tendo melhor consideração por Saul do que eu. Parece que ele deixa isso claro quando resume o governo de Saul no capítulo 14:
“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Samuel 14:47-48)
Estes versos até parecem fora de lugar. Eles são uma espécie de eulogia, ou bênção, enunciada antes da besteira irreparável cometida por Saul no capítulo 15, e antes do registro de sua morte no capítulo 31. Acho que o autor quer indicar que esse é o fim para Saul, muito antes do fim de sua vida. Entretanto, onde quer que a avaliação de seu governo fosse colocada, devo admitir que as palavras ditas a seu respeito são muito mais positivas do que eu esperava. Creio que o autor de I Samuel faz afirmações relativamente boas sobre ele porque é necessário que as tenhamos em mente quando analisarmos somente uma parte de sua vida neste livro. Mostrando as falhas de Saul, o autor pretende ensinar ao leitor algumas lições muito importantes. Acho que seus erros são cometidos da mesma maneira que os de Israel. Indo um pouco mais além, nós, hoje, também erramos desse mesmo jeito. Portanto, o foco de I Samuel está nas falhas de Saul, as quais ocasionaram o fim de seu reinado. Ainda assim, ele fez muitas coisas boas. E é sobre elas que Davi fala em sua eulogia.
Quarto, Davi mostra obediência a um mandamento muito importante, expresso claramente na carta de Paulo aos filipenses:
“Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento.” (Filipenses 4:8)
A verdade nada mais é do que o primeiro teste para aquilo que deve ocupar nosso coração e nossa mente, e sair da nossa boca. Esse é o ponto de partida, mas há muitos outros critérios, como vemos no texto. Davi escreve um salmo para ajudar os israelitas de sua época e das gerações futuras a lembrarem-se de Saul e Jônatas e honrá-los. Se eles se lembrarem de Saul da forma como Davi o retrata na última parte de nosso texto, com certeza eles “ocuparão suas mentes com tudo o que é respeitável, justo, puro, amável e de boa fama”. Davi não quer que nos detenhamos muito tempo nos pecados de Saul. Tampouco quer que os ignoremos. O autor de I Samuel registrou-os para que aprendamos com eles.
Hoje em dia há muita ênfase nas injustiças que os outros, especialmente nossos pais, cometem contra nós. Nós achamos que é preciso desenterrar todos os traumas, destrinchá-los e, então, discuti-los. Creio que Davi agiria de modo diferente de nós nessa questão. Se ainda não perdoamos nossos pais pelas injustiças que cometeram contra nós, precisamos fazê-lo e depois esquecê-las. Se ainda não os confrontamos com os pecados que praticam, talvez seja necessário fazê-lo de forma bíblica. No entanto, não há nenhuma virtude em ficar remoendo as injustiças sofridas. Não devemos ocupar nossa mente com tais coisas.
Quinto, o respeito de Davi por Saul tem como base a posição que ele ocupa. Respeito é um dos assuntos mencionados em Filipenses 4:8: “... tudo que é respeitável...” Contudo, o mesmo princípio é ensinado também em outros contextos.
“Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá.” (Êxodo 20:12; ver Mateus 15:4, etc).
“Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra.” (Romanos 13:7)
“Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei.”
Nestes versículos, Deus nos diz para “honrarmos” aos outros por causa da posição que ocupam. Na maioria dos casos, essa honra é devida àqueles que estão em posição de autoridade sobre nós (pais, reis, etc.). Como cristãos, devemos honrar a todos os homens, não só porque Deus os criou, mas porque devemos colocar seus interesses acima dos nossos (Filipenses 2:1-8). Davi nos dá um exemplo excelente de como devemos honrar aos outros.
Precisamos também entender que honrar o rei de Israel tinha um significado especial. O rei tinha uma posição de honra muito particular. Ele era chamado de “filho” de Deus (ver II Samuel 7:14; Salmo 2:7-9). Nosso Senhor Jesus Cristo foi o “Filho” de Deus nesse sentido, em parte porque era o Rei designado por Deus. O rei era o “ungido de Deus”. Esta expressão é empregada em I Samuel primeiramente com relação a Saul, depois com relação a Davi. Ela também se refere a futuros reis, em especial ao Messias. A palavra hebraica interpretada como “ungido” é o termo “Messias” transliterado para a língua inglesa. Davi honra Saul como o “ungido de Deus”, e desta forma, “O Ungido” que haveria de vir. À medida que a revelação do Antigo Testamento progride, isto se torna cada vez mais claro.
Em sua eulogia, Davi fala de Saul como o formoso de Israel (“glória” na versão ARA). A mesma palavra, traduzida como “formoso” em nosso texto, é empregada por Isaías referindo-se ao futuro Messias, que é o formoso e a glória de Israel:
“Naquele dia, o Renovo do SENHOR será de beleza e de glória; e o fruto da terra, orgulho e adorno para os de Israel que forem salvos.” (Isaías 4:2)
“Naquele dia, o SENHOR dos Exércitos será a coroa de glória e o formoso diadema para os restantes de seu povo;” (Isaías 28:5)
Quando Davi honra Saul como o formoso de Israel, ele o faz na esperança e expectativa de ver o rei perfeito de Israel, o Messias.
Para encerrar, há ainda outra lição em nosso texto que não posso deixar de ressaltar. É uma palavra de alerta para aqueles que confiam em sua própria justiça para a salvação eterna, e esperam que Deus os receba de braços abertos, mesmo que tenham rejeitado Sua condição para salvação na pessoa de Jesus Cristo.
O jovem amalequita tira a vida de Saul pensando que está prestando um favor a Saul, a Davi e a si mesmo. Ele acha que está poupando Saul de seu sofrimento, que o está tirando do caminho de Davi e que pode alcançar a gratidão e o favor de Davi, talvez em forma de recompensa. Em vez de ser recompensado, ele provoca a ira de Davi e é executado. Somos tentados a ficar mais chocados por Davi ter mandado executá-lo do que pelo rapaz ter matado Saul. Davi está certo em tê-lo condenado à morte, em mais de um sentido. Primeiro, ele podia e devia matá-lo, simplesmente porque o rapaz era amalequita (ver I Samuel 15:31). Segundo, Davi tinha obrigação de executá-lo, porque o jovem matou o ungido de Deus. Davi agiu certo quando irou-se com o tratamento dispensado pelo amalequita a Saul, e agiu certo quando condenou-o à morte.
Muitas pessoas sabem que Jesus afirmou ser o Deus encarnado, o Filho de Deus. Sabem que Ele morreu na cruz do Calvário e que ressuscitou da morte. Sabem que Ele afirmou ter morrido por seus pecados e que só Ele é o caminho para a vida eterna. No entanto, ainda assim, rejeitam-nO como seu Salvador. Elas acham que há outros meios de salvação, além do sangue de Jesus derramado na cruz. Pensam que quando estiverem diante de Deus, Ele as aceitará por causa de suas boas obras, ou de sua fé em outros meios de salvação. Esperam que Deus receba-as calorosamente em Seu reino e recompense-as com a vida eterna. Elas estão redondamente enganadas.
Se Davi agiu certo quando irou-se porque um homem matou Saul, o ungido de Deus, como você pensa que Deus agirá contra aqueles que rejeitam a Jesus Cristo, o Seu ungido? Se houvesse mais de um meio de Deus salvar os homens, você acha que Ele teria enviado Jesus Cristo para ter uma morte agonizante na cruz do Calvário, como uma dentre várias opções? Aqueles que confiam em qualquer outro meio de salvação, rejeitam Jesus como O ungido de Deus. E aqueles que O rejeitam como ungido de Deus são tão culpados de mandá-lO para a morte como o foram aqueles que estavam diante de Pilatos, séculos atrás, gritando “Crucifica-o! Crucifica-o!” Que loucura é esperar a aprovação e aceitação de Deus, quando alguém rejeita Seu único meio de salvação. Da mesma forma que Davi tratou rudemente o amalequita que assassinou Saul, Deus também tratará aqueles que rejeitam Seu Filho, Jesus Cristo. O caminho para receber o perdão dos pecados e o dom da eterna salvação é confiar no ungido de Deus, Jesus Cristo. Ele é o rei de Deus, que reinará para todo o sempre. Ele também é o Cordeiro de Deus, que morreu pelos pecados dos homens. Todos aqueles que confiam nEle serão salvos. Todos aqueles que não aguardam a ira eterna de Deus. Se você ainda não reconhece seu pecado e não confia na morte, sepultamento e ressurreição de Jesus Cristo em seu favor, por que não faz isso hoje?
Tradução: Mariza Regina de Souza
Anos atrás, participei de uma conferência para líderes cristãos em Dalas em que Luis Palau, evangelista e professor muito abençoado, foi o orador. A conferência ocorreu não muito depois da Guerra das Malvinas entre Inglaterra e Argentina. Luis havia liderado campanhas evangelísticas naqueles dois países pouco antes da guerra estourar; por isso, provavelmente, deve ter falado do evangelho tanto para soldados argentinos, quanto para soldados ingleses. Aquela guerra intrigava o Sr. Palau. Em certa ocasião, quando teve uma oportunidade de se encontrar com um membro do Parlamento britânico, o Sr. Palau perguntou a ele qual a razão daquele conflito, tendo recebido uma resposta curta e breve: “Dois carecas brigando pelo mesmo pente”. Ao ler os dois primeiros capítulos de II Samuel, o diagnóstico daquele parlamentar parece se ajustar perfeitamente à guerra entre o exército de Davi, parcialmente liderado por Joabe, e o exército de Isbosete, liderado por Abner. Veremos que, muito embora a origem desse conflito possa ter sido banal, suas consequências vão muito além da banalidade. Os acontecimentos de nosso texto não são nem de longe “coisa de um passado remoto e distante”, como poderíamos pensar; na verdade, discutiremos nesta mensagem que eles são muito relevantes para os cristãos e para a igreja de nossos dias.
Você (e eu também) talvez esteja ansioso para ver Davi no trono de Israel, mas ainda é cedo. Isso só acontecerá no capítulo cinco. Até lá, devemos voltar nossa atenção para o texto e suas lições. Estes capítulos têm muito a nos dizer sobre Davi, mas iremos considerar sua dimensão na próxima lição. Por enquanto, é preciso observar que eles se concentram, principalmente, em dois homens: Abner e Joabe. Esses dois militares têm grande impacto sobre a vida de Davi, seu reino e a história de Israel. Suas vidas se cruzam nos capítulos dois e três. Nosso texto mostra em detalhes o final da vida de Abner e o início da liderança de Joabe sob o governo de Davi.
Nesta lição, tentaremos retroceder um pouco na história de ambos para ver os acontecimentos desta passagem a partir de um contexto mais abrangente de suas vidas. Os dois homens têm algo a nos ensinar. A vida pessoal de cada um, seu relacionamento um com o outro e com os reis de Israel também têm muito a nos dizer; assim, vamos começar com um esboço biográfico dos dois, Abner e Joabe.
Quando as jumentas de Quis se extraviam, ele envia seu filho Saul para encontrá-las e levá-las de volta, com o auxílio de um servo (I Sm. 9:3 e ss). Durante sua busca pelas jumentas, Saul e o servo encontram Samuel, o qual unge secretamente Saul, designando-o como o primeiro rei de Israel. Quando retornam para casa, um tio não-identificado de Saul vai ao seu encontro, sondando-o com algumas perguntas:
“Perguntou o tio de Saul, a ele e ao seu moço: Aonde fostes? Respondeu ele: A buscar as jumentas e, vendo que não apareciam, fomos a Samuel. Então, disse o tio de Saul: Conta-me, peço-te, que é o que vos disse Samuel? Respondeu Saul a seu tio: Informou-nos de que as jumentas foram encontradas. Porém, com respeito ao reino, de que Samuel falara, não lho declarou.” (I Samuel 10:14-16)
Há uma boa chance desse “tio” ser Ner, irmão de Quis, pai de Saul. É facil perceber porque talvez ele esteja interessado no encontro de Saul com Samuel. Israel exigiu um rei como o das demais nações e Deus atendeu seu pedido por intermédio de Samuel (I Samuel 8). Samuel é também aquele que irá designar esse rei e isso ainda não aconteceu. Ner não deixaria esse encontro passar despercebido. O êxito de Saul (como rei) provavelmente significará o êxito de toda a “família”. É bastante razoável que Abner, filho de Ner e primo de Saul, seja o futuro comandante das forças armadas de Israel.
Abner não aparece na história até o encontro de Davi com Golias, conforme registrado no capítulo 17 de I Samuel. Se esperamos que Saul enfrente Golias, o que ele não faz, certamente o próximo da fila para encarar o gigante é o comandante de seu exército. No entanto, Abner está sentado a seu lado, aparentemente assistindo a batalha de uma distância segura:
“Quando Saul viu sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o comandante do exército: De quem é filho este jovem, Abner? Respondeu Abner: Tão certo como tu vives, ó rei, não o sei. Disse o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este jovem. Voltando Davi de haver ferido o filisteu, Abner o tomou e o levou à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu.” (I Samuel 17:55-57)
Embora isso possa parecer demasiadamente cruel, entendo que o texto está dizendo que o primo Abner, comandante militar de Israel, está tão apavorado com Golias quanto o resto de seus homens, e Saul:
“Ouvindo Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito.” (I Samuel 17:11)
“Todos os israelitas, vendo aquele homem, fugiam de diante dele, e temiam grandemente.” (I Samuel 17:24)
Covardia nas fileiras sugere covardia também nos altos escalões.
Davi e Abner devem se conhecer razoavelmente bem. Abner é o comandante do exército israelita e Davi um herói de guerra designado como comandante de mil (I Samuel 18:13) que ganha o respeito de seus homens em razão de suas vitórias militares (18:30). Além disso, Abner (como Davi) é convidado regular à mesa de Saul (20:25).
A princípio, certamente Abner não conhece Davi tão bem; mas tudo muda rapidamente depois da vitória de Davi sobre Golias. Ele é promovido a comandante de mil (I Samuel 18:13), o que não deve escapar à observação de Abner. Quando Saul se volta contra Davi, Abner apoia seu primo e rei. E, tendo em vista que Saul emprega seu exército para buscar e matar Davi, seu comandante deve estar envolvido nisso (ver I Samuel 26:3-5, 13-16). Talvez o envolvimento de Abner na vida de Davi seja muito maior do que gostaríamos de saber:
“Acampou-se Saul no outeiro de Haquila, defronte de Jesimom, junto ao caminho; porém Davi ficou no deserto, e, sabendo que Saul vinha para ali à sua procura, enviou espias, e soube que Saul tinha vindo. Davi se levantou, e veio ao lugar onde Saul acampara, e viu o lugar onde se deitaram Saul e Abner, filho de Ner, comandante do seu exército. Saul estava deitado no acampamento, e o povo, ao redor dele. ...Tendo Davi passado ao outro lado, pôs-se no cimo do monte ao longe, de maneira que entre eles havia grande distância. Bradou ao povo e a Abner, filho de Ner, dizendo: Não respondes, Abner? Então, Abner acudiu e disse: Quem és tu, que bradas ao rei? Então, disse Davi a Abner: Porventura, não és homem? E quem há em Israel como tu? Por que, pois, não guardaste o rei, teu senhor? Porque veio um do povo para destruir o rei, teu senhor. Não é bom isso que fizeste; tão certo como vive o SENHOR, deveis morrer, vós que não guardastes a vosso senhor, o ungido do SENHOR; vede, agora, onde está a lança do rei e a bilha da água, que tinha à sua cabeceira. Então, reconheceu Saul a voz de Davi e disse: Não é a tua voz, meu filho Davi? Respondeu Davi: Sim, a minha, ó rei, meu senhor. Disse mais: Por que persegue o meu senhor assim seu servo? Pois que fiz eu? E que maldade se acha nas minhas mãos? Ouve, pois, agora, te rogo, ó rei, meu senhor, as palavras de teu servo: se é o SENHOR que te incita contra mim, aceite ele a oferta de manjares; porém, se são os filhos dos homens, malditos sejam perante o SENHOR; pois eles me expulsaram hoje, para que eu não tenha parte na herança do SENHOR, como que dizendo: Vai, serve a outros deuses. Agora, pois, não se derrame o meu sangue longe desta terra do SENHOR; pois saiu o rei de Israel em busca de uma pulga, como quem persegue uma perdiz nos montes.” (I Samuel 26:3-5; 13-20)
Abner não é só o comandante do exército de Saul, ele é também o chefe de sua segurança. Quando estava em perseguição a Davi, Saul dormiu cercado por suas tropas, com Abner ao seu lado. Se qualquer pessoa tentasse fazer algum mal a Saul, teria de passar primeiro pelos soldados espalhados ao seu redor e depois por seu primo. Sabemos que, nessa ocasião, eles são divinamente anestesiados (26:12). Por isso, depois de pegar a lança e o jarro d’água de Saul, Davi se dirige especificamente a Abner, acusando-o de abandono do dever, sendo assim digno de morte (26:14-16). As palavras de Davi, com certeza, devem tê-lo humilhado publicamente.
A acusação vai muito além do desempenho de Abner em serviço. Afinal, a culpa realmente não é dele. Se Deus fez todo o exército adormecer, como ele poderia ter permanecido acordado? O que, então, Davi tem contra ele em especial? O que Abner, de modo pessoal e particular, fez de errado? A resposta é sugerida no verso 9, onde Davi pergunta a Saul por que ele o persegue. Foi Deus quem o mandou fazer isso ou foi alguém próximo a ele, alguém que lhe tinha acesso e também um ouvido atento? A seguir, Davi amaldiçoa quem estiver enganando o rei, fazendo-o pensar injustamente que ele é uma ameaça ao seu trono. Isso é coerente com suas palavras anteriores no capítulo 24:
“Depois, também Davi se levantou e, saindo da caverna, gritou a Saul, dizendo: Ó rei, meu senhor! Olhando Saul para trás, inclinou-se Davi e fez-lhe reverência, com o rosto em terra. Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal? Os teus próprios olhos viram, hoje, que o SENHOR te pôs em minhas mãos nesta caverna, e alguns disseram que eu te matasse; porém a minha mão te poupou; porque disse: Não estenderei a mão contra o meu senhor, pois é o ungido de Deus.” (I Samuel 24:8-10)
Quando juntamos todos estes elementos, percebemos que Abner é realmente culpado por não ter protegido seu rei, sendo, por isso, digno de morte. Embora de origem divina (por Deus ter feito todos dormir), a falha de Abner tornou Saul vulnerável a Abisai, o qual estava determinado a matá-lo caso não fosse impedido por Davi. Davi prova que é um protetor da vida Saul bem mais eficaz do que Abner. A seguir, ele amaldiçoa quem estiver jogando Saul contra ele. Quem parece ser o maior culpado? É ou não é Abner?
Davi diz que alguém está envenenando a cabeça de Saul contra ele, retratando-o como um inimigo determinado a prejudicar o rei. Quem tem mais a perder? Se Davi é o melhor guerreiro e líder militar de Israel, quem deveria estar no comando das forças de Saul? Quem tem mais intimidade com o rei e maior acesso a ele do que Abner? Abner é o comandante do exército, mas, muito mais do que isso, ele é também primo de Saul. Da mesma forma que ele tinha muito a ganhar com a designação de Saul como rei, ele tem muito a perder com sua destituição. Abner sabe que Davi é aquele que foi ungido por Samuel para substituir Saul. Quando Saul morre, é Abner quem levanta maior oposição à nomeação de Davi como rei. Não seria nenhuma surpresa saber que ele está alimentando Saul com falsas informações, informações que fazem Davi parecer um adversário que precisa ser caçado e morto. Abner não é amigo de Davi; nem mesmo um bom amigo de seu primo Saul.
É estranho que Abner não seja mencionado desde o capítulo 26 de I Samuel até o capítulo 2 de II Samuel, uma vez que, afinal de contas, ele é o comandante das forças de Israel. Onde está Abner nos capítulos intermediários, quando os israelitas lutam contra os filisteus? Onde está Abner quando Israel sofre grande derrota e muita gente foge para se salvar (31:7)? Onde está Abner, o homem sempre à direita de Saul, quando os filhos do rei são assassinados e Saul e seu escudeiro se suicidam? Dá até para perguntar: Onde está Abner quando as coisas se complicam? (Este parece ser o lema de Abner: “Quando as coisas se complicam, é hora de eu me mandar... para o outro lado”). Quando a poeira assenta, Abner ainda está vivo, bem como Isbosete, um dos filhos de Saul. Nosso texto recomeça aqui, logo após o lamento de Davi pelas mortes de Saul e Jônatas. Daremos primeiro uma olhada na vida de Joabe e depois nas consequências de seu confronto com Abner.
Joabe é mencionado pela primeira vez em I Samuel 26:6. Na verdade, a passagem se refere a seu irmão mais velho, Abisai, o qual vai com Davi ao acampamento de Saul (enquanto Abner está dormindo ao lado dele para protegê-lo). Abisai se oferece para acompanhar Davi no que parece ser uma missão suicida: dois homens tentando chegar ao rei passando por 3.000 soldados de suas tropas especiais (26:2). A intenção de Abisai é matar Saul de um só golpe (26:8). Tudo indica que ele o fará se não for impedido por Davi e, provavelmente, ainda matará Abner de lambuja! A questão, porém, é que aqui Abisai, o irmão mais velho (ao que parece - ver I Crônicas 2:16), é referido como “o irmão de Joabe” (I Samuel 26:6). Isso parece sugerir que Joabe seja o mais conhecido dos dois.
Joabe não entra em cena até aparecer novamente em nosso texto (II Samuel 2:13 e ss), o que não quer dizer que este seja seu primeiro encontro com Davi. Eles são parentes. A mãe de Joabe, Zeruia, é irmã de Davi, e Abigail é outra irmã, a qual, por sua vez, é mãe de Amasa (I Crônicas 2:12-17). Amasa aparece na história um pouco depois (II Samuel 19-20). Sabemos que Asael é sepultado no túmulo de seu pai, em Belém (II Samuel 2:32). Abisai, Joabe e Asael estão com Davi desde que se juntaram a ele na caverna de Adulão:
“Davi retirou-se dali e se refugiou na caverna de Adulão; quando ouviram isso seus irmãos e toda a casa de seu pai, desceram ali para ter com ele. Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens.” (I Samuel 22:1-2)
Creio que, quando os sentimentos de Saul com relação a Davi (e a qualquer um que o apoie - ver 22:6-19) se tornam conhecidos, Abisai, Joabe e Asael fogem de Belém, junto com os outros membros da família de Davi, sabendo (ou, pelo menos, temendo) que Saul pode despejar sua raiva sobre eles. A estes familiares juntam-se muitas outras pessoas que também haviam caído no desfavor de Saul. Boa parte desse grupo vai formar o bando de guerreiros de Davi, onde Abisai e Joabe se sobressaem como soldados e líderes militares devido à sua coragem e habilidade.
Inicialmente Davi é o comandante de seu pequeno bando. Isso ocorre durante os anos em que ele foge de Saul até a época em que deixa Ziclague e volta para Hebrom (I Samuel 30:8, 10, 17-25). Antes de Davi se tornar rei, Joabe é um de seus comandantes. Só depois que Davi começa a governar sobre Israel e Judá é que Joabe se torna o comandante do exército de Israel. Ele ganha esse posto por aceitar o desafio de subir contra Jebus (Jerusalém) e atacá-la (I Crônicas 11:6).
Deixaremos por alguns instantes os fatos ocorridos em II Samuel 2 e 3 para dar uma olhada nos acontecimentos posteriores da vida de Joabe. De maneira geral, podemos dizer que ele é um líder militar forte e corajoso. Isso pode ser visto na batalha travada contra os amonitas, sírios e outros povos em II Samuel 10 (observe especialmente os versos 9-14). Além de grande guerreiro e líder militar, ele é também um homem de qualidades notáveis. Quando a cidade real amonita de Rabá está praticamente derrotada, em vez de tomar para si o crédito pela vitória, ele inisiste para que Davi vá até lá e receba a glória ele mesmo (II Samuel 12:26-31). Quando Davi imprudentemente ordena que ele faça o censo de Israel, Joabe protesta veementemente, mas sem sucesso (II Samuel 24:2-4).
Joabe demonstra também grande discernimento e força de caráter em suas relações com Davi e Absalão. Ele é quem serve de mediador entre os dois. Ele percebe que Davi quer se reencontrar com o filho exilado, Absalão (13:39), e arranja uma mulher sábia de Tekoa para encernar uma história para Davi (14:2 e ss). Quando Davi julga a causa da mulher, ela o aconselha a lidar com Absalão da mesma forma. Ele entende o recado e também percebe que Joabe deve estar por trás da trama (14:19); contudo, o plano de Joabe não parece ser interesseiro. O que ele pretende é reconciliar Davi com o filho. Ele tenta fazer com que Davi lide com Absalão da mesma forma com que faria com qualquer outra pessoa. Joabe parece genuinamente gratificado e satisfeito com a reação de Davi (14:22). Depois que Absalão se rebela contra o próprio pai e tenta usurpar seu trono, Joabe o trata com muito mais severidade, enquanto Davi parece ter um coração mais mole e complacente. Davi ordena que seus soldados tratem Absalão sem muito rigor, o que é uma grande tolice. Quando surge uma oportunidade, Joabe pessoalmente dá cabo de Absalão, auxiliado por alguns de seus homens (II Samuel 18:14-15). Quando Davi envergonha o povo com sua conduta pela morte de Absalão, Joabe o repreende severamente (19:5 e ss) e Davi acata sua admoestação (19:8).
Apesar de todos esses pontos favoráveis, Joabe é também um homem violento, cujas ações, muitas vezes, são impensadas e totalmente condenáveis. Quando Davi comete adultério com Bate-Seba e tenta se livrar do marido dela, Urias - o Hitita, ele encontra em Joabe um cúmplice pronto a executar suas ordens (ver II Samuel 11:6). Joabe parece não levantar nenhuma objeção ao pedido de Davi; ele simplesmente o obedece. Quando Absalão temporariamente se apossa do trono de Davi, ele substitui Joabe por Amasa. Mais tarde, Absalão é derrotado e Davi recupera o trono, designando Amasa como comandante do exército em lugar de Joabe (II Samuel 19:13). Quando Seba, outro benjamita (como Saul, Jônatas e Isbosete) se rebela contra Davi, Davi ordena que Amasa faça o censo das tropas de Judá. Quando Amasa não aparece no tempo determinado, Davi manda Abisai (irmão mais velho de Joabe) sair e capturar Seba (II Samuel 20:4-7). Abisai sai junto com Joabe e seus homens. Ao encontrar Amasa, Joabe o mata quase da mesma maneira como matou Abner (II Samuel 20:8-10). Joabe e Abisai, então, saem em perseguição de Seba (20:10). Depois que a cabeça de Seba é jogada por cima do muro para ele, Joabe desiste da perseguição e volta a ser o comandate de todo o exército (20:23).
Quando Davi envelhece e não consegue mais governar eficazmente, ele demora em designar e empossar Salomão como seu sucessor. Adonias procura tirar vantagem da situação, dando início a um plano para usurpar o trono de Salomão e proclamar-se rei (I Reis 1:5 e ss). Adonias é um rapaz muito bonito, nascido depois da morte de Absalão (1:6). Aparentemente, ele nunca recebeu um “não” de Davi (1:6). Joabe e Abiatar, o sacerdote, juntam-se a ele em sua conspiração. Davi, por fim, é persuadido por Bate-Seba e Natã, o profeta, a ungir publicamente Salomão como seu sucessor. Ao assumir o trono de seu pai, Salomão permite que Adonias continue vivo (durante algum tempo); no entanto, Adonias acaba finalmente sendo executado quanto tenta uma vez mais depor Salomão e assumir o governo de Israel (pedindo para si Abisague, concubina de Davi). Joabe, igualmente, é executado, não só por ter tomado parte na conspiração contra Salomão, mas também por ter assassinado Abner e Amasa (ver I Reis 2:5-6, 28-35).
Esta mensagem não é, de forma alguma, uma ampla exposição destes dois capítulos. Tenho mais um sermão no qual tento juntar todas as partes desta passagem. Aqui, meu objetivo é mostrar algumas ocasiões em que Abner e Joabe se confrontam. Tentarei me concentrar nos acontecimentos que levaram à guerra entre os homens de Judá e os de Israel e nas consequências desse conflito.
Davi busca orientação divina e é dirigido por Deus à cidade de Hebrom. Logo depois, chegam ali suas esposas e o restante de seus seguidores com suas famílias; os homens de Judá ungem Davi como rei - rei de Judá (2:1-4a). A bondade de Davi para com os homens de Jabes-Gileade (2:4b-7) dá ao povo de Israel excelente oportunidade para também fazê-lo seu rei. Pelas palavras de Abner em 3:17-19, parece que os homens de Israel não apenas sabem que Davi foi designado como substituto de Saul, mas também o querem como rei. O problema está em Abner. Ele se opõe ao reinado de Davi em lugar de Saul, seu primo, e orquestra as coisas para que Isbosete, o filho sobrevivente de Saul, reine em Israel. Isso adia o reinado de Davi sobre todo Israel por vários anos (2:8-11).
Hoje em dia, as gangues são um dos principais problemas das grandes cidades. Elas oferecem senso de identidade e inclusão, um certo tipo de camaradagem e uma sensação distorcida, embora falsa, de segurança. Os atentados são cada vez mais frequentes e, quando ocorrem, uma das primeiras coisas em que pensamos é que deve ser coisa de gangue. Quando um membro de determinada gangue é morto por um membro de outra, com certeza mais sangue será derramado em retaliação. Uma gangue matará um membro de outra só para elevar seu “status” (“a gente é tão durão que pode matar quem quiser, na hora que quiser!”). As gangues não fazem nenhum sentido para nós, mas fazem para quem pensa como membro delas; tudo parece muito lógico, prá não dizer correto.
Nós achamos que as gangues são um fenômeno da nossa época. Ao lermos sobre essa “competição” entre os 12 servos de Isbosete e os 12 servos de Davi, achamos também que seja algum tipo de disputa tribal antiga, sem nenhuma relação com os tempos atuais. Gostaria de dizer que há bem poucas diferenças entre as guerras de gangues de nossos dias e a “competição” descrita em II Samuel 2:12-17. Rivalidade entre gangues e rivalidade entre tribos é quase a mesma coisa.
Pense por alguns instantes nessa competição em termos de século vinte. As gangues são os Judes e os Benjies. Os líderes são Abner (benjamitas/israelitas) e Joabe (judeus). Corre a notícia de que haverá uma briga entre as gangues rivais. Lugar e hora são marcados. Os Benjies tomam posição e os Judes também, uma gangue de frente para a outra. Abner e Joabe começam a exibir seus músculos e a desmoralizar seu adversário. Finalmente, ambos concordam que deveria haver uma competição para mostrar qual gangue é a melhor. Cada lado seleciona doze lutadores. O vencedor tem a melhor gangue. O problema é que cada lutador está determinado a matar seu oponente e, quando a luta começa, eles se agarram pelos cabelos, enfiando a lâmina da espada um no peito do outro. Todos os 24 morrem, o que leva todo mundo a entrar na briga no mesmo instante, resultando em muitas outras mortes.
O combate é inútil e desnecessário, nada mais fazendo do que intensificar o já existente senso de rivalidade e competição entre a tribo de Judá e as demais tribos de Israel, especialmente a de Benjamim (a tribo de Abner, Saul e Isbosete). Enquanto Joabe rapidamente aceita o desafio, Abner parece orquestrar o malfadado evento (será que é esse mesmo o seu propósito?). Caso um dos lados tivesse vencido, o outro só teria ficado mais ansioso por lutar novamente para tentar lavar sua honra. O resultado dessa competição é a vitória momentânea dos servos de Davi e a derrota inicial dos servos de Isbosete. Estes, no entanto, conseguem se reagrupar e continuar lutando (ver 2:25; 3:1, 6).
A coisa fica preta e Joabe sofre as maiores consequências pessoais. No confronto inicial, seus homens prevalecem sobre os servos de Abner e Isbosete. Abner bate em retirada junto com seus soldados e Asael inicia intensa perseguição contra ele. Parece que Asael é o caçula dos três irmãos e está determinado a alcançar Abner. Ele está bem atrás dele, o que confirma que Asael realmente tem asas nos pés. Será esta a oportunidade para ele provar a si mesmo que é um homem, um guerreiro de valor, como seus irmãos mais velhos? Pode ser que sim. Abner sabe que é Asael ou ele. Ele insiste para que Asael desista da perseguição e vá atrás de algum outro israelita, se quiser. Parece que Abner também sabe que o único jeito de parar Asael é matando-o, o que ele é mais do que capaz de fazer. No entanto, ele não está muito disposto a isso, pois sabe que depois terá de enfrentar Joabe, o irmão mais velho de Asael (sem falar em Abisai). Quando Asael se recusa a desistir da perseguição, Abner o atravessa com sua lança, não com a ponta, mas com o cabo. Isso deve demandar grande força e habilidade, o que Abner parece ter de sobra e saber muito bem disso.
Joabe e seu irmão mais velho, Abisai, não vão deixar a morte de seu irmão passar em branco, sem aquilo que consideram uma resposta apropriada: matar Abner, o qual matou Asael. Se eles matarem Abner em tempo de guerra, isso não será visto como assassinato, mas como instância de guerra (ver 3:28-34; I Reis 3:30-33). O problema parece ser que, embora a primeira vitória tenha sido dos homens de Judá, servos de Davi, Abner e seus homens conseguem tomar posição no cume de um outeiro, de onde podem se defender e observar o território inimigo (II Samuel 2:25). Quando Abner apela para Joabe ordenar um cessar-fogo, este concorda, afirmando que isso é realmente inevitável (2:26-28).
Ainda há estado de guerra entre os homens de Judá e os de Israel (3:1). Se Joabe ou Abisai conseguirem por as mãos em Abner, eles poderão matá-lo de forma legítima. O que Joabe não percebe é que sua oportunidade para tal está prestes a passar. Abner está tirando proveito do estado de guerra (3:6). Dá para perceber o que ele está fazendo. Ao longo da história de Israel, muitas guerras foram iniciadas ou prolongadas por causa daqueles que se beneficiaram delas. No capítulo três acontecem duas coisas que fazem Abner mudar não só de ideia, mas também de lado.
Primeiro, embora a posição de Abner esteja se fortalecendo em Israel, a casa de Saul está perdendo terreno para a casa de Davi. Abner está com a maior fatia do bolo, mas o bolo mesmo está diminuindo. Segundo, ele está mais ousado, tomando para si Rispa, uma das concubinas de Saul. Esse não é um ato meramente passional ou afetivo, nem mesmo uma tentativa de casamento; é um ato simbólico, que declara publicamente seu direito de governar em lugar de Saul (ver II Samuel 16:20-23; I Reis 2:19-25). Ele pessoalmente instalou Isbosete como rei, mas agora parece ter intenção de deixar de lado o fingimento e tornar-se o rei. Isbosete fica aborrecido com a atitude de Abner e lhe pede explicações. Abner fica furioso. Como é que Isbosete, um rei-fantoche, ousa questioná-lo? Abner relembra-o de que o fez rei e o protegeu de Davi. Como, então, Isbosete ousa contestar qualquer atitude sua? Isbosete fica em silêncio, pois sabe o suficiente de Abner para temê-lo. Para todos os fins, quem agora está no comando de Israel é Abner.
O que antes era uma verdade não afirmada, agora é uma realidade cristalina: Abner está no comando, não Isbosete. A renúncia de Isbosete é justamente o que Abner está esperando. Agora ele pode negociar um acordo com Davi, algo que permita que ele tenha uma fatia melhor de um bolo cada vez maior. Ele está prestes a mudar de lado. Ele sabe que é da vontade de Deus que Davi reine sobre Israel. Sabe que isso é inevitável. No entanto, ele é quem será o articulador, e isso está para acontecer. Por isso, ele vai até Davi e se oferece para fazê-lo rei sobre sobre todo Israel. Davi aceita sua oferta com uma condição (3:13): Abner terá de ir aos líderes de ambos os lados para negociar um acordo. Parece que, finalmente, Davi irá governar sobre Israel inteiro.
Preciso parar e sorrir diante da oferta de Abner, pois ela me faz lembrar de algo que me aconteceu alguns meses atrás. Eu tentava consertar o escapamento do carro da minha filha e resolvi que o melhor a fazer seria soldar o silencioso no cano do escapamento. O problema é que eu não tinha o tipo certo de liga para a solda. Eu conhecia um soldador das imediações que provavelmente saberia do que eu precisava e poderia me vender um pedaço de liga. No entanto, naquele dia, sua oficina estava fechada. A caminho de casa, passei por uma loja de escapamentos que estava aberta. Além de colocarem escapamentos, eles também faziam reparos em transmissões. Entrei na recepção, onde vários clientes aguardavam para serem atendidos. Não vi nenhum funcionário. Fui ao saguão de vendas e um rapaz me disse que eu estava na seção de “reparo de transmissões” e teria de ir à seção de “reparo de escapamentos”, no outro lado do prédio. Fui até lá, mas não encontrei ninguém que pudesse me ajudar. Finalmente, veio um homem dos fundos da loja, o qual vestia uma roupa que me levou a crer que trabalhasse lá. Fui até ele e lhe disse que estava fazendo um pequeno reparo e precisava de um pedaço de liga para solda para usar no cano do escapamento. Abaixando-se, ele pegou uma pedacinho de liga que estava no chão. “É disso que o senhor precisa?”, disse ele. “Sim”, respondi, “quanto lhe devo?” “Não sei”, respondeu ele, “por que não o leva? De qualquer forma, não trabalho mesmo aqui.”
Enfim, acabei indo ao escritório do gerente, onde paguei a quantia de US$ 1,00 e fui embora, com a consciência em paz. Antes de mais nada, o que gostaria de enfatizar com essa história é que o homem me ofereceu uma coisa que realmente não era dele. Em nosso texto, Abner “dá” o reino de Israel a Isbosete, um dos filhos sobreviventes de Saul. Ele dá o que não é dele, pois é Davi quem deve ser o rei, não Isbosete. Em seguida, para tornar as coisas ainda piores, quando há uma desavença entre ele e Isbosete, Abner “oferece” o reino a Davi. Novamente ele oferece aquilo que não é dele. Abner me lembra um pouco Satanás, que tenta “dar” ao Senhor o Seu próprio reino (ver Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-12).
Imagine a surpresa e a angústia de Joabe ao voltar de uma investida e ficar sabendo que Davi acabou de receber Abner e sua delegação, e que os deixou ir em paz (3:22-23). Enquanto Joabe está fora fazendo a guerra, Davi está em casa fazendo a paz. Entendo que a expressão “em paz”, duplamente usada, é empregada para indicar que a guerra já acabou.
Estas não são boas notícias para Joabe ou para seu irmão Abisai. A guerra não estará terminada para eles enquanto Abner não estiver morto. Joabe repreende duramente Davi por ter deixado Abner ir embora, insistindo que as intenções dele não podiam ser nobres (3:24-25). Aparentemente, as palavras de Joabe não encontram em Davi um bom ouvinte, pois este deseja que sua decisão prevaleça. Joabe perde as esperanças de fazer Davi mudar de ideia. Assim, em vez de acatar sua decisão, Abner secretamente ordena a alguns mensageiros de confiança que, sob pretexto, tragam Abner de volta a Hebrom. Em seguida, quando consegue ficar a sós com ele, Joabe o mata (3:27). Uma vez que, oficialmente, é tempo de paz, não de guerra, a morte de Abner se torna assassinato. Davi se apressa a dizer que não tomou parte na conspiração e desaprova o que aconteceu (3:28 e ss).
1) Podemos aprender algumas coisas sobre homens. Sempre fui uma pessoa do tipo “chapéu branco, chapéu preto”. Isso começou na minha infância, quando costumava assistir aos filmes de cowboy (faroeste). Era muito fácil distinguir os mocinhos dos bandidos: os mocinhos sempre usavam chapéu branco e os bandidos, chapéu preto (pelo menos é assim que eu me lembro). Normalmente vejo as pessoas dessa forma: com chapéu branco ou preto. Só não acho que isso aconteça muito na Bíblia. Davi usa “chapéu branco” a maior parte do tempo, mas há também uma porção de vezes em que usa “chapéu preto”. O mesmo pode ser dito de quase todos os nossos heróis bíblicos.
Quando vejo um personagem como Joabe percebo que o meu padrão “chapéu branco, chapéu preto” vai por água abaixo. Joabe é um homem extremamente violento. Ele mata dois homens a sangue frio e temos boas razões para crer que ele tenha matado muitos outros na guerra. Sabemos, por exemplo, que seu irmão Abisai matou 300 homens numa única batalha, sem nenhuma ajuda (II Samuel 23:18), e que estava determinado a matar Saul (I Samuel 26:6-12). No entanto, apesar dessas mortes, a Bíblia também fala que Joabe tem atitudes e qualidades louváveis. O que importa é que homens como Joabe não são do tipo “chapéu branco” ou “chapéu preto”; ele é um pouco de cada coisa.
Quando paro para pensar, vejo que isso também se aplica à maioria de nós. O fato puro e simples é que só há uma pessoa do tipo “chapéu branco” que viveu sem pecado - nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é único que não teve pecado e damos graças a Deus por isso, pois é isso o que torna a Sua morte na cruz eficaz para nós. Sua morte não foi pelos Seus pecados, mas pelos nossos. Ele suportou o castigo pelos nossos pecados na cruz do Calvário. Ele nos dá a Sua justiça em lugar da nossa injustiça. E isso se torna possível pelo simples reconhecimento de que somos pecadores e precisamos de salvação, confiando na obra da cruz feita por Ele em nosso favor.
Se de fato apenas um homem do tipo “chapéu branco” já viveu, então temos de reconhecer que Deus normalmente realiza Seus propósitos por meio de pessoas que, de forma alguma, são perfeitas. Deus não Se limita a usar aqueles que podem ser usados. Ele pode nos usar para alcançar Seus fins mesmo quando somos rebeldes e estamos em pecado, como fez com os irmãos de José (Gênesis 50:20) ou com o próprio Faraó (Romanos 9:17-18), ou como Ele fará com cada incrédulo (Romanos 9:19-24). Que pensamento encorajador. Nada que façamos poderá prejudicar os planos e propósitos soberanos de Deus. Ele pode usar nossa rebelião e desobediência para atingir Seus propósitos com a mesma facilidade com que pode usar nossa obediência. Seremos usados por Deus para a Sua glória e até mesmo para o nosso próprio bem, de uma maneira ou de outra. Soberania significa que Deus pode e vai usar pessoas imperfeitas para alcançar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. Graças a Ele por isso.
Entretanto, precisamos tomar cuidado para não dizer que, se não vivermos à altura de determinado padrão, se não tivermos uma vida espiritual plena, Deus não poderá e não nos usará. Ele nos usará sim, de uma maneira ou de outra. Contudo, isso não deve ser desculpa para uma vida negligente e pecaminosa; muito pelo contrário, deve ser motivo de nos entregarmos de todo coração ao Seu serviço, sabendo que, mesmo quando deixamos de ser ou de fazer o que deveríamos, os propósitos e as promessas de Deus serão cumpridos.
Vamos tomar cuidado também para não idolatrar pessoas, como se algumas delas realmente pudessem ter uma vida maravilhosa, impecável. Talvez elas queiram que pensemos que estão um pouco acima do padrão, que são mais piedosas, mais espirituais e, portanto, mais bem sucedidas. Quanto mais eu vivo, e mais líderes cristãos eu conheço, mais percebo que Deus usa vasos quebrados, instrumentos imperfeitos, para realizar Seus propósitos. É preciso muito cuidado para não idolatrar outras pessoas, confiando demasiadamente nelas e dependendo delas. Homens sempre falham. Só Deus nunca falha. Devemos manter nossos olhos fixos Nele, não nos homens. Dessa forma, quando os homens falharem, não ficaremos desiludidos, como se o próprio Deus, de alguma maneira, tivesse falhado. Só Deus é infalível.
2) Em nosso texto aprendemos algumas coisas sobre assassinato. A lei do Antigo Testamento fazia clara distinção entre aquilo que podemos chamar de morte na guerra, homicídio e assassinato. Em nosso texto, Abner não é considerado culpado por matar Asael, nem Asael teria sido assim considerado se tivesse matado Abner. Joabe também não seria culpado se tivesse matado Abner na guerra. No entanto, a morte de Abner em tempo de paz, bem como a morte traiçoeira de Amasa tempos depois, são consideradas claramente como assassinato. O assassinato é muito bem definido e, por isso, inequívoco, como fica claro para Davi e Israel quando Joabe mata Abner.
Se para um homem como Joabe matar Abner é assassinato, mesmo que este tenha matado o irmão dele, com toda a certeza também deve ser errado para uma mãe matar o próprio filho ainda eu seu ventre. Essa criança (com raras exceções) não ameaça a vida da mãe (caso em que o aborto poderia ser justificado), só sua liberdade. Se Deus levou tão a sério o assassinato de Abner (um homem violento e interesseiro), quanto mais levará a morte de uma criança indefesa, que espera que sua mãe a proteja, não que acabe com sua vida?
Anos atrás, num debate para eleição presidencial, perguntaram a George Bush (pai) se ele achava que aborto era crime. Sua resposta foi fraca e inconclusiva. Creio que a pergunta deveria ter sido respondida desta maneira: “Aborto é tirar uma vida humana. Nem sempre tirar a vida de outra pessoa é assassinato. Às vezes é um acidente. Às vezes é em defesa própria. No entanto, quando a vida de outra pessoa é tirada por motivos egoístas, às custas de um feto, então é assassinato.” Quando passarmos a ver o aborto como a retirada de uma vida humana, o debate terá terminado antes mesmo de ter começado. A Bíblia justifica a retirada de uma vida humana em raras e específicas circunstâncias, e a condena em outras, tais como no assassinato. Vamos dar nome aos bois: o feto é uma pessoa, uma vida humana. “Interromper” a gravidez é tirar uma vida humana; e aborto, pelos motivos mais frequentes com que é praticado em nossos dias, é assassinato. Se a indignação de Davi com a morte de Abner é justa, muito maior deve ser a nossa com a matança de crianças inocentes ainda no ventre de suas mães.
3) Os leitores contemporâneos, da mesma forma que os leitores israelitas da época de Samuel, devem aprender com texto como acontecem as divisões. O que Deus queria que os primeiros leitores deste texto aprendessem? Qual foi a mensagem para eles? Não sabemos ao certo quem foi o autor humano do texto, nem a data exata em que foi escrito. É possível que I e II Samuel tenham sido escritos logo após o Reino Unido (de Israel, sob os governos de Saul, Davi e Salomão)ter sido dividido por Reoboão e Jeroboão (ver I Reis 12).
Aqueles primeiros leitores devem ter se perguntado: “Como é que já fomos uma única nação e agora somos duas?” Embora a história da divisão ocorrida sob o reinado de Reoboão deva ter sido um fato bem conhecido, as raízes dessa divisão estão no passado. Na verdade, elas retrocedem à época de Davi e ao próprio texto que estamos estudando em II Samuel. Involuntariamente, Abner abre caminho para um reino dividido quando instala Isbosete como rei de Israel em lugar de Saul. Tanto ele quanto Joabe facilitam a futura divisão do reino quando consentem com a disputa entre os dois lados. E, quando essa disputa se transforma numa guerra prolongada, a dissensão entre eles se torna ainda maior. Poderíamos dizer que nosso texto descreve a origem da “rachadura” no alicerce da nação de Israel, e que essa rachadura aumentará com o tempo até transformar-se num abismo quase instransponível.
A facilidade com que o reino rapidamente se divide demonstra que as linhas divisórias já estavam traçadas, a rachadura no alicerce já estava lá. Não demora muito para que essa rachadura se transforme em abismo. Contudo, o que a causou? Nosso texto nos diz. Foram dois homens liderando exércitos oponentes. Tanto Abner quanto Joabe têm suas próprias agendas e nenhuma delas é digna de elogios. É como se ambos estivessem tentando provar que são homens de verdade. O cenário é tal que cada lado se sente na obrigação de se por à prova, e a idéia de uma disputa parece providenciar a oportunidade ideal; mas não prova nada. Só faz surgir uma tremenda guerra, a qual custará vidas preciosas, culminando em assassinato e demora para Davi assumir o governo de Israel.
Creio que essa disputa, bem como o conflito e a divisão subsequentes, é uma espécie de paradigma de muitas rixas e dissensões que vemos atualmente nos lares, no mundo e na igreja. Antes de refletirmos sobre isso, vamos dar uma olhada na igreja de Corinto. Será que não vemos um paralelo entre nosso texto e as rixas e dissensões daquela igreja? Não são os coríntios seguidores de homens, em vez de Cristo, justamente como os homens de nosso texto são seguidores de Abner e de Joabe? Há rivalidade e discórdia com base no grupo a que cada um pertence; e os líderes das facções são homens que buscam construir seus próprios impérios às custas dos outros. Como resultado, a liderança instituída por Deus é rejeitada por muitos. Não quero me estender nessa analogia, mas gostaria que percebessem que, na verdade, “não há nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9).
Hoje em dia acontece a mesma coisa. Ocorrem separações nos casamentos porque homens e mulheres estão mais preocupados com seu próprio ego do que em satisfazer seus parceiros. Pequenos “desentendimentos” crescem ao ponto de se tornar uma verdadeira guerra. Homens e mulheres vão à igreja determinados a promover seus próprios interesses, construir seus próprios impérios e ganhar (e impressionar) seus próprios seguidores. Isso parece forçar as pessoas a tomar partido e se engajar nas batalhas que resultam disso.
Essas separações e os conflitos quase sempre começam com coisas pequenas, que parecem uma competição amistosa (o que, todos sabemos, é admitido e incentivado em nossos dias, mesmo dentro da igreja). Nem sempre as pessoas têm intenção de causar grandes problemas ou de magoar outras pessoas. É só uma “brincadeirinha inocente”, dizemos a nós mesmos. E assim é que, dois adolescentes, cada qual com seu carrão envenenado, param no farol vermelho e cruzam seus olhares. Os dois aceleram suas máquinas, um tentando impressionar o outro (e talvez alguma garota a seu lado). Quando o farol fica verde, ambos “se mandam”. Nenhum deles tem intenção de causar algum dano. É só uma brincadeira inocente. No entanto, nenhum dos dois quer dirigir dentro dos limites de velocidade, nem dar passagem ao outro e passar por bobo. Por isso, correm cada vez mais até chegarem a outro farol vermelho; mas nenhum deles quer, ou consegue, parar. E então, uma jovem mãe, com três crianças no banco traseiro, atravessa o farol verde, para ela... Ninguém queria que alguém se machucasse; só que, quando o nosso ego fala mais alto e a disputa começa, os problemas não ficam muito longe.
Quantos relacionamentos não são destruídos por causa do ego e da competição? Quantos casamentos arruinados? Quantas igrejas divididas? Talvez achemos que, porque é tudo uma brincadeira, com boa intenção, está tudo bem. A grande maioria dos pecados começa com coisas aparentemente inofensivas, até mesmo inocentes. É assim que o pecado começa: um pouquinho de ego, uma competiçãozinha, uma brincadeirinha... Alguns provérbios fazem referência a isso:
“Apanhai-me as raposas, as raposinhas, que devastam os vinhedos, porque as nossas vinhas estão em flor.” (Cantares de Salomão 2:15)
“assim é o homem que engana a seu próximo e diz: Fiz isso por brincadeira.” (Provérbios 26:19)
Dizem que as “raposinhas” devastam os vinhedos. Esse provérbio é muito comum hoje em dia. Não são as grandes coisas que nos destroem, mas as pequenas, que se tornam grandes. Dar uma mordida numa fruta parecia algo bem insignificante; desobecer uma ordem direta de Deus era outro assunto. Que mal pode haver numa “pequena disputa”? Nós sabemos, não sabemos?
Tenho observado que muitas vezes brincamos com coisas que seriam inadequadas em outro contexto. Sei que há piadas limpas, mas acho que contamos piadas sujas porque, de alguma forma, as palavras ditas soam diferentes - mais aceitáveis. Creio que homens e mulheres brincam um com o outro no trabalho porque esta é uma maneira de falar de coisas proibidas que são aceitáveis. Muitas vezes, brincamos com alguma coisa como uma espécie de teste, para ver qual será a reação das pessoas. Se a reção for negativa, podemos dizer: “Foi brincadeirinha...” Mas, se for positiva, insistimos no assunto com mais determinação. Sejamos cautelosos com as “coisinhas pequenas” que levam a grandes pecados.
Só mais uma palavrinha sobre “coisinhas pequenas”. Com bastante frequência, essas coisinhas também são a causa do romprimento do nosso relacionamento com Deus. Nossa preocupação com os perdidos e nosso zelo pela sua salvação começam a diminuir. Parece uma coisinha de nada, tão pequena que nem mesmo percebemos. Nossa vida de oração vai minguando imperceptivelmente. O tempo que dedicamos à Palavra de Deus, ou o quanto lemos dela, vai diminuindo. É só uma coisinha de nada. De repente, a rachadura está lá. Pode não aparecer durante meses, ou até mesmo anos. Entretanto, quando a crise chega, a rachadura se abre transformando-se em total separação. Tomemos cuidado com as rachaduras que aparecem devido a nossa fraqueza e negligência.
Dirijo-me principalmente aos cristãos, os quais, pela fé em Jesus Cristo, têm um relacionamento pactual com Deus. As rachaduras podem aparecer e elas enfraquecem esse relacionamento. Elas não enfraquecem a realidade da salvação dos pecados ou a segurança dos santos em Cristo, mas podem enfraquecer a comunhão e a intimidade desse relacionamento. Contudo, é possível também que você não seja cristão. Pode ainda não ter reconhecido seu pecado e a necessidade de perdão. Talvez não saiba com certeza que seus pecados são perdoados e que você está destinado a viver por toda a eternidade na presença de Deus. Se é assim, seu problema não é uma pequena rachadura, mas um abismo enorme - um abismo que seus pecados criaram entre você e Deus. Jesus Cristo veio ao mundo como o inculpável filho de Deus - totalmente Deus, totalmente homem - para revelar o Pai aos homens e morrer na cruz do Calvário, suportando o castigo pelos nossos pecados. Ele veio remover a separação existente entre Deus e os homens. Tudo o que você precisa é reconhecer seu pecado, sua necessidade de perdão e então confiar na morte sacrificial de Jesus Cristo na cruz do Calvário em seu favor. É na vida, morte e ressurreição de Jesus que Deus torna possível a você a salvação. E é pela fé em Jesus que você recebe essa salvação. Se você ainda não confia Nele, oro para que o faça agora.
Tradução: Mariza Regina de Souza
O período mais longo e mais difícil de minha vida foi enquanto esperava para poder dirigir... legalmente. O problema era que comecei a dirigir muito cedo, mais ou menos aos 12 anos. Antes que os garotos dessa idade fiquem muito animados, preciso dizer que cresci num lugar onde podia dirigir muito, ainda que não fosse por ruas ou estradas. Mesmo sabendo dirigir, eu não podia sentir aquela emoção de cruzar as ruas de Shelton, uma cidadezinha de aproximadamente 6.000 habitantes. Eu achava a espera por esse grande momento a mais difícil de minha vida. Quando pregadores falavam sobre o arrebatamento e a “volta iminente de nosso Senhor”, eu ficava apavorado - não porque fosse um pecador perdido - mas porque, como crente, eu poderia ser arrebatado antes de poder dirigir legalmente.
Devo confessar que não mudei muito no que se refere a esperar. Estou escrevendo este sermão num computador relativamente rápido (embora não tão rápido quanto eu gostaria - mal posso esperar por um melhor). Tendo em vista que o processador principal é muito rápido, os outros componentes demoram mais para rodar; assim, algumas coisas ficam em “estado de espera”. Esse “estado de espera” (em minha compreensão limitada do funcionamento de um computador) é como “passar a vez” num jogo de cartas quando você não tem nada para descartar. Quando eu comprar mais memória RAM (memória principal do computador), não vou querer uma de 70 bilionésimos de segundo; quero uma de 60. Se não, isso vai me causar um “estado de espera” que redundará numa demora de uma pequena fração de segundo.
Tendo admitido que não gosto de esperar, também posso dizer que ninguém mais gosta. Por que será que temos tantas redes de fast food? Por que comida de microondas é tão popular? É porque não gostamos de esperar. Anos atrás alguém teve a brilhante ideia de tentar melhorar o congestionamento da Via North Central. Instalaram um sistema computacional para monitorar o fluxo de veículos e colocaram registradores nos acessos da autoestrada. No início da rampa de acesso havia um pequeno semáforo que ficava verde quando a via estava livre. Isso não tinha nada a ver com a existência de espaço para entrar, só que o computador pensava que você poderia ficar preso no trânsito. Hoje, os semáforos não estão mais lá. Talvez haja outras razões, como obras na rodovia, mas creio que uma delas é que as pessoas simplesmente não queriam esperar. Se o caminho estivesse livre e o farol vermelho, as pessoas acabavam entrando na autoestrada do mesmo jeito. Prá que esperar? Temos de confessar que não somos um país que sabe esperar.
Ao estudar a vida de Davi, descubro que ele passou grande parte dela esperando. Ele teve que esperar mais ou menos quinze anos desde que foi ungido por Samuel até se tornar o rei de Judá (conforme está em nosso texto). E teve que esperar mais outros sete anos para ser ungido rei sobre todo Israel. Isso significa que ele esperou mais de vinte anos para ser rei. Como Davi lidou com mais de duas décadas de espera é o tema desta mensagem. Estudar a sua vida durante esse período pode nos ensinar muitas coisas sobre “esperar no Senhor”.
As duas primeiras mensagens em nosso texto enfocaram dois importantes líderes: 1) Abner, primo de Saul e comandante dos exércitos de Saul, de Isbosete, e portanto, de Israel; e 2) Joabe, sobrinho de Davi, irmão de Abisai e Asael e comandante do exército de Davi, o exército de Judá. Esta mensagem se concentrará em Davi, em seu longo, e muitas vezes conturbado, caminho para se tornar o rei de todo Israel. As lições anteriores cobriram os capítulos 2 e 3 de II Samuel. Esta mensagem cobre os mesmos capítulos, só que agora com ênfase em Davi. Acrescentei mais um trecho: o capítulo 4 e mais cinco versículos do capítulo 5, porque é neles que Davi realmente se torna o rei de todo Israel.
Deus está de relações cortadas com Saul. Saul O desobedeceu pela última vez. Seu reinado está condenado. Por isso, Samuel é despachado por Deus para Belém para ungir o substituto de Saul. Quando Samuel chega, Davi nem está lá, pois ninguém nunca imaginou que ele pudesse ser candidato a rei. Davi está fazendo o que os jovenzinhos de sua idade faziam: guardando o pequeno rebanho de ovelhas de seu pai (I Samuel 16:11, 17:28). Quando Samuel convoca Davi à sua presença e o unge, Davi deve se perguntar quanto tempo ainda levará para se tornar rei. A resposta é que levará muito tempo mais do que ele imagina, e será muito mais difícil também.
Estamos ainda em I Samuel 16, quando lemos que Saul escolhe Davi como seu músico particular e escudeiro (16:14-23). Davi está no palácio do rei. Com certeza, agora não deve demorar muito para ele governar Israel. Ele ainda é muito novo para ir para a frente de batalha e lutar contra os filisteus (pelo menos é o que parece), por isso, ele continua cuidando das ovelhas de seu pai e também confortando o rei Saul com sua música. Quando os filisteus atacam Israel, Golias, o campeão filisteu, desafia qualquer um a lutar com ele. Ele promete que o vencedor deste combate corpo a corpo levará tudo. E é assim que Davi chega para enfrentar Golias e o mata. Isso faz de Davi herói nacional num piscar de olhos. O povo o ama, e o rei também (16:21, 19:5). Se é a música de Davi que acalma o espírito atribulado de Saul, é outra música, sobre Davi, que tira Saul do sério. Depois da vitória de Davi sobre Golias, as mulheres entoam esta canção:
“Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares.” (I Samuel 18:7)
A princípio, Saul guarda seu furor ciumento só para si. Ele procura causar a morte de Davi de modo que pareça um acidente. Ele atira a lança em Davi, mas as pessoas provavelmente atribuem isso a uma “insanidade temporária”. Depois ele procura se livrar de Davi fazendo com que ele seja morto em batalha. Ele designa Davi como comandante de mil (18:13), achando que o mesmo zelo que levou Davi a enfrentar Golias também o levará a se engajar em manobras militares “além da sua capacidade”, ocasionando assim a sua morte (sem mencionar a de seus homens). Tudo que Saul faz para destruir Davi só serve para aumentar o poder e a popularidade deste. Saul também oferece a ele uma de suas filhas por um pequeno dote de 100 prepúcios de filisteus. Ao invés de ser morto, Davi mata 200 filisteus, ganha uma esposa que o ama (mais do que o pai dela) e mais respeito e admiração de todos, menos de Saul.
Depois, o ciúme de Saul se torna público. Ele ordena a Jônatas e a todos os seus servos que Davi seja morto (19:1). Jônatas apela para Saul e Davi ganha uma pequena trégua (19:2-7); no entanto, quando surge outro conflito com os filisteus e Davi alcança novamente grande êxito em batalha, Saul tenta encravá-lo na parede com sua lança (19:8-10). Depois, ele manda seus homens à casa de Davi para prendê-lo, mas seus esforços são frustrados, principalmente por sua própria filha (19:11-17). Daí em diante, Davi mantém distância de Saul, recorrendo primeiramente a Samuel (19:18-24) e depois a Jônatas (20:1-42).
Fica muito claro para Davi que ele não deve mais tentar ficar perto de Saul, vivendo e trabalhando ao seu lado. Ele deve fugir e viver como fugitivo até que Deus resolva o problema. Por isso, ele foge primeiro para Nobe, onde recebe auxílio de Aimeleque, o sacerdote (21:1-9). Esse gesto de bondade custa a Aimeleque a própria vida e também a dos demais sacerdotes de Nobe e de suas famílias (22:6-19). Em seguida, Davi foge para Gate e depois para a caverna de Adulão, onde sua família, seus amigos e outras pessoas que caíram no desfavor de Saul se juntam a ele (22:1-5). Por diversas vezes Davi se vê em apuros, mas Deus sempre o livra das mãos de Saul. Durante esse tempo, em duas ocasiões, ele se arrisca para tentar uma reconciliação com Saul. Apesar de temporariamente arrependido, Saul continua a persegui-lo como inimigo. Embora Saul não mantenha as promessas feitas a Davi, Davi assume um compromisso que irá cumprir:
“Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. Disse a Davi: Mais justo és do que eu; pois tu me recompensaste com bem, e eu te paguei com mal. Mostraste, hoje, que me fizeste bem; pois o SENHOR me havia posto em tuas mãos, e tu me não mataste. Porque quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho? O SENHOR, pois, te pague com bem, pelo que, hoje, me fizeste. Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. Portanto, jura-me pelo SENHOR que não eliminarás a minha descendência, nem desfarás o meu nome da casa de meu pai. Então, jurou Davi a Saul, e este se foi para sua casa; porém Davi e os seus homens subiram ao lugar seguro.”
Poderíamos pensar que enquanto fugia de Saul, Davi não poderia servir a seu povo, mas isso não é verdade. Ele livra o povo de Queila do ataque dos filisteus (23:1-5). Enquanto está em Ziclague, ele faz contínuas investidas contra os inimigos de Israel; e também reparte os despojos com o povo das cidades de Judá (27:1-12; 30:26-31). Não é de admirar que a tribo de Judá seja a primeira a aceitar Davi como rei.
Embora pareça que Davi vai acabar lutando a favor dos filisteus e contra o seu próprio povo, Deus o tira de cena no último minuto (29:1-11). Ele volta a Ziclague e descobre que a cidade foi assaltada por um bando de saqueadores, suas esposas e suas famílias foram sequestradas e seus bens foram roubados. Isso o leva em missão para o sul, onde derrota os amalequitas e recupera tudo o que havia sido perdido. Davi e seus homens estão bem ao sul, enquanto a guerra dos filisteus com Saul e o exército de Israel está ao norte. É nessa batalha que Israel é derrotado e Saul e seus três filhos são mortos (30:1-31:13).
Davi e seus homens estão em Ziclague há dois dias, quando um amalequita chega ofegante do acampamento de Israel, de onde conseguiu escapar dos filisteus. Ele conta a Davi as más notícias da derrota de Israel e da morte de Saul e Jônatas. Quando Davi o pressiona para saber mais detalhes, o jovem afirma ter sido ele mesmo quem “misericordiosamente” deu fim ao sofrimento de Saul. Ele dá a Davi a coroa e o bracelete do rei, esperando sua gratidão e generosidade. Depois que Davi e seus homens lamentam a derrota e a morte de seus compatriotas, Davi manda executar o jovem por ele ter levantado a mão contra o ungido do Senhor (II Samuel 1:1-16). Depois, ele compõe um salmo de lamento que celebra o heroísmo de Saul e Jônatas. A canção deve ser ensinada a todos os filhos de Judá, os quais devem cantá-la em honra de seu rei e de seu filho Jônatas.
Assim é, que Davi é designado substituto de Saul — como futuro rei de Israel — aproximadamente 15 anos antes dos acontecimentos de nosso texto. De humilde pastorzinho, guardador das ovelhas de seu pai, Davi passa a membro estimado da família e da casa de Saul, um homem de grande coragem e feitos militares. Isso não ocasiona a imediata morte de Saul ou a nomeação de Davi como seu substituto. Davi cai no desfavor do rei simplesmente devido à sua confiança em Deus, a sua lealdade ao rei e ao seu sucesso. Ele deixa de ser a “estrela em ascensão” de Israel, com quem todos desejam se associar, e se torna um fugitivo, com quem a maioria dos israelitas tem medo de andar para não incorrer na ira do rei. Davi passa por muitas experiências diferentes, as quais farão dele um rei melhor por tê-las enfrentado. Agora, ele está bem mais preparado para reinar em Israel. No entanto, Deus ainda não está disposto a torná-lo rei. Nesse sentido, Davi é muito parecido com Jacó, que ficou feliz quando conseguiu sua esposa depois de trabalhar para Labão, mas ficou sabendo que ainda tinha outros sete anos de serviço antes de poder ter tudo pelo que tanto esperara. Mesmo depois de ser ungido rei de Judá, Davi ainda tem de esperar mais sete anos inteiros para ser ungido rei de todo Israel. Vamos meditar nos acontecimentos que levaram ao cumprimento da unção profética feita por Samuel muitos anos antes e ver como Davi aprendeu a “esperar no Senhor”.
Após quase 15 anos de espera, a maior parte deles fugindo de Saul, Davi fica sabendo da morte do rei e de seus três filhos. Depois de lamentar suas mortes, Davi consulta o Senhor, procurando saber o que deve fazer em relação à morte de Saul. Deus indica que ele e seus homens devem retornar à cidade de Hebrom, no território de Judá. É lá que os homens daquela tribo ungem Davi como rei de Judá (II Samuel 2:1-4a).
O primeiro ato de Davi como rei de Judá é descrito em 2:4b-7. Talvez ele esteja procurando mais informações sobre a batalha contra os filisteus e sobre a morte de Saul. De uma forma ou de outra, dizem a ele que os homens de Jabes-Gileade agiram corajosamente resgatando o corpo de Saul, dando-lhe um sepultamento adequado. Davi reage como um rei deve reagir. Ele executa o amalequita que, por sua própria admissão, levantou a mão contra o ungido do Senhor. Agora, ele elogia os homens de Jabes-Gileade por arriscarem a vida para honrar Saul. Os feitos valorosos desses valentes são recompensados com o equivalente à concessão de uma medalha presidencial de honra ao mérito.
Preciso ressaltar também que Davi inclui na mensagem aos homens de Jabes-Gileade que ele foi ungido como rei pelo povo de Judá (2:7). Pode ser que isso seja uma forma indireta de mostrar sua disponibilidade para ser ungido em Israel também. Duvido que esse pensamento seja ofensivo ao povo de Jabes, ou a qualquer pessoa em Israel (exceto Abner - ver 3:17-19). Contudo, Davi não tenta forçar a situação, e realmente nada acontece.
A razão de Davi não ser ungido rei sobre todo Israel é Abner, primo de Saul e comandande das forças armadas de Israel (2:8-11). As ações de Abner sequer têm uma justificativa. Ele sabe que Deus designou Davi como o próximo rei de Israel, e o povo também (3:8-10, 17-19). Por isso, ou ele está tentando evitar ou está tentando retardar o reinado de Davi em lugar de Saul (e dos descendentes deste). Abner instala Isbosete como rei. Poucas pessoas tentariam discutir a questão com ele, um homem pessoalmente intimidador, sem mencionar as forças armadas sob seu comando. Quem ousaria se opor a ele ou a Isbosete?
Davi também não se opõe, não porque esteja com medo, ou porque não seja capaz. Ele não se opõe porque não quer, por princípio. Isbosete é descendente de Saul. Parece que ele adota o princípio estabelecido séculos depois pelo apóstolo Paulo:
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação.” (Romanos 13:1-2)
É difícil dizer que Isbosete tenha sido instalado como rei por exigência popular ou por razões e intenções piedosas de Abner. Parece que Abner está buscando seus próprios interesses com a nomeação de Isbosete. Davi, no entanto, admite que o filho de Saul seja de fato o rei e, por isso, que foi Deus, no final das contas, quem o colocou nessa posição de poder e autoridade. Davi não se oporá ao rei, nem mesmo para reinar em seu lugar. Além do mais, Davi fez uma promessa a Saul: a de não eliminar seus descendentes e não apagar seu nome da casa de seu pai. Ele não afastará Isbosete porque não poderá fazê-lo e continuar mantendo a palavra dada a Saul. Eis um homem de princípios, um homem que esperará mais sete anos só para manter sua palavra, só para esperar no Senhor.
Davi não aparece nenhuma vez dos versículos 2:12 a 3:11. Seu nome pode ser mencionado, mas ele não é um dos personagens principais. Os destaques são para Abner, comandante do exército de Israel, e Joabe, um dos homens de Davi e um dos comandantes das forças militares de Judá. Os dois concordam com um “embate” que leva não só 24 combatentes à morte, mas que também acarreta uma guerra declarada entre o povo de Judá e o povo de Israel. Ao que tudo indica, esse embate é totalmente despropositado, uma projeção egocêntrica da competitividade de Abner e Joabe. A guerra se arrasta, minando a unidade de Israel, causando morte e sofrimento desnecessários e culminando com o assassinato de Abner por Joabe.
Em muitos sentidos, esta é uma história bem sórdida. Os dois lados se encontram para um embate e muito sangue é derramado, levando à guerra declarada. Durante a batalha, Asael, irmão de Abisai e Joabe, está nos calcanhares de Abner. Abner não quer matá-lo, mas sabe que o jovem não vai desistir de sua perseguição. Finalmente, depois de não conseguir convencer Asael a deixar seu intento, Abner o mata. Isso não é considerado assassinato, pois é algo que ocorre durante a guerra. É quase um ato em defesa própria, mas Joabe jamais aceitará esse fato. Ele pretende se vingar.
O problema é que Davi e Abner põem fim à guerra. Abner está ficando cada vez mais ousado. Ele sempre foi o verdadeiro poder por trás dos bastidores, mas deixa todos os pretextos de lado quando toma para si a concubina de Saul. Este é um ato simbólico, virtualmente anunciando que ele está assumindo o lugar de Saul (ver I Reis 2:13-25; compare com Gênesis 35:22; 49:3-4). Isbosete considera essa atitude insuportável; por isso, reúne coragem para enfrentar Abner. Quando censurado por Isbosete, Abner explode. Ele acusa Isbosete de ingratidão e lhe diz que é ele, Abner, quem realmente está no comando. E aproveita a oportunidade para mudar de lado. A casa de Davi prevalece cada vez mais sobre a casa de Saul (3:1); na cabeça de Abner, já é tempo de mudar para o lado vencedor. Ele diz a Isbosete que agora vai dar seu apoio a Davi, para torná-lo rei. Abner, o articulador, fez Isbosete rei; agora, fará rei a Davi. Isbosete fica devidamente impressionado e amedrontado. Este é último protesto que fará contra Abner (3:6-11).
Abner, então, vai até Davi e se oferece para torná-lo rei. Ele afirma que está “no comando” e que, na verdade, o país é seu. Se Davi fizer aliança com ele, Abner fará o resto. Ele promete trazer todo Israel a Davi. Parece que, se tivesse vivido, Abner teria cumprido sua promessa. Antes de sua morte, ele se encontra com os líderes de ambos os lados. Em princípio, há um acordo. Tudo o que é preciso fazer é concluí-lo.
A morte “prematura” de Abner dá uma parada brusca nas coisas. Ele iria cumprir o que prometeu a Davi, e o que ele parece ter quase conseguido é subitamente interrompido por sua própria morte. Ele vai a Davi acompanhado de uma delegação. O acordo é feito. O cessar-fogo é declarado e a guerra entre Israel e Judá está formalmente encerrada. Por duas vezes em nosso texto é dito que Abner parte “em paz” (3:22, 23). Para mim, isso quer dizer que a guerra está terminada. Isso significa que Joabe não pode matar Abner de forma legítima; matá-lo agora será assassinato, pois não é mais tempo de guerra (ver I Reis 2:5).
Enquanto Davi está “fazendo a paz” com Abner, Joabe está fora “fazendo a guerra”. Ele conduz uma investida bem sucedida. Não está escrito contra quem é a ofensiva, mas é muito provável que seja contra os israelitas. Ao voltar, ele é informado de que Abner esteve lá, numa reunião com Davi, e que o deixaram ir embora em paz. Joabe fica furioso. Como Davi pode ser tão tolo a ponto de ser enganado por Abner? Será que ele não sabe que isso é um truque? Davi não dá ouvidos a Joabe e, depois de deixar Davi, Joabe manda seus soldados trazerem secretamente Abner à sua presença. Traiçoeiramente, ele dá um jeito de levar Abner a um lugar afastado e o mata.
Quando Davi fica sabendo do assassinato de Abner por Joabe, age com rapidez e determinação. Ele repudia publicamente a atitude de Joabe como algo execrável. Não há desculpas para o que ele fez. Davi condena o assassinato e invoca o juízo divino sobre Joabe e sua família (3:28-29). A seguir, ele lamenta a morte de Abner e cuida para que seu sepultamento seja honroso, mesmo que sua morte não tenha sido (sua morte foi como a de um perverso). Davi não só acompanha o féretro, chorando e entoando um cântico de lamento por Abner, mas também se recusa a comer durante o dia todo. Fica muito claro a todos que Davi não tem participação na morte de Abner. Todos sabem disso e aprovam sua atitude (3:31-39). O relacionamento entre Davi e o povo continua crescendo.
Creio que Deus providencialmente retira Abner de cena para que Davi não se torne rei graças a ele, um articulador, mas sim graças ao Rei Criador. As razões de Abner para trocar sua lealdade de Isbosete para Davi são questionáveis. Em alguns aspectos, parece que ele aborda Davi da mesma maneira que Satanás aborda nosso Senhor em Sua tentação (Mateus 4:1-11, Lucas 4:1-12). Como Satanás, Abner afirma que o reino que está oferecendo é realmente dele (compare II Samuel 3:12 com Lucas 4:5-7). Abner quer que Davi faça aliança com ele (II Samuel 3:12), mas quando Davi realmente se torna o rei de todo Israel, ele faz aliança com eles (o povo) “perante o Senhor” (II Samuel 5:3). De certo modo, vejo a oferta de Abner como um atalho, um caminho mais fácil para aquilo que Deus quer dar a Davi de outro jeito. Se é assim, a morte de Abner, e a consequente demora para Davi se tornar rei, faz sentido.
Quando Davi inicialmente aceita oferta de Abner, ele impõe uma condição: que Mical, sua esposa, lhe seja devolvida (II Samuel 3:13-15). A primeira esposa oferecida por Saul a Davi foi Merabe, mas Davi não aceitou a oferta. No entanto, a Mical ele aceitou. Ela lhe foi dada e, com certeza, o casamento foi consumado. Entretanto, depois que Davi cai em desgraça com o rei e foge para se salvar, Saul toma Mical e a dá por esposa a um homem chamado Palti (ver I Samuel 25:44).
Por que será que Davi quer tanto o retorno de sua esposa? Antes de mais nada, creio que seja por ela ser sua esposa. Davi não a leva junto com ele quando foge de Saul, mas ele se casou e viveu com ela como esposa. O fato de Saul a ter dado a outro homem não significa que ela deixa de ser esposa de Davi. Davi acredita na indissolução do casamento. Ela ainda é sua esposa e ele a quer de volta. Segundo, ele insiste para que Isbosete a devolva para ele. O pai de Isbosete, o rei Saul, tirou Mical de Davi; e já que Isbosete é quem governa em lugar de Saul, que concerte esse erro. Terceiro, se o embate entre os 12 homens de Abner e os 12 de Joabe dá início à guerra, a reunião de Davi e Mical unirá simbolicamente a casa de Davi e a casa de Saul. Davi quer Mical de volta porque ela ainda é sua esposa e ele a ama, e também porque isso é o melhor para seu próprio povo.
Com a morte de Abner, Isbosete perde totalmente a coragem. Se ele mal conseguia enfrentar Abner, enfrentar Davi, então, nem pensar. Agora, ele está por sua própria conta, sabedor de que Abner já instituiu Davi para reinar em seu lugar. Como informa nosso autor, Isbosete fica “tremendo na base” (como a gente costuma dizer) e Israel fica atônito. O que acontecerá agora?
Dois homens acham que são a solução para o problema. Ambos são da tribo de Benjamim e capitães de tropa de Israel (4:2). Seus nomes são Baaná e Recabe, filhos de Rimom. Para deixar as coisas bem claras: Isbosete é apenas um governante interino. Na verdade, ele não consegue governar sozinho, pois Abner era o cérebro e os músculos (soldados) de sua administração fantoche. No entanto, ei-lo aqui, um rei simbólico e fraco, governando uma nação cada vez mais enfraquecida. Davi já foi designado para reinar em todo Israel, e todos sabem disso, mas ninguém sabe como fazer para isso acontecer. E assim, os dois líderes chegam confiadamente à casa do rei em pleno meio-dia, fingindo estar à procura de trigo. O rei está tirando uma soneca quando eles entram no quarto e o matam. A seguir, eles cortam sua cabeça e viajam a noite toda até Hebrom para falar com Davi. Orgulhosamente, eles lhe mostram a cabeça do rei, filho de Saul, “inimigo de Davi”.
Eles não entendem nada. Não entendem a submissão de Davi a Deus e sua recusa em levantar a mão contra o ungido do Senhor (ou mesmo contra alguém feito rei de maneira não tão honrosa). Eles não entendem o amor de Davi por Saul ou seu compromisso de preservar a vida de seus descendentes e honrar seu nome (I Samuel 24:16-22). Eles não ouviram falar, pelas atitudes anteriores de Davi, que ele não está tão ansioso para se sentar trono a ponto tolerar a maldade daqueles que procuram matar o ungido de Deus.
“Porém Davi, respondendo a Recabe e a Baaná, seu irmão, filhos de Rimom, o beerotita, disse-lhes: Tão certo como vive o SENHOR, que remiu a minha alma de toda a angústia, se eu logo lancei mão daquele que me trouxe notícia, dizendo: Eis que Saul é morto, parecendo-lhe porém aos seus olhos que era como quem trazia boas-novas, e como recompensa o matei em Ziclague, muito mais a perversos, que mataram a um homem justo em sua casa, no seu leito; agora, pois, não requereria eu o seu sangue de vossas mãos e não vos exterminaria da terra? Deu Davi ordem aos seus moços; eles, pois, os mataram e, tendo-lhes cortado as mãos e os pés, os penduraram junto ao açude em Hebrom; tomaram, porém, a cabeça de Isbosete, e a enterraram na sepultura de Abner, em Hebrom.” (II Samuel 4:9-12)
Novamente, Davi não é nenhum oportunista que irá usar de quaisquer meios para assentar-se no trono prometido por Deus. Nem fará vistas grossas quando outros intentarem o mal para facilitar sua ascendência ao trono. Davi é um homem que entende o que significa ser o rei de Deus:
“Nos lábios do rei se acham decisões autorizadas; no julgar não transgrida, pois, a sua boca.” (Provérbios 16:10)
“Assentando-se o rei no trono do juízo, com os seus olhos dissipa todo mal.” (Provérbios 20:8)
“O rei sábio joeira os perversos e faz passar sobre eles a roda.” (Provérbios 20:26)
“tira o perverso da presença do rei, e o seu trono se firmará na justiça” (Provérbios 25:5)
Nos primeiros cinco versículos de II Samuel 5, Davi é ungido rei de todo Israel. Finalmente! Finalmente mesmo! Tudo começou muitos anos antes, quando Davi ainda devia ser um adolescente. Para seu espanto, e para o de sua família, ele é ungido como o futuro rei de Israel. Quase 15 anos antes de ser ungido rei de Judá, e outros sete de todo Israel. No entanto, agora, finalmente, ele é rei. Na parte final desta mensagem, gostaria de deixar os detalhes de lado e dar uma olhada no cenário mais abrangente dado pelo autor desde I Samuel 16 até II Samuel 5.
1) Devemos começar observando que a promessa feita por Deus a Israel e a Davi (implícita na época em que Davi foi ungido por Samuel) levou muito tempo para ser cumprida. Davi se torna rei de Israel depois de uma considerável demora, e de muita adversidade. Esse é o tema de I Samuel 16:1 a II Samuel 5:5. Esse período da vida de Davi pode ser resumido em duas palavras: “tempo” e “problema”.
2) A demora para Davi se tornar rei de Israel não é incomum, mas é o jeito típico de Deus cumprir Suas promessas e Seus propósitos. Para ser mais sucinto: Deus não está com pressa. Deus tem todo o tempo do mundo. Na verdade, Deus é muito maior que o tempo e com certeza não é limitado por ele. Em toda a Bíblia vejo Deus prometendo coisas que os homens precisam esperar para receber:
· Deus prometeu um filho a Abrão e Sarai, mas eles tiverem de esperar 25 anos para tê-lo.
· Deus prometeu a Noé que haveria um dilúvio, mas isso demorou muito para acontecer.
· Deus fez Jacó esperar durante 14 anos para ter a mulher que ele queria.
· José teve de esperar um tempo considerável para ver seus irmãos e sua família, e não conseguiu voltar para sua terra senão depois de sua morte (seus ossos foram carregados para a terra prometida).
· Os israelitas tiveram de esperar 430 anos no Egito, antes de voltarem para a terra prometida.
· O escritor de Hebreus nos conta que todos os santos do Antigo Testamento tiveram de esperar por nós (os gentios?) antes de poderem ver o reino prometido (Hebreus 11:39-40).
· Durante 2.000 anos os santos têm esperado a volta de nosso Senhor e a vinda do Seu reino.
Esperar é parte do desígnio divino. A espera não é um acidente, é um propósito.
3) Muitas pessoas fracassam na fé e obediência a Deus enquanto esperam: Esperar é uma forma de adversidade, um teste para nossa fé e perseverança.
“Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.” (Hebreus 11:13-16)
“Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus.” (I Pedro 2:20)
Muitas das falhas que vemos na Bíblia estão relacionadas a espera. Tenho a impressão de que tudo começou bem no princípio, com Adão e Eva. Quanto mais penso na história da queda, mais concordo com a interpretação que vê a tentação e o pecado como tomar um atalho para alcançar uma coisa boa. O conhecimento do bem e do mal, em si mesmo, não é uma coisa ruim. Se Adão e Eva iriam se tornar “como Deus” conhecendo o bem e do mal, como, então, isso poderia ser ruim? É ruim ser como Deus? Não é isso o que Deus está fazendo conosco, conformando-nos a imagem de Cristo (Romanos 8:29)? Não seremos “como Ele” quando “O virmos como Ele é” (I João 3:2)? Davi não foi elogiado por “conhecer o bem e o mal” (II Samuel 14:17)? Salomão orou pedindo sabedoria para discernir entre “o bem e o mal” (I Reis 3:9). Os cristãos, pela obediência à Palavra de Deus, “têm a faculdade exercitada para discernir o bem e o mal” (Hebreus 5:14). Creio, no entanto, que Deus queria que Adão e Eva tivessem esse conhecimento, mas não pelo meio fácil e rápido de pegar às escondidas o fruto proibido. Não era errado conhecer o bem e o mal, mas sim conhecê-lo de uma forma que Deus havia proibido. Creio que Deus tinha um jeito melhor e mais lento para isso, mas eles preferiram o atalho. Eles não quiseram esperar no Senhor por esse conhecimento.
Abraão e Sara tinham de esperar pelo filho prometido e, pelo menos uma de suas falhas foi no campo da paciência, de esperar em Deus pelo cumprimento de Sua promessa. Não foi por isso que Abrão disse ser o damasceno Eliézer seu herdeiro (Gênesis 15:2)? Não foi por isso também que Abrão anuiu ao conselho de Sarai para ter o descendente prometido por meio de sua serva Agar (Gênesis 16:1-2)? Conforme descrito em Êxodo 32, os israelitas pecaram ao fazer o bezerro de ouro. Isto não ocorreu porque eles não quiseram esperar 40 dias pelo retorno de Moisés do Monte Sinai? Em I Samuel 13, o pecado de Saul não foi porque ele não quis esperar por Samuel? Não estavam os discípulos de nosso Senhor sempre perguntando pela vinda do Seu reino e tentando apressá-la? Não foi por não quererem esperar, que os onze apóstolos e outras pessoas se adiantaram e elegeram Matias em lugar de Judas, quando Jesus os tinha instruído a esperar “pela promessa do Pai” (Atos 1:4)?
A igreja de Corinto tinha muitos problemas. Um deles era no campo da espera. Eles não podiam esperar que Deus fizesse justiça, por isso, levavam uns aos outros ao tribunal (I Coríntios 6). Eles não podiam esperar pela chegada dos irmãos, por isso se adiantavam e se excediam na comida e na bebida durante as refeições, transformando a Ceia do Senhor numa farsa (I Coríntios 11). Eles não podiam esperar pelo cumprimento das promessas de Deus sobre uma espiritualidade plena, por isso admitiam professores e ensinamentos triunfalistas: você pode ter tudo hoje, não depois.
Não é de admirar que nosso Senhor tenha dedicado tanto tempo e atenção ensinando a Seus discípulos como se comportar enquanto esperassem Sua volta:
“Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá. Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim. Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas, se aquele servo disser consigo mesmo: Meu senhor tarda em vir, e passar a espancar os criados e as criadas, a comer, a beber e a embriagar-se, virá o senhor daquele servo, em dia em que não o espera e em hora que não sabe, e castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os infiéis. Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.” (Lucas 12:40-48)
4) Satanás muitas vezes ataca tentando tirar proveito da demora divina. Satanás tenta tranquilizar a mente do incrédulo mostrando que a demora divina é uma prova de que Deus não sabe, ou não se importa, quando pecamos:
“Amados, esta é, agora, a segunda epístola que vos escrevo; em ambas, procuro despertar com lembranças a vossa mente esclarecida, para que vos recordeis das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos, tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação.” (II Pedro 3:1-4)
Satanás procura minar a fé e a obediência dos filhos de Deus enganando-os a respeito da bondade divina quando Deus demora em atendê-los. Creio que foi isso o que Satanás fez com Adão e Eva no jardim do Éden. Creio também que este seja o cerne da tentação de nosso Senhor no início de Seu ministério terreno. Satanás disse ao Senhor: “Ok, sei que você é o Rei de Deus. Contudo, em vez de negar a si mesmo (obedendo a Deus e ficando 40 dias e 40 noites sem comer), por que não se serve? Por que não come agora? Por que entrar no seu reino com tanto sofrimento? Por que não me adora e eu lhe dou o reino agora mesmo? Não é assim que Satanás pensa e age?
Enquanto esperamos, Satanás quer nos fazer acreditar que as promessas de Deus jamais serão cumpridas. Ele procura nos levar a agir independentemente de Deus, conseguindo as coisas por nós mesmos, em vez de esperar que Deus as dê para nós. Satanás procura levantar dúvidas quanto a bondade de Deus, como se Deus estivesse retendo algo bom de nós por pura mesquinharia. Satanás age promovendo a desconfiança em Deus, especialmente em Sua Palavra. Ele nos leva a desobedecer a Deus e a seguir nosso próprio julgamento. Ele nos incita a aproveitar as ocasiões, usar meios questionáveis e usar os outros como meios de obter aquilo que desejamos.
5) Tempo de espera no Senhor é tempo de ter a fé é levada ao limite e a intimidade com Deus reforçada. Já perceberam como muitos Salmos foram escritos em tempos de espera? A pergunta “Até quando...”? é encontrada diversas vezes nos salmos, ou seja, “espera no Senhor”. Davi, muitas vezes, é o autor desses salmos de “espera”. Esperar no Senhor é bom para nós. Esperar nos ajuda a desenvolver a paciência e a tolerância. Faz com que exercitemos nossa fé nas promessas de Deus e ajamos com base na Sua Palavra, não em nossa vista. Esperar aumenta nosso apetite pelas coisas boas que Deus tem reservado para nós. Esperar requer negar os desejos carnais e deixar de lado o desejo de gratificação imediata pelo meio mais fácil. Esperar no Senhor é uma das maneiras de “tomarmos nossa cruz e segui-lO”.
6) Esperar no Senhor também consiste em pureza sexual. Hoje em dia há muita conversa sobre “sexo seguro” e bem pouca sobre abstinência. Isso acontece porque esperar pelos prazeres do sexo conjugal é um tabu. A virgindade é desdenhada como se fosse uma maldição, não um presente que um cônjuge oferece ao outro. Esperar no Senhor pelas alegrias e pelos prazeres do sexo conjugal aumenta a alegria e o prazer desta dádiva, se e quando Deus a der. O que desejo frisar é que a pureza sexual requer espera e a espera é uma boa parte daquilo que a vida cristã requer. Não devemos considerar este assunto como algo que Deus cruelmente retém de nós, mas como um presente muito bom, o qual estamos dispostos a esperar no Senhor para podermos desfrutar plenamente e sem culpa.
7) Alguns tipos de espera não são cristãs. Muitas vezes temos tendência a esperar quando deveríamos trabalhar e trabalhar quando deveríamos esperar. Esperar para fazer aquilo que sabemos que é certo, aquilo que Deus nos ordena a fazer, não é uma atitude cristã, é pecado (Tiago 4:17). Esperar para aceitar a salvação e o perdão dos pecados em Jesus é a pior coisa que existe (Hebreus 3:12-15). A espera que agrada a Deus consiste naquela em que Ele fez uma promessa que nós mesmos não podemos cumprir sem agir com incredulidade e desobediência à Sua Palavra.
8) Esperar não é, necessariamente, uma época de passividade. Já reparou no que as pessoas fazem enquanto estão esperando? Algumas não fazem absolutamente nada. Entretanto, noto que outras (não exatamente homens) fazem crochê ou bordam. Há coisas construtivas que se pode fazer enquanto se espera. Davi esperou mais de 20 anos para reinar sobre todo Israel, mas essa foi uma época bastante ocupada de sua vida. Ele fez muito mais do que simplesmente fugir para se salvar. Ele libertou o povo de Queila (I Samuel 23:1-5) e fez boas coisas para o povo de Judá (I Samuel 30:26-31). Uma das coisas que podemos fazer enquanto esperamos é louvar a Deus e orar, como Davi e outras pessoas fizeram nos salmos. Embora não possamos fazer aquilo que mais desejamos, podemos fazer aquilo que Deus nos dá oportunidade de fazer, enquanto esperamos nEle pelo cumprimento de Suas promessas e de Seus propósitos.
9) Esperar é uma parte significativa da vida de cada um de nós. Quando eu era jovem, mal podia esperar pelo meu 16º aniversário para poder dirigir legamente. Mal podia esperar para crescer e ter todos os privilégios e liberdades de um adulto. Quando estava namorando, mal podia esperar pelo dia do casamento. Cada um de nós espera uma porção de coisas neste exato momento. Permitam-me citar apenas algumas:
· Nossos jovens esperam para crescer e desfrutar dos direitos, privilégios e responsabilidades da vida adulta. Rebeliões na adolescência e sexo antes do casamento são tentativas de tomar um caminho mais curto que muitas vezes acaba causando um curto-circuito;
· Alguns casais esperam ter filhos. A maioria dos pais tem de esperar pelo menos nove meses para ter um filho, e muitos deles têm de esperar muito mais;
· Muitas pessoas esperam reconhecimento e recompensa por seu trabalho, enquanto outras tomam atalhos para serem promovidas;
· Quase todos os cristãos passam por algum tipo de dor ou sofrimento em que têm de esperar por libertação;
· Todos os cristãos esperam pela salvação de entes queridos, amigos ou parentes;
· Todos nós nos encontramos esperando que Deus mude alguém a quem amamos ou que é próximo a nós;
· Todos esperamos a vinda de nosso Senhor e de Seu reino;
· Por mais estranho que pareça, uma porção de cristãos esperam pela morte. Há aqueles que não conseguirão esperar pelo tempo de Deus e escolherão o suicídio como meio de aliviar sua dor. Outros não conseguem suportar o sofrimento de seus entes queridos e escolhem a eutanásia. Todos conhecemos situações em que desejamos que o Senhor “os leve” ou “nos leve”, mas Deus nos diz para esperar.
10) Finalmente, tenha a certeza de que vale a pena esperar no Senhor. Se você quer uma refeição rápida, pode ir a um drive-through do McDonald’s e comprar um “Mc Lanche Feliz”. No entanto, se quer uma lauta refeição, sabe que terá de esperar um pouco. Grandes refeições não são preparadas de uma hora para outra, não importa o que digam os comerciais de TV. Nunca vi alguém colocando comida no micro-ondas porque achasse que ela ficaria mais saborosa do que se preparada no forno ou numa panela de barro. Usamos o micro-ondas quando queremos comer logo. Usamos o forno quando queremos comer bem. Os planos e as promessas de Deus não são comida de micro-ondas. Deus prepara lentamente Seus planos e Seu povo extraindo deles o que é melhor. Quase sempre você pode esperar que Deus o fará aguardar porque Ele tem o que é melhor para você. Ele nunca se atrasa, mas dificilmente se apressa. Contudo, posso lhe garantir: Quando o plano de Deus é que você espere, Ele vai fazer a espera valer a pena.
Aprendamos com Davi que esperar é uma parte normal da vida cristã. Seremos tentados a encurtar esta espera, mas ceder seria pecado. Muitas vezes, outras pessoas querem nos ajudar a tomar um atalho. Contudo, precisamos decidir de coração a ser como Davi e esperar no Senhor pelo cumprimento de Seus propósitos e de Suas promessas, no Seu tempo. Tenhamos certeza de que, enquanto esperamos, Deus está operando em nós, preparando-nos para as coisas boas que estão à nossa frente. Não duvidemos de que as veremos. E dediquemo-nos a fazer o bem que conhecemos e que somos capazes de fazer enquanto esperamos.
Tradução: Mariza Regina de Souza
Há muitos anos li um livro excelente intitulado Shantung Compound, escrito por Langdon Gilkey. Um dos capítulos do livro é denominado “Um lugar só seu”. Gilkey ficou confinado num campo de detenção junto com um grupo diversificado de pessoas, os quais tinham uma coisa em comum: todos eram ocidentais. Quando invadiram a China durante a II Guerra Mundial, os japoneses não sabiam o que fazer com aquelas pessoas, por isso, mantiveram-nas detidas em diversos acampamentos. Shantung Compound era um antigo acampamento presbiteriano que foi convertido para esse fim. Gilkey recebeu a tarefa de designar os quartos das pessoas confinadas naquele local, o que acarretou algumas situações muito interessantes, como ele bem descreve em seu livro.
No capítulo “Um lugar só seu”, Gilkey fala sobre o desejo das pessoas terem um lugar que possam chamar de seu. Em um dos exemplos, uma senhora muito fina e educada manifestou essa ânsia de ter o seu próprio “canto”. Uma mulher, cuja cama ficava ao lado direito da dela começou a sentir que a cama estava se movendo. A cada dia, quando ela olhava pela janela, a vista estava ligeiramente diferente. Ela percebeu que a cama estava sendo movida. A adorável senhora ao lado estava empurrando sua própria cama, e a da sua colega de quarto, uns poucos milímetros por dia, para ter um pouco mais de espaço às custas de sua companheira. Todos nós queremos “um cantinho só nosso”, não é?
Chegamos a II Samuel 5, onde Davi se torna o rei de todo Israel e, ao mesmo tempo, dono de um lugar finalmente seu. Até aqui o lugar é conhecido como Jebus e seus habitantes, como jebuzeus. Entretanto, de nosso texto em diante, Jebus se torna Jerusalém, Sião, a “cidade de Davi”. No capítulo seguinte, Jerusalém se tornará o lugar da morada de Deus, quando a Arca da Aliança for trazida para a cidade, onde Salomão mais tarde construirá o templo. O momento é glorioso para Davi e muito instrutivo para nós. Vamos pedir a assistência do Espírito Santo para aprender o que Ele tem a nos ensinar sobre Davi encontrar “um lugar só dele”.
Como resultado do estudo de II Samuel, vejo agora que o capítulo 5 está divido em quatro seções principais, as quais resumo abaixo:
· 5:1-5: Israel se submete a Davi como o “Rei de Deus”
· 5:6-10: Davi toma Jebus e faz dela Jerusalém, a “cidade de Davi”
· 5:11-16: A construção da casa de Davi (o lugar físico, dele e de sua família)
· 5:17-25: Davi derrota os filisteus
“Então, todas as tribos de Israel vieram a Davi, a Hebrom, e falaram, dizendo: Somos do mesmo povo de que tu és. Outrora, sendo Saul ainda rei sobre nós, eras tu que fazias entradas e saídas militares com Israel; também o SENHOR te disse: Tu apascentarás o meu povo de Israel e serás chefe sobre Israel. Assim, pois, todos os anciãos de Israel vieram ter com o rei, em Hebrom; e o rei Davi fez com eles aliança em Hebrom, perante o SENHOR. Ungiram Davi rei sobre Israel. Da idade de trinta anos era Davi quando começou a reinar; e reinou quarenta anos. Em Hebrom, reinou sobre Judá sete anos e seis meses; em Jerusalém, reinou trinta e três anos sobre todo o Israel e Judá.”
Os israelitas estão em foco nos versos 1 a 3. São eles que vão a Hebrom e reconhecem Davi como rei e o ungem. Tendo admitido que a iniciativa foi do povo, precisamos nos lembrar de que foram eles também que tomaram a iniciativa na época de Saul. Não é possível compreender totalmente o significado da submissão dos israelitas a Davi sem fazer a comparação e o contraste deste acontecimento com o de I Samuel 8 a 12, quando o povo exige um rei e recebe Saul como o primeiro rei de Israel.
Vocês devem se lembrar de que em I Samuel 8 Samuel já está avançado em idade e seus filhos não são seus melhores substitutos (8:1-3). Eles são desonestos e abusam de sua autoridade como juízes em Berseba. Por isso, no verso 4 do capítulo 8, os anciãos de Israel exigem que Samuel lhes dê um rei “para governá-los, como todas as nações” (8:5). Samuel fica muito chateado com a exigência do povo e Deus também fica muito desgostoso. O povo não está só rejeitando Samuel como juiz, eles estão rejeitando a Deus como rei (8:7-8). Apesar disso, Deus manda Samuel alertá-los sobre os altos custos de um rei e dizer-lhes que eles realmente terão o querem. Nos capítulos 9 e 10, Saul é designado e ungido como o primeiro rei de Israel. No capítulo 11, ele lidera os israelitas na guerra contra Naás e os amonitas, os quais sitiam Jabes Gileade e ameaçam humilhar seus habitantes vazando o olho direito de cada cidadão (11:1-2). Deus dá a Saul e Israel uma grande vitória sobre os amonitas e o povo exulta de alegria. Eles querem por as mãos em cima dos homens que desprezaram Saul e matá-los (11:12-13).
No capítulo 12 Samuel coloca a questão na perspectiva correta. A exigência de Israel é pecado, por isso, Deus manda uma tempestade que destrói a sega do trigo (12:12-18). Em certo sentido, esta geração de israelitas é exatamente como seus antepassados. A oposição de nações estrangeiras é um castigo divino pelo desrespeito de Israel às leis de Deus. No entanto, por outro lado, o pecado de exigir um rei é ainda maior do que o de seus antepassados. No passado, Deus enviava um libertador quando a nação se arrependia e clamava por libertação. Neste caso, não há arrependimento algum. Eles não imploram por libertação; mas exigem um rei. Creio que Israel quer um libertador sem ter de se arrepender, e também quer um rei que lhes assegure futuras libertações. Eles querem um rei para não terem de confiar em Deus e obedecê-lO. Quando Samuel aponta o pecado e o enfatiza com uma tempestade, o povo se arrepende.
A seguir, Samuel faz uma promessa ao povo:
“Agora, pois, eis aí o rei que elegestes e que pedistes; e eis que o SENHOR vos deu um rei. Se temerdes ao SENHOR, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes rebeldes ao mandado, e seguirdes o SENHOR, vosso Deus, tanto vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, não derdes ouvidos à voz do SENHOR, mas, antes, fordes rebeldes ao seu mandado, a mão do SENHOR será contra vós outros, como o foi contra vossos pais.” (I Samuel 12:13-15)
“Tão-somente, pois, temei ao SENHOR e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandiosas coisas vos fez. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vosso rei.” (I Samuel 12: 24-25)
O que desejo assinalar aqui é a ligação que Samuel faz entre o povo e seu rei. Tanto um quanto outro precisam confiar em Deus e obedecê-lO. Se não o fizerem, Deus os castigará. Caso contrário, Deus os abençoará. Acredito que Samuel esteja indicando para nós que o povo vai ter o rei que deseja e que merece. Deus lhes dá o rei Saul, pois ele é exatamente como eles. Ele se rebela contra a Palavra de Deus, da mesma forma que o povo. Ele é incapaz de obedecer a Deus plenamente, da mesma forma que eles. No caso de I Samuel 8 a 12, o povo exige um rei por razões totalmente erradas. Agora, vejo que os pecados dos filhos de Samuel eram somente um pretexto para exigirem um rei e que seus motivos eram bem menos nobres do que “justiça”. Em I Samuel 12:12, Samuel diz ao povo que o verdadeiro motivo é o medo que sentem de Naás, que avança contra Israel. Eles querem um rei que os lidere na guerra e lhes dê a vitória sobre seus inimigos. Eles querem um libertador como Sansão, não como Samuel. Samuel expõe toda hipocrisia e fingimento para revelar o pecado de Israel, o qual torna o povo digno de um rei como Saul.
No entanto, quando chegamos a II Samuel 5, vemos uma mudança radical. Não é apenas a mudança de um rei patético como Saul para um líder patriótico como Davi. O povo também muda. Preciso fazer uma confissão. Até aqui tenho sido insensível para com os israelitas. Tenho ficado do lado de cá da história com as mãos na cintura, batento o pé com impaciência. Quando leio os versos 1 a 5 do capítulo 5, encontro-me pensando: “Já não era sem tempo!” Entretanto, mudei de ideia. Agora, vejo a demora dos israelitas de modo diferente. Permitam-me tentar explicar.
Vocês irão reparar que aqui não há nenhuma crise, nenhum perigo iminente que force os líderes israelitas a agir. Saul está morto, bem como seus filhos, incluindo Isbosete. Não há nenhum ataque filisteu, nehuma ameaça amonita. Os filisteus só atacam quando ficam sabendo que Davi foi ungido rei sobre todo Israel (II Samuel 5:17). Os anciãos israelitas vão a Davi quando ele está em Hebrom, submetendo-se a ele como o rei de Deus. Em I Samuel 8, eles se rebelaram contra Deus como seu Rei, mas não aqui. Aqui, eles agem em obediência a Deus, não em rebelião. O rei que eles recebem, Davi, é, de certa forma, o rei que merecem. Quando vão a Davi, os israelitas reconhecem muitas verdades de vital importância que são a base de seu reinado e, portanto, da submissão deles a ele como rei.
1) Os líderes israelitas reconhecem seus laços naturais com Davi: Somos do mesmo povo de que tu és...” Esta confissão por parte dos israelitas é muito importante. Eles reconhecem que há uma união essencial, com raízes num antepassado comum, Jacó (a quem Deus chamou Israel). Eles não dizem a Davi: “você é um de nós”, e sim “nós somos um com você”. Desde o princípio existe um problema de unidade entre os filhos de Jacó, como se vê no ódio demonstrado para com José. Saul é da tribo de Benjamim e Davi da tribo de Judá. Abner, com certeza, agravou o desentendimento entre as duas tribos e ouriçou as demais. Agora os israelitas estão dispostos a se ver como uma nação, não como duas. Esta é a chave para a liderança de Davi em toda a nação. Só precisamos nos lembrar das palavras dos israelitas quando ocorre a divisão do reino para ver o quanto esta união é importante:
“Vendo, pois, todo o Israel que o rei não lhe dava ouvidos, reagiu, dizendo: Que parte temos nós com Davi? Não há para nós herança no filho de Jessé! Às vossas tendas, ó Israel! Cuida, agora, da tua casa, ó Davi! Então, Israel se foi às suas tendas.” (I Reis 12:16)
2) Os israelitas reconhecem a liderança de Davi mesmo quando Saul ainda era rei. Quando o povo exige um rei, eles querem alguém que “vá adiante deles e lute suas batalhas” (ver I Samuel 8:19-20). No fundo, Saul se esquivava de suas responsabilidades e era Davi quem fazia o que o povo queria. Não foi Saul quem subiu contra Golias, foi Davi. Não foi Saul quem liderou Israel nas batalhas, foi Davi (pelo menos ele foi um dos comandantes). Os anciãos israelitas reconhecem a liderança de Davi por ele ter agido como rei. Na verdade, os anciãos reconhecem que, mesmo quando Saul era o rei, Davi agia mais como rei do que ele. Eles não estão optando por um produto desconhecido (como fizeram com Saul), mas por alguém que já provou ser “um forte e valente, homem de guerra” (I Samuel 16:18)
3) Os anciãos de Israel se submetem à Palavra de Deus à medida que reconhecem ser Davi o rei escolhido de Deus. Davi foi ungido publicamente como o futuro rei de Israel (I Samuel 16:1-13). Saul sabia que Davi seria o próximo rei (I Samuel 24:20), bem como Abigail (I Samuel 25:30) e os filisteus (I Samuel 21:11). Todos em Israel deviam saber que ele tinha sido designado por Deus para reinar em lugar de Saul (II Samuel 3:9-10, 18). Os israelitas não ficam surpresos quando sabem que ele será o próximo rei, embora sejam um pouco tardios em agir de acordo com essa revelação. Quando vão até el, os anciãos estão obedecendo à vontade revelada de Deus. Isso é muito melhor do que quando se rebeleram contra Ele em I Samuel 8, exigindo um rei.
A unção de Davi (pela terceira vez) pelos anciãos de Israel não é nenhuma surpresa, pois está dentro do contexto da aliança feita por Deus com Davi anteriormente (II Samuel 5:3). Esse é um ato de obediência e fé. Isso está bem longe do confronto que vemos entre eles e Samuel no capítulo 8. O reinado de Davi é um reinado de justiça devido, em parte, ao arrependimento e à obediência de Israel e seus líderes.
“Partiu o rei com os seus homens para Jerusalém, contra os jebuseus que habitavam naquela terra e que disseram a Davi: Não entrarás aqui, porque os cegos e os coxos te repelirão, como quem diz: Davi não entrará neste lugar. Porém Davi tomou a fortaleza de Sião; esta é a Cidade de Davi. Davi, naquele dia, mandou dizer: Todo o que está disposto a ferir os jebuseus suba pelo canal subterrâneo e fira os cegos e os coxos, a quem a alma de Davi aborrece. (Por isso, se diz: Nem cego nem coxo entrará na casa.) Assim, habitou Davi na fortaleza e lhe chamou a Cidade de Davi; foi edificando em redor, desde Milo e para dentro. Ia Davi crescendo em poder cada vez mais, porque o SENHOR, Deus dos Exércitos, era com ele.”
Existem muitas histórias longas. Quando pergunto às pessoas como elas se tornaram cristãs, em geral, elas sorriem e dizem: “Bem, é uma longa história”. A história da cidade de Jerusalém também é longa. Jerusalém é, até a época em que Davi a captura, conhecida como Jebus, e seus habitantes, como jebuseus. Os jebuseus são mencionados pela primeira vez em Gênesis 10:15-16, onde está escrito que eles são cananeus genuínos, descendentes de Canaã, terceiro filho de Cam (Gênesis 10:6). Foi esse Cam que viu a nudez de Noé (Gênesis 9:22) e trouxe maldição sobre si mesmo e seus descendentes (Gênesis 9:25). Abraão ofereceu seu filho Isaque no monte Moriá (Gênesis). Esse monte é o mesmo onde Salomão construiu o templo (II Crônicas 3:1).
Deus repetidamente prometera aos israelitas que os levaria para a terra prometida. Essa terra era possuída pelos cananeus (incluindo os jebuseus), e Deus também havia prometido expulsá-los de lá (Gênesis 15:18-21; Êxodo 3:8, 17, 13:5, 23:23, 33:2, 34,11). Quando os espias foram enviados para observá-la, entre os habitantes do lugar eles citaram os jebuseus (Números 13:29). Deus não havia só prometido expulsar os cananeus (Josué 3:10), Ele também ordenara que os israelitas o fizessem (Deuteronômio 7:1 e ss, 20:17). Quando eles cruzaram o Jordão, os jebuseus estavam entre os que uniram forças para se opor à sua entrada na terra (Josué 9-11, 24:11).
No livro de Josué, Jebus inicialmente é descrita como uma das cidades cujos habitantes os filhos de Judá não conseguiram expulsar (Josué 15:63). Em Josué 18:28, parece que ela é uma cidade benjamita, os quais também não conseguiram expulsar os jebuseus (Juízes 1:21). Isso conduz a uma espécie de convivência que leva os israelitas a adotar os pecados dos jebuseus (Juízes 3:1-7 e ss). Em decorrência disso, Israel sofre a opressão de seus vizinhos como castigo divino (Juízes 3:8 e ss). Em Juízes 19:10-12, a cidade ainda é retratada como não israelita. Pode ter havido momentos em que a cidade esteve sob o domínio de Israel (cf. I Samuel 17:54), mas a vitória estava longe de ser completa. Somente nos dias de Davi (e de nosso texto - ver também I Crônicas 21:15) é que ela é tomada pelos israelitas de uma vez por todas. Há ainda muitas coisas a dizer sobre Jebus, agora Jerusalém, mas vamos esperar a próxima lição, no capítulo seis, para fazê-lo.
Creio que a tomada de Jebus nos versos 6 a 10 deva ser entendida em relação aos versos 17 a 25, quando Davi vence os filisteus por duas vezes. Não é difícil compreender porque ele lutou contra eles neste capítulo, pois era uma questão de autodefesa. Eles atacaram os israelitas, e especialmente Davi. Posso até imaginar como eles se sentiram, sabendo que haviam dado asilo a Davi (ou pelo menos Aquis, rei de Gate). Eles tinham até permitido que ele fizesse parte de seu exército. Havia muito pouco que Davi não soubesse sobre eles - seus métodos, suas rotas, seus recursos. Davi seria um inimigo formidável. Seria melhor resolver logo o assunto, antes que ele ficasse muito forte. Quando os filisteus subiram contra ele, Davi não teve muita escolha, a não ser lutar contra eles. No entanto, os jebuseus não estavam em guerra contra os israelitas. Eles tinham chegado a uma espécie de convivência pacífica. Não havia nenhuma “necessidade” aparente para essa luta. Por que, então, Davi levou Israel inteiro a subir contra a cidade, a qual os israelitas nunca tinham sido capazes de vencer totalmente?
Creio que há muitas razões para isso. Antes de mais nada, Jebus era uma cidade que Deus prometera dar aos israelitas e cujo povo Ele ordenara fosse destruído. A presença deles entre os israelitas estava corrompendo o povo de Deus (Juízes 3:5-6). Saul relutava em combater decisivamente os ataques externos dos inimigos de Israel. Ele estava até disposto a conviver com o inimigo dentro da nação. Até onde podemos ver, os jebuseus tinham sido deixados em paz. Não havia resistência nem à guarnição dos filisteus, até que Jônatas, não tolerando mais sua presença, praticamente os obrigasse, bem como a seu pai, a agir (I Samuel 13:33). Davi percebeu que nenhum reino poderia ser visto com temor (ou mesmo respeito) se não conseguisse expulsar os inimigos de seu meio. Os jebuseus eram um problema que precisava ser resolvido e Davi sabia disso. Já era tempo desses inimigos de Deus serem derrotados. A derrota dos jebuseus e a tomada da cidade seriam o primeiro passo na conquista de Israel sobre seus inimigos, uma conquista que fora parcial na época de Josué e dos juízes. Esta vitória ofuscaria a vitória de Saul e os israelitas sobre os amonitas (I Samuel 11). Que maneira melhor de começar a reinar?
Em segundo lugar, Davi precisava de uma capital. Quando ele era apenas o rei de Judá, Hebrom servia muito bem a esse propósito. No entanto, agora ele era o rei de todo Israel. Ele precisava de uma capital mais ao norte. Ele precisava de uma capital mais centralizada, que unificasse a nação. Jebus era a cidade perfeita. A vitória de Israel sobre os jebuseus unificaria a nação, e a posse da cidade como a nova capital de Davi também. Jebus ficava praticamente na fronteira entre Judá e Benjamim. Era uma cidade que nem os filhos de Judá, nem os filhos de Benjamim tinham sido capazes de capturar. Portanto, tomá-la como capital não favoreceria nenhuma das duas tribos. Além do mais, sua localização natural tornava difícil sua conquista (razão pela qual os israelitas não o fizeram antes). Ela ficava numa região montanhosa, no topo de mais de uma montanha, cercada por vales. Com um pouco de trabalho, era uma verdadeira fortaleza (5:9).
Há uma referência tripla aos “cegos e coxos” nos versos 6 a 10. Quase todos concordam que isso deve ser importante, mas há pouco consenso quanto ao seu significado. Prefiro tomar esses versos ao pé da letra e interpretá-los à luz de todo o contexto. Não creio que o povo de Jebus tenha em mente alguém especial quando diz: “Não entrarás aqui, porque os cegos e os coxos te repelirão” (verso 6). Sabemos que eles dizem isso porque pensam não haver jeito de Davi entrar na cidade e tomá-la.
Você já levou uma corrida de um cão bravo e depois descobriu que ele estava preso a uma corrente que o parou a apenas alguns centímetros de você? Se ele estivesse solto, ou você fugiria ou falaria mansamente com ele, tentando convencê-lo a não lhe morder. Com certeza, você não o irritaria ou provocaria se pensasse que ele estava solto. Entretanto, quando você vê que o cachorro está preso a uma longa corrente, ou atrás de uma cerca, subitamente você cria coragem para gritar com ele ou até mesmo para provocá-lo. Quando presumimos que estamos a salvo, falamos com muito mais ousadia.
Ora, quando os jebuseus viram Davi e os soldados israelitas subindo contra sua cidade, eles não ficaram assustados, pois isso não era nenhuma novidade. Esse tipo de ataque era frequente na história de Jebus, mas nunca com sucesso. Por isso, a salvo atrás dos muros da cidade, eles zombaram de Davi e seus homens. A ameaça era mais ou menos como a de um valentão arrogante: “Dou um jeito em você com um pé nas costas”. Será que eles ficaram intimidados com o exército de Davi? Não mesmo! Por isso, zombaram deles, alardeando que estavam tão securos que podiam até se defender com cegos e coxos.
Davi ficou furioso, exatamente como ficou com a arrogante ostentação de Golias. Ele usou as mesmas palavras dos jebuseus na ordem que deu a seus homens: “Que os homens vão e lutem com os ‘cegos e coxos’, entrando na cidade pelo canal subterrâneo”. Eles entraram e derrotaram os jebuseus. Desse dia em diante passou a existir um provérbio entre os seguidores de Davi: ‘Nem cego nem coxo entrará na casa’. Isso parece uma desculpa, um pretexto, para quem não tem compaixão dos deficientes ou para quem aproveita a ocasião para justificar sua falta de misericórdia. Creio que estas palavras foram registradas em função de II Samuel 4:4 e 9:1-3. Os servos de Isbosete não o mataram em sua própria cama? Os israelitas realmente não proibiam os deficientes físicos de entrar em suas casas? Davi, pois, iria buscar o deficiente físico Mefibosete e fazê-lo assentar-se à sua própria mesa, demonstrando assim o seu amor por Jônatas.
Não foi a atitude de Davi uma prefiguração daquilo que o Rei supremo de Israel faria quando viesse à terra? Os fanáticos religiosos se desviavam e atravessavam a rua para evitar o contato com um homem ferido (ver Lucas 10:25-37). Eles se admiravam quando Jesus se associava com pecadores e era tocado por pessoas impuras. As mesmas pessoas que eles evitavam, Jesus buscava. Davi foi um tipo dAquele que viria depois dele, que buscaria os enfermos e ministraria a eles (ver Lucas 4:16-21; 5:39-32; 7:18-23). E, da mesma forma que Davi representava o Messias, os arrogantes e jactanciosos jebuseus representavam os fanáticos religiosos, que escarneceriam de Jesus mas, no final, sofreriam a derrota em Suas mãos. Os inimigos de Davi foram derrotados, ao passo que ele se tornou cada vez maior. Ele não podia ser parado, pois Deus estava com ele.
“Hirão, rei de Tiro, enviou mensageiros a Davi, e madeira de cedro, e carpinteiros, e pedreiros, que edificaram uma casa a Davi. Reconheceu Davi que o SENHOR o confirmara rei sobre Israel e que exaltara o seu reino por amor do seu povo. Tomou Davi mais concubinas e mulheres de Jerusalém, depois que viera de Hebrom, e nasceram-lhe mais filhos e filhas. São estes os nomes dos que lhe nasceram em Jerusalém: Samua, Sobabe, Natã, Salomão, Ibar, Elisua, Nefegue, Jafia, Elisama, Eliada e Elifelete.”
Essencialmente, havia somente duas reações a ascensão de Davi ao trono de Israel: 1) aceitá-lo como amigo e aliado ou 2) resistir a ele e atacá-lo como inimigo. Hirão, rei de Tiro, escolheu a primeira, enquanto os filisteus optaram pela segunda. Embora muitas traduções sugiram que os versos 11 a 16 sejam dois parágrafos, prefiro vê-los como uma só unidade, ou seja, a edificação da casa de Davi. Hirão literalmente ajuda Davi a edificar sua casa, um palácio, em Jerusalém. No entanto, mesmo morando em Jerusalém, Davi continua edificando sua “casa”, ou seja, sua família. Edificando ambas as casas ele está fortalecendo sua posição como rei de Israel.
Hirão, rei de Tiro, é apresentado nos versos 11 e 12. Eis um homem que poderia facilmente ter visto Davi como inimigo, mas que preferiu tê-lo como aliado. Quando Deus fez a assim chamada aliança abraâmica (Gênesis 12:1-3), Ele prometeu a Abraão que, quem o amaldiçasse, seria amaldiçoado, e quem o abençoasse, seria abençoado. Os jebuseus e os filisteus amaldiçoaram Davi, Hirão o abençoou. Ele deu a Davi os materiais necessários à construção do palácio, para que este o edificasse na cidade que acabara de derrotar e teria de fortalecer e fortificar. Hirão ofereceu o material e os operários para a construção de um grande palácio e Davi, agradecido, aceitou. Hirão e Davi se tornaram amigos.
O texto nos diz que só depois da construção do palácio é que Davi compreende plenamente que é, de fato, o rei de Israel. Antes disso, tudo parecia um sonho demorado, mas agora ele sabe que a promessa de Deus fora cumprida. O que havia com a construção dessa casa que lhe dava essa sensação? Creio que a razão esteja relacionada com o provérbio: “Cuida dos teus negócios lá fora, apronta a lavoura no campo e, depois, edifica a tua casa.” (Provérbios 24:27)
Israel era uma nação agrícola. Não seria sábio construir uma casa antes de preparar o terreno. Quando o terrreno estava preparado, o agricultor se dedicava à construção da casa, pois a plantação precisava de tempo para se desenvolver. Era simplesmente uma questão de prioridade. Seria algo como alguém se mudar de São Paulo para o Paraná, comprando e mobiliando uma casa em Curitiba, para depois descobrir que o único emprego disponível era em Guarapuava. Teria sido bem melhor procurar emprego primeiro e depois procurar uma casa para comprar. Agora que Davi tinha sua casa, o seu palácio, ficava claro que o seu “emprego” como rei de Israel era coisa certa e garantida. A realidade de que Deus cumprira plenamente a promessa de que ele reinaria sobre Seu povo finalmente entrou na cabeça de Davi. O que ele havia esperado durante mais de 20 anos agora era seu. A construção do palácio em Jerusalém o convenceu de que tudo era real.
Havia ainda a segunda parte da construção da casa de Davi, que era a edificação de sua família. Embora ele já tivesse esposas e filhos antes de se mudar para Jerusalém (II Samuel 2:2; 3:2-5), foi lá que ele acrescentou muitas outras esposas, as quais lhe deram muitos outros filhos. Na cabeça das pessoas do antigo oriente, muitas esposas e muitos filhos era sinônimo de prosperidade. De acordo com essa avaliação, Davi realmente prosperou em Jerusalém! O problema era que, ao acrescentar mais esposas, Davi chegou muito perto da multiplicação de esposas, desprezando a advertência dada aos reis de Israel:
“Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro.” (Deuteronômio 17:17)
“Ouvindo, pois, os filisteus que Davi fora ungido rei sobre Israel, subiram todos para prender a Davi; ouvindo-o, desceu Davi à fortaleza. Mas vieram os filisteus e se estenderam pelo vale dos Refains. Davi consultou ao SENHOR, dizendo: Subirei contra os filisteus? Entregar-mos-ás nas mãos? Respondeu-lhe o SENHOR: Sobe, porque, certamente, entregarei os filisteus nas tuas mãos. Então, veio Davi a Baal-Perazim e os derrotou ali; e disse: Rompeu o SENHOR as fileiras inimigas diante de mim, como quem rompe águas. Por isso, chamou o nome daquele lugar Baal-Perazim. Os filisteus deixaram lá os seus ídolos; e Davi e os seus homens os levaram. Os filisteus tornaram a subir e se estenderam pelo vale dos Refains. Davi consultou ao SENHOR, e este lhe respondeu: Não subirás; rodeia por detrás deles e ataca-os por defronte das amoreiras. E há de ser que, ouvindo tu um estrondo de marcha pelas copas das amoreiras, então, te apressarás: é o SENHOR que saiu diante de ti, a ferir o arraial dos filisteus. Fez Davi como o SENHOR lhe ordenara; e feriu os filisteus desde Geba até chegar a Gezer.”
Só podemos imaginar a conversa que deve ter ocorrido entre os cinco reis filisteus quando recebem a notícia de que Davi tinha se tornado o rei de Israel. Aquis deve ter recebido uma porção de críticas por ter-lhe oferecido asilo (I Samuel 21:10-15; 27:1 - 28:2; 29:1-11). Durante algum tempo, Davi realmente fez parte do exército filisteu, e isso deve ter lhe dado um conhecimento que agora poderia ser usado contra eles. Por isso, eles resolvem partir para o ataque, na esperança de quebrar a resistência do exército de Davi e se livrar de um inimigo formidável.
Do ponto de vista estritamente militar, talvez tenha sido uma boa decisão. Quanto mais esperassem, mais Davi consolidaria seu reino e mais forte se tornaria o seu poderio militar. Contudo, Davi era o rei de Deus, que governava o povo de Deus, por isso, ele não seria derrotado. Quando ficou sabendo do ataque dos filisteus, Davi desceu, como está escrito, para a fortaleza (verso 17). De acordo com I Crônicas 11:15, parece que ele e seus homens fugiram para a caverna de Adulão. Foi enquanto ele e seus homens estavam lá que os filisteus tomaram Belém e montaram acampamento (I Crônicas 11:16 e ss). Será que eles esperavam encontrar Davi em Belém? De qualquer forma, foi na fortaleza que Davi manifestou o desejo de beber uma taça de água de seu poço predileto em Belém e três de seus valentes romperam as linhas filistéias para consegui-la (I Crônicas 11:16-9).
Se Davi realmente estava na caverna de Adulão no início da batalha com os filisteus, acho que isso é muito interessante e encorajador. Deus não desperdiça Seu tempo. Foi nessa caverna que a família de Davi e muitos de seus guerreiros se juntaram a ele (Só agora percebo porque sua família foi para lá. A caverna não devia ser muito longe de sua casa em Belém, e assim eles puderam escapar sem ser apanhados pelos homens de Saul.) Enquanto fugia de Saul, Davi deve ter encontrado uma porção dessas “fortalezas”, as quais lhe serviram muito bem, anos depois, quando lutava com povos como os filisteus.
No primeiro confronto com os filisteus, era atrás de Davi que eles estavam, e o novo rei pediu orientação divina. Davi perguntou ao Senhor se deveria subir contra eles. Deus lhe disse que sim, garantindo-lhe que Ele os entregaria em suas mãos (verso 19). Davi encontrou os inimigos em Baal-Perazim e os derrotou, chamando assim àquele lugar, como um lembrete de que o Senhor lhe dera uma vitória “de arromba” sobre o inimigo. Também está escrito que foi ali que os filisteus abandonaram seus ídolos, que foram recolhidos por Davi e seus homens (versp 21). De acordo com I Crônicas 14:12, eles os ajuntaram para que fossem queimados.
Li no jornal de hoje que Mike Tyson está ansioso pela revanche da luta contra Evander Holyfield, para quem perdeu em novembro passado. Ele não está disposto a amargar a derrota. Ele acha que não levou seu adversário muito a sério daquela vez. Os filisteus devem ter sentido a mesma coisa com relação a Davi e os israelitas. Eles não iriam desistir tão facilmente, pois não estavam dispostos a amargar a derrota. Eles queriam uma revanche. Por isso, fizeram novo ataque a Davi. E, uma vez mais, eles se espalharam pelo vale de Refaim (É quase como se quisessem recriar a primeira batalha, não é?). Davi fez mais ou menos as mesmas perguntas. Será que ele deveria subir contra os filisteus, exatamente como já havia feito? A resposta de Deus foi que ele deveria lutar contra eles, mas não da mesma maneira. Desta vez, em vez de atacá-los pela frente, Davi foi instruído a rodeá-los e atacá-los por trás. Os israelitas não deveriam atacar até ouvir o “estrondo de marcha pelas copas das amoreiras” (verso 24).
Algumas pessoas parecem pensar que foi apenas o barulho do vento nas árvores que dissimulou os sons da aproximação de Davi. Acho que foi muito mais do que isso. Deus é infinito e parece Se deleitar em dar a Seu povo vitórias militares mediante uma infindável variedadede de meios. Ele usou um temporal, com chuva, raios e trovões, que prejudicou totalmente os inimigos que usavam armas de ferro emultimídia cujos carros também não funcionaram devido a lama causada pelas chuvas (ver I Samuel 7:10). Depois, Ele utilizou um terremoto para sacudir o inimigo (I Samuel 14:15). Tempos antes, Ele havia dado a vitória a Israel sobre os amonitas, atacando-os com uma chuva de granizo (Josué 10:11). Em II Reis, capítulo 7, Ele afugentou o exército sírio fazendo-os ouvir os sons de um exército enorme, mesmo não havendo nenhum (versos 6 e 7). Por isso, sou inclinado a tomar as palavras de nosso texto (II Samuel 5:24) como o registro de outra “apresentação multimídia” de Deus, que serviu para enervar o inimigo e preparar o caminho para sua derrota às mãos de Davi. A derrota foi tão grande que Davi perseguiu-os até o seu próprio território (Gezer fica literalmente na fronteira do território filisteu). Essa derrota foi definitiva. Embora fosse de Saul a tarefa de libertar Israel do poder dos filisteus (I Samuel 9:16), ele foi morto e Israel derrotado por eles (I Samuel 31). Foi o rei Davi quem livrou Israel dos filisteus (II Samuel 19:9).
Chegar a este ponto na vida de Davi, sem dúvida nos dá uma enorme sensação de alívio e de alegria. Muitos anos se passaram desde que Samuel o ungiu como rei de Israel. Davi passou por muitas experiências dolorosas até chegar a este ponto. Houve bons tempos, tais como quando ele servia na casa de Saul como músico e quando ele e Jônatas, filho do rei, se tornaram grandes amigos. Houve ainda a derrota de Golias e as promoções dadas por Saul. Houve a bênção do casamento com uma das filhas do rei, o que o tornou membro da família real. No entanto, houve também muitos tempos ruins. Houve os anos de espera, escondendo-se de Saul. Houve tempos em que Davi teve de procurar refúgio entre os inimigos do povo de Deus. Agora tudo isso culmina no seu reinado sobre todo Israel. Realmente, esse é o melhor de todos os momentos, é tempo de celebração.
Davi me impressiona, principalmente quando o comparo com Saul. Ao contrário deste, Davi está sempre buscando a vontade de Deus e se esforçando para obedecer Seus mandamentos. Quando erra, ele se arrepende e procura fazer o que é certo. Embora Saul não tenha dado a Israel a vitória sobre os filisteus, Davi a dá. Embora Saul não tenha exercido uma liderança moral sobre a nação, Davi exerce. Repetidas vezes, Davi determina o padrão moral e espiritual para Judá e as outras tribos. Ele reaje corretamente à notícia da morte de Saul e à maldade daqueles que levantaram a mão contra o ungido do Senhor.
Ao contrário de Saul, Davi não é um rei que nada sabe além de administrar as crises, disposto apenas a “apagar o fogo”. Saul só resolvia problemas que não conseguia evitar. Davi resolve os problemas que seus antecessores evitaram, e com sucesso. A tomada de Jebus é um exemplo da iniciativa e liderança de Davi. Creio que ele entendeu a promessa de Deus de que Ele daria a Israel Jebus e aquela terra. Creio também que ele procurou obedecer a ordem de Deus, mesmo tendo sido dada muitos anos antes, ao derrotar os jebuseus e expulsá-los da terra. E creio ainda que ele viu Jebus como uma capital ideal, uma cidade que serviria para unificar as tribos de Israel sob seu comando. Ele poderia ter escolhido uma “coexistência pacífica” com os jebuseus, como outros fizeram antes dele; no entanto, em vez disso, ele tomou o caminho mais difícil e prevaleceu sobre seus inimigos. E a vitória foi tal que deu a Israel (e a seu rei) status e respeito (e até temor) entre as nações.
Se eu fosse fazer um resumo de todo o capítulo 5 de II Samuel, creio que poderia resumir essa unidade num único tema central: a reação dos homens ao rei de Deus. Embora Saul, Abner e muitos outros tenham resistido à ascensão de Davi ao trono, isso foi da vontade de Deus. Após a morte de Abner, o povo de Israel reconhece que Davi deve ser o rei e são seus líderes que vão até ele expressando o desejo de tê-lo como rei. Resumindo, as tribos de Israel se submetem a Davi como o rei de Deus (5:1-5). Os jebuseus se opõem a isso e Deus dá a Davi - o Seu rei, a vitória sobre eles (5:6-10). Eles são destruídos pelo rei de Deus porque se opuseram a ele. Hirão, rei de Tiro, parece ter reconhecido, de uma forma ou de outra, que Davi é o rei de Deus e, quando se oferece para ajudá-lo na construção do palácio, ele demonstra sua sumissão ao rei de Deus (5:11-12). Tomando para si mais mulheres e tendo mais filhos, Davi prospera como o rei de Deus (5:13-16). Os filisteus, entretanto, não se submetem a Davi como o rei de Deus. Eles o atacam, procurando eliminá-lo, para afastar a ameaça imposta por ele e a nação unida de Israel (5:17-25). Não apenas uma, mas duas vezes, eles atacam Davi e o exército de Israel. E duas vezes Deus dá a Davi a vitória sobre seus inimigos. Os que aceitaram Davi como o rei de Deus foram abençoados; os que o rejeitaram foram esmagados.
Com toda a certeza, Davi é um tipo do “Filho de Davi” que está por vir; o Rei de Deus que virá à terra para derrotar Seus inimigos e reinar sobre Seu povo.
“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.” (Salmo 2:1-12)
Este salmo fala profeticamente do dia em que Deus investirá o Seu Rei, o Senhor Jesus Cristo, em Seu trono. Os inimigos de Deus e do bem tentarão se unir para resistir a Ele e destruir o Seu reino. É óbvio que essa resistência é tola e desastrosa. Quando Deus estabelecer o Seu Rei em Seu trono, ninguém será capaz de se opor a Ele ou destruí-lO. Aqueles que tentarem serão esmagados. Só existe uma resposta sábia à vinda do Rei de Deus: submeter-se humildemente a Ele - pois nisso há grande bênção (versos 10-12)
Davi serve como um protótipo de nosso Senhor Jesus Cristo como o Rei de Deus, sobre o Qual nos fala o Salmo 2. Aqueles que se opuseram a Davi foram finalmente esmagados. Aqueles que se submeteram a ele foram abençoados. Quando nosso Senhor veio à terra há 2.000 anos, Deus deixou claro que Ele era, de fato, o Seu Filho, o Seu Rei:
“Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Então, disse Pedro a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas; uma será tua, outra para Moisés, outra para Elias. Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa os envolveu; e eis, vindo da nuvem, uma voz que dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi. Ouvindo-a os discípulos, caíram de bruços, tomados de grande medo.” (Mateus 17:1-6)
“Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galiléia e por João foi batizado no rio Jordão. Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo.” (Marcos 1:9-11)
“Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim. (Lucas 1:30-33)
“Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo! Perguntou-lhe Natanael: Donde me conheces? Respondeu-lhe Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira. Então, exclamou Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (João 1:47-49, ver também Mateus 2:1-6)
A despeito de todas as evidências, muitos religiosos preferiram rejeitar Jesus como o Messias de Deus. Eles se agarraram a pequenas coisas para provar a si mesmos e aos outros que ele não poderia ser o Rei de Deus. No entanto, todas as suas tentativas falharam. Quando O cruficicaram e O mataram, eles pensaram ter triunfado mas, quando Deus o ressuscitou de entre os mortos, ficou claro que foi Ele quem trinfou.
Jesus Cristo é o Rei de Deus. Quando nosso Senhor veio à terra pela primeira vez, Ele acrescentou à Sua deidade uma humanidade imaculada. Embora tenha sido apresentado como o Rei de Deus, Ele foi rejeitado e crucificado pelos homens pecadores. O propósito de Sua primeira vinda não foi estabelecer o Seu reino destituindo o governo de Roma, mas sim morrer pelo pecado dos homens, a fim de que eles pudessem entrar em Seu reino. Aqueles que confiam nEle para serem perdoados de seus pecados e para receberem o dom da vida eterna, aguardam Sua segunda vinda. Será no futuro que Ele derrotará Seus inimigos e estabelecerá Seu governo sobre a terra. Aqueles que o rejeitarem como o Rei de Deus serão derrotados, tal como os inimigos de Davi. Não há assunto mais importante para você resolver do que o seu relacionamento com Jesus Cristo, o Rei de Deus. Os que forem Seus amigos reinarão com Ele. Os que forem Seus inimigos serão destruídos. Que você seja como Hirão, rei de Tiro, não como os filisteus, que se colocaram contra Davi e contra Deus.
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Filipenses 2:5-11)
Tradução: Mariza Regina de Souza
Recentemente, minha esposa e eu tivemos o privilégio de participar do casamento de nossa filha Jenny. À medida que a data do casamento se aproximava e as coisas ficavam mais agitadas, alguém deu um livro à minha esposa, sugerindo que lêssemos um determinado capítulo. Não me recordo do título do livro, só do capítulo, o qual foi escrito por um ministro que falava sobre a cerimônia de casamento mais memorável que já havia realizado.
A futura noiva era uma jovem cuja mãe, para dizer o mínimo, era neurótica. Ela queria que o casamento simplesmente fosse perfeito; por isso, organizou tudo sozinha. Ela planejou a cerimônia até o último detalhe e depois examinou e reexaminou tudo para ter certeza de que nada fora esquecido. Obviamente, tinha de haver uma orquestra. O vestido era de tirar o fôlego. A igreja era uma maravilha arquitetônica. As flores, a cerimônia, o bolo, as bebidas, tudo fora arranjado sob o olhar atento da mãe da noiva. A mulher, literalmente, atormentou todo mundo que tomou parte da organização do casamento. O ensaio foi impecável, garantindo à mãe que tudo estava sob controle — seu controle.
Assim, o dia fatídico chegou, e a dita cerimônia... com acontecimentos inesperados. Enquanto aguardava para entrar na igreja, a noiva, toda nervosa, esperava com o pai no salão de festas. Caminhando por entre as mesas, ela pegava uma noz aqui, um pouco de ponche ali (enriquecido com champagne), um petisco acolá... Quando chegou o momento de entrar na igreja ao lado do pai, ela já havia passado por todas as mesas e experimentado tudo o que havia, diversas vezes. Ela nem pensava no que estava fazendo, nem o pai. E, assim, começou a processional. Todos os padrinhos estavam em seus lugares. O noivo estava em frente ao púlpito, ao lado do ministro, esperando a noiva. As damas de honra graciosamente desfilaram pela nave e tomaram seus lugares. Agora, era o momento culminante da noiva.
Enquanto ela e o pai atravessavam a nave em direção ao púlpito, ninguém parecia notar o rosto vermelho dela, quase contrastando com a cor do vestido. Assim que chegou à frente, enquanto sua mãe assistia do assento à sua esquerda, toda a comida que ela havia ingerido resolveu sair... e ela vomitou. Não me refiro a uma ânsia discreta, mal percebida quando se leva o lenço à boca. Refiro-me a um jato completo de tudo o que estava dentro do seu estômago. A noiva esguichou em todos e em tudo que estava por perto na frente do púlpito. Sua mãe foi a primeira a ser batizada, seguida pelo noivo e pelas damas de honra mais próximas. Na mesma hora levantou-se um fedor insuportável. É óbvio que a reação em cadeia era iminente. A mãe da noiva ficou horrorizada. A noiva desmaiou, mas foi amparada gentilmente pelo noivo. O pai conseguiu evitar a linha de fogo e sair do caminho, com um leve sorriso no rosto, ligeiramente divertido com o humor — e a ironia — da situação.
Rapidamente o pastor anunciou um breve recesso. A noiva foi limpa, assim como a bagunça na frente do púlpito. Os que haviam sido esguichados por ela recuperaram um pouco da sua compostura e dignidade. Em pouco tempo o casamento recomeçou e a cerimônia foi realizada... sem a pompa e a formalidade que a mãe tinha planejado. Dez anos mais tarde, todos riam enquanto assistiam à repetição dos acontecimentos, gravados mais do que adequadamente pelas três câmeras de vídeo que a mãe tinha cuidadosamente disposto, cada uma capturando, de um ângulo ligeiramente diferente, os detalhes implacáveis da cena.
Algumas vezes, não importa o quanto planejemos e orquestremos os acontecimentos, as coisas simplesmente saem erradas. Foi isso o que aconteceu com o rei Davi. Depois de capturar Jebus, ele resolveu em seu coração reaver a arca da aliança (aqui chamada de a “arca de Deus”), a qual era guardada pessoalmente na casa de Abinadabe, em Quiriate-Jearim. Davi consultou cuidadosamente os líderes da nação, a fim de que essa fosse uma decisão tomada por todos:
“Consultou Davi os capitães de mil, e os de cem, e todos os príncipes; e disse a toda a congregação de Israel: Se bem vos parece, e se vem isso do SENHOR, nosso Deus, enviemos depressa mensageiros a todos os nossos outros irmãos em todas as terras de Israel, e aos sacerdotes, e aos levitas com eles nas cidades e nos seus arredores, para que se reúnam conosco; tornemos a trazer para nós a arca do nosso Deus; porque nos dias de Saul não nos valemos dela. Então, toda a congregação concordou em que assim se fizesse; porque isso pareceu justo aos olhos de todo o povo. Reuniu, pois, Davi a todo o Israel, desde Sior do Egito até à entrada de Hamate, para trazer a arca de Deus de Quiriate-Jearim.” (I Crônicas 13:1-5)
Tal como na história do casamento, todos os detalhes para levar a arca para Jerusalém foram cuidadosamente pensados e todas as providências necessárias foram tomadas. Um carro novo foi adquirido para o transporte de pouco mais de 11 km da região sudeste para Jerusalém. A viagem envolvia algumas mudanças de terreno, uma vez que Quiriate-Jearim ficava nas montanhas, da mesma forma que Jerusalém, mas entre elas havia áreas mais baixas, o que significava algumas manobras morro acima e morro abaixo. Havia grande regozijo enquanto Davi e os israelitas levavam a arca. Ele e todos os que estavam com ele celebravam com todas as suas forças (I Crônicas 13:8; compare com II Samuel 6:5). Cantores com toda sorte de instrumentos musicais participavam da celebração e, pelo contexto, podemos inferir também que dançavam com entusiasmo.
De repente, algo saiu errado e um dos bois quase virou o carro. Não está escrito exatamente o que aconteceu. Talvez os bois tenham tropeçado, ou talvez tenham se assustado com o gesto entusiástico de alguém que porventura tenha chegado perto demais. De alguma forma, os bois perderam o controle por alguns momentos, o que abalou o carro, fazendo com que a arca fosse sacudida de forma a parecer que iria cair para fora. O pensamento da arca se espatifando no chão foi demais para Uzá, que caminhava ao lado do carro, perto da arca. Instintivamente ele estendeu a mão e segurou-a para não deixá-la cair. Quando ele o fez, Deus o feriu de morte. A celebração parou bruscamente. A alegria se transformou em espanto e perplexidade. A alegria de Davi se transformou em raiva, pois Deus havia dado “um banho de água fria em seu entusiasmo”. Tudo havia sido feito para honrar a Deus. Será que Ele não entendia? Por que Ele feriria de morte alguém que durante anos ajudara a cuidar da arca? Por que Ele arruinaria uma ocasião tão maravilhosa?
Davi queria a arca de Deus lá em Jerusalém, junto com ele. Agora que Uzá fora ferido de morte, Davi não queria continuar, receoso de levar a arca para perto dele. Ele decidiu, então, que seria melhor mantê-la a uma distância segura, pelo menos até que pudesse descobrir o que havia saído errado. Qual teria sido o problema? O que saiu errado? E qual seria a solução? Na verdade, o texto não nos diz. É quase como um enigma que devemos resolver sozinhos. A resposta está na Bíblia, como veremos, assim como sua aplicação para a nossa vida, tal como foi para a vida dos que viveram naquela época. Há ainda outra dimensão desta história que não mencionamos, que é a história de Mical, que também “deu um banho de água fria em Davi”. Disso também temos lições a aprender. Estejamos atentos, portanto, e aprendamos aquilo que o Espírito Santo tem para nos ensinar neste texto.
Tornou Davi a ajuntar todos os escolhidos de Israel, em número de trinta mil. Dispôs-se e, com todo o povo que tinha consigo, partiu para Baalá de Judá, para levarem de lá para cima a arca de Deus, sobre a qual se invoca o Nome, o nome do SENHOR dos Exércitos, que se assenta acima dos querubins. Puseram a arca de Deus num carro novo e a levaram da casa de Abinadabe, que estava no outeiro; e Uzá e Aiô, filhos de Abinadabe, guiavam o carro novo. Levaram-no com a arca de Deus, da casa de Abinadabe, que estava no outeiro; e Aiô ia adiante da arca. Davi e toda a casa de Israel alegravam-se perante o SENHOR, com toda sorte de instrumentos de pau de faia, com harpas, com saltérios, com tamboris, com pandeiros e com címbalos. Quando chegaram à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus e a segurou, porque os bois tropeçaram. Então, a ira do SENHOR se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverência; e morreu ali junto à arca de Deus. Desgostou-se Davi, porque o SENHOR irrompera contra Uzá; e chamou aquele lugar Perez-Uzá, até ao dia de hoje. Temeu Davi ao SENHOR, naquele dia, e disse: Como virá a mim a arca do SENHOR? Não quis Davi retirar para junto de si a arca do SENHOR, para a Cidade de Davi; mas a fez levar à casa de Obede-Edom, o geteu. Ficou a arca do SENHOR em casa de Obede-Edom, o geteu, três meses; e o SENHOR o abençoou e a toda a sua casa.”
Descobrimos o que saiu errado aqui voltando na história de Israel, no tempo em que Deus lhes deu a lei, quando lhes deu também instruções a respeito da construção e transporte da arca. Estas são as palavras que Deus disse a Moisés a respeito do tabernáculo e da arca da aliança.
“E me farão um santuário, para que eu possa habitar no meio deles. Segundo tudo o que eu te mostrar para modelo do tabernáculo e para modelo de todos os seus móveis, assim mesmo o fareis. Também farão uma arca de madeira de acácia; de dois côvados e meio será o seu comprimento, de um côvado e meio, a largura, e de um côvado e meio, a altura. De ouro puro a cobrirás; por dentro e por fora a cobrirás e farás sobre ela uma bordadura de ouro ao redor. Fundirás para ela quatro argolas de ouro e as porás nos quatro cantos da arca: duas argolas num lado dela e duas argolas noutro lado. Farás também varais de madeira de acácia e os cobrirás de ouro; meterás os varais nas argolas aos lados da arca, para se levar por meio deles a arca. Os varais ficarão nas argolas da arca e não se tirarão dela. E porás na arca o Testemunho, que eu te darei. Farás também um propiciatório de ouro puro; de dois côvados e meio será o seu comprimento, e a largura, de um côvado e meio. Farás dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório; um querubim, na extremidade de uma parte, e o outro, na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório fareis os querubins nas duas extremidades dele. Os querubins estenderão as asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; estarão eles de faces voltadas uma para a outra, olhando para o propiciatório. Porás o propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho, que eu te darei. Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.” (Êxodo 25:8-22)
Quando o tabernáculo foi levantando pela primeira vez, a presença do Senhor apareceu ali na tenda:
“Então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo.” (Êxodo 40:34-35)
Deus deu instruções bem claras a respeito da arca. Ele não deu só instruções específicas quanto a sua construção, Ele também indicou quem poderia carregá-la e como ela deveria ser transportada de um lugar para outro. Em Números 5, Deus diz exatamente como o tabernáculo deve ser desmontado e levado até a próxima parada. Repare especialmente nas palavras do verso 15:
“Havendo, pois, Arão e seus filhos, ao partir o arraial, acabado de cobrir o santuário e todos os móveis dele, então, os filhos de Coate virão para levá-lo; mas, nas coisas santas, não tocarão, para que não morram; são estas as coisas da tenda da congregação que os filhos de Coate devem levar.” (Números 4:15; ver também 7:9)
Precisamos nos lembrar de que, de acordo com Êxodo 25:14-15, a arca possuía argolas em que deveriam ser colocadas varas, e essas varas eram a forma pela qual os coatitas deveriam transportar a arca.
A arca acompanhou os israelitas em todos os lugares onde estiveram no deserto. Ela foi adiante deles quando atravessaram o Jordão (Josué 3:14-17). Com frequência vemos menção dela em I e II Samuel. Samuel dormia perto dela quando criança (I Samuel 3:3). Quando os israelitas estavam sendo derrotados pelos filisteus, eles insensatamente a levaram para o campo de batalha como se ela fosse um amuleto mágico. Eles não só perderam a batalha, como também a arca (I Samuel 4). Os capítulos seguintes (5 e 6) de I Samuel são o relato de como Deus mandou uma praga sobre os filisteus, para que finalmente decidissem que não a queriam entre eles. O mais interessante foi o método escolhido por eles para devolver a arca para território israelita. Os sacerdotes e adivinhos filisteus deram aos líderes instruções a respeito de como a arca deveria ser removida. Repare nessas instruções e no que aconteceu:
“Agora, pois, fazei um carro novo, tomai duas vacas com crias, sobre as quais não se pôs ainda jugo, e atai-as ao carro; seus bezerros, levá-los-eis para casa. Então, tomai a arca do SENHOR, e ponde-a sobre o carro, e metei num cofre, ao seu lado, as figuras de ouro que lhe haveis de entregar como oferta pela culpa; e deixai-a ir. Reparai: se subir pelo caminho rumo do seu território a Bete-Semes, foi ele que nos fez este grande mal; e, se não, saberemos que não foi a sua mão que nos feriu; foi casual o que nos sucedeu. Assim fizeram aqueles homens, e tomaram duas vacas com crias, e as ataram ao carro, e os seus bezerros encerraram em casa. Puseram a arca do SENHOR sobre o carro, como também o cofre com os ratos de ouro e com as imitações dos tumores. As vacas se encaminharam diretamente para Bete-Semes e, andando e berrando, seguiam sempre por esse mesmo caminho, sem se desviarem nem para a direita nem para a esquerda; os príncipes dos filisteus foram atrás delas, até ao território de Bete-Semes.” (I Samuel 6:7-12)
Não é de se estranhar que os filisteus tenham escolhido transportar a arca num carro novo conduzido por duas vacas. Primeiro, eles não tinham conhecimento da lei, por isso, certamente não sabiam o que Deus tinha dito sobre como a arca deveria ser transportada. Além disso, onde eles arranjariam coatitas para carregá-la? O mais importante para eles era que esse método de transporte seria uma espécie de teste, a fim de que pudessem determinar se todas as pragas tinham sido realmente enviadas pela mão de Deus ou se simplesmente era “má sorte”. O fato de duas vacas deixarem seus bezerros, sem ninguém conduzindo o carro, e entrarem em território israelita, era difícil demais para ser coincidência. Isso era coisa da mão de Deus.
O problema agora é que os israelitas imitaram os filisteus em vez de obedecer a Deus. Creio que as instruções dadas por Deus em Sua lei foram simplesmente esquecidas, não deliberadamente ignoradas ou desobedecidas. A arca ficou muitos anos sem ser transportada. Ela ficou fora de circulação, fora de uso, na casa de Abinadabe durante uns bons 20 anos, antes de ser usada novamente para qualquer coisa (ver I Samuel 7:2; 14:18-19). É fácil perceber porque ninguém deu importância particular às instruções dadas por Deus a Israel para o transporte no deserto.
Além de tudo, quem iria querer carregar a arca na mão, quando ela poderia simplesmente ser levada num carro de bois? Quando eu era jovem, bons anos atrás, meu pai decidiu mudar uma das construções que havia feito. O barracão, feito de troncos, era usado como uma espécie de garagem. Ele queria movê-lo uns trinta e poucos metros. Ele pretendia usar o que chamávamos de “puxador de tocos”, uma máquina pesada com um longo cabo preso a ela. Movendo-se uns 5 metros para frente e para trás, o cabo poderia avançar cerca de 3 cm. Isso funcionava muito bem com tocos. Lembro-me desse puxador suspenso por um cabo tão esticado que, literalmente, podia até cantar — uma coisa meio assustadora, devo dizer. Como eu era jovem e meio preguiçoso, estava ansioso para achar um meio mais rápido e mais fácil de mover aquele barracão, por isso, propus que enganchássemos uma corrente nele e o puxássemos com a picape. Eu dirigiria, é claro. Meu pai titubeou por alguns instantes, mas concordou em tentar. Enganchei a corrente na carroceria da picape e estava pronto para dar a partida quando ele caiu em si e mudou de ideia. Ele me disse para ir pegar o puxador de tocos, conforme tinha planejado. Pelo menos eu iria dirigir até o puxador. Entrei na picape e sai em disparada, esquecendo-me de desenganchar a corrente. Para horror do meu pai, quase coloquei o barracão abaixo.
Se eu vivesse na época de Davi, também iria querer usar um carro de bois, principalmente se eu fosse um dos escolhidos para levar a arca nos ombros. Fazia sentido. Era mais fácil. No entanto, não era isso o que Deus havia prescrito. E o método prescrito por Deus não era uma regra sem sentido. Era uma regra que tinha suas razões. O fato de tocar na arca ser uma coisa tão séria é revelado para nós no verso dois de nosso texto:
“Dispôs-se e, com todo o povo que tinha consigo, partiu para Baalá de Judá, para levarem de lá para cima a arca de Deus, sobre a qual se invoca o Nome, o nome do SENHOR dos Exércitos, que se assenta acima dos querubins.”
Em Êxodo 25, Deus disse a Moisés que Se encontraria com ele e lhe falaria de cima da arca, do meio dos querubins (25:22). Deus escolheu manifestar Sua presença no tabernáculo, especificamente de sobre a arca. Quando a glória de Deus encheu o tabernáculo pela primeira vez, nem mesmo Moisés pôde entrar nele (Êxodo 40:34-35). Homens pecaminosos não podem se aproximar de um Deus santo.
Não é de admirar que Uzá tenha sido ferido de morte por ter colocado as mãos na arca. A arca era santa. Não podia ser tocada. Qualquer um que a tocasse morreria. Usando varas, os homens poderiam transportá-la sem tocar nela. E esses homens, andando em passo uns com os outros, davam estabilidade à arca. Colocá-la num carro de bois deixou-a suscetível aos movimentos do carro, com menos estabilidade, e portanto, com maior probabilidade de cair para fora. O único jeito de impedir que isso acontecesse era segurando-a, como Uzá segurou, e morrendo, como Uzá morreu.
Davi e todos os envolvidos no transporte da arca erraram de diversas maneiras. Primeiro, eles perderam o temor e a reverência que deveriam ter pela santidade de Deus. Segundo, eles se esqueceram das instruções claras de Deus, estabelecidas na lei, para o transporte da arca. E terceiro, eles se esqueceram da dura lição aprendida por Israel num passado não tão distante. Quando a arca retornou dos filisteus, a negligência por parte de alguns israelitas custou-lhes a vida:
“Feriu o SENHOR os homens de Bete-Semes, porque olharam para dentro da arca do SENHOR, sim, feriu deles setenta homens; então, o povo chorou, porquanto o SENHOR fizera tão grande morticínio entre eles. Então, disseram os homens de Bete-Semes: Quem poderia estar perante o SENHOR, este Deus santo? E para quem subirá desde nós? Enviaram, pois, mensageiros aos habitantes de Quiriate-Jearim, dizendo: Os filisteus devolveram a arca do SENHOR; descei, pois, e fazei-a subir para vós outros.” (I Samuel 6:19-21)
Como é irônico ver os israelitas imitando os filisteus. A irreverência destes fez com que suas cidades fossem atacadas por pragas. Eles acabaram temendo ao Senhor, especialmente Sua arca, e procuraram mandá-la para outro lugar. Agora, quando a arca está de volta aos israelitas, eles são irreverentes e são castigados por Deus, a fim de que também queiram enviá-la para outra pessoa. A lição de I Samuel 6 já foi esquecida em II Samuel 6, e devo lembrar-lhes que no texto original esses dois livros eram apenas um. Uns poucos anos, ou poucos capítulos, e as lições aprendidas de um modo difícil foram rapidamente esquecidas. Por que será que achamos mais fácil reviver a história do que aprender com ela?
“Então, avisaram a Davi, dizendo: O SENHOR abençoou a casa de Obede-Edom e tudo quanto tem, por amor da arca de Deus; foi, pois, Davi e, com alegria, fez subir a arca de Deus da casa de Obede-Edom, à Cidade de Davi. Sucedeu que, quando os que levavam a arca do SENHOR tinham dado seis passos, sacrificava ele bois e carneiros cevados. Davi dançava com todas as suas forças diante do SENHOR; e estava cingido de uma estola sacerdotal de linho. Assim, Davi, com todo o Israel, fez subir a arca do SENHOR, com júbilo e ao som de trombetas. Ao entrar a arca do SENHOR na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo ao rei Davi, que ia saltando e dançando diante do SENHOR, o desprezou no seu coração. Introduziram a arca do SENHOR e puseram-na no seu lugar, na tenda que lhe armara Davi; e este trouxe holocaustos e ofertas pacíficas perante o SENHOR. Tendo Davi trazido holocaustos e ofertas pacíficas, abençoou o povo em nome do SENHOR dos Exércitos. E repartiu a todo o povo e a toda a multidão de Israel, tanto homens como mulheres, a cada um, um bolo de pão, um bom pedaço de carne e passas. Então, se retirou todo o povo, cada um para sua casa.”
Devia haver um ar de tristeza em Jerusalém enquanto a arca esteve na casa de Obede-Edom. Entretanto, foram grandes dias para ele e sua família. Não sabemos quais foram as bênçãos que receberam, mas sabemos que ele e sua família foram abençoados por Deus durante o tempo em que arca permaneceu em sua casa. O povo soube disso e a notícia chegou a Davi. Era um sinal de sorte. Será que Davi tinha concluído que a arca trazia algum tipo de maldição para quem estivesse perto dela? Se era isso, certamente ele não iria querer que ela ficasse com ele em Jerusalém. Foi por isso que ele quis mantê-la a uma distância segura na casa de Obede-Edom. No entanto, agora ficava claro que a arca era realmente uma fonte de bênçãos. O que teria saído errado para provocar a morte de Uzá? Como isso poderia ser corrigido, a fim de que a arca e suas bênçãos pudessem chegar a Jerusalém? Essas perguntas devem ter atormentado a cabeça de Davi, e dos outros israelitas também.
Creio que deveríamos saber a resposta, por isso o autor não nos dá maiores detalhes. O autor de Crônicas já não presume tanto da parte de seus leitores, pois diz claramente:
“Fez também Davi casas para si mesmo, na Cidade de Davi; e preparou um lugar para a arca de Deus e lhe armou uma tenda. Então, disse Davi: Ninguém pode levar a arca de Deus, senão os levitas; porque o SENHOR os elegeu, para levarem a arca de Deus e o servirem para sempre. Davi reuniu a todo o Israel em Jerusalém, para fazerem subir a arca do SENHOR ao seu lugar, que lhe tinha preparado. Reuniu Davi os filhos de Arão e os levitas: dos filhos de Coate: Uriel, o chefe, e seus irmãos, cento e vinte; dos filhos de Merari: Asaías, o chefe, e seus irmãos, duzentos e vinte; dos filhos de Gérson: Joel, o chefe, e seus irmãos, cento e trinta; dos filhos de Elisafã: Semaías, o chefe, e seus irmãos, duzentos; dos filhos de Hebrom: Eliel, o chefe, e seus irmãos, oitenta; dos filhos de Uziel: Aminadabe, o chefe, e seus irmãos, cento e doze. Chamou Davi os sacerdotes Zadoque e Abiatar e os levitas Uriel, Asaías, Joel, Semaías, Eliel e Aminadabe e lhes disse: Vós sois os cabeças das famílias dos levitas; santificai-vos, vós e vossos irmãos, para que façais subir a arca do SENHOR, Deus de Israel, ao lugar que lhe preparei. Pois, visto que não a levastes na primeira vez, o SENHOR, nosso Deus, irrompeu contra nós, porque, então, não o buscamos, segundo nos fora ordenado. Santificaram-se, pois, os sacerdotes e levitas, para fazerem subir a arca do SENHOR, Deus de Israel. Os filhos dos levitas trouxeram a arca de Deus aos ombros pelas varas que nela estavam, como Moisés tinha ordenado, segundo a palavra do SENHOR.” (I Crônicas 15:1-15)
Primeiro Davi ficou com raiva pela morte de Uzá, depois rapidamente sua raiva se transformou em temor. Seu temor era saudável e bem fundado, no entanto, Deus queria estar perto do Seu povo para abençoá-los. A única maneira disso acontecer era os homens se aproximarem Dele do jeito que Ele havia prescrito. A presença de Deus estava associada à arca. Os homens podiam se aproximar, mas não muito. Eles não podiam tocar na arca, para que não morressem. Isso significava que a única maneira de transportar a arca era como Deus havia dito, pelos coatitas, que deveriam carregá-la pelas varas colocadas nas argolas.
Agora Davi tinha certeza de que a proximidade da arca era uma bênção, mas também que ela deveria ser levada para Jerusalém de acordo com as instruções dadas por Deus. Por isso, ele reuniu os israelitas e comissionou os filhos de Coate para carregá-la, instruindo-os cuidadosamente quanto a maneira de desempenhar seus deveres. O autor nos informa que, depois que eles deram seis passos carregando a arca, foi oferecido um sacrifício. Esses passos, sem dúvida, foram os mais tensos de toda a jornada. Depois da morte de Uzá, os que ficavam mais perto da arca (os coatitas) com certeza ficaram bastante nervosos por estarem tão próximos do baú sagrado, ou seja, da presença do próprio Deus. À medida que a jornada prosseguia, a coragem e a alegria dos homens devia ir aumentado. Logo havia grande celebração enquanto caminhavam para a cidade santa.
O texto de II Samuel nos informa que houve grande celebração quando a arca foi levada para Jerusalém. O relato paralelo de I Crônicas é ainda mais detalhado. Não foi apenas um pequeno grupo de israelitas, “mas toda a casa de Israel” (II Samuel 6:15). Da primeira vez, naquela malfadada jornada, músicos acompanharam a arca (II Samuel 6:5). Na segunda, na jornada bem sucedida, havia uma verdadeira multidão deles (II Crônicas 15:16-24). Este foi um dos grandes momentos da história de Israel:
“Assim, todo o Israel fez subir com júbilo a arca da Aliança do SENHOR, ao som de clarins, de trombetas e de címbalos, fazendo ressoar alaúdes e harpas.” (I Crônicas 15:28)
Foi um momento de celebração, de oferecimento de sacrifícios e de banquetes:
“Introduziram a arca do SENHOR e puseram-na no seu lugar, na tenda que lhe armara Davi; e este trouxe holocaustos e ofertas pacíficas perante o SENHOR. Tendo Davi trazido holocaustos e ofertas pacíficas, abençoou o povo em nome do SENHOR dos Exércitos. E repartiu a todo o povo e a toda a multidão de Israel, tanto homens como mulheres, a cada um, um bolo de pão, um bom pedaço de carne e passas. Então, se retirou todo o povo, cada um para sua casa.” (II Samuel 6:17-19)
“Ao entrar a arca do SENHOR na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo ao rei Davi, que ia saltando e dançando diante do SENHOR, o desprezou no seu coração... Voltando Davi para abençoar a sua casa, Mical, filha de Saul, saiu a encontrar-se com ele e lhe disse: Que bela figura fez o rei de Israel, descobrindo-se, hoje, aos olhos das servas de seus servos, como, sem pejo, se descobre um vadio qualquer! Disse, porém, Davi a Mical: Perante o SENHOR, que me escolheu a mim antes do que a teu pai e a toda a sua casa, mandando-me que fosse chefe sobre o povo do SENHOR, sobre Israel, perante o SENHOR me tenho alegrado. Ainda mais desprezível me farei e me humilharei aos meus olhos; quanto às servas, de quem falaste, delas serei honrado. Mical, filha de Saul, não teve filhos, até ao dia da sua morte.”
Parece que havia apenas uma única pessoa em todo Israel que não queria, que não iria, participar do espírito alegre e comemorativo, e essa pessoa era Mical, esposa de Davi. O autor de Crônicas não dá muita importância ao fato, dedicando apenas um verso ao assunto e informando que, quando Mical olhou para Davi, ela o desprezou em seu coração pela figura que ele fez durante a celebração (I Crônicas 15:29). O autor de I e II Samuel tem um verso parecido (II Samuel 6:16), mas depois ele reforça o texto com a descrição do confronto que se seguiu entre Davi e Mical, informando também sua consequência.
Consideremos primeiro o que parece ser a visão de Mical de tudo o que estava acontecendo. Ela não fazia parte da festa; era apenas uma espectadora, não uma participante. Ela estava olhando da janela do palácio, observando a arca entrar na cidade (verso 16). Todo o restante da nação estava nas ruas. Na verdade, toda a nação estivera com a arca desde que ela deixara a casa de Obede-Edom. Mical não estava na caravana que acompanhou a arca. Parece que ela não queria estar lá. Mesmo que ela não estivesse particularmente entusiasmada com os acontecimentos, achamos que ela poderia, pelo menos, aparecer ao lado do marido, mas isso não aconteceu.
A festa, enfim, acabou, e Davi foi para casa para abençoar seus familiares. Mical não tinha nenhuma intenção de fazer parte disso, por isso, deu um “banho” no louvor e nas bênçãos de Davi. Ela devia estar na porta quando ele chegou, de cara feira e com as mãos na cintura. Antes mesmo que Davi pudesse abrir a boca, ela parece ter despejado toda a sua raiva sobre ele. O que será que ela viu, ou pensou ter visto, que a deixou tão zangada? De acordo com suas próprias palavras, ela viu um rei, um homem de posição e poder, agindo como um tolo. Ela viu um homem indecentemente vestido - não nu, permitam-me dizer, mas vestido de uma forma que estava muito aquém de sua posição - e ficou lívida de raiva. Davi agira como um tolo; ele envergonhou a si mesmo e, com certeza, a ela também.
Antes de passarmos para a visão de Davi da mesma situação, vamos primeiro dar uma olhada no que o autor nos diz. Como ele vê Davi neste texto? Será que sua avaliação da situação desculpa a atitude de Mical? Em primeiro lugar, devemos notar que o autor não sugere que Davi estava nu ou inadequadamente vestido. Ele diz que Davi dançava com todas as suas forças, e que vestia uma estola sacerdotal de linho (6:14). Também nos diz que quando Mical, esposa de Davi, viu isso, ela o desprezou em seu coração (6:16).
O autor de Crônicas nos dá mais detalhes sobre o que Davi fez:
“Foram Davi, e os anciãos de Israel, e os capitães de milhares, para fazerem subir, com alegria, a arca da Aliança do SENHOR, da casa de Obede-Edom. Tendo Deus ajudado os levitas que levavam a arca da Aliança do SENHOR, ofereceram em sacrifício sete novilhos e sete carneiros. Davi ia vestido de um manto de linho fino, como também todos os levitas que levavam a arca, e os cantores, e Quenanias, chefe dos que levavam a arca e dos cantores; Davi vestia também uma estola sacerdotal de linho. Assim, todo o Israel fez subir com júbilo a arca da Aliança do SENHOR, ao som de clarins, de trombetas e de címbalos, fazendo ressoar alaúdes e harpas.” (I Crônicas 15:25-28)
A primeira coisa que gostaria de ressaltar é que Davi não estava sozinho. Ele festejava junto com todo Israel. Se ele estava dançando, todos estavam, e todos incluía os principais líderes da nação. Davi estava alegre e exultante? Todos também estavam; bem, quase todos; exceto Mical, é claro. Davi vestia uma estola sacerdotal de linho? Era isso também o que Samuel costumava usar quando ministrava diante do Senhor (I Samuel 2:18). Era assim que os sacerdotes se vestiam (I Crônicas 15:27).
Mical não estava zangada por Davi ter feito algo errado, por ter se sobressaído ao resto do povo. Ela estava zangada por ele ter se comportado como o povo, como a plebe, e por ter se vestido como um reles sacerdote. Ela estava zangada por ele não ter agido como um rei que adorava a Deus. Ele tinha se humilhado. Tinha se diminuído. Tinha se rebaixado. E Mical não o perdoaria por isso. Se, da primeira vez, Deus havia dado um banho de água fria no entusiasmo de Davi com a morte de Uzá, agora Mical dá outro banho, desprezando-o e criticando-o por não agir como rei.
As palavras de Davi à sua esposa são duras e podem até parecer grosseiras, mas é porque refletem a maldade do coração de Mical. Um homem justo não poderia simplesmente aceitar a repreensão dela. Ele tinha muitas coisas a dizer para sua esposa:
1) A conduta dele, que Mical achou tão repulsiva, tinha sido “diante do Senhor” (6:21). As ações de Davi podem ter sido vistas por sua esposa, mas não foram para lisonjeá-la, foram para honrar ao Senhor. Ele não estava dançando para ela. Nem mesmo para a multidão. Ele estava dançando para o Senhor. A adoração dele não tinha a intenção de agradá-la. Isso me faz recordar das palavras do apóstolo Paulo:
“Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo.” (Gálatas 12:10)
“Pois a nossa exortação não procede de engano, nem de impureza, nem se baseia em dolo; pelo contrário, visto que fomos aprovados por Deus, a ponto de nos confiar ele o evangelho, assim falamos, não para que agrademos a homens, e sim a Deus, que prova o nosso coração. A verdade é que nunca usamos de linguagem de bajulação, como sabeis, nem de intuitos gananciosos. Deus disto é testemunha. Também jamais andamos buscando glória de homens, nem de vós, nem de outros.” (I Tessalonicenses 2:3-6)
Receio que, atualmente, o culto a Deus tenha se transformado em um espetáculo; um espetáculo para o público, não para Deus. As palavras de Davi para sua esposa poderiam muito bem se aplicar a nós. O culto deve ser “diante de Deus”, realizado para o Seu prazer e para a Sua aprovação, não para o prazer e aprovação dos homens. Distante demais do que deveria ser, o culto de nossos dias talvez seja apenas para o agrado dos homens.
2) Davi não deixará de celebrar, principalmente porque aquele a quem ele quer agradar é também Aquele que o escolheu (6:21). Acho que Mical ficou zangada porque Davi estava celebrando, pois estava muito feliz. Ela era como muitos cristãos atuais que parecem dizer: “Tire esse sorriso do rosto. Você não sabe que está na igreja?” Davi estava celebrando porque tinha muito o que celebrar. Ele celebrava o seu reinado, e o seu reinado lhe fora dado por Deus. Como, então, isso poderia ser errado? Errado seria não se regozijar naquilo que dava prazer a Deus.
Fico me perguntando quanto tempo faz desde a última vez que fizemos algo com alegria, exultação e entusiasmo. Não há nenhuma virtude em ser carrancudo. Não há desculpas para ficar de cara fechada quando o próprio Deus Se regozija, quando Ele Se satisfaz. Deveríamos nos regozijar não só com aqueles (nossos semelhantes) que se regozijam (Romanos 12:15), mas também com aqueles em quem Deus Se regozija. Receio que sejamos mais parecidos com Mical do que com Davi, quando se trata de celebrar com júbilo ao nosso Deus e às Suas obras.
3) Terceiro, Davi relembra à sua esposa que ela está agindo como o pai dela, e que ele, seu marido, foi escolhido por Deus para reinar em lugar dele. Deus exaltou Davi sobre Saul, pai de Mical. Ele instituiu Davi em lugar de Saul. Ele rejeitou a casa de Saul e começou tudo de novo com Davi e sua casa. E eis Mical tomando o lugar de seu pai. Como ela podia ter tanto orgulho, orgulho do status de filha do rei (Saul)? Por que ela sentia tanto desprezo por Davi, mesmo sendo ele o escolhido de Deus para reinar em Israel? A razão era simplesmente porque ela era filha de seu pai. Será que a incomodava o fato de Davi ter conquistado o coração do povo e ter se negado a ficar longe daqueles a quem governava? Ao invés de ficar ao lado de Davi, como fez Jônatas, ela se colocou contra ele. E, nesse ponto, ela era exatamente como o pai dela. Contudo, que ela seja relembrada de que Deus rejeitou seu pai. E, por isso, Davi também a rejeita. Se Davi não teve mais relações íntimas com ela ou se Deus simplesmente fechou o seu ventre, o fato é que Mical morreu sem filhos. De acordo com o primeiro capítulo de I Samuel, sabemos que isso era fonte de grande tristeza, vergonha e dor. O julgamento de Deus estava sobre ela.
4) Quarto, Davi governava seu povo como um servo humilde, não como um tirano. Mical desprezou e criticou Davi por ele não ter agido como rei. A resposta de Davi parece ter sido que, uma vez que Deus o fez rei, ele seria o tipo de rei que Deus queria. Ele não seria um rei como Saul, pai de Mical, pois Deus o destituiu, rejeitando-o como rei. Deus levantou Davi para ser um rei diferente, um rei-servo. Se esse era o tipo de rei que Mical não gostava, que fosse; Davi seria o tipo que Deus o designou para ser. Ele se identificava com o povo em vez de se diferenciar dele. Mais ainda, ele vestiu-se e adorou a Deus “como sacerdote” (6:14-19, I Crônicas 15:25-27). Deus não chamara Israel para ser “reino de sacerdotes”? (Êxodo 19:6) Quando vestiu a estola sacerdotal, Davi exerceu uma forma legítima de sacerdócio.
Saul errou quando tomou o lugar de Samuel como profeta e sacerdote (I Samuel 13:8-9). Ele errou porque desobedeceu uma ordem explícita de Deus. Davi exerceu seu sacerdócio de maneira agradável a Deus. No entanto, na cabeça de Mical, essa posição humilde estava aquém da dignidade de um rei; e assim ela desprezou o marido porque ele se humilhou diante do povo.
Este texto está repleto de lições para nós. Primeiro, podemos aprender com Uzá. Não sabemos muita coisa a respeito dele. Também não temos certeza sobre o seu relacionamento com Deus. Não sabemos quais foram seus motivos para estender a mão e tocar na arca. De um modo geral, sou propenso a lhe dar o benefício da dúvida. Acho que ele estava realmente preocupado com a possibilidade da arca cair no chão, e tocar nela não lhe pareceu uma coisa tão séria, caso estivesse tentando salvá-la.
Sabemos que ele cresceu tendo a arca em sua casa (I Samuel 7:1-2; II Samuel 6:2-4). Será que ele estava acostumado demais às coisas sagradas? Com certeza, essa é uma possibilidade. O mesmo perigo existe para nós. Todas as semanas somos lembrados da obra expiatória de nosso Senhor na cruz do Calvário quando celebramos a Santa Ceia. Os santos de Corinto começaram a ver isso como um ritual, e sua conduta à mesa do Senhor não estava agradando a Deus. Paulo lhes disse que eles tinham deixado de “discernir o corpo” (I Cotíntios 11:29). Por isso, uma porção de irmãos estava ficando doente, e alguns até morreram (11:30). Vamos estar mais atentos à santidade de Deus e ser mais reverentes em nossa adoração. Deus leva muito a sério nossa insensibilidade para com a Sua santidade.
Ananias e Safira estavam mais preocupados com o que o povo pensava deles do que como Deus os via. Por isso, mentiram ao Espírito Santo, dizendo que haviam dado todo o dinheiro da venda de sua propriedade, em vez de somente uma parte (Atos 5:1-11). Deus é um Deus santo que chama Seu povo à santidade (ver I Pedro 1:14-16). Ele leva nosso pecado muito a sério. Quando Herodes não Lhe deu glória e aceitou ser glorificado pelo povo como um deus, Deus o feriu de morte (Atos 12:20-23). Desrespeito à santidade de Deus pode ser mortal.
Uzá é um lembrete para nós de que a santidade de Deus é tamanha que homens pecaminosos não podem se aproximar Dele a menos que Ele providencie um meio para isso. Depois da queda, Deus teve que expulsar Adão e Eva do jardim do Éden. Ele providenciou-lhes uma cobertura, mas essa foi só uma solução parcial. Quando Deus libertou Israel do cativeiro egípcio, Ele lhes deu Sua lei no monte Sinai. Sua glória e majestade foram reveladas aos israelitas:
“Ao amanhecer do terceiro dia, houve trovões, e relâmpagos, e uma espessa nuvem sobre o monte, e mui forte clangor de trombeta, de maneira que todo o povo que estava no arraial se estremeceu. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. Todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR descera sobre ele em fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente. E o clangor da trombeta ia aumentando cada vez mais; Moisés falava, e Deus lhe respondia no trovão. Descendo o SENHOR para o cimo do monte Sinai, chamou o SENHOR a Moisés para o cimo do monte. Moisés subiu,” (Êxodo 19:16-20)
Mais de uma vez, Deus estabeleceu limites além dos quais nem homem nem animal poderia passar. Ele fez Moisés advertir o povo a respeito do perigo de se aproximar demais Dele:
“Marcarás em redor limites ao povo, dizendo: Guardai-vos de subir ao monte, nem toqueis o seu limite; todo aquele que tocar o monte será morto. Mão nenhuma tocará neste, mas será apedrejado ou flechado; quer seja animal, quer seja homem, não viverá. Quando soar longamente a buzina, então, subirão ao monte.” (Êxodo 19:12-13)
“Descendo o SENHOR para o cimo do monte Sinai, chamou o SENHOR a Moisés para o cimo do monte. Moisés subiu, e o SENHOR disse a Moisés: Desce, adverte ao povo que não traspasse o limite até ao SENHOR para vê-lo, a fim de muitos deles não perecerem. Também os sacerdotes, que se chegam ao SENHOR, se hão de consagrar, para que o SENHOR não os fira. Então, disse Moisés ao SENHOR: O povo não poderá subir ao monte Sinai, porque tu nos advertiste, dizendo: Marca limites ao redor do monte e consagra-o. Replicou-lhe o SENHOR: Vai, desce; depois, subirás tu, e Arão contigo; os sacerdotes, porém, e o povo não traspassem o limite para subir ao SENHOR, para que não os fira. Desceu, pois, Moisés ao povo e lhe disse tudo isso.” (Êxodo 19:20-25)
Lembro-me das palavras que Moisés disse aos israelitas antes de entrarem na terra prometida:
“O SENHOR, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás, segundo tudo o que pediste ao SENHOR, teu Deus, em Horebe, quando reunido o povo: Não ouvirei mais a voz do SENHOR, meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então, o SENHOR me disse: Falaram bem aquilo que disseram. Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. De todo aquele que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei contas.” (Deuteronômio 18:15-19)
Lá, no monte Sinai, os israelitas começaram a entender a santidade e a glória de Deus. Acertadamente eles perceberam que chegar perto demais de Deus seria fatal. Eles decidiram que precisavam de um mediador para interceder junto a Deus em favor deles. Eles pediram a Moisés para realizar esse papel e ele concordou, elogiando sua decisão. Eles não foram covardes (ou, pelo menos, não totalmente covardes), foram sábios. Pecadores precisam de um mediador para se aproximar de um Deus santo.
O tabernáculo, a arca, os sacerdotes e os sacrifícios foram uma solução temporária; havia ainda a necessidade de uma solução definitiva para o problema do homem pecador se aproximar de um Deus santo. E foi Deus quem resolveu esse problema, na pessoa de Jesus Cristo. Na Sua encarnação (Seu nascimento como uma criancinha em Belém), Deus assumiu a forma humana. Ele Se identificou com os homens pecadores para solucionar o problema eterno do nosso pecado, e o perigo de se aproximar Dele.
Devemos ter profunda reverência pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo em Sua encarnação (Seu nascimento, vindo à terra como o inculpável Deus-Homem). Com admiração, lemos as palavras do apóstolo João:
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.” (João 1:14)
“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo.” (I João 1:1-3)
É por meio Dele que temos o perdão de Deus e a ousadia de entrar na Sua presença:
“Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos.” (I Timóteo 2:5-6)
“Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel.” (Hebreus 10:19-23)
O convite do evangelho do Novo Testamento é para que os pecadores se acheguem a Deus por intermédio do sangue derramado de Jesus Cristo:
“Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna.” (Hebreus 4:16)
“Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles.” (Hebreus 7:25)
“Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros. Purificai as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai o coração.” (Tiago 4:8)
A Bíblia nos adverte de que o Senhor Jesus Cristo chegará para julgar todos aqueles que se recusaram a se achegar a Ele pela fé:
“Chegar-me-ei a vós outros para juízo; serei testemunha veloz contra os feiticeiros, e contra os adúlteros, e contra os que juram falsamente, e contra os que defraudam o salário do jornaleiro, e oprimem a viúva e o órfão, e torcem o direito do estrangeiro, e não me temem, diz o SENHOR dos Exércitos.” (Malaquias 3:5)
Você já se achegou a Deus pela fé em Jesus Cristo, o único meio dos homens entrarem em comunhão com Ele? Se ainda não, eu lhe digo para fazer isso neste exato momento. Deus nos deixará ir para o inferno do jeito que quisermos, mas se quisermos ir para o céu, deve ser do jeito que Ele mesmo providenciou - o sangue derramado de nosso Senhor Jesus Cristo.
Podemos aprender com Mical. Mical serve como uma espécie de tipo dos escribas e fariseus fanáticos da época de nosso Senhor. Da mesma forma que ela usufruía da posição de filha do rei, os escribas também usufruíam da posição privilegiada de líderes religiosos de Israel. Eles temiam perder seu poder e seu status. Eles desafiavam Jesus sobre Sua autoridade. Eles olhavam com desdém para o Senhor porque ele se associava com pessoas humildes. E, da mesma forma que Mical não produziu nenhum fruto (isto é, filhos), os escribas e fariseus também não. Aqueles que adoram a Deus, devem se achegar a Ele com humildade, não com orgulho. No que diz respeito à nossa história, Mical foi a única pessoa que não adorou a Deus com alegria. O que não é de admirar, uma vez que ela estava mais preocupada consigo mesma.
Podemos aprender com Davi também. Davi serve como um tipo de Cristo, não só em nosso texto, como em outros também. Ele foi rei e sacerdote (quando usou a estola sacerdotal de linho). Ele deixou de lado suas vestes reais e se humilhou, da mesma forma que nosso Senhor (Filipenses 2:5-8; ver também João 13:1 e ss). Davi não permitiu qualquer tipo de discriminação social durante a adoração. A verdadeira adoração não pode tolerar a divisão de classes sociais. O evangelho iguala todos os homens. Todos nós somos pecadores, condenados ao tormento eterno de Deus. E todos somos salvos independentemente de nossas obras, unicamente com base na obra expiatória de Cristo na cruz do Calvário. Como, então, Davi poderia fazer qualquer outra coisa, senão humilhar-se em adoração a Deus, mesmo que sua esposa o desprezasse por isso?
Finalmente, este capítulo tem muito a dizer sobre a controvérsia carismática tão predominante na igreja atual. Existem dois extremos, dois opostos, e estamos sempre predispostos a pender para um ou para outro lado (e, às vezes, para um, depois para o outro). O primeiro é a completa negligência. Davi e o restante do povo estavam tão obcecados com a adoração que parecem ter se esquecido de quem adoravam - um Deus santo. Podemos ficar tão arrebatados pelo elemento emocional da adoração que acabamos perdendo o autocontrole. No entusiasmo do momento, as coisas claramente proibidas por Deus nos parecem um tanto permissíveis, até mesmo necessárias (como segurar a arca). Uzá foi “arrebatado” pelo entusiasmo de levar a arca de volta, mas se esqueceu de dar atenção suficiente a Deus e a Sua Palavra. Uzá morreu por causa da sua irreverência. Jamais nos esqueçamos disso. O entusiasmo nunca deve ser desculpa para desobedecer a Palavra de Deus.
Para muitos de nós, o perigo que mencionei nem parece perigo. Corremos o risco de não nos deixarmos arrebatar em nossa adoração. Nossos cultos são tão formais, ou tão organizados, que nada inesperado poderia acontecer. Ouçam bem: não estou me opondo à organização, e há muito o que dizer para uma avaliação da majestade de Deus em nossa adoração. No entanto, alguns de nós não levantam as mãos ou erguem a voz simplesmente porque são orgulhosos demais para isso. Como Mical, estamos mais preocupados com nossa sobriedade do que com Deus. Vamos tomar cuidado para não deixar o entusiasmo de lado enquanto adoramos, por achar que isso está aquém de nós.
Os dois extremos são claros em nosso texto e ambos são errados. Adoração entusiástica, que subestima a santidade de Deus e viola Sua Palavra, é errada; e, não importa o quanto estejamos entusiasmados, ainda será errado se Deus não for visto da maneira correta e se não nos aproximarmos Dele do jeito certo. Adoração imponente, que deixa a emoção e o entusiasmo de lado, simplesmente porque somos orgulhosos demais para nos humilharmos diante de Deus, também é errada. Esta gera esterilidade; aquela, a morte. Vamos procurar adorar a Deus como Davi e Israel finalmente fizeram, de acordo com a Sua Palavra, com humildade, com o coração cheio de alegria e gratidão, e com entusiasmo.
Tradução: Mariza Regina de Souza
Um dos meus filmes favoritos é “Crocodilo Dundee”, e umas das minhas cenas prediletas é aquela em que Dundee está em Nova York, andando pela cidade com a namorada. De repente, uma gangue de ladrões sai de um beco escuro. Um dos bandidos o ameaça com uma faca e exige que Dundee lhe entregue seus pertences. Calmamente, Dundee olha para eles antes de responder: “Isso não é uma faca... esta é uma faca! Aí ele puxa uma faca imensa, que faz a navalha do pretenso bandido parecer um canivete, enquanto a gangue se manda.
Essa cena me faz lembrar do nosso texto. Davi acabou de concluir a construção de seu palácio. Ele olha para fora e vê a arca do Senhor, alojada em uma tenda, e se põe a pensar... um plano começa a se delinear na sua cabeça. Por que não construir uma casa para Deus, um templo? Assim, ele chama seu amigo e confidente, o profeta Natã, e lhe dá uma ideia do que pretende. Natã consente rapidamente, achando que o plano de Davi para a tal “casa” agradará a Deus. No entanto, naquela noite, Natã é corrigido por Deus e tem de voltar a Davi com sua avaliação profética revisada. Por intermédio de Natã, Deus fala com Davi. É como se Deus estivesse olhando de cima para a planta desenhada por Davi para a “casa” de Deus. Ele, então, olha para Davi e diz: “na verdade, Davi, isso aí não é uma casa... isto é uma casa”. Se Davi pensa que pode edificar uma casa para Deus, ele está muito enganado. É Deus quem planeja edificar uma “casa” para ele. E que casa será! Atentemos para as palavras de nosso texto e aprendamos que tipo de casa Deus edificará para Davi, e como ela será maior do que a casa-templo que Davi quer edificar para Ele.
Este é um texto importantíssimo no Antigo Testamento. Mal podemos avaliar sua importância não só para Davi, como também para Israel e para toda a humanidade.
“Walter Brueggemann considera esta história de Davi e Natã como o ‘centro dramático e teológico de toda a obra de Samuel... um dos textos do Antigo Testamento mais importantes para a fé evangélica.’”
O texto contém aquilo que os teólogos costumam chamar de “a aliança davídica”, uma das grandes alianças da Bíblia. Nesta mensagem, tentaremos investigar o seu significado e a sua importância.
“Sucedeu que, habitando o rei Davi em sua própria casa, tendo-lhe o SENHOR dado descanso de todos os seus inimigos em redor, disse o rei ao profeta Natã: Olha, eu moro em casa de cedros, e a arca de Deus se acha numa tenda. Disse Natã ao rei: Vai, faze tudo quanto está no teu coração, porque o SENHOR é contigo.”
Davi percorreu um longo caminho desde os seus dias de pastor de ovelhas quando jovem. Mal tinha começado a ficar claro para ele que Deus o estabelecera como rei sobre Israel (II Samuel 5:12). Por duas vezes, os filisteus procuraram destruí-lo e, por duas vezes, ele os derrotou. Os inimigos ao redor de Israel, neste momento, estão em paz com Davi. Com a ajuda de Hirão, rei de Tiro, ele conclui seu próprio palácio e agora vive em majestoso esplendor. Agora ele tem tempo para se dedicar a outros empreendimentos.
Após a primeira tentativa frustrada, a arca de Deus foi trazida com êxito para Jerusalém e alojada em uma tenda. Talvez Davi tenha olhado de cima de seu palácio e seus olhos tenham se fixado na tenda do tabernáculo, onde a arca era mantida. De alguma forma, pareceu-lhe inadequado viver luxuosamente enquanto a arca ficava num lugar tão simples e aparentemente provisório. Ele, então, tem a ideia de construir uma outra casa; esta segunda casa será um templo, onde a arca poderá ser guardada em um ambiente bem mais apropriado.
Davi já se decidiu. É isso o que ele fará. Por isso, confidencia seu plano ao profeta Natã, que também parece ser amigo e confidente do rei. Como um gesto tão generoso poderia estar errado? Por que Deus não deveria ter um lugar de habitação mais adequado? E assim, sem consultar a Deus, Natã dá permissão a Davi para ir em frente. Basicamente, ele diz: “Parece ótimo para mim e estou certo de que para Deus também.” Em termos bíblicos: “Vai, faze tudo quanto está no teu coração, porque o SENHOR é contigo” (verso 3).
“Porém, naquela mesma noite, veio a palavra do SENHOR a Natã, dizendo: Vai e dize a meu servo Davi: Assim diz o SENHOR: Edificar-me-ás tu casa para minha habitação? Porque em casa nenhuma habitei desde o dia em que fiz subir os filhos de Israel do Egito até ao dia de hoje; mas tenho andado em tenda, em tabernáculo. Em todo lugar em que andei com todos os filhos de Israel, falei, acaso, alguma palavra com qualquer das suas tribos, a quem mandei apascentar o meu povo de Israel, dizendo: Por que não me edificais uma casa de cedro?”
Lembro-me de que, anos atrás, fiz parte da administração de uma pequena faculdade. Na verdade, eram duas escolas. Uma delas era uma faculdade e a outra, um programa de recuperação escolar, destinado a preparar jovens com deficiência educacional para o nível universitário. Eu não fazia parte da faculdade, e sim desse programa. Certa vez, quando a faculdade estava precisando de um professor, achei que tinha o candidato perfeito. O problema era que o reitor já tinha feito sua escolha. Imprudentemente, falei com o presidente das duas escolas e ele me incentivou a levar minha ideia ao reitor. Não foi uma boa coisa. A resposta do reitor à minha sugestão me pegou completamente desprevenido. “Senhor Deffinbaugh”, respondeu ele bem irritado, “quem dirige esta escola, o senhor ou eu?” Epa! Fiz besteira. A propósito, ele tinha razão. Minha ideia era apenas uma ideia, e não era eu quem dirigia a escola.
Natã certamente poderia compartilhar da forma como me senti naquele dia. No meio da noite, Deus lhe dá uma revelação direta, que ele deve transmitir a Davi. De certa forma, isso coloca os dois no devido lugar. Como eu, Davi tinha uma ideia brilhante, mas que não correspondia ao plano de Deus. A pergunta que Deus faz a Davi dá o tom do que vem a seguir: “Edificar-me-ás tu casa para minha habitação?” Epa! Gosto do jeito como Eugene Peterson coloca esse ponto:
“Entretanto, há ocasiões em que, depois de uma noite de oração, nossos planos mirabolantes para fazer algo para Deus são vistos apenas como um grande espetáculo humano daquilo que Deus está fazendo por nós. Foi isso o que Natã percebeu naquela noite: Deus lhe mostrou que os planos de Davi interfeririam em Seus planos para ele.”
Antes de prosseguirmos, tenho que ressaltar alguns detalhes importantes. Repare que os versos 1 a 3 se referem a Davi como rei, mas quando Deus se refere a ele, Ele o chama de meu servo Davi (verso 5). Creio que posso sugerir que Davi está um pouco consciente demais de sua posição como rei. Em relação ao povo de Israel (e aos de fora a quem isso importa), Davi é a maior autoridade do país. No entanto, em relação a Deus, ele é simplesmente um servo. Ele mora num palácio e Deus numa tenda, pelo menos em sua cabeça. Até parece que ele está querendo dar uma mãozinha para Deus. Seria a mesma coisa que eu, vestindo um smoking, enviasse a Ross Perot (um dos homens mais ricos do mundo) um vale-presente para que ele comprasse algumas roupas decentes. Creio que é por isso que Deus vem colocar Davi no seu devido lugar, primeiro referindo-se a ele como Seu servo, depois dizendo-lhe: “Quem é você para edificar uma casa para mim?”
Devemos observar ainda um outro detalhe, que é o exato valor de um templo, em contraste com o tabernáculo, conforme ressaltado por Estêvão em Atos 7:
“O tabernáculo do Testemunho estava entre nossos pais no deserto, como determinara aquele que disse a Moisés que o fizesse segundo o modelo que tinha visto. O qual também nossos pais, com Josué, tendo-o recebido, o levaram, quando tomaram posse das nações que Deus expulsou da presença deles, até aos dias de Davi. Este achou graça diante de Deus e lhe suplicou a faculdade de prover morada para o Deus de Jacó. Mas foi Salomão quem lhe edificou a casa. ENTRETANTO, NÃO HABITA O ALTÍSSIMO EM CASAS FEITAS POR MÃOS HUMANAS; COMO DIZ O PROFETA: O CÉU É O MEU TRONO, E A TERRA, O ESTRADO DOS MEUS PÉS; QUE CASA ME EDIFICAREIS, DIZ O SENHOR, OU QUAL É O LUGAR DO MEU REPOUSO? NÃO FOI, PORVENTURA, A MINHA MÃO QUE FEZ TODAS ESTAS COISAS? (Atos 7:44-50)
Estêvão fora levado perante o Sinédrio sob acusações forjadas, uma das quais era que ele falava contra o templo (Atos 6:13). Ele não negou a acusação feita por testemunhas falsas. Em vez disso, ele se defendeu mostrando pelas Escrituras do Antigo Testamento que Deus não estava tão impressionado com o templo quanto os judeus estavam. Ele argumentou que Deus dera a Israel o tabernáculo, e que o templo fora ideia de Davi. Ele, então, passou a mostrar que o Deus que criou todas as coisas certamente não poderia ser confinado a uma habitação feita por mãos humanas. Em suma, Deus não precisava de um templo, e Ele não o pediu. Ele permitiu que o filho de Davi o construísse porque Davi o queria. Não era errado; simplesmente não era ideia Sua. Deus não precisava de um templo e, para alguns, um templo transmitiria a mensagem errada.
O livro de II Samuel 7 está de acordo com o argumento de Estêvão. Nos versos 6 a 11a, Deus explica a Davi porque não precisa de um templo feito por ele. A primeira razão está no verso 6 e pode ser resumida nestas palavras: “Se não está quebrado, não tente consertá-lo”. Pense nisso. Por que comprar um carro novo se o carro atual está em perfeitas condições? Quando Deus deu a lei a Moisés, Ele lhe disse como o tabernáculo deveria ser construído. Durante a história de Israel, desde o monte Sinai até o reinado de Davi, o tabernáculo funcionara sem nenhum problema. Deus esteve com Seu povo enquanto a arca esteve no tabernáculo. E, quando o povo se mudou de um lugar para outro, o tabernáculo e arca foram junto. Deus esteve com eles onde quer que estivessem. Ele lhes deu a vitória sobre seus inimigos. Deu-lhes a posse da terra prometida. A história de Israel dava testemunho do fato de que nada havia para ser consertado; o tabernáculo prestou muito bem o seu serviço. Se não está quebrado, não conserte!
No verso 7, Deus dá ainda outra razão para não haver necessidade real de um templo: “Eu não pedi um templo”. No monte Sinai, Deus deu a lei a Israel por intermédio de Moisés e, nessa lei, Ele especificou como o tabernáculo deveria ser construído, como deveria ser removido e quem deveria cuidar dele. Deus ensinou aos israelitas como construir o tabernáculo; Ele nem mesmo lhes pediu um templo. Se um templo fosse necessário, certamente Ele teria pedido um e, desde que não pediu, devemos concluir que ele não era necessário.
Nos versos 8 a 11a Deus chega ao âmago da questão. Gostaria que observassem quantas vezes o pronome “eu” é utilizado. A seção claramente se concentra em Deus. Gosto da maneira como Peterson coloca a questão:
“A mensagem que Natã transmite a Davi é um verdadeiro recital daquilo que Deus já fez, está fazendo e ainda fará. Deus é o sujeito em primeira pessoa de vinte e três verbos nesta mensagem, e todos são verbos de ação. Davi, que só pensa naquilo que fará para Deus, agora é submetido a uma exaustiva repetição de tudo o que Deus já fez, está fazendo e ainda fará nele e por ele. O que antes parecia um empreendimento arrojado de Davi para Deus, agora parece uma coisinha de nada.”
Será que Davi quer dar uma mãozinha para Deus, edificando-Lhe uma casa melhor para habitar? Deus o relembra de Quem cuida de quem. Será que Davi queria fazer algo grandioso, como edificar um templo para Deus? A história o relembra (e a nós também) de que é sempre Deus quem nos ajuda, e não nós a Ele. Davi, o servo de Deus, deve se lembrar de que foi o Senhor que o tirou dos pastos, de detrás das ovelhas (não da frente), e o tornou governante de todo Israel (verso 8). Deus esteve com ele onde quer que ele estivesse, e foi Deus quem entregou seus inimigos em suas mãos, o que lhe granjeou fama e reputação. É sempre Deus que vem em auxílio do homem, não o homem que vai em socorro de Deus.
No verso 10 há uma mudança significativa no tempo verbal. Os verbos anteriores estão no pretérito, referindo-se àquilo que Deus fez no passado. Agora, no verso 10, os verbos estão no futuro. Depois de mostrar a Davi tudo o que fez por ele e por Israel no passado, Deus continua, dizendo algo assim: “Davi, meu servo, você ainda não viu nada. O melhor ainda está por vir.” Deus promete preparar um lugar onde o Seu povo será plantado. Eles terão o seu próprio lugar (da mesma maneira que Davi pretendia dar a Deus “o Seu próprio lugar”) e habitarão em paz, pois os ímpios não mais os afligirão. Não será mais como costumava ser desde a época dos juízes até o presente. Deus dará a Davi descanso de seus inimigos. Ousaria Davi pensar que poderia fazer algo para Deus? Foi Deus quem lhe deu tudo o que ele tinha e era Deus quem lhe daria ainda muito mais.
Surge, então, uma pergunta: quando é que são cumpridas estas promessas para Davi? É óbvio que aqui ainda não foram, pois são expressas como uma realidade futura. Alguns podem pensar que seu cumprimento esteja nos capítulos seguintes (8 a 10), quando Davi prevalece sobre todos os inimigos que cercam Israel. Não creio que possamos ver sua total realização nos dias de Davi; nem mesmo nos dias de seu filho Salomão. Creio que isso só ocorrerá com a vinda do reino de Deus, quando o Senhor Jesus Cristo subjugar todos os Seus inimigos e estabelecer o Seu reino sobre a terra. É no tempo falado nos últimos capítulos do livro de Isaías. Estas promessas são dadas a Davi aqui porque abrem caminho para a promessa que Deus irá cumprir nos versos seguintes, ou seja, a edificação de uma “casa” para ele.
“Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa. Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. Segundo todas estas palavras e conforme toda esta visão, assim falou Natã a Davi.”
A história deste capítulo começa com Davi pretendendo edificar uma casa (um templo) para Deus. Deus ternamente o repreende por esse plano mirabolante. Davi adotou a postura errada, de ajudar a Deus em vez de ser constantemente amparado por Ele. Deus cuidou muito bem de Seu povo quando Se associou à arca e ao tabernáculo. Ele não pediu um templo, pois não precisava de um. Deus sempre esteve por trás de todo o sucesso de Davi, e agora está lhe prometendo glórias ainda maiores. Assim, Deus volta à questão da “casa”. Será que Davi vai edificar uma casa para Deus? Não, não vai, embora seu filho vá. No entanto, Deus diz que Ele irá edificar uma “casa” para Davi. Os detalhes a respeito dessa “casa” são mostrados nos versos 12 a 17.
Esta profecia, como muitas outras, tem um cumprimento próximo e outro futuro. O cumprimento próximo está em Salomão, o segundo filho de Davi com Bate-Seba. Ele é quem tomará o lugar de Davi e reinará em Israel após sua morte. Sabemos que as palavras de Natã devem se referir a Salomão, pois incluem o fato de que o “filho” de Davi pecará e de que Deus o corrigirá. Esta afirmação não pode ser feita em relação ao Messias, o Filho de Davi que virá para tirar o pecado do mundo e Se assentar no trono de Seu pai, Davi. Diferentemente de Saul, cuja dinastia foi afastada, a “casa” de Davi (seus descendentes) será uma dinastia, e reinará sobre Israel.
Os descendentes de Davi - sua “casa” - desfrutarão de um relacionamento único e privilegiado com Deus. Esse relacionamento é descrito como um relacionamento entre pai e filho, ou devo dizer entre Pai e filho (e entre Pai e Filho). Na Bíblia, ser “filho”, às vezes, significa muito mais do que ser apenas um descendente físico do pai. O termo “filho” é empregado para designar aquele que governa em lugar de outro (o pai). Adão era “filho de Deus” no sentido de que ele dominava sobre a criação como agente de Deus (ver Lucas 3:38). Satanás e os anjos também são apresentados como “filhos” de Deus nesse sentido. Aqui, Salomão também desfruta de um relacionamento de Pai e filho com Deus.
Nesse sentido, ninguém se torna “filho” ao nascer; um rei só se torna “filho” de Deus quando Ele o instala no trono:
“Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro.” (Salmo 2:4-9, ênfase minha).
É exatamente isso o que Deus diz ao Senhor Jesus Cristo. Deus O chama de “Filho” no dia do Seu batismo (Mateus 3:17, Marcos 1:11, Lucas 3:22) e na Sua transfiguração (Mateus 17:5, Marcos 9:7, Lucas 9:35). Pedro faz menção destas palavras, ligando-as à transfiguração (II Pedro 1:17). O escritor da carta aos Hebreus também faz uso delas como prova de que Jesus é o Messias prometido aos judeus (1:5, 5:5). Em 5:5, ele especificamente se refere ao texto de II Samuel 7:14 como tendo cumprimento em Cristo. Em Atos 13:33, Paulo alude às palavras do Salmo 2 como tendo cumprimento em Cristo, especialmente com relação a Sua ressurreição dos mortos.
A palavra “filho” ou “filhos” é usada ainda com referência àqueles que têm fé em Jesus Cristo. Quando somos salvos pela fé, tornamo-nos “filhos” de Deus. O termo “filhos” não significa apenas isso, mas também que seremos aqueles que reinarão com Ele:
“Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8:18-23)
Quando Cristo voltar à terra e formos ressuscitados dos mortos, seremos adotados como filhos em Cristo, e reinaremos com Ele por toda a eternidade.
Davi terá filhos e esses filhos se tornarão “filhos” de Deus porque reinarão sobre Israel. Contudo, ainda haverá um “filho” muito especial, por meio do qual todas as promessas de Deus feitas aqui e em outros lugares (relativas ao Seu reino) serão cumpridas, quer na Sua primeira vinda quer no Seu retorno à terra. Davi terá muitos filhos, os quais reinarão depois dele, e ele e seus filhos se tornarão “filhos” de Deus. Entretanto, a maior de todas as promessas é que esse “filho” muito especial virá, como descendente de Davi, e Seu reino será eterno. É nesse “Filho” que todas as esperanças de Davi, todas as esperanças de Israel e todas as nossas esperanças são cumpridas. E essa é a essência da aliança davídica. Deus dará filhos a Davi que reinarão em seu lugar, mas a Sua promessa será cumprida plena e finalmente no “Filho” especial que ainda virá.
Estas palavras, ditas por Natã, são a genuína palavra de Deus. Elas são dadas a Natã numa visão, que exige uma “revisão” da permissão dada por ele a Davi para edificar uma casa para Deus. Deus, portanto, fala a Davi por intermédio de Natã. Com certeza esta é a palavra de Deus.
“Então, entrou o rei Davi na Casa do SENHOR, ficou perante ele e disse: Quem sou eu, SENHOR Deus, e qual é a minha casa, para que me tenhas trazido até aqui? Foi isso ainda pouco aos teus olhos, SENHOR Deus, de maneira que também falaste a respeito da casa de teu servo para tempos distantes; e isto é instrução para todos os homens, ó SENHOR Deus. Que mais ainda te poderá dizer Davi? Pois tu conheces bem a teu servo, ó SENHOR Deus. Por causa da tua palavra e segundo o teu coração, fizeste toda esta grandeza, dando-a a conhecer a teu servo. Portanto, grandíssimo és, ó SENHOR Deus, porque não há semelhante a ti, e não há outro Deus além de ti, segundo tudo o que nós mesmos temos ouvido. Quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra, a quem tu, ó Deus, foste resgatar para ser teu povo? E para fazer a ti mesmo um nome e fazer a teu povo estas grandes e tremendas coisas, para a tua terra, diante do teu povo, que tu resgataste do Egito, desterrando as nações e seus deuses?Estabeleceste teu povo Israel por teu povo para sempre e tu, ó SENHOR, te fizeste o seu Deus. Agora, pois, ó SENHOR Deus, quanto a esta palavra que disseste acerca de teu servo e acerca da sua casa, confirma-a para sempre e faze como falaste. Seja para sempre engrandecido o teu nome, e diga-se: O SENHOR dos Exércitos é Deus sobre Israel; e a casa de Davi, teu servo, será estabelecida diante de ti. Pois tu, ó SENHOR dos Exércitos, Deus de Israel, fizeste ao teu servo esta revelação, dizendo: Edificar-te-ei casa. Por isso, o teu servo se animou para fazer-te esta oração. Agora, pois, ó SENHOR Deus, tu mesmo és Deus, e as tuas palavras são verdade, e tens prometido a teu servo este bem. Sê, pois, agora, servido de abençoar a casa do teu servo, a fim de permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó SENHOR Deus, o disseste; e, com a tua bênção, será, para sempre, bendita a casa do teu servo.”
Precisamos atentar para o princípio da proporcionalidade neste capítulo. Dois versos são dedicados ao desejo expresso por Davi de edificar uma casa para Deus (1 e 2). Um é dedicado à resposta impensada de Natã (3). Os versos 4 a 17 registram a visão na qual Natã recebe a revelação de Deus e a transmite para Davi (14 versos no total). Os últimos 12 versos registram a reação de Davi a essa revelação. Agora a “casa” de Davi está em ordem. Agora ele vê as coisas do ponto de vista de Deus. Os versos finais do capítulo 7 são sua resposta à aliança davídica. O que quero dizer é que eles também fornecem um padrão para o nosso culto.
Os versos 18 a 21 são expressão da humildade reconquistada por Davi, da reorganização da sua auto-avaliação. Eis o tipo de auto-estima que deve caracterizar todos os cristãos, especialmente (mas não exclusivamente) no culto. No início do capítulo 7, Davi está meio cheio de si. Nos três primeiros versos, ele é chamado de “rei” três vezes. O verso 18 também se refere a ele como “rei”, mas apenas para destacar sua mudança de atitude do início do capítulo. Não há outra referência neste texto.
Será que Davi está impressionado com sua posição e poder, com ser rei? Será que ele pensa mais em termos daquilo que pode fazer para Deus do que daquilo que Deus tem feito e fará para ele? Bem, parece que sim, pelo menos por enquanto. Nos versos 18 a 21, em vez de encontrarmos três vezes a palavra “rei”, encontramos a palavra “servo”. Isso nos surpreende? É assim que Deus o chama no verso 5. Davi agora sente profundo respeito pelo fato de Deus tê-lo tomado, um homem sem nenhum status ou posição, e tê-lo feito rei de Israel. Deus também o relembrou disso por intermédio de Natã (ver versos 8 e 9). Davi vê sua posição e seu status como rei de Israel como resultado da graça soberana de Deus, não como reconhecimento de sua possível grandeza. É incrível como o orgulho e a arrogância distorcem nossa opinião. Não é de admirar que a humildade seja o ponto de partida, o pré-requisito, para a sabedoria (Provérbios 11:2; 15:33; 18:12; 22:4; 29:13).
Agora Davi está começando a andar com o pé direito. Ele se vê como realmente é aos olhos de Deus. Ele reconhece sua fraqueza, sua insignificância. Ele fica impressionado e maravilhado com o fato de Deus o ter escolhido para usá-lo. Ele não está ensoberbecido pelo seu poder como rei de Israel, mas humilhado pela consciência de que Deus o usa como Seu servo. E, nos versos 22 a 24, ele agradece a Deus e O louva pelo que Ele é, pelas obras maravilhosas que fez no passado em favor dele e de Israel. O verso 22 resume a auto-revelação de Deus no passado de Israel. Só Deus é Deus. Não há outro além Dele, não há Deus como Ele. Ele é Deus grande e temível. Isto está em harmonia com tudo o que ouviram Dele e a respeito Dele.
Deus fez grandes coisas para Davi, mas estas não são para ele. Deus agiu na vida dele e por meio dele para tornar possível o cumprimento de Suas promessas à nação de Israel. Os versos 23 e 24 recontam a grandeza de Deus relevada em Seus atos em benefício de Seu povo, Israel. Estes versos soam muito parecidos com as palavras ditas por Deus por intermédio de Moisés em Deuteronômio:
“Pois que grande nação há que tenha deuses tão chegados a si como o SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que eu hoje vos proponho?... Agora, pois, pergunta aos tempos passados, que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, desde uma extremidade do céu até à outra, se sucedeu jamais coisa tamanha como esta ou se se ouviu coisa como esta; ou se algum povo ouviu falar a voz de algum deus do meio do fogo, como tu a ouviste, ficando vivo; ou se um deus intentou ir tomar para si um povo do meio de outro povo, com provas, e com sinais, e com milagres, e com peleja, e com mão poderosa, e com braço estendido, e com grandes espantos, segundo tudo quanto o SENHOR, vosso Deus, vos fez no Egito, aos vossos olhos. A ti te foi mostrado para que soubesses que o SENHOR é Deus; nenhum outro há, senão ele. Dos céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu grande fogo, e do meio do fogo ouviste as suas palavras. Porquanto amou teus pais, e escolheu a sua descendência depois deles, e te tirou do Egito, ele mesmo presente e com a sua grande força, para lançar de diante de ti nações maiores e mais poderosas do que tu, para te introduzir na sua terra e ta dar por herança, como hoje se vê.” (Deuteronômio 4:7-8; 32-38)
Davi vê a si mesmo como Israel deveria se ver. Não foi por sua grandeza, por seu tamanho ou por seus méritos que Deus quis abençoá-los. Foi por Sua graça soberana, independentemente de obras ou méritos:
“Havendo-te, pois, o SENHOR, teu Deus, introduzido na terra que, sob juramento, prometeu a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó, te daria, grandes e boas cidades, que tu não edificaste; e casas cheias de tudo o que é bom, casas que não encheste; e poços abertos, que não abriste; vinhais e olivais, que não plantaste; e, quando comeres e te fartares, guarda-te, para que não esqueças o SENHOR, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão. O SENHOR, teu Deus, temerás, a ele servirás, e, pelo seu nome, jurarás.” (Deuteronômio 6:10-13)
“Comerás, e te fartarás, e louvarás o SENHOR, teu Deus, pela boa terra que te deu. Guarda-te não te esqueças do SENHOR, teu Deus, não cumprindo os seus mandamentos, os seus juízos e os seus estatutos, que hoje te ordeno; para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração, e te esqueças do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão, que te conduziu por aquele grande e terrível deserto de serpentes abrasadoras, de escorpiões e de secura, em que não havia água; e te fez sair água da pederneira; que no deserto te sustentou com maná, que teus pais não conheciam; para te humilhar, e para te provar, e, afinal, te fazer bem. Não digas, pois, no teu coração: A minha força e o poder do meu braço me adquiriram estas riquezas. Antes, te lembrarás do SENHOR, teu Deus, porque é ele o que te dá força para adquirires riquezas; para confirmar a sua aliança, que, sob juramento, prometeu a teus pais, como hoje se vê.” (Deuteronômio 8:10-18)
Davi cai na mesma armadilha contra a qual Deus prevenira Israel. Ele começa a tomar para si o crédito pelas coisas que Deus faz. Ele começa a achar que Deus precisa dele, em vez de adorá-lo como uma criatura dependente. Quando passa a ver a vida do ponto de vista de Deus, ele percebe como realmente ela é. Ele a vê como Israel deveria ver. Agora ele pensa claramente, por isso, reconhece que tanto ele quanto Israel são importantes devido a graça de Deus e nada mais. Por isso, Davi humildemente louva a Deus.
Nos versos 8 a 10, Deus relembra a Davi Suas bênçãos no passado. Nos versos 10 a 16, Ele promete dar a Davi e a Israel bênçãos ainda maiores no futuro. Nos versos 22 a 24, Davi O louva por Sua graça no passado. Agora, nos versos 25 a 29, ele suplica a Deus que faça como prometeu e, ao mesmo tempo, ele O adora e O louva pelas coisas que ainda fará. Davi compreende as promessas feitas por Deus na aliança que acaba de fazer com ele e as usa como fundamento para suas petições. Em resumo, Davi ora por aquilo que Deus lhe prometeu.
Davi não está apenas repetindo a promessa de Deus; ele a está colocando, e o seu cumprimento, na devida perspectiva. Ele estava errou ao pensar em termos de seus sucessos. Deus o relembra de que todos os seus aparentes sucessos foram dádivas graciosas de Sua mão (ver os versos 8 e 9). E, da mesma forma, as coisas prometidas para o futuro também são dádivas graciosas (ver os versos 10 a 16) pelas quais Ele deve ser louvado. Por isso, Davi suplica a Deus que cumpra essas promessas, não só para que o seu nome seja exaltado, mas para que o nome Dele seja magnificado (verso 26).
Por intermédio de Natã, Deus brandamente repreende Davi por sua arrogância em pensar que poderia edificar uma habitação mais adequada para Ele, que poderia avaliar melhor do que Ele a necessidade de alguém. Esse tipo de repreensão faz com que desejemos refrear a língua indefinidamente. Alguma vez você já disse algo muito estúpido, na presença de uma porção de gente? Se já, então conhece o desejo de nunca mais querer falar em público. Davi sente a mesma coisa, mas a promessa de Deus de uma casa eterna lhe dá coragem para pedir a Ele o seu exato cumprimento (verso 27).
A petição de Davi continua nos versos 28 e 29, onde ele relembra Deus de Sua promessa e Lhe pede que a cumpra. A confiança de Davi está em Deus, não em si mesmo. A presunçosa auto-confiança que o caracteriza nos versos iniciais deste capítulo já se foi, substituída por uma confiança humilde baseada nos feitos de Deus. Deus promete algo bom a Seu servo (não ao rei). A promessa é clara e feita por Deus. Qualquer promessa feita por Ele é coisa certa, por isso Davi Lhe pede que Ele a cumpra. Que a promessa seja cumprida pela bênção à casa de Davi, e que esta bênção venha do Deus de todas as bênçãos. Finalmente, Davi ora para que a bênção seja eterna. Tais bênçãos só podem vir de Deus.
A primeira lição de nosso texto é: mesmo os anseios mais nobres e as aspirações mais elevadas são manchados pelo pecado. O desejo de Davi de edificar uma casa para Deus era tão sublime que até Natã se deixou levar por ele. Quem poderia culpá-lo por querer edificar uma casa suntuosa para Deus? Só Deus e Ele o fez. E a razão foi porque os motivos e as aspirações de Davi estavam muito aquém daquilo que Deus pretendia. Parece que Davi ficou um tanto enaltecido por seus recentes sucessos, por sua posição e poder, e até mesmo pelo esplendor de seu próprio palácio. A resposta de Deus a ele certamente contém uma repreensão à sua arrogância: “Quem é você para Me edificar uma casa?” Não importa o quanto nossos planos para Deus e para Sua obra pareçam piedosos, eles estão sempre muito aquém da sinceridade de pensamentos e de motivos requeridos por Deus. Numa análise final, não há nada que possamos fazer para Deus com nossos próprios esforços. É Deus quem realizada grandes coisas por meio de nós e, muitas vezes, a despeito de nós.
Ainda relacionada à primeira, temos uma segunda lição: Não importa quão altos ou quão sublimes sejam os nossos planos e as nossas metas, os planos de Deus são sempre maiores. Paulo coloca a questão desta forma:
“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! QUEM, POIS, CONHECEU A MENTE DO SENHOR? OU QUEM FOI SEU CONSELHEIRO? OU QUEM PRIMEIRO DEU A ELE PARA QUE LHE VENHA A SER RESTITUÍDO? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11:33-36)
“Mas, como está escrito: NEM OLHOS VIRAM, NEM OUVIDOS OUVIRAM, NEM JAMAIS PENETROU EM CORAÇÃO HUMANO O QUE DEUS TEM PREPARADO PARA AQUELES QUE O AMAM.” (I Coríntios 2:9)
Será que Davi planeja edificar uma casa para Deus? Ele não pode nem imaginar a “casa” que Deus vai edificar para ele. A casa pretendida por Davi não chega nem aos pés da “casa” de Deus.
Terceira, a glória e a majestade da presença e do poder de Deus não devem ser interpretadas à luz de um contexto espetacular. Há muitos anos Elias aprendeu que não se deve presumir que a presença de Deus está em fenômenos espetaculares (muito embora, às vezes, Ele empregue tais meios - ver Êxodo 19, 34). Deus não estava no vento, nem no terremoto, nem no fogo, mas num cicio tranquilo e suave (I Reis 19:11-13). Os discípulos, até certo ponto, e os judeus, em grande parte, esperavam que o Messias viesse ao mundo de forma miraculosa e espetacular; por isso, estavam sempre pedindo um sinal. Os coríntios do Novo Testamento chegaram a considerar mais espirituais as pessoas glamurosas e espalhafatosas, enquanto desprezavam as mais discretas, como Paulo e outros apóstolos verdadeiros (ver I Coríntios 4, II Coríntios 4 a 6). O próprio Senhor Jesus não veio em resplendor e glória. Ele veio despido de Sua majestade (ver Isaías 53:1-3; João 1:9-11; Filipenses 2:5-8); por isso, muitos não O reconheceram como o Messias. O segundo templo não era tão maravilhoso quanto o primeiro, mas aos olhos de Deus ele era magnífico. A verdadeira glória não reside na aparência externa, mas no fato de que o próprio Deus está entre nós, habitando em nós, Seu corpo. Devemos aprender com Davi, e com muitos outros na Bíblia, que a glória de Deus se encontra onde Ele está presente, e não necessariamente onde presenciamos coisas espetaculares.
Será que Davi supõe que Deus esteja mais presente num templo luxuoso do que numa tenda? Ele está prestes a descobrir que Deus está “entronizado entre os louvores de Israel” (Salmo 22:3). Atualmente, Deus prefere habitar num tipo diferente de “templo”; esse “templo” é o Seu corpo, a igreja:
“Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.” (Efésios 2:19-22)
“Chegando-vos para ele, a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” (I Pedro 2: 4-5)
No reino eterno de Deus não haverá nenhum “templo” como tal, pois nosso Senhor mesmo será o “templo”:
“Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro.” (Apocalipse 21:22)
Quarta, vemos que Davi não precisa de um templo por perto para cultuar a Deus. Na verdade, ele está se afastando do culto quando propõe a construção de um templo. Só depois de ser lembrado de que tudo o que ele é e de que tudo o que faz vem de Deus é que Davi começa a cultuar a Deus de maneira correta. Assim, ele passa a reconhecer sua própria insignificância e a louvar a Deus pela presença Dele em sua vida, pela Sua grandeza e pelo Seu poder. É aqui que começa a verdadeira adoração: não num edifício espetacular, mas na grandeza e na graça de nosso Deus.
Há grande ênfase hoje em dia na plantação e construção de igrejas, grandes igrejas. Plantar igrejas é uma boa coisa, e construí-las não é necessariamente um mal. No entanto, estejamos alertas contra a falsa suposição de que edifícios maiores e mais impressionantes são prova da presença e do poder de Deus. Precisamos estar alertas contra os pensamentos presunçosos a respeito da nossa própria contribuição ao reino de Deus, achando que Ele realmente precisa de nós. É sempre Ele quem nos conduz, não nós a Ele. Como é fácil começarmos a nos concentrar no que temos feito e no que podemos fazer para Deus em vez de nos concentrar em tudo o que Ele tem feito e ainda fará por nós e por meio de nós.
Quinta, a repreensão divina recebida por Davi serve como lição para todos os cristãos. Você já não pensou que, se pudesse sempre crescer, ganhar maturidade e sabedoria como cristão, de alguma forma ficaria livre da tentação e protegido do pecado? Crescimento, maturidade e sucesso não nos isolam do pecado; muitas vezes, essas coisas se tornam novas tentações para nos levar a ele. Há mais perigo no palácio de Davi do que quando ele fugia de Saul e se escondia em alguma caverna. Com muita frequência, levamos nosso “sucesso” a sério demais. Precisamos nos lembrar de que não existe sucesso que possamos sinceramente reivindicar como nosso, pois sucesso espiritual é dom da graça de Deus:
“Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (I Coríntios 4:7)
Finalmente, sou lembrado mais uma vez de que as maiores bênçãos da nossa vida não são fruto de nossos esforços, mas fruto da obra de Deus e, quase sempre, enquanto Ele usa nossos fracassos e defeitos. Davi foi repreendido por querer edificar um templo para Deus, mas, apesar disso, Deus lhe promete edificar uma casa bem maior do que ele imagina. Davi erra quando comete adultério com Bate-Seba e mata o marido dela; no entanto, ainda assim ela se torna sua esposa e mãe de Salomão, o rei seguinte de Israel. Davi erra quando faz o censo de Israel; entretanto, como consequência desse pecado, a propriedade onde o templo será construído é adquirida por ele.
Quão maravilhoso e grandioso é o Deus a quem servimos! Seus planos e Suas promessas não podem ser frustrados. E, mesmo os nossos maiores esforços para frustrar os Seus propósitos servem apenas para engrandecer o Seu reino. Regozijemo-nos porque o Senhor não habita mais em uma tenda ou em um templo e sim no Senhor Jesus Cristo e no Seu corpo, a igreja. Somos a casa de Deus se confiamos em Jesus Cristo.
Tradução: Mariza Regina de Souza
Muitas pessoas que parecem ser “boas” só são “boas” porque lhes falta o poder de fazer o mal que desejam. Você se recorda de sua infância, de quando um de seus pais lhe dizia que você não podia fazer uma determinada coisa? Naquela hora, talvez você tenha pensado, ou dito para si mesmo: “Espera só até eu crescer, porque então eu vou...”. Às vezes, tais afirmações iam mais longe: “Quando crescer, vou ser presidente, e aí vou...” O poder é um teste para o nosso caráter. Poder fazer o que quisermos, ou o que preferirmos, revela para nós, e para os outros, quem realmente somos.
Durante muitos anos Davi quase não teve poder. Ele ficava nos campos guardando o pequeno rebanho de ovelhas de sua família. Quando Samuel entrou em cena para ungir o futuro rei de Israel dentre os filhos de Jessé, Davi sequer foi considerado como uma possibilidade. Foi preciso dizer à sua família que fosse buscá-lo no campo. Houve tempos em que ele exerceu certo poder e autoridade no governo de Saul, mas logo se tornou fugitivo e seu poder oficial lhe foi tirado. Até mesmo sua esposa lhe foi tirada.
Agora, anos depois, Saul está morto e Davi reina em seu lugar em Israel. Em nosso texto, ele irá subjugar seus inimigos e trazer paz para a nação. Agora ele tem poder para fazer o que quiser. É nesta época que veremos seus melhores momentos e, infelizmente, também os piores. Nos capítulo 8 a 10, encontramos Davi em sua melhor forma. Ele usa o poder que lhe foi dado por Deus para fazer a Sua vontade. No capítulo 11, ele tropeça, atingindo o ponto mais baixo de sua vida espiritual. Ele emprega seu poder para não ir à guerra, para tomar a esposa de outro homem e depois para mandar matá-lo. No entanto, esta é uma outra história, que guardaremos para a próxima lição.
Nesta lição, iremos nos concentrar em três capítulos de II Samuel: 8, 9 e 10. As razões para esta escolha se tornarão evidentes durante a exposição destes versículos. Basta dizer, por enquanto, que os capítulos 8 a 10 relatam como Davi utiliza seu poder na guerra contra os inimigos de Israel e, portanto, de Deus. O capítulo 9 descreve como ele utiliza o poder para cumprir a aliança feita com seu querido amigo Jônatas e sua promessa a Saul. O capítulo 9 faz um contraste muito bonito com os capítulos 8 e 10, colocando a soberania de Davi (e, dessa forma, a soberania de Deus) na perspectiva correta. Vamos considerar primeiro os capítulos 8 e 10 e depois retornar ao capítulo 9, à bondade de Davi para com Mefibosete. Prestemos bastante atenção às palavras destes capítulos e ao ensinamento do Espírito Santo, confiando Nele para aprendermos as lições pertinentes à nossa própria vida atual.
Talvez seja útil para a nossa compreensão destes capítulos estabelecer o contexto dos acontecimentos chamando a atenção para alguns fatos relevantes:
Primeiro, os povos e os lugares sobre os quais iremos falar são aqueles que cercam o território de Israel. Eles não estão longe, mas próximos, e têm grande impacto no passado, presente e futuro da nação.
Segundo, eram esses povos e lugares que ocupavam o território dado por Deus a Israel (ver Gênesis 12:1-3; 13:14-18; 15:18-21, Êxodo 23:31) e que os israelitas não tinham conquistado, nem dominado (ver Juízes 1:1-36; 3:1-6).
Terceiro, esses povos não são superpotências internacionais, mas pequenos reinos, quase como cidades-estado. A Bíblia fala de superpotências como Egito, Assíria, Babilônia e Roma, mas não são estas que Davi e os israelitas enfrentam em nosso texto. Eles enfrentam as pequenas nações que rodeiam Israel. Para se proteger e promover seus próprios interesses, essas nações precisam se aliar a outros pequenos reinos.
Quarto, de acordo com o capítulo 7, verso 1, sabemos que esta é uma época de relativa paz. No entanto, não é uma paz permanente. Os inimigos de Israel não estão atacando o povo de Deus ou o seu rei. Os filisteus bem que tentaram - duas vezes - cortar o mal pela raiz, mas não conseguiram destruir o reino de Davi (II Samuel 5:17-25). No capítulo 8, Davi ataca muito mais do que se defende. Isto se deve, em parte, à promessa de Deus de uma paz mais duradoura nestes tempos de paz temporária:
“Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Tomei-te da malhada, de detrás das ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo, sobre Israel. E fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus inimigos diante de ti e fiz grande o teu nome, como só os grandes têm na terra. Prepararei lugar para o meu povo, para Israel, e o plantarei, para que habite no seu lugar e não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o aflijam, como dantes, desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu povo de Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos;”
Quinto, Davi age com base nessa promessa, feita no capítulo 7, quando sai ostensiva e ofensivamente para subjugar os inimigos de Israel e tomar posse da liberdade e da terra que Deus havia prometido. Aqui não há registro de que ele tenha recebido alguma ordem, nem de que esteja ocorrendo algum ataque externo (como o dos filisteus no capítulo 5). Acredito que ele age com base nas promessas feitas por Deus a Israel e nas ordens dadas anteriormente para que tomassem posse da terra. Ele não pede orientação divina porque não precisa, e não precisa porque ela já havia sido dada. Agora ele está no poder e começa a fazer as coisas que outrora foram deixadas inacabadas.
Os filisteus, situados a oeste de Israel, talvez sejam seus vizinhos mais incômodos (ver Gênesis 26:1, 8, 14, 15, 18), principalmente após a época dos juízes (Juízes 3:3, 31; 10:6-7). Sansão lutou contra eles (Juízes, capítulos 13 a 16). Foram eles que tiraram a vida dos dois filhos de Eli e indiretamente causaram a sua morte, além de levaram a arca de Deus (I Samuel, capítulos 4 a 7). Jônatas atacou a sua guarnição em Israel, precipitando outro confronto com eles (I Samuel 13:3 e ss). Davi matou Golias, um filisteu, e depois perseguiu o seu exército (I Samuel 17). Foram os filisteus também que derrotaram o exército de Israel e acabaram matando Saul e seus dois filhos (I Samuel 31). E foi entre eles que Davi procurou e encontrou refúgio (I Samuel 21:10-15; 27:1 e ss). Quando Davi se tornou rei, eles pensaram que era melhor atacá-lo logo, numa tentativa de anular a ameaça que ele representava. Eles fracassaram e Davi agora irá subjugá-los, acabando com sua tirania por um bom tempo. De acordo com a passagem paralela de I Crônicas 18:1, sabemos que a “metrópole” dos filisteus, na realidade, é Gate. Não é de admirar que Davi consiga capturá-la; ele a conhece como a palma de sua mão.
Este verso é intrigante por, pelo menos, duas razões. Primeira, os moabitas parecem ter tido boas relações com Davi. A linhagem de Davi incluía Rute, a moabita (Rute 4:5, 10, 13-22). Quando pareceu que Saul iria prejudicar a família de Davi, eles fugiram e foram se encontrar com ele na caverna de Adulão (I Samuel 22:1); em seguida, ele procurou proteção para eles com o rei de Moabe (I Samuel 22:3-4). Existe uma tradição judaica que diz que o rei de Moabe traiu a confiança de Davi e fez mal a seus pais, mas isso não pode ser confirmado. Com base na relação de Davi com Hanum, rei dos amonitas, descrita em II Samuel 10, creio que é certo presumir que ele seja leal a seus amigos. Algo deve ter saído tremendamente errado para ele ter tratado os moabitas com tanta severidade, embora não tenhamos uma explicação plausível do que aconteceu (e nem precisemos de uma neste breve relato).
Segunda, talvez o leitor fique incomodado pela severidade com que Davi trata os moabitas. Quando eu dava aulas, muitas vezes tive vontade de dividir a classe em pequenos grupos. Simplesmente teria de colocá-los em fila e enumerá-los: um, dois, três, um, dois, três... Na verdade, foi isso o que Davi fez. Depois ele pegou dois grupos e eliminou-os, mandando o terceiro (apavorado) para casa, como seus servos.
Alguns ainda podem ficar incomodados pelo fato de Davi deixar tantas pessoas com vida. No caso de Saul e os amalequitas, Saul perdeu seu reino por ter deixado com vida o rei e o melhor do rebanho amalequita (I Samuel 15). Davi deixa com vida muitos mais. Por que, então, Deus não o castiga por deixar tantos sobreviventes? A resposta é simples. Deus tinha um problema de longa data com os amalequitas, por isso ordenou que Saul aniquilasse todas as pessoas e todo o rebanho (I Samuel 15:1-3). Saul falhou porque deixou de obedecer a uma ordem direta. Davi não tinha tal ordem e nem era necessário que todos os moabitas fossem mortos. Em meio ao julgamento divino (com a morte de dois terços), um terço recebeu misericórdia.
Creio que se estivéssemos lá, teríamos achado muito difícil desempenhar a missão executada por Davi e os israelitas. A arbitrariedade disso tudo parece gritante. Até parece um campo de extermínio nazista, não é? Um grupo de internos judeus é levado para o “chuveiro” e morre na câmara de gás. Outro grupo também é levado para o “chuveiro”, mas sai vivo e limpo. Como Davi pôde deixar seus homens fazerem algo tão parecido?
Por enquanto, permitam-me dar uma breve resposta; depois voltaremos a este assunto na conclusão da mensagem. Davi é o rei de Deus. Ele é o rei de Israel, que governa por Deus. Ele é o representante de Deus. Os moabitas se tornaram inimigos de Israel e, por isso, inimigos de Deus. Como tal, eles merecem morrer. O espanto não é que dois terços sejam mortos, mas que um terço seja deixado com vida. E, com a morte de dois terços, sucumbe qualquer pensamento de resistência a Davi ou rebelião contra ele.
De acordo com a cronologia sugerida por nosso texto, Davi começa derrotando os filisteus, que estão a oeste de Israel. Depois ele se volta para leste, contra os amonitas. Após subjugar a ambos, ele vai para o norte. O reino arameu de Zobá fica a 40 km ou mais de Damasco, em direção ao norte. Sabemos que Saul se envolveu em confronto militar com esse reino (I Samuel 14:47). Na época, Hadadezer era seu rei. Aparentemente, ele tinha sofrido algumas perdas para o norte, onde governara “junto ao rio” (8:3). Talvez ele tenha visto os ataques de Davi a seus vizinhos do sul como uma oportunidade de ouro para voltar ao norte, onde poderia restabelecer sua supremacia. Seu plano não funcionou. Davi, ao que parece, viu a manobra de Hadadezer para o norte como uma oportunidade de atacá-lo pelo sul. Parece que, enquanto a maior parte das forças militares de Hadadezer está no norte, Davi captura seu reino no sul e, quando Hadadezer retorna, ele e seu exército encontram Davi naquilo que antes fora seu domínio. Quando os sírios de Damasco percebem que Davi é uma ameaça à sua “segurança nacional”, eles correm em auxílio de Hadadezer, mas também são derrotados (8:5-6).
O reino de Hamate fica ao norte de Zobá. Toí, seu rei, parece ter um vislumbre do desastre e toma uma atitude sábia... a rendição. Ele envia uma delegação liderada por seu filho, Jorão, para falar com Davi, rendendo-se formalmente e tornando-se seu aliado, conforme indicado pelo pagamento substancial de tributo. Toí está encantado com a derrota de Hadadezer, pois seu país estava em guerra contra ele. Tornar-se aliado do vencedor é compartilhar sua vitória sobre o inimigo.
Estes dois versiculos descrevem mais uma vitória do rei Davi e dos israelitas. De acordo com eles, parece que a vitória é sobre os “sírios”; no entanto, temos boas razões para dar uma olhada melhor no texto. O versículo 14 fala que os edomitas se tornaram servos de Davi. No versículo 13, há uma nota que informa que alguns textos dizem “Edom” em vez de “sírios”. A diferença na palavra hebraica é de apenas uma letra, e as duas letras são fáceis de ser confundidas. O texto paralelo de I Crônicas 18:12 mostra que os 18.000 mortos são edomitas. Ao que tudo indica, parece que eles eram o alvo. O ataque, aliás, é bem mais ao sul, o que significa que o autor descreve as vitórias de Davi a oeste, a leste, ao norte e, finalmente, ao sul. Davi derrota e subjuga todas as nações ao seu redor.
O resultado de todos os feitos de Davi descritos no capítulo 8 é a derrota e sujeição de seus inimigos. Agora há guarnições israelitas nas nações vizinhas (verso 14), quando antes havia guarnições estrangeiras em Israel (ver I Samuel 10:5; 13:3-4). Isso significa que, pelo menos por enquanto, elas não podem mais se opor, atormentar ou oprimir Israel. Significa que a terra está em paz, exatamente como Deus prometera. Todos os sucessos alcançados por Davi vêm das mãos de Deus (ver versos 6 e 14). Seus domínios crescem tanto que ele tem de aumentar sua equipe administrativa e ministerial, conforme registrado nos versos 15 a 18. Onde ele reina há justiça e retidão (verso 15). Em consequência, ele ganha renome (verso 13), exatamente como Deus prometera (7:9). Além disso, o tributo pago a ele também é substancial. Ele recebe grandes quantidades de ouro, prata e bronze (versos 7 a 12). Estas riquezas são guardadas e, pelo menos uma parte será utilizada no templo que vai ser construído por Salomão (ver I Crônicas 18:8).
No capítulo 8, vemos Davi tomando a iniciativa de sujeitar os inimigos que cercam Israel. Tem-se a impressão de que ele está satisfeito com as vitórias obtidas sobre os seus inimigos. No entanto, no capítulo 10, ele é praticamente forçado a lutar contra pessoas que antes eram suas amigas. O personagem central desse capítulo é Hanum, filho de Naás, falecido rei dos amonitas. A primeira vez que encontramos Naás é no capítulo 11 de I Samuel. Naquela ocasião, ele e seu exército haviam sitiado Jabes-Gileade e ameaçado estabelecer a paz só depois de vazar o olho direito de cada homem da cidade. Saul se mostrou a altura da situação e, capacitado pelo Espírito de Deus, liderou os israelitas na vitória sobre Naás e os amonitas. Não obstante, os amonitas não foram erradicados e, com o tempo, Naás se tornou aliado de Davi. É provável que isso tenha ocorrido enquanto Davi fugia de Saul. Seja qual for a razão, nosso texto deixa claro que Davi o considerava como amigo e aliado. Ao enviar uma delegação para lamentar a sua morte, Davi estava determinado a honrar a memória de Naás.
Hanum, filho de Naás e herdeiro do trono, não é o mesmo tipo de homem que seu pai. Parece que ele e os amonitas não têm muita vontade de manter o status de seu relacionamento com Davi e os israelitas. A situação é parecida com aquela descrita em I Reis 12, quando Salomão morre e o povo de Israel pede a Roboão, seu filho, que lhes dê mais liberdade. Roboão aceita o conselho de seus assessores mais jovens para governar com mão de ferro e o reino acaba dividido. Com a morte de Naás, Hanum assume o trono.
Logo no início do reinado de Hanum é que Davi envia uma delegação a Amom, para transmitir seus respeitos por Naás e lamentar sua morte. Os assessores do rei recém-instalado lhe dão maus conselhos. Eles garantem a Hanum que as intenções de Davi não podem ser honrosas. Davi está enviando aqueles homens como espiões, para obter informações a fim de atacá-los, como fez com tantas outras nações. Parece-me que esta explicação dos acontecimentos dá a Hanum a desculpa que ele está procurando, um motivo para quebrar a aliança feita por seu pai com Davi e Israel. Se ele pretende expandir seus domínios, vai ter de guerrear com Davi. Se conseguir derrotá-lo, Hanum terá o controle de todas as nações derrotadas e subjugadas por Davi.
Nenhuma outra explicação - senão a de uma estupidez tremenda - parece fazer qualquer sentido. Uma coisa é concluir que a delegação chegou com segundas intenções. Outra, totalmente diferente, é humilhar deliberadamente essa delegação e provocar uma guerra com Israel. Posso até entender que Hanum convoque mais tropas para proteger suas fronteiras e aumente sua segurança; mas humilhar a delegação enviada por Davi, que devia ser protegida pelo que podemos chamar de direito internacional e imunidade diplomática, é garantir que haja conflito. Parece que Hanum quer comprar briga. Se esse é o seu plano, ele funciona. Há briga. No entanto, nem tudo dá certo, não só porque os amonitas são derrotados, mas também porque os sírios, seus aliados, são desencorajados e não querem mais vir em seu auxílio.
Davi fica sabendo que sua delegação foi abusada e humilhada. Para os hebreus, a barba era sinal de dignidade. Hanum raspou metade da barba de cada homem. Além disso, ele também cortou metade de suas vestes, para envergonhá-los. Se isso tivesse ocorrido há pouco mais de um século, na época do velho oeste, o rei teria forçado esses dignitários a andar pelas ruas só de ceroulas, com a “traseira” rasgada. Alguns de vocês não têm idade suficiente para saber do que estou falando, por isso vou dar outro exemplo. Seria mais ou menos como forçar cada homem a tirar suas roupas e vestir uma camisola de hospital, e depois sair marchando pelas ruas com a parte de trás aberta. Essa foi uma atitude calculada para humilhar a delegação de Davi e começar uma guerra.
Davi se apieda da delegação desonrada. Ele envia mensageiros para encontrá-los e instruí-los a esperar em Jericó até que suas barbas cresçam novamente, e depois retornem a Israel. Não está escrito que ele reúne as tropas com intenção de ir à guerra. O que está escrito é que os filhos de Amom reconhecem que “se tornaram odiosos a Davi” (verso 6). Ao invés de se desculparem ou tentarem se reconciliar com ele, os amonitas procuram fazer uma aliança que os fortaleça no conflito com Israel. Sírios de várias regiões são contratados como mercenários (10:6). Só depois de saber desse ajuntamento militar é que Davi convoca o exército da ativa.
Davi e suas forças saem para a batalha contra os amonitas e mercenários sírios. Este exército de coalisão se divide em dois grupos, com intenção de atacar os israelitas pela frente e pela retaguarda. Quando Joabe percebe a manobra, ele divide o exército de Israel em duas forças. Ele lidera uma das divisões e seu irmão, Abisai, a outra. Joabe enfrenta os sírios, enquanto Abisai está pronto para lutar contra os amonitas. Se um dos dois se vir acuado pelo inimigo, o outro virá em seu socorro. As palavras do verso 12 demonstram sua fé em Deus, enquanto eles se preparam para a batalha: “Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso povo e pelas cidades de nosso Deus; e faça o SENHOR o que bem lhe parecer” (II Samuel 10:12).
Os sírios fogem de diante de Joabe e seus homens e, quando os amonitas veem isso, também se desanimam. Os sírios vão para casa e os amonitas procuram refúgio em sua capital, Rabá (ver 11:1; 12:26). Os israelitas voltam a Israel. Davi parece disposto a deixar tudo como está, mas os sírios ainda não aprenderam a lição. Eles, da mesma forma que os filisteus em II Samuel 5, não estão dispostos a desistir depois da primeira derrota. Eles querem revanche, e conseguem, só para serem novamente derrotados, com mais eficácia. Os sírios presumem que, se trouxerem mais gente “dalém do rio” (verso 16), poderão vencer. Hadadezer é seu líder. Ele tem contas a ajustar com Davi (ver 8:3 e ss).
Quando Davi fica sabendo que vai ocorrer um novo ataque, ele reúne todo Israel e atravessa o Jordão. A revanche começa e, uma vez mais, os sírios fogem de Davi e seu exército. Desta vez sua derrota é ainda maior do que a anterior. Davi mata 700 homens de carro e mais 40.000 a cavalo, e também Sobaque, comandante do exército sírio. Finalmente, cai a ficha dos sírios. Não vale a pena atacar o povo de Deus e lutar contra seu rei. Os reis sobreviventes fazem paz com Davi. Os sírios estão determinados a não cometer novamente o erro de se juntar aos filhos de Amom em seu conflito com Israel. Os amonitas ainda não se sujeitaram a Davi. Isso só ocorrerá nos capítulos 11 e 12.
A cada ano de eleições nos preparamos para outra enxurrada de “promessas de campanha”, que serão esquecidas tão logo o candidato chegue a seu gabinete. Nem mesmo esperamos que ele ou ela as cumpra e, se o fizerem, ainda ficamos surpresos. Davi é um homem que faz promessas e as cumpre. Antes de se tornar rei de Israel, ele fez promessas tanto a Jônatas quanto a Saul. A Jônatas, ele prometeu proteger-lhe a vida e ser benigno para com sua casa para sempre (I Samuel 20:12-17). A Saul, ele prometeu não eliminar seus descendentes (I Samuel 24:21-22). Agora, tanto um quanto outro estão mortos e Davi é o rei. Seria muito fácil para ele esquecer-se de seu compromisso.
Davi não apenas se lembra de seu compromisso com Saul, mas vai muito além disso. Com Saul, ele se comprometeu a não prejudicar seus descendentes. Com Jônatas, ele se comprometeu a demonstrar benignidade. Aparentemente, todos os descendentes de Saul estão mortos. Ninguém procura Davi em busca de seu favor. Agora ele é rei e está em condições de cumprir a promessa feita a Jônatas. Tudo o que ele precisa é de um de seus descendentes. Ele pergunta se há algum descendente de Saul a quem possa usar de bondade por amor de Jônatas (verso 1). No verso 3, ele se refere a este ato como a “bondade de Deus”, o que certamente é.
Nenhum dos servos de Davi sabe se há algum descendente vivo de Saul. Alguém se lembra de Ziba, servo de Saul, e ele é convocado à presença de Davi. Será possível imaginar a apreensão de ser convocado ao palácio do rei? Será que Davi é como os outros reis, que está simplesmente procurando remover qualquer vestígio do reinado de Saul? Será que Davi está procurando dar um jeito em Ziba e sua família? Com certeza, esses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Ziba, mais de uma vez! Como ele deve ter ficado aliviado ao ouvir a pergunta de Davi: “Não há ainda alguém da casa de Saul para que use eu da bondade de Deus para com ele?” (verso 3). Na verdade, há sim. Ele se lembra de Mefibosete, o filho de Jônatas. Há um filho, diz ele a Davi, mas é deficiente. É aleijado de ambos os pés. Davi certamente não vai querer demonstrar-lhe seu favor.
O autor de I e II Samuel com certeza nos preparou para este momento. Em II Samuel 4, ele relata a morte de Isbosete pela mão de dois de seus servos. No meio dessa narrativa tenebrosa, ele parece fazer um parênteses no verso 4, informando casualmente ao leitor a lesão sofrida por Mefibosete. O incidente parece meio fora de contexto. No entanto, o autor está preparando o terreno para o nosso texto. Na sequência, ele conta outra história no capítulo 5, sobre a tomada de Jebus. Neste capítulo, aparece três vezes a palavra “coxo” (versos 6 e 8). Os homens de Jebus eram tão confiantes, que se gabavam de que até “cegos e coxos” poderiam repelir o ataque de Davi à sua cidade. Quando este toma a cidade, alguns passam a dizer: “Nem cego nem coxo entrará na casa” (verso 8).
Agora, vemos Davi à procura de um descendente de Saul e Jônatas a quem possa demonstrar seu favor. O único candidato é o filho deficiente de Jônatas. Se já era notório que nenhum coxo entrava nas casas de Jerusalém, quanto mais no palácio. No entanto, é exatamente isso o que acontece. Davi chama Mefibosete, que vive em Lo-Debar, uma cidade a leste do Jordão e depois de Maanaim. A cidade devia ser perto de Amom, próximo à fronteira com Israel. Parece que Mefibosete vive o mais distante possível de Davi e Jerusalém, sentindo-se como um homem marcado para morrer caso se aproxime demais. Quando se apresenta a Davi, ele se prostra diante dele como servo. Davi percebe seu medo e lhe diz para não temer. Davi não pretende lhe fazer mal; sua intenção é usar de bondade por amor de Jônatas, pai de Mefibosete. Davi promete lhe restituir todas as terras que foram de seu pai e que, obviamente, ele perdera depois da morte de Saul e Jônatas. Davi não só restituirá tudo o que Mefibosete herdou, como também o tornará um convidado regular do palácio.
Mefibosete fica cheio de alívio e gratidão, prostrando-se diante de Davi mais uma vez, dizendo-se apenas um “cão morto”. Davi usou essa mesma expressão referindo-se a si mesmo quando falou com Saul (I Samuel 24:14). Naquela ocasião, ele tentava convencer Saul de que não representava um perigo real para ele, não importando o que dissessem a seu respeito. Parece evidente que Mefibosete chama a atenção para a sua deficiência física. Um homem que não pode andar dificilmente poderia servir ao rei, conduzindo seu exército na batalha:
“Adoni-Bezeque, porém, fugiu; mas o perseguiram e, prendendo-o, lhe cortaram os polegares das mãos e dos pés. Então, disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, a quem haviam sido cortados os polegares das mãos e dos pés, apanhavam migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E o levaram a Jerusalém, e morreu ali.” (Juízes 1:6-7)
Estes reis ficaram incapacitados porque seus polegares das mãos e dos pés foram cortados. Eles não poderiam ficar em pé ou correr no campo de batalha, nem segurar suas armas de forma adequada. Quando um rei prevalecia sobre outro na guerra, ele cortava os polegares das mãos e dos pés de seu oponente para deixá-lo como uma espécie de exemplo. Ao que parece, esses reis ficariam debaixo da mesa do rei, apanhando migalhas; não eram convidados de honra; eram troféus de guerra. Davi não queria nada disso para Mefibosete; não queria que ele se sentasse à sua mesa como um inimigo subjugado, mas como um convidado de honra, o filho de seu querido amigo Jônatas. Este é um gesto surpreendente de graça.
Davi dá ordens a Ziba, dizendo-lhe que tudo o que antes pertencera a Saul agora pertence a Mefibosete e deve ser restituído a ele. Ele faz de Ziba e seus filhos (os quais, aparentemente, tinham sido emancipados com a morte de Saul e seus filhos) servos de Mefibosete. Ziba graciosamente aceita o rumo dos acontecimentos. Daqui por diante, Mefibosete é convidado de honra de Davi, comendo regularmente à sua mesa, não como um inimigo derrotado ou humilhado, mas como um de seus filhos (verso 11).
Esta passagem tem muitas lições a nos ensinar, nas quais meditaremos enquanto concluímos o estudo do texto.
Primeiro, a passagem ilustra a providencial mão de Deus operando todas as coisas para o bem daqueles que creem. As batalhas travadas por Davi com os inimigos que cercam Israel só são possíveis por ele ter sido preparado por Deus nos dias em que fugia de Saul. No capítulo 5, os filisteus marcharam contra Israel, especialmente contra Davi. De acordo com o texto paralelo de I Crônicas 11:15-16, sabemos que a fortaleza mencionada no verso 17 é a caverna de Adulão. Não é interessante que os esconderijos de Davi na época em que fugia de Saul se tornem seus postos de comando nas lutas contra as nações circunvizinhas? Em II Samuel 8:1 está escrito que Davi lutou contra os filisteus e capturou sua metrópole. De acordo com I Crônicas 18:1, essa “metrópole” não era outra senão Gate. Todas as vezes em que Davi se escondeu ali, inconscientemente espionou a cidade e seus arredores, os quais um dia iria atacar e derrotar. Sabemos também que, quando fugia de Saul, ele foi para Moabe e que, provavelmente, deve ter recebido asilo de algumas outras nações. Agora que é rei de Israel, ele pode usar essas informações como vantagem militar. É bem verdade que nos Salmos vemos Davi clamando a Deus nos dias em que fugia de Saul. Ele se perguntava “Por quê?” mas, naquela época, não recebia resposta alguma. Agora, estamos começando a ver a resposta. Quando fugia de Saul, Deus o estava preparando para lutar como rei de Israel. Acho que é Bill Gothard que mostra que os dias de escravidão de Israel no Egito foram uma espécie de campo de treinamento, preparando-os para os dias difíceis que iriam passar no deserto a caminho da terra prometida. Nossas lágrimas, tristezas e sofrimentos nunca são em vão; sempre têm um propósito, e esse propósito é a glória de Deus e o nosso bem.
Mas, espere, tem mais! As intrigas políticas e militares que vemos em nosso texto são usadas providencialmente por Deus para dar a Israel as vitórias e a terra que Ele havia prometido muito tempo antes a Seu povo. E o tributo recebido por Davi dos inimigos que subjugou parecem fornecer os materiais necessários à construção do templo. Os acontecimentos de nosso texto são o cumprimento não só da promessa que Deus fez no capítulo 7, mas também das promessas que Ele fez a Abraão, aos patriarcas e a Moisés.
Segundo, em nosso texto, as ações de Davi prefiguram a vinda de nosso Senhor Jesus como o Rei de Israel. Como deve ser o Rei de Deus? Esta é uma pergunta que há muito tempo tem estado na mente daqueles que aguardam a Sua vinda. Os profetas do Antigo Testamento nos disseram, mas de forma que até mesmo eles ficaram intrigados:
“Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam.” (I Pedro 1:10-11)
Por um lado, o Messias prometido seria um Servo sofredor, que seria rejeitado pelos homens e entregaria Sua vida pelos pecadores (Isaías 52:13 - 53:12). Por outro, um Rei triunfante, que prevaleceria sobre Seus inimigos e estabeleceria Seu reino (ver Salmo 2). Os homens não conseguiam compreender como essas duas profecias poderiam ser verdadeiras. Obviamente, eles não entenderam que o Messias viria à terra duas vezes: a primeira, para ser rejeitado pelos homens e morrer pelos pecados dos perdidos; a segunda, para destruir os ímpios e governar sobre o Seu reino.
Nos capítulos 8 a 10, Davi serve como um tipo de Cristo. Ele estabelece seu reino, prevalecendo sobre os inimigos de Israel e sujeitando-os. Em contrapartida, ele é misericordioso para com Mefibosete, filho de Jônatas e neto de Saul. Mefibosete é o único herdeiro de Saul, o último candidato a rei. Normalmente, um rei no lugar de Davi mataria quaisquer candidatos potenciais ao trono; ele, no entanto, vai em busca desse homem e tem misericórdia dele. Não é devido a alguma contribuição que Mefibosete possa dar a seu reino, pois ele é deficiente, o que, aos olhos dos homens daquela época, o tornava inútil. Também não é devido ao seu valor ou valor potencial que Davi lhe demonstra favor; é devido ao amor de Davi por seu amigo Jônatas, pai de Mefibosete.
Os capítulos 8 a 10 nos lembram de que estas duas dimensões de Deus e Seu Rei - soberania e graça - combinam perfeitamente. A graça de Deus é graça soberana, graça que não é adquirida ou merecida. Ela é concecida a quem Ele escolhe, e unicamente com base na Sua benevolência. O reino justo de Deus é um governo soberano que prevalece sobre todos os Seus inimigos. Deus os destruirá, como os destruiu no passado.
As pessoas não querem pensar em Deus em nenhum desses termos. Elas preferem pensar em Deus como alguém que concede coisas boas para quem as merece. Elas não gostam da graça, porque a graça não lhes dá crédito algum; não gostam dela, porque não a podem reivindicar, como se a merecessem. Deus não é obrigado a conceder Sua graça a quem quer que seja. Os homens também não gostam de pensar em Deus como soberano sobre Seus inimigos. Eles não querem pensar que Deus enviou o Messias à terra para derrotar Seus inimigos e estabelecer Seu trono de justiça. Eles não querem pensar no inferno e no tormento eterno para os ímpios. Estas duas dimensões de Deus são vistas em Davi. São estas características que fazem os ímpios tremer ou, pelo menos, rejeitar a Deus. E são elas também que fazem o cristão se alegrar. Nós sabemos que fomos salvos pela graça soberana de Deus. Nós, como Mefibosete, éramos indignos da graça de Deus, e éramos respulsivos a Ele. No entanto, apesar da nossa condição miserável, Ele escolheu demonstrar Seu amor por nós, por amor a Seu Filho, Jesus Cristo. Deus nos ama e nos abençoa por amor a Cristo, assim como Davi amou e abençoou Mefibosete por amor a Jônatas, seu pai. Que linda imagem Davi retrata de Deus e Seu Rei, o Senhor Jesus Cristo!
É possível que você ainda não tenha vindo a se relacionar com Deus da mesma forma que Mefibosete veio a se relacionar com Davi. Você, como Mefibosete, precisa reconhecer sua indignidade de habitar na presença de Deus. Você, como Mefibosete, precisa aceitar humildemente a graça de Deus, oferecida por intermédio de Seu Filho Jesus Cristo. Pelo reconhecimento do seu pecado e pela aceitação da solução providenciada por Deus em Jesus Cristo, que morreu por seus pecados e ressuscitou para torná-lo justo diante do Pai, é que você entra em comunhão com Deus. Deus o convida a se sentar à Sua mesa quando você passa a confiar em Seu Filho, Jesus Cristo (ver Salmo 23; Apocalipse 3:20).
Terceiro, este texto ilustra o uso apropriado do poder e se torna o pano de fundo para o abuso de poder de Davi nos dois capítulos seguintes. É evidente que, à medida que a história se desenrola em II Samuel, Davi chega ao poder. Saul foi divinamente removido do trono e, em seguida, seu filho Isbosete. Agora Davi se torna o rei, primeiro de Judá e depois de todo Israel. Ele ascende ao trono. Ele captura a cidade de Jebus e faz dela Jerusalém, sua capital. Ele enfrenta seus inimigos e os vence. Ele usa o poder que Deus lhe deu para fazer a Sua vontade, para derrotar as nações ao redor de Israel, para possuir a terra prometida e para usar de bondade e misericórdia para com os desamparados. Davi usa o poder concedido por Deus de forma adequada, como um bom despenseiro. Isso, portanto, nos mostra como é o Messias e como será quando Ele voltar para estabelecer o Seu reino.
Entretanto, estes três capítulos também nos dão uma espécie de pano de fundo contra o qual serão contrastadas as atitudes e ações de Davi no capítulo 11. Esse capítulo fala sobre o abuso de poder por parte de Davi. Davi abusará do poder ao ficar em casa e enviar seu exército para a batalha sem ele. Ele abusará do poder ao tomar Bate-Seba e depois tirar a vida do marido dela. O retrato dele no auge do sucesso nos capítulos 8 a 10 estabelecem o cenário para a sua profunda queda nos capítulos 11 e 12. Aprendamos com nosso texto que sucesso espiritual não garante que não possamos cair, mas que, de alguma forma, podemos nos preparar para uma queda.
Tradução: Mariza Regina de Souza
Quando minha avó materna era viva, ela morava num sítio nos arredores de Shelton, Estado de Washington. Na entrada do sítio, em direção à garagem, havia uma pequena área, onde um trailer não muito grande ficava estacionado. Pelo que me lembro, a mulher que vivia nesse trailer e o marido estavam separados. O homem, que havia cumprido pena, era meio violento. Um dia, quando ele foi visitá-la, outro homem estava lá. Houve discussão e pancadaria. Por fim, o homem que estava com a mulher sacou uma arma e exigiu que o marido fosse embora. Ele foi, mas soltando ameças sobre o que iria fazer.
Poucas horas depois, chegou um tio meu para visitar minha avó. Ele entrou no sítio e ia passando bem perto do trailer onde a briga tinha ocorrido. Infelizmente, ele estava dirigindo um carro muito parecido com o do rival do ex-marido da mulher, que estivera estacionado ali no início do dia. Tiros soaram, enquanto o marido enfurecido cumpria sua ameaça. O rifle atravessou com facilidade o parabrisa do carro e meu tio foi morto na hora... por engano. O homem furioso tinha matado o meu tio, falsamente presumindo que ele era o seu rival.
Muitos incidentes trágicos ocorrem como resultado inesperado de uma sequência de acontecimentos. Certamente, esse é também o caso de Davi. Umas férias da guerra o levam a um dia de descanso na cama, seguido de um passeio pelo terraço do palácio quando a noite começa a cair em Jerusalém. Por acaso, Davi vê uma mulher se banhando, uma visão que chama sua atenção e o leva a investigar a sua identidade. A mulher é rapidamente convocada ao palácio e à cama de Davi, onde ele dorme com ela, embora já saiba que ela é esposa de Urias, um guerreiro que está lutando pelo exército de Israel. Ela fica grávida e, por isso, Davi chama Urias de volta da guerra, esperando que todos pensem que foi ele que a engravidou. Quando o plano não funciona, Davi dá ordens a Joabe, comandante do exército, para que Urias seja morto em combate. Esse parece o crime perfeito; no entanto, o pecado de Davi é descoberto e tratado por Natã, o profeta de Deus.
Esta sequência de eventos e suas trágicas consequências são o assunto dos capítulos 11 e 12 de II Samuel. Decidi expor estes capítulos em três lições. A primeira tratará de “Davi e Bate-Seba”, como descrito nos versos 1 a 4 do capítulo 11. Na lição seguinte, abordaremos o tópico “Davi e Urias”, conforme descrito pelo autor em 11:5-27. A terceira lição enfocará em “Davi e Natã”, de acordo com o confronto narrado no capítulo 12. Nosso texto tem muito a dizer sobre os pecados de adultério e assassinato, mas certamente aborda ainda muitas outras coisas. Este é um texto que todos precisam ouvir e entender, pois se um “homem segundo o coração de Deus” pode cair com tanta rapidez e facilidade, com certeza nós também somos capaz de fracassos semelhantes. Que o Espírito Santo tome esta porção da Palavra de Deus e a ilumine para ensinar a cada um de nós, enquanto a estudamos.
Antes de começarmos a examinar os versos 1 a 4 do capítulo 11, permitam-me fazer alguns comentários sobre o episódio relatado nestes dois capítulos de II Samuel. Primeiro, gostaria que reparassem na “lei da proporção” do texto. Somente três versos descrevem o adultério de Davi com Bate-Seba. Segundo, o autor não faz rodeios ao descrever a perversidade desse pecado. A história não foi escrita para fazer Davi parecer bonzinho. Terceiro, o pecado de Davi e Bate-Seba é retratado historicamente, não à maneira hollywoodiana. Os cineastas de Hollywood fariam um remake da narrativa ressaltando seus elementos sensuais. Nada no texto tem a intenção de provocar pensamentos ou atitudes impuros. Na realidade, a história é escrita de forma a nos dar arrepios só de pensar nela.
Israel está em guerra com ninguém menos que os amonitas (verso 1), o que pode vir a ser uma surpresa para vocês, da mesma forma que foi para mim. Achei que eles tinham sido derrotados no capítulo 10. Enganei-me. O autor é bem claro quanto a isso. No capítulo 8, ele conta que Davi começou a lutar com seus inimigos e acabou sufocando todas as nações ao redor de Israel. Davi subjugou os filisteus (8:1) e os moabitas (8:2), e depois deu um jeito no rei de Zobá (8:3 e ss). No decorrer dessas batalhas, outras nações foram envolvidas, as quais encontraram em Israel um inimigo tão formidável que não quiseram mais se opor a ele.
No capítulo 10, encontramos Davi e os israelitas sendo deliberadamente insultados por Hanum, rei dos amonitas. Davi e Naás, o ex-rei de Amom, haviam se tornado amigos. Quando esse rei morreu, Davi enviou uma delegação de oficiais a Amom para expressar seus respeitos e sentimentos pela morte dele. Parece que os amonitas não queriam manter o relacionamento pacífico com Davi e Israel, por isso, humilharam os homens enviados por Davi. Isso levou à guerra entre as duas nações. Os amonitas recrutaram os sírios para lutar contra Davi. No primeiro conflito, os sírios fugiram, forçando os amonitas a bater em retirada para “a cidade” (10:14, a qual deve ser Rabá - ver 12:26 e ss). Os sírios não ficaram contentes com a derrota e tentaram uma revanche, mas foram novamente rechaçados. Isso fez com que eles abandonassem qualquer pensamento futuro de sair em auxílio dos amonitas na guerra contra Israel.
Portanto, vejam, os amonitas não foram subjugados no capítulo 10, só foram privados do auxílio dos sírios. Agora, eles estão por conta própria. Os israelitas exploram ao máximo a situação. Eles destroem o território dos amonitas e sitiam sua metrópole (real), Rabá (11:1, ver I Crônicas 20:1). Rabá, aliás, é hoje a cidade de Amam, na Jordânia. Na verdade, os israelitas só tomam a cidade depois que Davi é repreendido por seu pecado (II Samuel 12:26-31).
O autor do texto nos informa que é primavera, época em que os reis saem para a guerra (11:1, NVI). O tempo sempre afetou as campanhas militares. Batalhas são ganhas ou perdidas devido a estação do ano. Se o tempo está frio e chuvoso, acampar ao ar livre (como o exército que sitia Rabá - ver 11:11) é quase inviável. Entre outras coisas, as rodas dos carros atolam na lama. Por isso, normalmente os reis esperam o inverno passar, retomando a guerra na primavera. É primavera e Israel ainda está em guerra com os amonitas, e já é hora de sujugá-los. O exército se reúne, sob o comando de Joabe e seus oficiais, e “todo Israel”. Eles saem para completar a vitória sobre os amonitas, que parecem recuar para a sua capital, a cidade fortificada de Rabá.
Todos os homens que podem lutar vão para a guerra, menos um... Davi. Davi, está escrito, “ficou em Jerusalém” (11:1). Sua decisão de ficar em casa, em Jerusalém, acaba se tornando um pesadelo. O autor de Samuel não menciona o fato, mas Crônicas sim. Em I Crônicas 20, lemos:
“Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, Joabe levou o exército, destruiu a terra dos filhos de Amom, veio e sitiou a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém; e Joabe feriu a Rabá e a destruiu.” (I Crônicas 20:1)
De acordo com os detalhes fornecidos no texto de Crônicas, vemos que é a mesma época do ano e a mesma guerra. A decisão de Davi antecede um outro pecado muito sério em I Crônicas 21:
“Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel. Disse Davi a Joabe e aos chefes do povo: Ide, levantai o censo de Israel, desde Berseba até Dã; e trazei-me a apuração para que eu saiba o seu número. Então, disse Joabe: Multiplique o SENHOR, teu Deus, a este povo cem vezes mais; porventura, ó rei, meu senhor, não são todos servos de meu senhor? Por que requer isso o meu senhor? Por que trazer, assim, culpa sobre Israel? Porém a palavra do rei prevaleceu contra Joabe; pelo que saiu Joabe e percorreu todo o Israel; então, voltou para Jerusalém. Deu Joabe a Davi o recenseamento do povo; havia em Israel um milhão e cem mil homens que puxavam da espada; e em Judá eram quatrocentos e setenta mil homens que puxavam da espada.” (I Crônicas 20:1-5)
Joabe insiste para que Davi não faça o recenseamento dos israelitas e, por intermédio do profeta Gade, Deus repreende Davi por tê-lo feito, dando-lhe a escolha de um entre três castigos. Este é um pecado muito grave, que traz sérias consequências para a nação de Israel. Apesar disso, Deus abençoa Israel, pois é no terreno onde Davi oferece o sacrifício a Deus que o templo será construído. O que estou dizendo é que a decisão de Davi, de ficar em Jerusalém, é o começo de grandes aflições, tanto para ele quanto para Israel. Por que será que é errado Davi ficar em casa, enquanto todos em Israel vão para a guerra com os amonitas? Primeiro, liderar a nação na guerra é uma das principais tarefas do rei:
“Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras.” (I Samuel 8:19-20)
Os israelitas erraram ao exigir um rei, mas a expectativa de que ele os conduzisse nas guerras não era tão errada. Os juízes levantados por Deus tempos antes, normalmente eram homens como Baraque ou Gideão, que lideravam a nação contra seus inimigos. Quando Deus designou Saul como primeiro rei de Israel, esse papel militar foi claramente definido:
“Ora, o SENHOR, um dia antes de Saul chegar, o revelara a Samuel, dizendo: Amanhã a estas horas, te enviarei um homem da terra de Benjamim, o qual ungirás por príncipe sobre o meu povo de Israel, e ele livrará o meu povo das mãos dos filisteus; porque atentei para o meu povo, pois o seu clamor chegou a mim.” (I Samuel 9:15-16)
Saul muitas vezes deixou de perseguir os inimigos de Israel e, algumas vezes, foi Davi quem tomou seu lugar, liderando a nação nas batalhas. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Davi lutou com Golias, uma luta que deveria ter sido travada por Saul, o gigante de Israel (ver I Samuel 9:2). Até agora, Davi tem liderado os homens nas batalhas mas, no capítulo 11, ele repentinamente retrocede, enviando outros em seu lugar. Em II Samuel 12:26-31, o autor deixa claro que talvez ele não tenha planejado participar da rendição formal de Rabá. Joabe manda um recado para ele, insistindo para que ele vá até lá e, pelo menos, dê a impressão de estar liderando o exército. Se ele não for, adverte Joabe, não receberá a glória, que poderá ser dele. Joabe sabe que Davi sabe que esta não é a maneira como deveria ser. E assim é que Davi faz uma aparição formal, para ser o líder “oficial” no momento rendição da cidade de Rabá.
Davi erra também em outro sentido, algo que ele nem teria percebido naquela época. Ele era um tipo do Messias que estava por vir como o rei de Deus. Quando o Messias voltar, será Ele que trará libertação ao Seu povo. Será Ele que subjugará Seus inimigos e estabelerá o Seu reino. Como Davi pode representar o Messias, ficando em casa e se recusando a batalhar com os inimigos de Deus e de Seu povo? O Messias virá (pela segunda vez) como um grande guerreiro. Se Davi deve retratá-lO, precisa também ser um grande guerreiro.
O que será que mantém Davi em casa, em Jerusalém? Por que ele não vai para a batalha? Receio que talvez haja diversas razões. A primeira é a sua arrogância. Deus tem estado com ele em todos os confrontos militares e tem lhe dado a vitória sobre todos os seus inimigos. Deus tem dado a ele um grande prestígio. Davi começa a acreditar em seus próprios recortes de jornal. Ele começa a se sentir invencível. Ele parece ter chegado ao ponto em que acredita que suas habilidades são tão grandes que ele pode conduzir Israel à vitória, mesmo não estando com seus homens.
Isso também parece coerente com o outro grande pecado de Davi, que ocorre após sua decisão de ficar em casa. Quando ele ordena que Joabe faça o recenseamento dos guerreiros israelitas, Joabe protesta. Essa é uma coisa que Davi não deveria fazer. Talvez porque Davi iria confiar mais no tamanho de seu exército do que em Deus. Seu exército, com certeza, é bem maior do que o de Gideão, reduzido a míseros 300 homens.
Uma segunda razão talvez seja o tédio. Uma coisa é travar batalhas em que o inimigo é rapidamente subjugado. O cerco de Rabá, entretanto, são outros quinhentos. A vitória não será tão rápida. Levará algum tempo até que os amonitas fiquem privados de suprimentos a ponto de se render. Este não é um tipo muito interessante de guerra, pois enquanto esperam, os soldados israelitas (incluindo Davi) terão de armar suas tendas fora da cidade, vivendo ao ar livre. Não será um piquenique e Davi sabe disso. A atitude dele parece refletir o slogan da maior rede de hambúrgueres do país: “Você merece uma pausa hoje.”
Uma terceira razão - e hesito em sugeri-la - é que Davi talvez esteja ficando meio mole. Vamos encarar os fatos: ele teve tempos difíceis quando fugia de Saul. Tenho certeza de que havia dias quentes e noites frias. Havia também dias em que a comida ou era racionada ou meio repulsiva, ou ambas. Comida de exército nunca foi conhecida como obra de arte culinária. Ora, Davi subiu na vida, do árido deserto, que se possível seria evitado por Saul e seus homens, às colinas de Jerusalém. Agora, suas acomodações também são melhores. Ele não vive mais em tendas (se é que naquela época ele tinha sorte o bastante para ter uma); ele vive num palácio. Por que ele iria querer ficar numa tenda, ao ar livre, nos arredores de Rabá, se podia ficar em sua própria cama, em seu próprio palácio, em Jerusalém?
Davi está começando a ficar parecido com Saul, no sentido de deixar que outros saiam e lutem por ele. Entre os que ele pretende enviar em seu lugar estão Joabe e Abisai. Joabe, devemos recordar, é um cara violento. Ele não se tornou comandante do exército de Israel por escolha de Davi. Davi havia se distanciado dele e de Abisai por causa da morte de Abner (II Samuel 3:26-30). Joabe se tornou comandante do exército porque foi o primeiro a aceitar o desafio de Davi para atacar Jebus (I Crônicas 11:4-6). Subitamente, Davi quer ficar em casa e deixa toda a força armada de Israel sob o comando de Joabe. Creio que sua motivação seja muito mais o descaso pela dificuldade da campanha contra Rabá do que a confiança em Joabe.
Da mesma forma que meu tio, a quem já me referi, Davi está no lugar errado, na hora errada. Ele está em Jerusalém quando deveria estar em Rabá. Diferentemente do meu tio, no entanto, ele está no lugar errado e na hora errado por decisão própria. Davi é como o simplório de Provérbios 7, que estava tola e deliberadamente no lugar errado, na hora errada. Alguma coisa tinha que sair errada, e saiu!
Enquanto leio estes versos de II Samuel, lembro-me daquele filme de Alfred Hitchcock, “Janela Indiscreta”. Se não me falha a memória, o suspense, estrelado por James Stewart e Grace Kelly, conta a história de um fotógrafo confinado em seu apartamento que se recupera de uma perna quebrada. De sua “janela indiscreta”, James Stewart observa os vizinhos através de suas janelas. Acidentalmente, ele descobre um assassinato e é quase morto por isso, junto com sua namorada.
O rei Davi comete o erro de permanecer em Jerusalém em vez de ir com seu exército lutar contra os amonitas. Ele não fica em casa para meditar na lei de Moisés ou escrever um ou dois salmos; ao que parece, ele fica em casa para ficar na cama. Sabemos que Urias ia se deitar à tardezinha (isto é, ao anoitecer) e é muito provável que se levantasse à primeira luz do dia (ver 11:13). Com Davi, é bem diferente. Ele só se levanta à tarde, ou seja, no horário em que um soldado ia se deitar (Como diz um amigo meu, este é provavelmente um hábito adquirido ao longo do tempo, não um caso isolado). É bastante improvável que Davi esteja fazendo algum “serviço real” às altas horas da noite. Ao que tudo indica, ele está simplesmente sendo ingulgente consigo mesmo.
Por fim, Davi não consegue mais ficar na cama. Levantando-se, ele vai dar um passeio pelo terraço do palácio. Seu palácio, com certeza, era construído na parte mais elevada do terreno, a fim de que ele tivesse ampla visão da cidade e seus arredores. Praticamente todas as outras residências e construções deveriam ser mais baixas que sua cobertura e, por isso, ele poderia ver coisas que outras pessoas não poderiam (Após esta mensagem, um amigo comentou que soube por um motorista de caminhão que, da cabine de uma carreta de 18 rodas, a gente vê muita coisa que não pode ser vista por quem está de carro.)
Não estou sugerindo que Davi tivesse intenção de ver algo que não deveria. É mais provável que ele estivesse dando uma volta, meio distraído, quando subitamente alguma coisa chamou sua atenção para uma mulher que se banhava. Na verdade, o texto não diz onde ela se banhava. Sabemos apenas que ela estava dentro do campo de visão do terraço do apartamento de Davi (cobertura). Ele repara em sua beleza. Ele não sabe quem ela é ou se é casada. Não podemos dizer com certeza o quanto ele vê; por isso, não é possível determinar se ele pecou ou não. Se ele viu mais do que deveria (fato ainda em questão), certamente deveria ter desviado os olhos. Não era necessariamente um erro fazer perguntas discretas a respeito dela. Se ela não fosse casada e estivesse disponível, ele poderia tomá-la como esposa. Suas perguntas esclareceriam a questão.
Ele é informado sobre a identidade da mulher:
“e disseram: Porventura, não é esta Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o heteu?” (II Samuel 3b, ARC)
Davi recebe a resposta em forma de pergunta. Creio que ninguém realmente viu a mulher, só ele. A identificação dela, então, depende da descrição feita por ele - idade, aparência, local onde estava - e ninguém poderia saber com absoluta certeza se era ela ou não; com exceção dele, é claro, que a reconheceria.
A informação que ele recebe deve ser suficiente para por fim à questão. Se a mulher é casada, ele não tem nada que ir adiante. Não importa quão importante ele seja, ou quanto poder tenha, nada lhe dá o direito de tomar a esposa de outro homem. O padrão para o comportamento de Davi é a atitude de José (do Egito), que foi ardentemente perseguido pela esposa de seu senhor:
“Aconteceu, depois destas coisas, que a mulher de seu senhor pôs os olhos em José e lhe disse: Deita-te comigo. Ele, porém, recusou e disse à mulher do seu senhor: Tem-me por mordomo o meu senhor e não sabe do que há em casa, pois tudo o que tem me passou ele às minhas mãos. Ele não é maior do que eu nesta casa e nenhuma coisa me vedou, senão a ti, porque és sua mulher; como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” (Gênesis 39:7-9)
Os esclarecimentos dados a Davi sobre Bate-Seba lhe dão todas as informações de que ele precisa, e até mais, se ele tem intenção de fazer o que é certo. Ele sabe que ela é casada e, portanto, que está fora de cogitação. Ele sabe também que ela é casada com Urias, o heteu. Urias não é um marido sem nome, alguém de quem Davi nunca ouviu falar. Ele tem de saber quem é Urias, mesmo que não saiba quem é a esposa dele. Em II Samuel 23:39, “Urias, o heteu” está entre os valentes de Davi, conhecido por sua coragem e bravura como soldado. Se Davi não sabe disso, certamente algum de seus servos deve informá-lo.
Meu medo é que Davi tenha preferido ignorar o histórico militar de Urias e tenha se fixado nas origens raciais dele. Davi, clara e notadamente, se refere a ele como “Urias, o heteu”, enquanto o autor de Samuel o chama simplesmente de “Urias”. A expressão “Urias, o heteu” é pejorativa, creio, baseada somente no fato de que ele é heteu. Parece que Davi se esquece de que tem sangue moabita nas veias. Vamos rever rapidamente onde os heteus se encaixam no Antigo Testamento.
Logo no início, em Gênesis 15:18-21, Deus prometeu a Abrão (Abrahão) que seus descendentes herdariam a terra dos heteus (junto com a de outros povos; ver Êxodo 3:8, 17; 13:5; 23:23, 28, 32; 33:21; 34:11; Deuteronômio 7:1; Josué3 1:4; 3:10). Efrom, o homem de quem Abraão comprou a sepultura para sua família, era heteu (ver Gênesis 23:10, 25:9, etc). Esaú, irmão de Jacó, teve várias esposas filhas dos heteus (Gênesis 26:34-35; 36:2). Os israelitas receberam ordens de aniquilá-los (Deuteronômio 20:17). Os heteus se oposuseram à entrada de Israel na terra prometida (ver Números 13:29, Josué 9:1; 11:1-5) e sofreram algumas derrotas às suas mãos (Josué 24:11). Apesar disso, eles não foram totalmente expulsos da terra e passaram a viver entre os israelitas (Juízes 3:5). Quando fugia de Saul, Davi recebeu a notícia de que o acampamento do rei estava nas proximidades. Ele pediu a dois homens que o acompanhassem até lá. Um deles, Abisai, apresentou-se como voluntário, o outro não. Esse outro homem era Aimeleque, o heteu (I Samuel 26:6).
É óbvio que Urias havia abandonado seu próprio povo e seus deuses para viver em Israel, casar-se com uma israelita e lutar no exército de Davi. Ele não é nenhum pagão, para ser morto. Ele é um prosélito. A despeito de tudo isso, acho que Davi o menospreza. Davi se acostumou a ter o melhor. Seu palácio é o mais luxuoso das redondezas. Seus móveis, sua comida, sua criadagem - tudo é do bom e do melhor. Agora, ele olha de sua cobertura e vê uma mulher que considera “fina”. Como é que uma mulher tão fina pode pertencer a um heteu? Ela é digna de um rei. E esse rei pretende tê-la.
Assim, Davi manda mensageiros para tomar Bate-Seba e trazê-la para ele. Quando ela chega, ele dorme com ela e, depois de purificada de sua impureza, ela volta para casa. Ponto. Se ela não tivesse ficado grávida, duvido que tivesse batido à porta de Davi outra vez. Ele não a quer como esposa. Nem mesmo como amante. Ele só quer uma noite de prazer, para depois devolvê-la para Urias.
A sequência dos acontecimentos, no que diz respeito a Davi, pode ser vista desta forma: 1) Davi fica em Jerusalém; 2) Davi fica na cama; 3) Davi vê Bate-Seba se banhando, enquanto está dando uma volta pelo terraço; 4) Davi faz perguntas a respeito dela; 5) Davi fica sabendo quem ela é e que é casada com um herói de guerra; 6) Davi manda buscá-la e trazê-la para ele; 7) Davi se deita com ela; 8) Bate-Seba volta para sua casa após purificar-se. Essa mesma sequência pode ser vista em outros textos, nenhum dos quais é digno de louvor. Siquém “viu, tomou e deitou-se com” Diná, a filha de Jacó, em Gênesis 34:2. Judá “viu, tomou e possuiu” uma mulher cananeia, que tomou por esposa em Gênesis 38:2-3. Acã “viu, cobiçou e tomou” os despojos de guerra proibidos em Josué 7:21. Sansão fez literalmente a mesma coisa em Juízes 14. Não nos esqueçamos também de que uma sequência parecida ocorreu no primeiro pecado, quando Eva “viu, desejou e pegou” o fruto proibido em Gênesis 3.
Pelas palavras de nosso texto, fica claro que Davi pecou. Por suas ações subsequentes, é claro que ele pecou. Pelas palavras de Deus, por intermédio de Natã, é evidente que seu pecado é muito grave. O problema é que muitas pessoas querem ver o texto de maneira que Bate-Seba também tenha culpa, supondo que ela, de alguma forma, tenha seduzido Davi. Gostaria de prosseguir neste assunto, pois creio que não há nenhuma evidência que apoie esse raciocínio.
Quase sempre, a inferência é de que Bate-Seba não deveria ter se exposto da maneira como fez, e que foi a sua indiscrição que deu origem a todo problema. Alguns pensam que ela agiu deliberadamente (que sabia que Davi estava lá e veria...), enquanto outros são mais complacentes e acham que foi simplesmente falta de discernimento. Deixem-me mostrar algumas coisas em nosso texto. Antes de mais nada, quando Natã anuncia o julgamento divino por causa do pecado de Davi, Bate-Seba e Urias são retratados como vítimas, não como vilões. Quando Adão e Eva pecaram, Deus acusou individualmente Adão, Eva e a serpente, e cada um deles recebeu a sua justa maldição. Este não é o caso com Bate-Seba. Em lugar nenhum da Bíblia ela é acusada deste pecado. Talvez seja porque o autor prefira não se concentrar nela; mas, mesmo assim, a Lei exigiria claramente que a considerássemos inocente até prova em contrário.
O livro de Samuel deixa bem claro que as tragédias ocorridas na casa de Davi são consequências do pecado cometido por ele, como indicado por Natã (12:1-12). Portanto, quando Amnom violenta Tamar, a irmã de Absalão, é um caso típico de “feitiço que vira contra o feiticeiro”. Repare que Tamar é chamada, ou convocada, ao palácio por ordem de Davi e, em seguida, à cabeceira de Amnom. Não há o menor indício de que ela vá ser violentada, tudo é feito por Amnom. Será que isso não indica que o mesmo é verdade com relação a Bate-Seba, da qual este segundo incidente é uma espécie de reflexo?
Quando lemos sobre este incidente, lemos com uma visão ocidental. Vivemos numa época em que a mulher tem direito de dizer “não” a qualquer momento em um relacionamento amoroso. Se o homem se recusa a parar, isso é considerado violação dos direitos dela; é considerado estupro. Não era assim que funcionava para as mulheres do antigo Oriente Próximo. Ló podia oferecer suas filhas virgens aos ímpios de Sodoma, para proteger os estrangeiros hospedados em sua casa, sem que houvesse qualquer protesto por parte delas (Gênesis 19:7-8). Esperava-se que as donzelas obedecessem ao pai, que estava em posição de autoridade sobre elas. Mical foi dada a Davi como esposa, depois tomada de volta por Saul, que a deu a outro homem. Tempos depois, Davi tomou-a novamente (1 Samuel 25:44, 2 Samuel 3:13-16). Aparentemente, ela não disse nada em nenhuma dessas ocasiões.
Para abordar este assunto de uma perspectiva totalmente diferente, vamos pensar no livro de Ester. Quando o rei pediu que sua esposa, a rainha Vasti, fosse introduzida à sua presença (talvez para exibi-la de forma inadequada a seus convidados), ela se recusou. Ela foi destituída (ver Ester 1:1-22). Ela não perdeu a vida, mas, de qualquer forma, foi substituída. Em seguida, lemos mais adiante nesse mesmo livro que ninguém podia se aproximar do rei, a menos que fosse convocado. Se alguém se aproximasse e o rei não levantasse seu cetro, a pessoa seria condenada à morte (Ester 4:10-11). Será que isso não retrata a maneira de agir dos reis do Oriente? Será que isso não explica por que Bate-Seba foi ao palácio do rei quando convocada? Será que isso ajuda a explicar a razão pela qual ela cedeu aos atos lascivos do rei? (Não sabemos que tipo de protesto - como Tamar no capítulo 13 - ela pode ter feito, mas temos alguma noção da impotência de uma mulher naqueles dias, principalmente quando recebia ordens do rei.
Assim, depois de termos uma visão mais abrangente da questão, vamos nos concentrar em alguns detalhes. O texto nos informa que Davi vê a mulher se banhando e constata que ela é muito bonita. Alguns pensam que Davi viu Bate-Seba despida enquanto se banhava em público, e que a visão de seu corpo (despido/parcialmente) fez com que ele agisse como agiu. Em Gênesis 24:16, encontramos praticamente as mesmas palavras de nosso texto (“mui formosa de aparência”) a respeito de Rebeca, quando ela foi à fonte com o cântaro no ombro. Ela não estava nua, nem parcialmente despida. Encontramos ainda outras descrições semelhantes (embora não idênticas), onde não há nenhuma indicação de exposição da mulher (ver 12:11; 26:7; 29:17, Ester 1:1). Creio que uma das razões pela qual Davi chama Bate-Seba ao palácio é porque ele não viu tudo o que queria.
Vamos prosseguir um pouco mais com este assunto. Bate-Seba está se banhando. Presumimos que isso signifique que ela esteja despida, pelo menos parcialmente. Creio que ela está se banhando em algum lugar geralmente usado para isso. Só Davi, com a vantagem de estar em sua cobertura, seria capaz de vê-la, e a muitas outras pessoas também, se ele quisesse. Os pobres não têm os mesmos privilégios de privacidade que os ricos. Já vi muita gente se banhando nas calçadas da Índia, porque ali é a casa delas. O termo empregado aqui para banhar-se muitas vezes é usado para descrever o ato de lavar as mãos ou os pés de um convidado, ou as lavagens ceremoniais dos sacerdotes. Abigail usou este termo quando falou em lavar os pés dos servos de Davi (I Samuel 25:41). Tais lavagens poderiam ser feitas, com decência, sem que houvesse total privacidade. Seria presumir demais pensar que Bate-Seba fica andando despida, à vista de todos.
Aliás, o lugar onde Bate-Seba está se banhando é Jerusalém, onde todos os homens em idade de combate tinham ido para a guerra. Lembrem-se das palavras do verso 1:
“Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, enviou Davi a Joabe, e seus servos, com ele, e a todo o Israel, que destruíram os filhos de Amom e sitiaram Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém.” (ênfase minha)
Não é que ela esteja agindo de maneira inconveniente, sabendo que há homens por perto. Ela tem todo o direito de achar que não há. Davi está por ali, mas não deveria estar. Além do mais, ela não está se banhando ao meio-dia, está se banhando ao anoitecer. Esse era o horário prescrito na lei (para as lavagens cerimoniais): quando o sol estava se pondo. Em outras palavras, está quase escuro quando ela começa a tomar banho. Davi tem de se esforçar para ver alguma coisa. Acho que ela faz o possível para se resguardar, mas o lugar onde o rei está é muito alto, e ele está olhando diretamente para ela. O que estou dizendo é que Davi é muito mais curioso do que Bate-Seba é exibicionista. Creio que o texto dá suporte à minha conclusão.
Se estou certo naquilo que digo, o pecado de Davi se torna ainda mais vil. Em alguns casos, a mulher pode, propositada ou involuntariamente, encorajar o assédio. Neste caso, não há o menor indício de que isso tenha ocorrido. Na verdade, se estou lendo a história direito, a “visão” que Davi tem de Bate-Seba é devido a ela estar cumprindo a lei, enquanto ele está faltando com seus deveres de rei.
Esta passagem, embora tenhamos percorrido apenas os quatro primeiros versículos do texto, tem muito a nos ensinar. Deixem-me tentar resumir algumas de suas lições.
Primeiro, a raiz do pecado de Davi não é sua baixa auto-estima, é sua arrogância. Estou cansado de ouvir que a raiz de todos os males é a baixa auto-estima. Fico me perguntando por que não vemos nada disso na Bíblia. O problema de Davi é justamente o oposto. Ele ficou arrogante e cheio de si por causa de seu sucesso e status como rei de Israel. Ele chega a se considerar diferente/melhor do que os demais israelitas. Eles precisam ir para a guerra, ele não. Eles precisam dormir ao ar livre, ele precisa descansar em sua própria cama, em seu palácio. Eles podem ter uma esposa, ele pode ter a mulher que quiser.
Segundo, a natureza do pecado de Davi é o abuso do poder. Dizem que o poder corrompe, e poder irrestrito, corrompe irrestritamente. Davi chegou ao poder. Nos capítulos anteriores, ele usou o poder que lhe foi dado por Deus para derrotar os inimigos do Senhor e de Israel. Ele usou seu poder como rei de Israel para cumprir a aliança feita com Jônatas, e a promessa a Saul, para restaurar os bens de família a Mefibosete e torná-lo como um filho à sua mesa. Agora, embriagado pelo poder, Davi o usa para ser indulgente consigo mesmo às custas dos outros. Quero que reparem na repetição da palavra “envia” ou “enviou” neste capítulo. Um rei como Davi pode enviar todos os homens para a guerra, enquanto ele mesmo fica em casa (verso 1). Um rei como Davi pode enviar alguém para fazer perguntas a respeito de Bate-Seba e depois enviar mensageiros para “tomá-la” e levá-la ao palácio (versos 3 e 4). Um rei como Davi pode “mandar” buscar Urias e “enviar” ordens para que Joabe o mate. Davi tem poder e, com certeza, sabe usá-lo; só que, agora, está usando esse poder em benefício próprio, às custas dos outros. Essa não é uma liderança servidora.
Violência e assédio sexual são duas das formas usadas pelas pessoas que abusam do poder. Os pais começam a pensar que os filhos são propriedade sua e que podem usá-los como quiserem, por isso, envolvem-nos em várias formas de abuso, muitas vezes de natureza sexual. Patrões se acostumam a estar no controle e dizer às pessoas o que devem fazer; e não é nenhuma surpresa saber que, às vezes, usam esse poder sobre seus empregados e subordinados para se satisfazer sexualmente. Este pecado não é muito diferente do pecado de Davi.
Vou insistir um pouco mais nessa questão. É claro que é errado Davi usar seu poder para ter relações sexuais com a esposa de outro homem. Entretanto, mesmo quando o sexo é permitido, não é certo abusar do poder. O marido não deve abusar de seu poder para ter relações sexuais com sua esposa. E a mulher não deve abusar de seu poder (dizendo “não”, por exemplo) para punir ou desestimular o marido. Dentro do casamento, sexo é simplesmente uma outra área onde servir ao companheiro. Não é uma oportunidade de assenhorar-se do parceiro.
Terceiro, a prosperidade é muito perigosa; às vezes, mais perigosa do que a pobreza e a adversidade. Todo mundo se fatiga com as adversidades da vida. Todo mundo anseia pelo momento de poder relaxar, por os pés numa almofada e descansar um pouco. Todo mundo está cansado de se preocupar com as contas a pagar, sem ter dinheiro suficiente para passear. Davi certamente ansiava pelo tempo em que poderia parar de fugir de Saul e começar a governar como rei. No entanto, deixem-me salientar que, do ponto de vista espiritual, Davi nunca esteve melhor do que na época das adversidades e fraquezas. Por outro lado, ele nunca esteve pior do que na época da prosperidade e do poder. Quantos salmos acham que ele compôs de sua cama palaciana e de sua cobertura? Quantas vezes meditou na lei do Senhor enquanto esteve em Jerusalém e não no campo de batalha? Não precisamos ser masoquistas, querendo mais e mais sofrimento; contudo, devemos reconhecer que o sucesso, muitas vezes, é um teste bem maior do que a adversidade. Com frequência, quando parece que “tudo vai bem”, aí é que corremos maior perigo.
Quarto, o pecado é sequencial. Ele “acontece”, mas raramente “simplesmente acontece”. Ele não aparece do nada. Podemos ver sua sequência na carta de Tiago:
“Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte.” (Tiago 1:13-15)
O pecado de Davi não surge do nada, sem mais nem menos. Davi cava o próprio buraco. Sabemos que ele se desengajou da batalha, preferindo uma vida de conforto e tranqüilidade. Vocês e eu podemos fazer a mesma coisa, embora de modo ligeiramente diferente. Podemos esmorecer em seguir os passos de nosso Senhor, em ter uma vida disciplinada que nos faz manter o corpo sob controle (ver I Coríntios 9:24-27). Podemos nos cansar de carregar a nossa cruz e começar a considerar a nós mesmos como uma causa mais importante. Podemos nos retrair e nos isolar, cansados de sermos ridicularizados devido aos nossos princípios cristãos. Podemos silenciar em vez de dar testemunho de nossa fé, para não sermos rejeitados por nossos colegas. Podemos deixar de repreender um amigo cristão, que está caindo em pecado, porque da última vez que o fizemos as coisas ficaram muito confusas. Quando deixamos de lutar, a queda não está longe.
Os pecados deliberados muitas vezes são consequências do pecado da omissão. Davi pecou ao adulterar com Bate-Seba e, depois, ao assassinar o marido dela; no entanto, estes pecados tiveram origem na sua omissão, quando ele ficou em casa em vez de ir à guerra. O pecado da omissão nem sempre é fácil de ser detectado em nós ou nos outros, mas ele está lá. E, depois de um tempo, ele nos leva a cometer pecados mais notórios, como vemos em Davi.
Sei que dentre aqueles que estão lendo esta mensagem, alguns já caíram da mesma maneira que Davi. Já cometeram adultério. A vocês, eu digo: - Parem, agora! - Como teria sido melhor se Davi tivesse confessado seu pecado com Bate-Seba antes de cometer o assassinato de Urias! O pecado é como um câncer: quanto mais cedo se retira, melhor; quanto mais se adia, mais ele cresce. Se algum de vocês já caiu como Davi (ou de alguma outra forma), deixe o pecado, confesse-o, busque o perdão de Deus e siga em frente.
Talvez alguns ainda não tenham pecado como Davi, mas não estão longe disso. Talvez, como Davi, prefiram ficar em Jerusalém, prefiram ficar na cama. Vocês ainda não caíram na armadilha, mas estão quase lá. É só uma questão de tempo e de oportunidade. Minha pergunta para vocês não é se estão em pecado, mas se estão realmente comprometidos com Cristo, servindo-O enquanto servem aos outros, usando o poder (os dons espirituais) que Deus lhes deu em benefício dos outros. Aprendamos com a omissão de Davi em vez de aprender (na prática) com seus erros.
O apóstolo João coloca isso desta maneira:
“Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” (I João 1:7-9)
“Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” (I João 2:1-2)
“Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei. Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e nele não existe pecado. Todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu. Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que pratica a justiça é justo, assim como ele é justo. Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo. Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus.” (I João 3:4-9)
Tradução: Mariza Regina de Souza
Em 1972, funcionários de um hotel perceberam que a trava da porta de acesso às escadas tinha sido presa com fita adesiva. Três policiais estiveram no local e encontraram cinco pessoas não autorizadas dentro da sede do Comitê Nacional Democrata. Os invasores tinham entrado para reajustar algumas escutas instaladas numa invasão anterior, ocorrida em maio. Na primeira invasão, documentos do Comitê tinham sido fotografados.
Parece que ninguém conseguiu explicar exatamente o que aqueles homens esperavam ganhar com a invasão. Fosse o que fosse, se eles tivessem contado a verdade e o que pretendiam fazer, talvez o crime fosse considerado apenas uma intriga política, sem maiores consequências. Foi a tentativa de encobri-lo que causou uma enorme repercussão. Richard Nixon, o presidente dos Estados Unidos, foi forçado a renunciar sob a ameaça de impeachment. Alguns de seus assessores mais próximos foram processados, condenados e sentenciados à prisão.
Ao longo da história, foram feitas muitas tentativas para encobrir casos de incompetência, imoralidade e até crimes. Na Bíblia, esses encobrimentos aparecem bem cedo. Adão e Eva tentaram encobrir sua nudez e se esconder de Deus, sem perceber que seus esforços traíam seu pecado e sua culpa. Nossa lição em II Samuel 11 fala de uma das maiores tentativas de encobrimento de todos os tempos, a qual, como tantas outras, também foi um fracasso lamentável.
Em nossa lição anterior tentamos explicar o pecado de Davi de forma a colocar a culpa diretamente sobre ele, não sobre Bate-Seba. Foi ele quem fez tudo, não porque ela o tenha tentado ou seduzido, mas porque ele foi arrogante, lascivo e ambicioso. Ele não a quis como esposa, ou mesmo como um caso amoroso. Ele buscou o prazer de uma noite e ela voltou para sua casa. Foi assim, ou assim pareceu. Algum tempo depois, no entanto, ela mandou lhe dizer que estava grávida. Retomamos nosso texto aqui, com a narração da tentativa desesperada de Davi de encobrir o seu pecado com Bate-Seba. Como sabemos, nada dá certo e as coisas só ficam piores.
A história de Davi e Urias me faz lembrar da história do “Aprendiz de Feiticeiro”. Já faz algum tempo, mas lembro-me de que no desenho (provavelmente da versão de Walt Disney, que em português recebeu o título de “Fantasia”) o feiticeiro sai e deixa o aprendiz cuidando de suas tarefas. O aprendiz tem a brilhante ideia de usar as artes mágicas de seu mestre, achando que assim seu trabalho seria bem mais fácil e ele poderia se sentar e observar outros poderes em ação. O problema era que ele não sabia como parar o que havia começado; por isso, cada vez mais ajudantes entravam em cena enquanto ele tentava reverter o feitiço.
Neste momento, a vida de Davi está bem parecida. Ele começa a acumular pecado sobre pecado, certo de que, de alguma forma, um irá encobrir o outro. Em vez disso, seus pecados só se multiplicam. Cada vez mais pessoas ficam sabendo e fica impossível escondê-los. Podemos tirar muitas lições deste episódio trágico da vida de Davi, as quais, se aprendidas, nos ajudarão a não cometer os mesmos erros. Que o Espírito de Deus abra os nossos ouvidos e o nosso coração para compreendermos e aprendermos com essa tentativa de Davi de encobrir o pecado cometido com Bate-Seba.
Em nossa primeira lição, dedicamos nossa atenção aos quatro primeiros versos do capítulo 11, os quais descrevem o adultério de Davi com Bate-Seba. Procurei demonstrar que toda a responsabilidade por esse pecado foi dele. O autor aponta o dedo acusador para ele, não para ela. Ela não foi indiscreta ao se banhar (pelo que entendo da história), pois estava simplesmente obedecendo o ritual de purificação descrito na lei. Foi Davi que, pela visão privilegiada do seu terraço, olhou de forma inadequada para ela, violando sua privacidade. Esforcei-me para demonstrar que o pecado de Davi com Bate-Seba foi consequência de uma série de decisões e atitudes erradas tomadas por ele. Em certo sentido, no caminho em que ele andava, seu destino (adultério ou algo parecido) já era esperado. Sua omissão finalmente floresceu e desabrochou.
Um dos aspectos trágicos desta história é que o pecado na vida de Davi não termina com sua união adúltera com Bate-Seba. Ele continua numa trama enganosa para fazer com que Urias, marido de Bate-Seba, pareça ser o pai da criança, e culmina no assassinato deste por Davi e no casamento de Davi com Bate-Seba. Ao retomarmos de onde paramos na última lição, mais algumas informações sobre o contexto são vitais para o entendimento do texto.
1) É provável que Davi e Urias mal se conhecessem, mas sabiam da existência um do outro, pelo menos até certo ponto. Urias está entre os valentes de Davi (II Samuel 23:39; I Crônicas 11:41). Alguns desses “valentes” juntaram-se a Davi logo no início, quando ele ainda estava na caverna de Adulão (I Samuel 22:1-2) e, entre eles, supomos que estivessem Joabe, Abisai e Asael, os três valentes que eram irmãos (ver II Samuel 23:18, 24; I Crônicas 11:26)1. Outros se juntaram a Davi em Ziclague (I Crônicas 12:1 e ss); e outros ainda em Hebrom (I Crônicas 12:38-40)2. Não sabemos quando e onde Urias se uniu a ele, mas, uma vez que sua carreira termina em II Samuel 12, seus feitos militares devem ter ocorrido bem antes. Parece improvável que ele e Davi fossem estranhos; é mais provável que os dois se conhecessem por terem lutado juntos, ou até mesmo por terem fugido juntos de Saul.
2) Parece improvável que Urias ignore o que Davi fez e o que está tentando fazer ao chamá-lo de volta a Jerusalém. Deve ter havido rumores sobre Davi e Bate-Seba em Jerusalém, os quais poderiam facilmente ter chegado ao exército israelita que sitiava Rabá. Urias não só se recusa a ir para casa e dormir com sua esposa, como também dorme à porta do palácio, entre os servos do rei. Ele tem muitas testemunhas para comprovar que qualquer criança nascida de sua esposa nessa época não é sua. É óbvio que ele sabe perfeitamente o que Davi quer dele (que faça sexo com Bate-Seba); por isso, ele se recusa, mesmo quando o rei literalmente lhe dá ordens para ir para casa. É difícil explicar essa atitude, se Urias não sabe o que aconteceu entre Davi e Bate-Seba. No mínimo, ele sabe o que Davi quer dele durante sua estadia em Jerusalém. Vamos explorar as implicações disso mais tarde.
3) Não está escrito que Bate-Seba tome parte do plano de Davi para enganar Urias ou ocasionar sua morte, muito menos que ela saiba o que ele está fazendo. Quando ela diz a Davi que está grávida, ele toma uma atitude decisiva, mas em lugar algum está escrito que Bate-Seba faça parte do seu plano. O verso 26 soa como se ela tomasse conhecimento da morte de Urias depois do fato, pelos canais normais de comunicação. Afinal, será que Davi realmente queria que sua nova esposa soubesse que ele assassinou seu marido? Davi age sem o auxílio de Bate-Seba.
É como se Bate-Seba não passasse mais pela cabeça de Davi depois do encontro descrito nos versos 1 a 4. Também não parece que ele quer continuar o relacionamento, ter um caso ou se casar com ela. Ele simplesmente deixa de lado aquele acontecimento pecaminoso, até que um mensageiro enviado por ela o informe que sua noite de paixão produziu uma criança. Ela lhe diz que está grávida, não que teme estar. Isso significa que sua menstruação faltou pelo menos uma vez, e talvez outra. De um modo geral, algumas semanas ou mais se passaram; não muito antes que seu estado se tornasse óbvio para as outras pessoas. O pecado é de Davi e a responsabilidade também, por isso ela o informa.
O plano de Davi é simples e, pelo menos na sua cabeça, infalível. Em resumo, ele vai induzir Urias a pensar e agir como ele mesmo. Davi não quis enfrentar as dificuldades da guerra com Rabá, por isso foi para Jerusalém, para sua casa e para sua cama. Ele não quis dizer não a si mesmo, por isso, tomou a esposa de outro homem e dormiu com ela. Agora, ele dá a Urias a mesma oportunidade, exceto que Urias dormirá com sua própria esposa. Depois que Urias tiver relações com ela, todos concluirão que ele é o pai da criança concebida pelo ato pecaminoso de Davi. Só uma coisa dá errada no plano de Davi: ele presume que Urias esteja tão espiritualmente apático quanto ele, e será indulgente consigo mesmo em vez de agir como um soldado em guerra.
Davi envia uma mensagem a Joabe, com ordens para mandar Urias de volta para casa. Pelo contexto, entendo que Urias é enviado a Jerusalém sob o pretexto de relatar diretamente a Davi o andamento da guerra. Duvido que Davi queira que ele saiba de suas ordens a Joabe. Estou certo de que ele não quer que Urias conheça o verdadeiro propósito da sua viagem a Jerusalém. Davi orquestra as coisas para fazer o retorno de Urias parecer servir a algum propósito, quando, na verdade, a intenção é dissimular o seu próprio pecado. Mesmo assim, sua ordem não cheira bem. Você devem se lembrar de que quando o pai de Davi quis saber como andava a batalha com os filisteus (onde três de seus filhos estavam envolvidos), ele mandou Davi, seu filho mais novo, como mensageiro, para levar suprimentos e retornar com notícias da guerra (I Samuel 17:17-19). Não é preciso enviar um herói como mensageiro (e nem é bom).
Gostaria ainda de acrescentar que Joabe já está sendo arrastado para a conspiração. Ele obedece à ordem de Davi e manda Urias de volta; meu palpite é que ele sabe de alguma coisa. Talvez tenha ouvido algo sobre o caso de Davi com Bate-Seba. Quando manda Urias para Jerusalém, ele tem de lhe dar alguma missão, alguma incumbência. Talvez ambos tenham sentido que essa não era uma “missão impossível” (como a que se daria a um valente), mas uma “missão incrível”. Em todo caso, a teia de mentiras e engodos já está sendo tecida, e mais pessoas estão sendo arrastadas para a conspiração.
Quando Urias chega em Jerusalém, ele se apresenta a Davi, que age de acordo com a farsa planejada. Ele pergunta a Urias sobre o “bem-estar de Joabe e do povo” e sobre a “guerra”. O que me incomoda é: para que Davi precisa desse relatório, afinal? Se ele tivesse ido com seus homens para a guerra, isso não seria necessário. No entanto, pior ainda é ele não se importar nem um pouco com Joabe, com o povo ou com a guerra. A sua única preocupação é encobrir seu pecado, fazer com que Urias vá para casa e se deite com a esposa, para tirar seu pescoço (de Davi) da forca. Como é triste ver a hipocrisia de Davi. O rei que teve piedade do filho deficiente de Jônatas, agora não tem a mínima compaixão de um exército inteiro, e muito menos de Bate-Seba e seu marido.
Davi age mecanicamente com Urias. Ele ouve o seu relatório e depois lhe dá uma noite de folga, um tempo para ir para casa e “lavar os pés”. Davi não está preocupado com a higiene pessoal de seu soldado; está preocupado com a sua própria reputação. Quando alguém entrava em casa, em geral tirava os sapatos e lavava os pés antes de comer e ir para a cama. Davi, com muita delicadeza, incentiva Urias a ir para casa e se deitar com sua esposa. Urias sabe disso; nosso autor sabe; e nós também.
Urias sai da presença do rei. Agora, Davi dá um toque a mais. Ele envia um “presente do rei” junto com Urias, ou logo depois de sua saída. Gostaríamos muito de saber exatamente que “presente” é esse! Seria uma noite para dois no Jerusalém Hilton? Um jantar dançante num restaurante romântico? Acho que podemos seguramente dizer o seguinte: 1) não está escrito qual foi o presente; 2) ou não é para sabermos ou não faria nenhuma diferença se soubéssemos; 3) O que quer que fosse, foi cuidadosamente planejado para facilitar o plano de Davi, de fazer com que Urias se deitasse com sua esposa o mais rápido possível.
Urias deve entender o que o rei está sugerindo. Quem não gostaria de ir para casa e se alegrar com sua esposa depois de um tempo separação graças à guerra com os amonitas? Ao invés disso, Urias não deixa o palácio. Ele dorme à porta da casa real, na presença de uma porção de servos do rei. Tenho a impressão de que, pelo menos alguns desses servos, se não todos, são guarda-costas reais (compare com I Reis 14:27-28). Urias é soldado. Ele foi chamado à presença do rei, longe da batalha. Entretanto, sendo um servo fiel, ele não desfrutará de uma noite a sós com sua esposa; antes, se juntará àqueles que guardam a vida do rei. Desse jeito ele pode servi-lo em Jerusalém; por isso, prefere ficar em vez de ir para casa. A ironia é avassaladora. O soldado leal passa a noite guardando a vida do rei, o mesmo rei que lhe tomou a esposa durante a noite e em breve lhe tomará a vida também.
Davi tem espias vigiando Urias como se ele fosse o inimigo. Eles sabem da intenção de Davi: que Urias vá para casa e durma com sua esposa. Se não conhecem todos detalhes do que aconteceu entre Davi e Bate-Seba (o que é difícil de acreditar) e de sua intenção com a visita de Urias, com certeza sabem que algo fora do normal está acontecendo no palácio. De uma forma ou de outra, Davi está tornando esses servos-espias co-conspiradores com ele.
Os servos-espias chegam para Davi na manhã seguinte com uma notícia surpreendente: “Urias não fez o que o rei mandou. Nem mesmo foi para casa!” Davi, então, procura gentilmente repreendê-lo. Mal dá para acreditar na hipocrisia da sua atitude e de suas palavras. Ele faz o papel de um amo bondoso. Urias, seu servo, “vem de uma jornada” (verso 10). Não é esse o momento de se preocupar com suas necessidades e desejos? Não é hora de pensar na carência de sua esposa? Quanta insensibilidade de Urias não ir para casa e ficar e dormir com ela! “Que vergonha, Urias!” Ele tem muito a explicar; ou é o que parece a Davi.
E Urias explica. Suas palavras ao comandante em chefe são uma repreensão tão contundente quanto a recebida por Davi de Natã no capítulo seguinte. Urias compreende claramente que o que antes Davi apenas insinuou (ou seja, que fosse para a cama com sua esposa), agora ele está dizendo, e até mesmo ordenando, que faça. Humildemente, mas com firmeza, Urias se recusa:
“Respondeu Urias a Davi: A arca, Israel e Judá ficam em tendas; Joabe, meu senhor, e os servos de meu senhor estão acampados ao ar livre; e hei de eu entrar na minha casa, para comer e beber e para me deitar com minha mulher? Tão certo como tu vives e como vive a tua alma, não farei tal coisa.” (II Samuel 11:11)
Primeiro Urias mostra a Davi que sua terminologia está incorreta. Davi fala de Urias retornando de uma jornada (verso 10). A verdade é que ele foi chamado do campo de batalha. Ele não é um caixeiro-viajante, em casa depois de uma viagem; é um soldado, longe do seu posto. No coração e na alma, Urias ainda está com seus companheiros. Ele realmente quer voltar ao campo de batalha, não ficar em Jerusalém. Ele retornará tão logo Davi o dispense (ver verso 12). Até lá, pensará e agirá como soldado. Na medida do possível, viverá do mesmo jeito que seus companheiros de batalha estão vivendo. Lá, cercando a cidade de Rabá, estão os soldados israelitas liderados por Joabe. Eles, junto com a arca do Senhor, estão acampados em tendas ao ar livre. Urias não pode, e não irá, viver no luxo enquanto eles vivem com sacrifício. Ele não irá dormir com sua esposa até que eles também possam dormir com suas esposas.
Urias, respeitosamente, não aceita — na verdade, ele se recusa — a agir de forma não condizente com um soldado, quanto mais com um herói de guerra. Acho importante observar que aqui não há nenhuma ordem em particular que ele se recuse a obedecer. Ao que eu saiba, não há nenhum mandamento específico na Lei de Moisés que proíba um soldado de fazer sexo com sua esposa em tempos de guerra (se isso fosse verdade nos primeiros anos da história de Israel, não teria havido outra geração de israelitas, uma vez que eles estavam quase sempre em guerra com um ou outro de seus vizinhos). Essa é uma convicção particular de Urias como soldado, e ele não violará sua consciência, mesmo tendo recebido uma ordem do rei.
Para compreender totalmente o impacto das palavras de Urias, vamos voltar algumas páginas nos escritos de Samuel para relembrar as palavras do próprio Davi, ditas a Aimeleque, o sacerdote, uma vez que elas têm relação com este encontro com Urias:
“Então, veio Davi a Nobe, ao sacerdote Aimeleque; Aimeleque, tremendo, saiu ao encontro de Davi e disse-lhe: Por que vens só, e ninguém, contigo? Respondeu Davi ao sacerdote Aimeleque: O rei deu-me uma ordem e me disse: Ninguém saiba por que te envio e de que te incumbo; quanto aos meus homens, combinei que me encontrassem em tal e tal lugar. Agora, que tens à mão? Dá-me cinco pães ou o que se achar. Respondendo o sacerdote a Davi, disse-lhe: Não tenho pão comum à mão; há, porém, pão sagrado, se ao menos os teus homens se abstiveram das mulheres. Respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, como sempre, quando saio à campanha, foram-nos vedadas as mulheres, e os corpos dos homens não estão imundos. Se tal se dá em viagem comum, quanto mais serão puros hoje!” (I Samuel 21:1-5)
Vocês devem se lembrar que, logo no início, quando Davi fugia de Saul, ele procurou Aimeleque, o sacerdote, para lhe pedir provisões e uma espada. O sacerdote só tinha pão sagrado, o qual permitiria que Davi e seus homens comessem se pelo menos eles “se abstivessem das mulheres” (verso 4). O sacerdote presume que talvez eles não estejam fazendo isso. A resposta de Davi, e especialmente o seu tom, é totalmente pertinente ao nosso texto. Ele garante a Aimeleque que tanto ele como seus homens estavam se abstendo das mulheres, quase exasperado com fato de o sacerdote supor outra coisa. E a razão dada por Davi é que ele e seus homens estavam em missão para o rei. A inferência é de que a missão era militar (ou, pelo menos, oficial).
Mas há algo ainda mais surpreendente: Davi, naquela época, era muito rígido quanto ao fato de os soldados em missão para o rei se absterem de relações sexuais. Agora, anos mais tarde, ele se espanta com o caso de um homem na mesma situação estar disposto a se abster das relações com sua esposa. Pior ainda, ele tenta convencer — e até mesmo forçar — Urias a fazê-lo, mesmo que isso viole a consciência de Urias. Isso não é “fazer um irmão mais fraco tropeçar”, é amputar as pernas de um irmão mais forte até o joelho. Urias é um exemplo do comprometimento esperado de todo soldado, e de Davi em especial — pelo menos do Davi dos tempos passados. Urias agora age como o Davi que conhecemos nos primeiros dias. Ele é o “Davi” que Davi deveria ser.
As palavras de Urias devem ter feito Davi perceber a profundidade do seu pecado. O autor usa essas palavras de forma irônica, mas fundamental. Urias diz a Davi que não irá para casa, não comerá, nem beberá e nem dormirá com sua esposa3. Ele é muito incisivo: “Tão certo como tu vives e como vive a tua alma, não farei tal coisa” (verso 11). Nos versos seguintes, Davi o constrange a “comer e beber” com ele, na esperança de que Urias se deite com a esposa. E, quando Urias jura pela vida do rei que não fará tal coisa, o rei acaba tirando a sua vida. Que ironia! Que trágico!
Davi está ficando desesperado. Ele sequer cogita a possibilidade de Urias recusar sua oferta. Urias fala com tanta convicção que Davi sabe que ele não infringirá seu dever como soldado se estiver de posse de suas plenas faculdades mentais. Por isso, faz uma última modificação em seu plano original — ele vai embebedar Urias e fazê-lo ir para a cama com a esposa. Afinal, as pessoas não fazem coisas quando estão bêbadas que não fariam quando sóbrias? Isso, com certeza, fará o plano de Davi dar certo.
Deve ser com grande apreensão que Urias se junta a Davi para jantar nessa última noite em Jerusalém. Davi começa a comer e beber, e não aceitará não como resposta quando oferecer comida e bebida a Urias. Isso até que funciona, pois Davi se assegura de que ele tenha álcool suficiente no sangue para ficar bêbado. E, nesse estado, Davi o manda para casa para “recuperar-se”, na sua própria cama, é claro. No entanto, mesmo bêbado, Urias não violará sua consciência!4 De novo, ele passa a noite à porta do palácio de Davi, junto com os servos do rei. Ele não vai para sua casa e, por isso, não dorme com sua esposa. Davi está encrencado.
Davi dá um tiro que sai pela culatra. Ele pretende colocar Urias em uma situação onde este pareça ser o pai do filho de Bate-Seba. A conduta de Urias, porém, mostra publicamente sua lealdade para com seus deveres de soldado, tornando ainda mais evidente que ele não pode ser o pai da criança. A situação fica pior do que quando Davi o chama de volta a Jerusalém. Davi conclui, então — erroneamente — que a única solução é Urias ser morto em ação. Não sei se ele realmente acha que pode enganar a todos em Jerusalém quanto à paternidade do filho de Bate-Seba. Como ele pode pensar assim, se todos sabem que Urias não esteve com sua esposa, para deixá-la grávida? Parece que Davi está simplesmente tentando legitimar seu pecado. Fazendo de Urias uma baixa de guerra, ele deixa Bate-Seba viúva. Agora ele pode casar-se com ela e educar o filho como seu, o qual obviamente é mesmo.
Davi deve ter passado uma noite angustiante, vendo que até mesmo bêbado Urias é um homem melhor do que ele. Por isso, de manhã cedo, ele parte para ação. Ele escreve uma carta para Joabe, a qual servirá como sentença de morte para Urias. Na carta, Davi ordena claramente que Joabe mate Urias por ele. Ele até mesmo lhe diz o que fazer para encobrir a verdade. Assim, Davi honrará Urias como herói de guerra e, magnanimamente, assumirá o dever se tornar marido de sua esposa, e também de educar o filho que está para nascer. Joabe deve colocar Urias na linha de frente, onde a batalha está mais acirrada, o que não seria surpresa para um homem com a coragem e a habilidade de Urias. Joabe deve atacar e então recuar, de forma que Urias se torne um alvo fácil para os amonitas, garantindo assim a sua morte. Não há dúvida nas ordens de Davi: ele quer Urias morto de forma a parecer uma simples baixa de guerra. Joabe aquiesce totalmente às suas ordens, e Urias é eliminado, não sendo mais um obstáculo aos planos do rei. Ao dar essa ordem a Joabe, Davi o torna cúmplice de sua conspiração, fazendo-o partilhar a culpa pelo sangue de Urias. O pecado de Davi continua a envolver cada vez mais pessoas, levando a pecados cada vez maiores.
Como é estranho ver Davi, um valente (I Samuel 16:18), tratando Urias, outro valente, como inimigo. Eis Urias, um homem que dará a sua vida por seu rei, e Davi, um homem que está disposto a tirar a vida de Urias para encobrir o seu pecado. Todo mundo sabe que isso não vai funcionar. Como é estranho ver Davi fazendo Joabe cúmplice do seu crime, especialmente depois do que Joabe fez a Abner:
“Retirando-se Joabe de Davi, enviou mensageiros após Abner, e o fizeram voltar desde o poço de Sirá, sem que Davi o soubesse. Tornando, pois, Abner a Hebrom, Joabe o tomou à parte, no interior da porta, para lhe falar em segredo, e ali o feriu no abdômen, e ele morreu, agindo assim Joabe em vingança do sangue de seu irmão Asael. Sabendo-o depois Davi, disse: Inocentes somos eu e o meu reino, para com o SENHOR, para sempre, do sangue de Abner, filho de Ner. Caia este sangue sobre a cabeça de Joabe e sobre toda a casa de seu pai! Jamais falte da casa de Joabe quem tenha fluxo, quem seja leproso, quem se apoie em muleta, quem caia à espada, quem necessite de pão. Joabe, pois, e seu irmão Abisai mataram Abner, por ter morto seu irmão Asael na peleja, em Gibeão.” (II Samuel 3:26-30)
Davi condenou Joabe e o amaldiçoou por ele ter derramado o sangue inocente de Abner. Agora, o mesmo Davi (bem, não exatamente o mesmo) usa Joabe para matar Urias e tirá-lo do seu caminho. O inimigo de Davi (Joabe) se torna seu amigo, ou pelo mesmo, aliado. Os inimigos de Davi (os amonitas) se tornam seus aliados (eles deram o golpe fatal que matou Urias). E o servo leal de Davi, Urias, é condenado à morte como se fosse o inimigo. Não só Urias é morto, mas também muitos outros guerreiros israelitas. Eles precisam ser sacrificados para encobrir o assassinato de Urias. Sua morte precisa ser vista como a de um grupo, não de um só homem. Sem dúvida alguma, este é o ponto mais baixo da vida moral e espiritual de Davi.
Estes oito versos, destinados à descrição da morte de Urias, são o dobro dos versos utilizados para descrever o pecado de Davi com Bate-Seba. Eles são praticamente iguais em extensão à narrativa das conversas de Davi com Urias. Eles começam com as instruções cuidadosas de Joabe ao mensageiro que vai levar a notícia a Davi, e terminam com o próprio relato e a resposta de Davi. Por que será que o autor dedica tanto tempo e espaço à maneira pela qual a morte de Urias é informada ao rei? Vejamos se é possível encontrar a resposta a essa pergunta dando uma olhada mais de perto nesses versos.
Missão cumprida: Urias está morto. Joabe cumpriu as instruções de Davi ao pé da letra. Agora ele precisa mandar a notícia para Davi de forma que não revele nada sobre a conspiração. Ele chama um mensageiro e lhe dá instruções precisas. O mensageiro deve primeiro fazer um relato completo e detalhado dos acontecimentos, incluindo o malfadado ataque à cidade e a chacina de Urias e o grupo que estava com ele. Por que a maneira como o mensageiro vai dar a notícia é tão importante?
A resposta é muito simples, como fica evidente pela preocupação do próprio Joabe. A missão inteira é um fiasco. Os israelitas estão sitiando a cidade de Rabá. Isso significa que eles rodeiam a cidade e o povo não pode entrar, nem sair. Tudo o que os israelitas têm a fazer é esperar até que os amonitas morram de fome. Não há necessidade de um ataque. A missão é suicida desde o princípio e não é preciso ser gênio para ver isso. Joabe tem de reunir um grupo de valentes como Urias, incluindo o próprio Urias, para realizar um ataque à cidade. O ataque não é feito contra o ponto mais fraco do inimigo, como seria de se esperar, mas contra o mais forte. Essa ação provoca um contra-ataque dos amonitas contra Urias e seus homens. Quando o exército israelita bate em retirada, deixa seus próprios homens indefesos, e o resultado óbvio é uma chacina. Como alguém pode dar a notícia de um fiasco desses sem que Joabe pareça um tolo (na melhor das hipóteses) ou assassino (na pior)?
Eis a razão para que as instruções de Joabe ao mensageiro sejam tão cuidadosas. O mensageiro deve informar sobre o ataque à cidade de Rabá e depois, sobre as consequentes perdas israelitas. Joabe sabe que Davi irá reagir (talvez com hipocrisia) quando souber do ataque e das perdas. É aí, diz Joabe ao mensageiro, que ele deve falar da morte de Urias. Isso, com certeza, porá fim a quaisquer protestos ou críticas por parte de Davi.
Assim, nos versos 22 a 25 temos a narrativa da chegada do mensageiro, do seu relato a Davi e da reação deste. Devo ressaltar que o mensageiro não faz o que lhe foi pedido, pelo menos não da forma como leio o texto. Ele chega para Davi e diz que os amonitas prevaleceram contra eles enquanto deixavam a cidade, perseguindo-os em campo aberto. Os israelitas, então, se voltaram contra eles, forçando-os até os portões da cidade. Foi aí que Urias e seu grupo lutaram. E foi aí que ficaram ao alcance dos flecheiros, que os atingiram, matando uma porção de servos do rei. E, rapidamente, o mensageiro acrescenta: “e também morreu o teu servo Urias, o heteu.” (verso 24)
Por que será que o mensageiro não espera pela reação encolerizada de Davi, como fora instruído por Joabe? Por que ele lhe diz que Urias foi morto, antes mesmo de Davi fazer qualquer crítica ou protesto? Creio que ele dá as notícias dessa forma porque compreende o que realmente está acontecendo. Talvez ele saiba sobre Davi e Bate-Seba, e até mesmo sobre sua gravidez. Com certeza ele sabe da convocação de Urias a Jerusalém. Talvez também ele tenha descoberto que Davi queria se livrar de Urias e Joabe fez isso arranjando uma desculpa esfarrapada para atacar o inimigo. Talvez ainda ele imagine que, se Davi souber logo da morte de Urias, não levantará objeções quanto à chacina desnecessária. Por isso, em vez de esperar por um ataque hipócrita de Davi sobre a estupidez daquela ação, ele se adianta e lhe conta, para não ter de presenciar a reação do rei.
E o servo está absolutamente certo, conforme indica o verso 25:
“Disse Davi ao mensageiro: Assim dirás a Joabe: Não pareça isto mal aos teus olhos, pois a espada devora tanto este como aquele; intensifica a tua peleja contra a cidade e derrota-a; e, tu, anima a Joabe.” (II Samuel 11:25)
Essas palavras de Davi dão o toque final à questão. Elas parecem graciosas e compreensivas, até mesmo simpáticas. Na verdade, ele está dizendo: “Bem, não se preocupe. Afinal, às vezes a gente ganha, às vezes perde. É assim mesmo.” Urias, um grande guerreiro e homem de caráter piedoso, acaba de morrer, e Davi não diz uma palavra de pesar, não demonstra nenhuma tristeza, não faz nenhum tributo. Urias morre e Davi fica impassível. Compare sua reação à morte de Urias com sua reação às mortes de Saul e Jônatas (II Samuel 1:11-27), e até mesmo de Abner (II Samuel 3:28-39). Este não é o Davi de alguns capítulos antes. Este é um Davi endurecido, calejado, calejado pelo seu próprio pecado.
Nosso texto tem muitos ensinos e implicações para os nossos dias. Permitam-me sugerir alguns para concluir esta mensagem.
Primeiro, “Um cristão pode cair?” Sim, pode. Alguns personagens bíblicos talvez nos façam perguntar se eles realmente são crentes em Deus, tais como Balaão, Sansão ou Saul. Com relação a Davi, entretanto, não nos fazemos tais perguntas. Ele não é apenas um crente, é um crente modelo. Na Bíblia, ele estabelece o padrão, pois é um homem segundo o coração de Deus. No entanto, esse homem, apesar de crer em Deus, apesar de momentos espirituais incríveis e de seus belos salmos, cai profundamente em pecado. E, se Davi pode cair, nós também podemos, e é exatamente sobre isso que Paulo nos adverte:
“Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia.” (I Coríntios 10:11-12)
Segundo, “A que profundidade um cristão pode cair?” Muito fundo. Davi não só cometeu o pecado de adultério, ele também cometeu assassinato. Creio que podemos dizer que não há pecado na carne que o cristão não seja capaz de cometer. Às vezes, ouço as pessoas dizerem: “Não sei como uma pessoa que... pode ser cristã.” Muitas vezes — como esta na vida de Davi — outras pessoas mal nos reconhecem como cristãos devido ao nosso mau testemunho.
Terceiro, “A que velocidade um cristão pode cair?” Muito rápido. É impressionante como foi rápida a queda de Davi em um único capítulo. Longe da graça providente de Deus, podemos cair bem fundo e bem rápido. Que a trágica experiência de Davi sempre nos relembre disso.
Quarto, o pecado é como uma bola de neve. O pecado não é estanque; não é estático. Ele cresce. Veja a sua progressão em nosso texto. O pecado de Davi começa quando ele deixa de agir como soldado e vira um dorminhoco que fica na cama até tarde. Seu pecado vai do adultério ao assassinato. Ele começa discretamente, mas, à medida que a história se desenrola, cada vez mais pessoas tomam conhecimento dele; e pior, cada vez mais pessoas se tornam participantes dele. O pecado de Davi inicialmente se expressa quando ele toma a esposa de outro homem; depois, quando tira a vida desse homem, e, junto com sua vida, a de uma porção de homens que precisam morrer para que sua morte seja verossímil. O pecado de Davi desabrocha de modo a transformar um amigo leal e verdadeiro (Urias) em inimigo, e inimigos (os amonitas e, em certo sentido, Joabe) em aliados.
Quinto, quando tentamos encobrir nossos pecados, as coisas só pioram. Por isso, a melhor coisa a fazer é confessá-los e abandoná-los.
“O que encobre as suas transgressões jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa alcançará misericórdia.” (Provérbios 28:13)
Como teria sido melhor para Davi se ele simplesmente tivesse confessado seu pecado com Bate-Seba, e então sido perdoado; mas ele tentou encobri-lo e as coisas só ficaram piores. O homem tenta encobrir seus pecados desde o jardim do Éden. Adão e Eva pensaram que podiam encobrir seu pecado escondendo sua nudez, ou melhor, escondendo-se de Deus. Contudo, Deus amorosamente busca por eles, não só para repreendê-los e amaldiçoá-los, mas para lhes dar a promessa de perdão. Foi Deus quem providenciou a cobertura para o pecado de Adão e Eva. A morte sacrificial, o sepultamento e a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é o meio pelo qual Deus cobre os nossos pecados. Meu amigo, você já passou por essa experiência? Se ainda não, por que não confessa agora seus pecados e recebe o presente do perdão de Deus na pessoa e na obra de Jesus Cristo na cruz do Calvário?
Sexto, nosso texto mostra Urias como um herói-modelo, não como um otário estúpido. Talvez algumas pessoas concluam que o elevador de Urias não “vá até o último andar” (como dizia uma vizinha minha sobre as pessoas que ela achava meio devagar). Urias é ingênuo? Ele não percebe o que Davi está tentando fazer? Não creio. Por isso sua lealdade a Davi e à lei de Deus são tão notáveis. Creio que podemos dizer que ele é muito parecido com o Davi dos primeiros tempos, com relação à maneira como este reagia a Saul. Quando Saul quis matá-lo injustamente, porque estava com ciúmes do seu sucesso militar, Davi também submeteu-se a ele, servindo-o fielmente. Davi deixou sua segurança e seu futuro nas mãos de Deus, e Deus não o desamparou.
Sétimo, Urias é um lembrete de que nem sempre Deus livra imediatamente o justo das mãos do perverso, ou mesmo durante a sua vida. Os três amigos de Daniel disseram ao rei que o seu Deus era capaz de livrá-los. Ele não presumiram que Ele iria, ou deveria, fazê-lo. E Deus realmente os livrou. Acho que os cristãos consideram esse livramento como a regra, não como a exceção. Entretanto, quando Urias serve fielmente ao seu rei (Davi), ele perde a vida. Deus não é obrigado a “nos livrar dos problemas” ou nos afastar das provações e tribulações só porque confiamos nEle. Às vezes, é da Sua vontade que os homens confiem totalmente nEle e se sujeitem ao governo humano, e ainda sofram adversidades, das quais talvez Ele não os livre. Espiritualidade não é garantia de que não vamos mais sofrer. Na verdade, intimidade espiritual com Deus muitas vezes é consequência dos nossos sofrimentos (ver Mateus 5).
No Antigo Testamento, como no Novo, Deus às vezes livra Seu povo das mãos dos perversos, mas nem sempre. A “libertação” do povo de Deus vem com a chegada do Messias, o Senhor Jesus Cristo. Urias, como todos os santos do Antigo Testamento, morreu sem receber seu completo galardão, porque Deus quis que ele esperasse. Urias, como muitos santos do Antigo Testamento, não foi liberto das mãos do perverso. Isso é mostrado pelo autor da carta aos Hebreus:
“Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se, na verdade, se lembrassem daquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade... E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas, os quais, por meio da fé, subjugaram reinos, praticaram a justiça, obtiveram promessas, fecharam a boca de leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, da fraqueza tiraram força, fizeram-se poderosos em guerra, puseram em fuga exércitos de estrangeiros. Mulheres receberam, pela ressurreição, os seus mortos. Alguns foram torturados, não aceitando seu resgate, para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos, maltratados (homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas, pelos antros da terra. Ora, todos estes que obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, contudo, a concretização da promessa, por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados.” (Hebreus 11:13-16, 32-40)
Urias não deve ser criticado ou desprezado por sua lealdade e submissão a Davi. Pelo contrário, ele deve ser elogiado. De fato, um amigo me deu algo novo em que pensar: “E se Urias foi adicionado à lista dos heróis de guerra por sua lealdade e coragem na batalha que lhe custou a vida?” Essa é uma possibilidade a ser considerada. Urias é um daqueles gentios convertidos, cuja fé e obediência envergonham muitos israelitas. Ele está entre os muitos que creram em Deus e O obedeceram e não receberam o seu galardão em vida; mas o receberão na vinda do reino de Deus. Muitos cristãos da atualidade querem suas bênçãos “na hora” e sem sofrimento, sem ter de esperar pelo galardão. Que eles considerem cuidadosamente o exemplo de Urias para a sua própria vida.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Sabemos que, enquanto Davi estava na caverna de Adulão, seus irmãos e toda a casa de seu pai, junto com outros que se encontravam em perigo, foram até ele, temendo a ira de Saul (I Samuel 22:1-2). Joabe, Abisai e Asael eram filhos de Zeruia, irmã de Davi (I Crônicas 2:16). Por inferência, entendo que esses três se juntaram a Davi na mesma época que o restante de sua família.
2 Note que aqui havia uma festa de três dias para Davi e os homens uniram-se a ele. Essa certamente era uma ocasião para conhecê-los.
3 Seria esta, por acaso, uma pista sobre o “presente” enviado por Davi a Urias no verso 8? Será que o presente era “comida e bebida”?
4 A atitude de Urias levanta algumas perguntas interessantes sobre as pessoas que ficam bêbadas. Parece-me que nosso texto deixa implícito que, mesmo bêbado, alguém não pode ser forçado a trair suas próprias convicções, a menos, é claro, que queira isso. Pergunto-me quantas pessoas não se embebedam para fazer aquilo que desejam, pensando que assim podem colocar no álcool a culpa pelo seu próprio pecado. Isso me parece outra versão de “Foi o diabo que me fez fazer isso”.
Há alguns anos, minha esposa Jeanette e eu fomos para Inglaterra e Escócia com meus pais. Ao viajarmos pelo país de Gales, todas as noites parávamos em uma “pousada”. Havia muitas propriedades rurais, mas bem poucas cidades onde pudéssemos encontrar um lugar para passar a noite. Um dia, vimos uma placa de "pousada" e dirigimos pela estrada rural até encontrar o local — um lugar bem pitoresco. Vimos várias centenas de ovelhas no pasto, um cavalete e celeiros de pedra. Parecia o lugar perfeito e, em muitos sentidos, era mesmo. O que não percebemos é que o cavalete de pedra era parte de uma estrada de ferro, cujo trem passava à noite, a poucos metros da casa onde dormimos. Duas vacas também deram cria naquela noite. Eu já tinha passado algum tempo em fazendas, mas nunca tinha ouvido o urro de uma vaca parindo ecoar por um celeiro de pedra.
Além das centenas de ovelhas no pasto, havia também um cordeirinho num pequeno cercado, bem perto da casa. Era um camaradinha amistoso e brincalhão, e nós gostamos muito de brincar com ele. Não entendemos direito porque aquele animal ficava isolado, longe dos demais. Quando o sobrinho do fazendeiro apareceu, eu lhe perguntei o motivo. Demorou um pouco para eu entender seu sotaque carregado, mas finalmente percebi que ele estava me dizendo que o animal era “de estimação”. O problema era que ele dizia isso como se fosse uma só palavra, “distimação”. Obviamente o animal pertencia a uma categoria distinta, diferente de uma simples “ovelha” ou de um “cordeiro”. Esse animal “de estimação” ficava num cercadinho especial, bem ao lado da casa, e recebia muito mais atenção e cuidado do que o restante do rebanho.
Ora, aquele camaradinha era apenas um entre muitos cordeiros. No entanto, ele desfrutava o privilégio de ser um animal “de estimação”. Na história contada por Natã a Davi, não ocorre exatamente a mesma coisa. Natã fala de uma cordeirinha “de estimação” que era a única de um homem pobre. Essa cordeirinha não vivia num cercado fora da casa; ela vivia dentro de casa, quase sempre nos braços do dono, comendo a mesma comida que ele. Essa é a história que Deus usa para mostrar a maldade do pecado de Davi. Esse é o texto desta mensagem e, mais uma vez, ele tem muito a nos ensinar, assim como Davi. Vamos prestar muita atenção às palavras inspiradas de Natã, e aprender com um cordeiro.
Davi se torna rei de Judá e Israel. Em grande parte, seu reino já está consolidado. Ele toma Jebus e a torna capital da nação, mudando seu nome para Jerusalém. Ele constrói um palácio e dá a ideia para a construção de um templo (plano este significativamente revisado por Deus). Ele sujeita a maior parte das nações ao redor de Israel. Ele luta contra os amonitas e prevalece, mas não os derrota totalmente. Eles se refugiam na cidade real de Rabá, e quando chega a época das guerras (a primavera), Davi envia Israel, liderado por Joabe, para sitiar a cidade e fazê-la se render. Ele decide não enfrentar os rigores de acampar ao ar livre, fora da cidade. Em vez disso, resolve ficar em Jerusalém. Dormindo até tarde, ele se levanta quando os outros se preparam para dormir. Um dia, ao passear pelo terraço do palácio, ele lança um olhar furtivo para uma bela mulher que está se banhando, talvez cerimonialmente, em cumprimento à lei.
Não há qualquer intenção da parte dela, nem mesmo alguma indiscrição. Ela está se banhando ao anoitecer e, sendo pobre (ver 12:1-4), não tem o privilégio de uma privacidade total, principalmente quando o rei pode olhar de cima, do alto do terraço do seu palácio. Davi fica embevecido com sua beleza e envia mensageiros para fazer perguntas sobre sua identidade. Eles o informam do nome da mulher e que ela é casada com Urias, o heteu. Isso deveria por um ponto final no interesse dele, mas não põe. Ele manda buscá-la e trazê-la ao palácio, onde se deita com ela. Depois de se purificar, ela volta para casa.
O caso parece encerrado. Davi não quer outra esposa; nem mesmo um caso amoroso. Ele quer uma conquista. Essa conquista deveria ser no campo de batalha, não no quarto! As coisas tomam um rumo totalmente diferente quando Bate-Seba manda lhe dizer que está grávida. Primeiro Davi tenta encobrir seu pecado ordenando a Joabe que mande Urias de volta para casa, de licença, aparentemente para dar a ele informações sobre a guerra. No início, os esforços de Davi para fazer com que Urias vá para a cama com Bate-Seba são muito sutis, depois eles se tornam ordens veladas e, então, ficam bem grosseiros, quando Davi tenta dar uma bebedeira em Urias para que ele faça aquilo que não faria sóbrio. Quando todos os esforços de Davi fracassam (devido à nobreza de caráter de Urias), ele o manda de volta para Joabe, com ordens escritas para ser morto de forma a parecer uma baixa de guerra. Joabe cumpre as ordens de Davi e manda lhe dizer: “Missão cumprida”. E é aqui que retomamos nossa história.
A reação de Bate-Seba à morte de Urias é tanto a esperada quanto a que gostaríamos. De acordo com nosso texto, ela não tem absolutamente nada a ver com a trama de Davi para enganar seu marido, muito menos para matá-lo. Sem, dúvida, ela toma conhecimento da morte de Urias da mesma forma que as outras viúvas da guerra, daquela época e de agora. Quando é informada oficialmente, ela o pranteia. Não podemos dizer com certeza quanto tempo ela fica de luto. Sabemos, por exemplo, que se uma virgem de uma nação distante (dos cananeus, por exemplo) fosse capturada por um israelita durante uma invasão à sua cidade, ele poderia tomá-la por esposa depois que ela prateasse seus pais (mortos na invasão) durante um mês (Deuteronômio 21:10-13). Como tentarei demonstrar a seguir, creio que o luto de Bate-Seba é verdadeiro, não fingido. Creio que ela chora sua morte porque o amava.
Davi, por outro lado, nem mesmo se preocupa em fingir que está de luto. Ele nem tenta ser hipócrita. Quando outros valentes morreram, ele levou a nação a lamentar sua perda. Ele chorou por Saul e seus filhos, mortos na batalha contra os filisteus (II Samuel 1). Ele chorou a morte de Abner, perversamente assassinado por Joabe (II Samuel 3:28 e ss). Ele até enviou uma delegação para prantear oficialmente a morte de Naás, rei dos amonitas (II Samuel 10). No entanto, quando Urias é morto “em batalha”, nem uma palavra de lamento sai de seus lábios. Ele não está triste, está aliviado. Em vez de dizer aos outros para lamentar a morte de Urias, ele manda um recado para Joabe não levar sua morte tão a sério.
Quando termina o luto de Bate-Seba, Davi manda buscá-la e trazê-la para ser sua esposa. Eu não o vejo de joelhos, pedindo-a em casamento. Não o vejo cortejando-a, mandando-lhe rosas. Vejo-o somente “tomando”-a mais uma vez. Minha pergunta é: “Por quê?” Por que ele a toma como uma de suas esposas? Não creio que ele ainda esteja tentando “encobrir” seu pecado; é tarde demais para isso. A essa altura, ela já deve “exibir” sua gravidez, e é difícil imaginar que as pessoas em Israel não saibam o que está acontecendo. Davi não parece mais estar tentando esconder seu pecado, mas sim tentando legitimá-lo. Quaisquer que sejam suas razões, elas não são espirituais, mas, com certeza, são pessoais.
Natã também reage à morte de Urias, o que está registrado na primeira parte do capítulo doze. Porém, vamos deixar sua reação para depois de atentarmos para algo que está ocorrendo na vida de Davi, o qual não podemos ver neste trecho e nem é registrado pelo autor de II Samuel, mas é mostrado por Davi em um de seus salmos, escrito enquanto meditava nos acontecimentos deste texto.
“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio.”
O Salmo 32 é um dos dois salmos (o outro é o Salmo 51) em que o próprio Davi medita sobre seu pecado, arrependimento e restauração. Os versos 3 e 4 do salmo são o foco da minha atenção neste momento. Esses versos se encaixam entre os capítulos 11 e 12 de II Samuel. A confrontação de Davi pelo profeta Natã, descrita em II Samuel 12, resulta no arrependimento e na confissão de Davi. No entanto, esse arrependimento não é só fruto da repreensão de Natã, é também a reação de Davi ao trabalho de Deus em seu coração antes de sua confissão, enquanto ele ainda está tentando encobrir seu pecado.
Nesses versos, Davi deixa claro que Deus está trabalhando, mesmo sem parecer. Enquanto Davi tenta encobrir seu pecado, Deus está mostrando-o em seu coração. Essa não é uma época de prazer e alegria, como Satanás quer que pensemos, é uma época de muita infelicidade. Davi fica consumido pela culpa. Ele não consegue dormir, e parece não querer comer. Ele não dorme à noite e está perdendo peso. Se Davi reconhece ou não isso como obra de Deus, pelo menos ele sabe que é um miserável. E é essa infelicidade que o amacia, preparando-o para a repreensão de Natã, preparando-o para o arrependimento. O arrependimento de Davi não é consequência de sua avaliação da situação; é consequência da intervenção divina. Ele se afundou demais no pecado para poder pensar direito. Deus trabalha em sua vida para quebrantá-lo, para que uma vez mais Davi se lance sobre Ele pela graça.
“O SENHOR enviou Natã a Davi. Chegando Natã a Davi, disse-lhe: Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre. Tinha o rico ovelhas e gado em grande número; mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha como filha. Vindo um viajante ao homem rico, não quis este tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante que viera a ele; mas tomou a cordeirinha do homem pobre e a preparou para o homem que lhe havia chegado.”
“Então, o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto. E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal coisa e porque não se compadeceu.”
Há diversos pontos importantes a serem observados sobre este encontro de Natã com o rei Davi.
Primeiro, note que Natã é enviado a Davi. Natã, naturalmente, é profeta. O que quer que Davi tenha feito, ele já sabe. Se me perdoam o trocadilho, Davi não pode puxar o suéter sobre os olhos1. As palavras de Natã, em última análise, são a própria palavra de Deus (ver 12:11). Se Natã é profeta, ele também parece ser amigo de Davi. Um dos filhos de Davi tem seu nome (II Samuel 5:14). Davi lhe conta sobre seu desejo de construir um templo (capítulo 7). Natã dará o nome ao segundo filho de Davi com Bate-Seba (12:25). Ele permanecerá leal ao rei e à Salomão quando Adonias tentar usurpar o trono (I Reis 2). Natã não se aproxima de Davi só como porta-voz de Deus, ele se aproxima como seu amigo.
“Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos.” (Provérbios 27:6)
Segundo, note que Natã é enviado a Davi. A palavra “enviado” (ou “mandado”) é empregada doze vezes pelo autor no último capítulo. Em muitas delas, a palavra se refere a Davi “mandando” alguém fazer alguma coisa ou “enviando” alguma coisa para alguém. Davi é um homem com poder e autoridade, por isso ele pode “mandar” o que quiser, inclusive matar Urias. Agora, é Deus quem está “mandando”. Estará Davi impressionado com sua própria autoridade e poder? Estará ele acostumado a “mandar” outras pessoas fazerem seu trabalho (como fez com Joabe e Israel contra os amonitas)? Que ele saiba, então, que Deus está lhe enviando Natã.
Terceiro, Natã se aproxima de Davi com uma história. Na versão New American Standard Bible, o texto não é apenas uma história, é uma espécie de poesia. Na minha cópia da NASB, as palavras estão formatadas de forma a se parecer com um dos salmos.2 Só agora percebi isso, mas se esse for o caso, significa que Natã já veio preparado para falar com Davi. Sob inspiração divina, estou certo de que o profeta poderia recitar uma poesia sem tê-la escrito previamente, mas essa não me parece a regra. Natã já chega bem preparado. Ele não está “inventando na hora”; está contando uma história, uma história muito importante, com um mensagem muito importante para Davi.
Quarto, a história contada por Natã é uma “história de ovelha”, a qual pode ser facilmente compreendida por um pastor e com a qual ele prontamente se identificar. Davi foi pastor de ovelhas quando jovem, como sabemos pelo(s) livro(s) de Samuel (ver I Samuel 16:11; 17:15, 28). Será que ele, naquelas dias e noites solitários, não pegou uma ou mais ovelhas do seu rebanho como animal “de estimação”? Será que essa ovelha não comeu e bebeu com ele? Provavelmente sim.
Quinto, a história contada por Natã não “se enquadra”, isto é, não “corresponde exatamente” à história do pecado de Davi com Bate-Seba e Urias. A ovelha (a qual pode ser comparada a Bate-Seba) foi morta, não seu dono (o qual pode ser comparado a Urias3). Creio ser importante frisar esse fato, a fim de que nossa interpretação não vá além do verdadeiro sentido da história.
Afinal, por que uma história? Por que não deixar simplesmente que Davi dê com os burros n’água? Muitos dirão ser esta uma tática habilmente empregada para fazê-lo se pronunciar sobre o crime antes de perceber ser ele mesmo o criminoso. Acho que é verdade. Ele fica furioso com a falta de compaixão do “homem rico”. Se pudesse, ele o condenaria à morte (!). E pela cordeirinha, a justiça requeria uma restituição de quatro vezes. Tendo Davi se comprometido com o princípio, Natã agora pode aplicá-lo ao próprio rei.
Pelo que conheço da Bíblia, no entanto, há mais coisas nessa história. Nosso Senhor sempre contava histórias. Qual a razão disso? Estaria Ele tentando “facilitar as coisas”? Estaria tentando adaptar Seus ensinamentos aos que talvez tivessem alguma dificuldade para entendê-los? Mas nosso Senhor também contou histórias para os doutores da lei, os quais seriam capazes de acompanhar uma linguagem mais técnica. Refiro-me especialmente à história do Bom Samaritano, registrada em Lucas 10. Um intérprete da Lei levantou-se e fez uma pergunta a Jesus, não com o intuito de aprender, mas na esperança de colocá-lO em má situação diante do povo. Ele perguntou: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Jesus devolveu-lhe a pergunta. Esse homem era perito na Lei de Moisés, o que ele ensinava? O homem respondeu: “AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, DE TODO O TEU CORAÇÃO, DE TODA A TUA ALMA, DE TODAS AS TUAS FORÇAS E DE TODO O TEU ENTENDIMENTO; E: AMARÁS O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO.” (Lucas 10:27) Com efeito, Jesus respondeu: “Respondeste corretamente; faze isto e viverás.” Esse era o problema com a lei, ninguém poderia cumpri-la sem falhar, e por isso ninguém poderia ir para o céu por boas obras.
O intérprete da Lei sabia que estava em maus lençóis e tentou sair pela tangente (péssima escolha). Ele (como muitos advogados daquela época e de agora) pensou que poderia se livrar do problema discutindo em linguagem técnica. Por isso, fez outra pergunta a Jesus: “Quem é o meu próximo?” Jesus não discutiu com o homem nos termos dele. Ele não estava disposto a discutir sobre a palavra no texto original. Em vez disso, ele contou uma historinha, a história do Bom Samaritano. Quando terminou, Jesus lhe fez uma pergunta simples:
“Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:36-37)
O intérprete da Lei se deu mal; a história não continha detalhes técnicos sobre os quais ele pudesse tergiversar. A questão foi esclarecida, com pouca margem para discussão. Sem saída, ele sabia que a definição funcional de “próximo” feita por Jesus estava absolutamente certa. Ele não tinha para onde fugir. A história era uma armadilha; ia direto ao ponto ao mesmo tempo que evitava detalhes sem importância sobre os quais se pudesse debater durante horas. Não foi o intérprete da Lei que colocou Jesus em má situação com suas minúcias, foi Jesus que o colocou, com uma simples historinha.
Essa é uma das razões pelas quais Natã conta a história. Não é para dar uma cara nova ao pecado de Davi; mas para expor sua natureza, de forma que não seja negado. Tendo feito isso muito bem, Natã, então, lida com o pecado propriamente dito.
A história contada por Natã é muito simples. Dois homens vivem na mesma cidade; um é muito rico e o outro, muito pobre. O rico tem rebanhos e gado4. Ele não tem apenas um grande rebanho e uma grande manada de gado; ele tem muitos rebanhos e muitas manadas. Poderíamos dizer que o homem é “podre de rico”. O pobre nada mais tem do que uma cordeirinha, a qual é “de estimação”. Ele a comprou e criou em sua própria casa. O animalzinho passa muito tempo no seu colo, sendo carregado para cima e para baixo. Ele vive dentro de casa, não fora, e é alimentado pelo homem à sua mesa, comendo do seu prato e bebendo do seu copo. Alguns talvez nem consigam imaginar uma cena dessas. É um pensamento horroroso. Como alguém pode tratar um animal dessa forma? Só tenho uma resposta: Obviamente, quando chegam em casa, nunca foram recepcionados por dois gatos (os quais, para desgosto da minha esposa, estão por toda parte — e às vezes — em cima da mesa) e quatro cachorros (nenhum dos quais é nosso, tecnicamente).
O rico recebe um convidado inesperado e, como anfitrião, precisa dar-lhe de comer. Ele resolve preparar um cordeiro, mas não quer sacrificar nenhum animal do seu rebanho. Em vez disso, ele toma a cordeirinha do homem pobre, mata-a e a serve ao convidado, não sofrendo, dessa forma, nenhuma perda pessoal. Ele não só deixa o homem pobre (ou melhor, obriga-o a) arcar com a sua despesa, como o priva do seu único animal, o qual era como um membro da família.
Espero não estar tentando “enquadrar” a história quando ressalto os mesmos pontos enfatizados por ela — o relacionamento afetivo e amoroso entre o homem pobre e sua cordeirinha “de estimação”. Considerando isso, juntamente com as outras coisas que lemos sobre Urias, Bate-Seba e Davi, só posso concluir que o autor deixa muito claro o fato de Urias e Bate-Seba se amarem muito. Quando Davi “toma” Bate-Seba para levá-la ao seu quarto naquela noite fatídica, e depois a toma como esposa, após o assassinato de Urias, ele a toma do homem amado. Bate-Seba e Urias eram devotados um ao outro, o que acrescenta peso aos argumentos sobre ela não ter participado voluntariamente dos pecados de Davi. Isso também ressalta o caráter de Urias, alguém tão chegado a ela, tão pressionado pelo rei para ir ter com ela, mas que mesmo assim se recusa a fazê-lo por causa dos seus princípios.
Davi não percebe o que está por vir. A história de Natã o deixa furioso. Aquele Davi que uma vez esteve prestes a dar cabo de Nabal e de todos os homens da sua família (I Samuel 25), agora está suficientemente furioso para fazer o mesmo com o vilão da história de Natã. Em alguns aspectos, sua reação é meio exagerada. Ele me faz lembrar um pouco de Judá, em Gênesis 38, quando descobre que Tamar, sua nora, está grávida sem ser casada. Sem perceber que é o pai da criança em seu ventre, ele está pronto para vê-la queimar na fogueira. Como é irônico ver pessoas culpadas de um determinado pecado sendo tão intolerantes com esse mesmo pecado na vida dos outros.
Davi identifica dois males cometidos pelo homem rico dessa história fictícia. Primeiro, o homem roubou um cordeiro, pelo qual a lei prescrevia uma restituição de quatro vezes (Êxodo 22:1). Segundo, para ele, há um pecado maior, ou seja, a total falta de compaixão do homem. Davi fica furioso porque ele roubou e matou o animal de estimação do homem pobre. Davi ainda não viu a ligação com a sua própria falta de compaixão por roubar a companheira amada de um homem pobre, a esposa de Urias, Bate-Seba. A morte de Urias, com toda certeza, também é um ato decorrente da falta de compaixão. O toque final na demonstração de indignação de Davi é o caráter religioso que ele dá às palavras “Tão certo como vive o SENHOR” (verso 5).
“Então, disse Natã a Davi: Tu és o homem. Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Eu te ungi rei sobre Israel e eu te livrei das mãos de Saul; dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor em teus braços e também te dei a casa de Israel e de Judá; e, se isto fora pouco, eu teria acrescentado tais e tais coisas. Por que, pois, desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amom. Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.”
Davi acaba de acionar a armadilha contra si mesmo e Natã está prestes a informá-lo disso. A primeira coisa que Natã faz é acusá-lo dramaticamente: “Tu és o homem.” Num silêncio estonteante, Davi ouve as acusações contra si. Ele só pensa em termos dos males cometidos pelo rico contra o próximo, roubando-o e privando-o da companhia da sua ovelha. Colocando de outra forma, Davi só pensa em termos de criminalidade e comportamento socialmente inaceitável, não em termos de pecado. Nos versos 7 a 12, Natã chama sua atenção para o pecado cometido contra Deus e para as consequências pronunciadas por Ele em decorrência disso. Observe a repetição do pronome “Eu” nos versos 7 e 8: “Eu...”
· … te ungi rei
· … te livrei das mãos de Saul
· … dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor
· … te dei a casa de Israel e de Judá
Deus fala com Davi como se este tivesse se esquecido dessas coisas, ou melhor, como se levasse o crédito por elas. Todas as suas posses lhe foram dadas por Deus. Teria se passado tanto tempo assim, desde a sua juventude como um humilde pastor de ovelhas, que ele tinha se esquecido? Davi é “rico” porque Deus o tornou rico. E se ele acha que não é rico o suficiente, Deus lhe dará ainda mais. Davi começou a se apegar à suas “riquezas” em vez de se apegar ao Deus que as deu a ele.
Receio que alguns de nós tendam a perder este ponto. Lemos a história de Natã e ouvimos sua repreensão como se o pecado de Davi fosse meramente sobre sexo. Davi realmente comete um pecado sexual quando toma Bate-Seba e se deita com ela, sabendo que ela é casada. Mas esse pecado sexual é apenas sintomático, de acordo com Natã, e portanto, de acordo com Deus. Deus não está só dizendo: “Toma vergonha, Davi. Veja todas as mulheres e concubinas com quem você poderia ter dormido. E, se nenhuma delas te agradasse, você poderia ter arranjado outra, uma que pelo menos não fosse casada.” Natã lhe conta a história do homem rico e do homem pobre. Deus lhe diz, por intermédio de Natã, que foi Ele quem lhe deu todos os seus bens (suas riquezas). Deus até mesmo aumentaria suas riquezas (não só o harém). As posses de Davi passaram a possuí-lo, esse foi o problema. Ele está tão “possuído” por suas riquezas que não está disposto a gastá-las. Ele quer cada vez “mais”, por isso começa a pegar aquilo que não é seu, em vez de pedir ao divino Doador de todos os seus bens.
Agora podemos entender porque Davi escreveu estas palavras no Salmo 51:4: “Pequei contra ti, contra ti somente.”
Antes de mais nada, o pecado de Davi é contra Deus. Ele deixou de humildemente reconhecer Deus como o Doador de todas as suas posses. Ele deixou de olhar para Deus como Provedor de todas as suas necessidades — e desejos. Davi não só deixou de pedir a Deus para suprir suas necessidades, como também desobedeceu Seus mandamentos quando cometeu adultério e assassinato. O pecado de Davi contra Deus se manifesta nos pecados cometidos contra os outros. Natã faz um resumo de tudo isso, empregando repetidamente o pronome “tu” (ou “te”):
(tu) desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele?
A Urias, o heteu, (tu) feriste à espada.
e a sua mulher (tu) tomaste por mulher.
depois de (tu) o matar(es) com a espada dos filhos de Amom.
Natã, então, anuncia as consequências irreversíveis que recairão sobre Davi e sua família por causa do seu pecado:
Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher.
Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti,
tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo
o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol.
Porque tu o fizeste em oculto,
mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.
O mal cometido por Davi contra outras pessoas é clara desobediência contra a Palavra revelada de Deus. Davi é “um homem segundo o coração de Deus”, mas, neste caso, ele “desprezou a palavra do SENHOR”. Embora Davi realmente se arrependa e seu pecado seja perdoado, as consequências não serão revertidas. As consequências são justas; são adequadas ao crime cometido por Davi. Ele usou a espada dos amonitas para matar Urias, por isso, a espada não se afastará da sua casa. Ele tomou a esposa de outro homem, por isso, suas esposas serão tomadas por outro homem, alguém da sua própria casa.
As consequências não são apenas apropriadas, elas também são intensificadas. Davi tomou a esposa de um homem; outro tomará várias de suas esposas. Isso acontecerá quando Absalão se rebelar contra o governo do pai e, temporariamente, assumir seu trono. Seguindo o conselho de Aitofel, ele armará uma tenda no telhado do palácio de Davi (de onde este olhou pela primeira vez para Bate-Seba) e ali, à vista de todo Israel, se deitará com as concubinas de Davi, como uma declaração de que assumiu o trono e tudo o que veio com ele (II Samuel 16:20-22). Embora Davi tente cometer seus pecados em oculto, Deus cuida para que as consequências sejam bem visíveis.
Como todos sabem, a história continua, mas nós vamos parar por aqui, depois de ter analisado a repreensão divinamente orientada de Natã a Davi. Na próxima lição meditaremos sobre o arrependimento de Davi e as consequências imediatas do seu pecado. Contudo, vamos concluir esta mensagem considerando algumas lições muito importantes que devemos aprender com o pecado de Davi e a repreensão de Natã.
1. Natã é um profeta, mas é também exemplo de um amigo fiel. Provérbios coloca isso desta forma:
“Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos.” (Provérbios 27:6)
Não sei quantas pessoas conheço que se recusaram a repreender ou mesmo advertir alguém próximo a elas por acharem que serão mais amigas se não os censurarem. Um bom amigo não nos deixa continuar no caminho da destruição. Natã estava agindo como profeta, mas também como amigo. Quem dera tivéssemos mais profetas-amigos. Quem dera fôssemos um profeta-amigo para quem está no caminho da destruição.
2. Deus vê nosso pecado mesmo quando os homens não veem. Nossos pecados nunca passam despercebidos por Deus. Os ímpios se recusam a acreditar que Ele veja seu pecado, ou se acreditam, acham que Ele nunca irá tomar uma atitude: “E dizem: Como sabe Deus? Acaso, há conhecimento no Altíssimo?” (Salmo 73:11; veja também II Pedro 3:3 e ss).
Deus pode demorar para julgar ou disciplinar, mas Ele nunca ignora o pecado.
“Então, Moisés lhes disse: Se isto fizerdes assim, se vos armardes para a guerra perante o SENHOR, e cada um de vós, armado, passar o Jordão perante o SENHOR, até que haja lançado fora os seus inimigos de diante dele, e a terra estiver subjugada perante o SENHOR, então, voltareis e sereis desobrigados perante o SENHOR e perante Israel; e a terra vos será por possessão perante o SENHOR. Porém, se não fizerdes assim, eis que pecastes contra o SENHOR; e sabei que o vosso pecado vos há de achar.” (Números 32:20-23, ênfase minha).
3. Deus não é obrigado a nos impedir de pecar. Algumas vezes, as pessoas justificam seus pecados dizendo: “Tenho orado a Deus e pedido para Ele me deter se isso for errado...” Quando Deus não as detém, elas acabam presumindo que aquilo era certo. Deus poderia ter detido Davi depois que ele decidiu ficar em casa e não ir à guerra, ou quando começou a desejar a esposa de Urias, ou após ter cometido adultério, mas, durante algum tempo, Ele o deixou persistir no pecado. Deus até mesmo o deixou safar-se do assassinato de Urias, temporariamente. A Palavra de Deus proibia os pecados praticados por Davi: cobiça, adultério e assassinato. A Palavra de Deus ordenava que ele parasse, mas ele não parou. Deus permitiu sua persistência no pecado durante um determinado período, mas não indefinidamente. Deus deixou o pecado de Davi completar seu ciclo e desabrochar totalmente a fim de que ele (assim como nós) pudesse perceber como o pecado cresce (veja Gênesis 15:12-16).
4. O pecado de Davi não serve como desculpa para pecarmos, mas como alerta sobre a nossa capacidade de pecar. Tenho ouvido esta frase muito mais vezes do que gostaria: “Bem, até Davi pecou...” Na verdade, isso significa: “Como esperam que eu não peque? Se até Davi, tão espiritual como ele era, pecou, porque acham que eu poderia fazer melhor?”
Se olharmos atentamente para a Bíblia, veremos porque histórias como essa foram escritas. Não foi para nos incentivar a pecar, mas para nos advertir sobre os perigos do pecado e, assim, nos encorajar a evitá-lo a qualquer custo. Em I Coríntios 10:1-10, depois de fazer um resumo dos pecados da nação de Israel no deserto, Paulo aplica a lição da história aos coríntios, e, dessa forma, a nós:
“Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar.” (I Coríntios 10:11-13; ver também Romanos 15:4-6)
Permitam-me ir um pouco mais além neste assunto. Davi não planejou pecar, como muitos desejam fazer, usando o seu pecado como desculpa. Davi “caiu” em pecado; aqueles que desejam usar o pecado de Davi como desculpa, “mergulham de cabeça”. Existe uma grande diferença. Além disso, o pecado na vida de Davi foi uma exceção, não a regra:
“Porquanto Davi fez o que era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua vida, senão no caso de Urias, o heteu.” (I Reis 15:5, ênfase minha).
5. O pecado de Davi, como todo pecado, não vale a pena. É incrível, mas muitas pessoas me perguntam qual seria a penalidade para um determinado pecado, planejando cometê-lo e depois ser perdoado. Há quem brinque com isso, pensando que, se pecarem talvez sofram algumas consequências, mas Deus terá de perdoá-los; e assim, seu futuro eterno é certo e garantido, não importa o que façam, mesmo intencionalmente. Sei do caso de um líder de uma igreja que abandonou a esposa e fugiu com a mulher de outro homem, planejando se arrepender depois e ser recebido de volta à comunhão. Isso é pecado deliberado; e do tipo mais grave e mais perigoso. Nesta mensagem, em vez de abrir agora a “caixa de Pandora”, permitam-me dizer simplesmente: “Ninguém resolve pecar e depois sai por aí com um sorriso no rosto.”
Antigamente, eu lecionava em uma escola. De tempos em tempos, algum aluno desordeiro era chamado ao gabinete do Diretor. Nunca vou me esquecer do dia em que um dos meus alunos foi chamado à sua sala e voltou com um sorriso atrevido no rosto. Um outro aluno reclamou abertamente: “O senhor não vai dar um jeito nisso? Ele foi parar na Diretoria e ainda voltou sorrindo!” Meu jovem aluno tinha toda razão. Ser chamado ao gabinete do Diretor para ser disciplinado deveria produzir arrependimento e respeito, não um sorriso. Nas poucas vezes em que achei necessário usar a “vara” da disciplina, não foi porque eu queria que o aluno voltasse à sala de aula com um sorriso no rosto, e nenhum voltou (inclusive o filho do Diretor, devo acrescentar, o qual nem estava na minha classe).
Nunca conheci um cristão que tenha decidido pecar e, depois de tudo acabado, tenha sentido que valeu a pena. O pecado de Davi e suas consequências não devem nos incentivar a fazer o mesmo, mas nos motivar a evitá-lo a todo custo. As consequências negativas do pecado são muito mais pesadas do que seus prazeres momentâneos. O pecado nunca vale a pena, mesmo para quem é perdoado.
6. Foi a história da morte de uma cordeirinha que revelou a imensidão do pecado de Davi. É a história da morte do Cordeiro de Deus que revela a imensidão dos nossos pecados. Não é incrível que Davi esteja tão cego por seu próprio pecado a ponto de não conseguir enxergá-lo? Só pela história da morte de um animal de estimação de um homem pobre ele pôde compreender a imensidão do seu próprio pecado. Ele só conseguiu enxergar quando ouviu a história do que parecia ser o pecado de outra pessoa.
É exatamente isso o que a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo faz por nós. Nós estávamos mortos em nossos delitos e pecados (Efésios 2:1-3). Estávamos cegos pela imensidão dos nossos pecados (II Coríntios 4:4). A vinda do nosso Senhor Jesus Cristo à terra, Sua vida perfeita, Sua morte sacrificial, Sua ressurreição física literal, são todos acontecimentos históricos. Mas o evangelho também é história, uma história verdadeira. Quando lemos os Evangelhos do Novo Testamento, lemos uma história muito mais dramática, incrível e perturbadora do que a história contada por Natã a Davi. Quando vemos a forma como os incrédulos trataram nosso Senhor, ficamos chocados, horrorizados e furiosos. Gostaríamos de gritar: “Eles mereciam morrer!” E mereciam mesmo. Mas o evangelho não foi escrito só para nos mostrar os seus pecados — das pessoas que ouviram pessoalmente Jesus e gritaram “Crucifica-O, Crucifica-O” — o evangelho foi escrito para que o Espírito de Deus diga ao nosso coração “Tu és o homem”. Quando vemos a maneira como os homens trataram Jesus, vemos a maneira como nós O trataríamos, se estivéssemos lá. Vemos como O tratamos hoje. E isso, meu amigo, revela a imensidão do nosso pecado, e a imensidão da nossa necessidade de arrependimento e perdão.
O evangelho de Jesus Cristo é “boa nova”. A “boa nova” é que a morte de nosso Senhor, a qual revela a imensidão do nosso pecado, é a imensa obra de Deus pela qual Ele pode e irá nos perdoar desses pecados. Por Sua morte sacrificial, Jesus morreu em nosso lugar e pagou a pena pelos nossos pecados. Ele os carregou sobre Si na cruz! E, crendo na Sua morte, sepultamento e ressurreição, morremos para o pecado e ressuscitamos para a novidade da vida eterna, em Cristo. O evangelho, antes de mais nada, deve nos conduzir ao reconhecimento da magnitude do nosso pecado, e da nossa culpa, para depois nos levar à grandeza da graça de Deus em Jesus Cristo, pela qual somos perdoados. Vocês já perceberam como seus pecados são grandes diante de um Deus santo? Então, digo-lhes que experimentem como é grande a salvação propiciada por esse mesmo Deus, por meio da morte, sepultamento e ressurreição do Senhor Jesus Cristo. Que Salvador!
“Quanto ao perverso, as suas iniquidades o prenderão, e com as cordas do seu pecado será detido.” (Provérbios 5:22)
“Mas o que peca contra mim violenta a própria alma. Todos os que me aborrecem amam a morte.” (Provérbios 8:36)
“O que encobre as suas transgressões jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa alcançará misericórdia.” (Provérbios 28:13)
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Nota da tradutora: trocadilho intraduzível para o português.
2 Devo dizer também que outras versões parecem não seguir o padrão da NASB ao tratar essas palavras como poesia.
3 Nota da tradutora: Provavelmente Mr. Deffinbaugh se enganou ao escrever “pode ser comparado ao dono pobre da ovelha”, pois não faz sentido comparar alguém a ele mesmo.
4 A expressão “rebanhos e gado” ocorre com bastante frequência na Bíblia. O termo “rebanho” se refere aos animais menores, como ovelhas e cabras. “Gado” se refere aos animais maiores, como bois e vacas.
Ver Salmos 32 e 51
No final do meu primeiro ano de seminário, arranjei um emprego de verão um tanto diferente. Fui contratado para dar aulas de história e psicologia na escola secundária de uma prisão de segurança média em minha cidade natal. Meu tio trabalhava lá como guarda e diversos funcionários e membros do corpo do docente da prisão tinham sido meus professores quando eu estava no colegial (até o Diretor da minha escola era o Diretor da escola da prisão). Um dia, um de meus colegas me contou uma história interessante e meio divertida sobre uma de suas experiências como professor naquele local.
A penitenciária procurava reabilitar os internos dando-lhes a oportunidade de completar o segundo grau e receber seu diploma. A escola da prisão ficava em uma das melhores instalações que já vi1. As classes raramente tinham mais de 20 alunos e um guarda ficava sempre a postos do lado de fora, “só por precaução...” Uma das regras da escola era a proibição de dormir na sala de aula. Certo dia, enquanto meu colega passava um filme para sua classe, um de seus alunos ficou muito sonolento. O rapaz nem tentou disfarçar, colocou a cabeça na carteira e dormiu. Conforme andava pela classe, meu amigo reparou no dorminhoco, deu a volta por trás da sua carteira e deu-lhe gentilmente um tapinha no ombro, continuando a andar. Pouco depois, ele passou novamente pelo rapaz, que continuava a dormir a sono solto. Meu amigo deu-lhe outro tapinha. Na terceira vez, ele pegou o camarada pelos ombros e deu-lhe uma sacudidela (ele não era do tipo violento). Desta vez o moço acordou, deu um pulo, voltou-se para ele e ameaçou: “Se fizer isso de novo, eu vou te pegar!” Meu amigo se afastou, foi em direção à porta e acenou para o Sr. Look, o guarda de plantão (que era sargento da Marinha e sabia como lidar com esses casos). O aluno foi escoltado até o “buraco” (solitária).
Um mês depois, o rapaz saiu da solitária e voltou para a classe. No primeiro dia da aula do meu amigo, ele foi “se desculpar”. “Sinto muito pelo que eu disse no outro dia”, explicou, “mas acho que o senhor não me entendeu. O que eu disse foi: ‘se fizer isso de novo, posso te pegar.’” Isso, meu amigo, não é arrependimento.
O “arrependimento” desse homem era banal demais. Arrependimento verdadeiro é uma coisa rara, até mesmo na Bíblia. Em nosso texto, Davi disse a Natã: “pequei...” Essas palavras (ou suas equivalentes) podem ser encontradas em outros lugares das Escrituras, mas nem sempre com a mesma sinceridade. Faraó, por exemplo, disse duas vezes a Moisés: “pequei...” (ver Êxodo 9:27, 10:16-17). É óbvio que seu arrependimento não era sincero. Balaão foi interceptado pelo Anjo de Deus quando ia ao encontro de Balaque, mas ao perceber que por pouco tinha escapado da morte nas mãos do Anjo, ele exclamou: “pequei...” (Números 22:34). Outros textos bíblicos posteriores nos informam que esse arrependimento também era falso. Judas, o traidor de nosso Senhor, confessou seu pecado, mas também não se arrependeu realmente (Mateus 27:4). Portanto, podemos concluir que dizer simplesmente “pequei” não significa que o arrependimento seja genuíno.
Certamente esse era também o tipo de arrependimento de muita gente que procurou João Batista para ser batizada:
“Então, saíam a ter com ele Jerusalém, toda a Judéia e toda a circunvizinhança do Jordão; e eram por ele batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados. Vendo ele, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento; e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Mateus 3:5-9)
João Batista falava sobre o verdadeiro arrependimento porque via muitas pessoas cujo “arrependimento” estava longe de ser sincero. Atualmente, essa questão também é muito pertinente. É bem verdade que alguns se excedem e estabelecem suas próprias exigências legalistas como único “fruto digno de arrependimento”. Por outro lado, alguns ensinam que o arrependimento é simplesmente uma questão de “concordar com Deus”. Essa definição, no entanto, resulta em uma mera assunção de culpa, de forma a minimizar o peso e o horror do pecado, levando a pessoa a repeti-lo. Além disso, vemos as confissões chorosas dos tele evangelistas e de outros líderes proeminentes ditos cristãos e nos perguntamos se eles estão verdadeiramente arrependidos. Creio que o sentimento de Davi é genuíno e nos dá um exemplo do verdadeiro arrependimento.
Sei que estou restringindo nosso estudo a uma porção bem pequena do nosso texto — a apenas um verso, para ser mais preciso. Nosso foco, no entanto, não é tão restrito quanto parece. Gostaria de considerar II Samuel 12:13 à luz da vida de Davi após essa confissão, bem como à luz da sua confissão ampliada em dois dos salmos que tratam especificamente do seu pecado relacionado a Urias e Bate-Seba: Salmos 32 e 51. Prestemos muita atenção, para vermos, então, como é o genuíno arrependimento.
Já citei alguns exemplos de falso arrependimento na Bíblia, mas vamos insistir um pouco mais nesse assunto para que a sinceridade de Davi seja vista em contraste com a falsidade dos outros. Para ser mais específico, gostaria de chamar sua atenção para Saul, o qual já havia proferido três vezes a mesma expressão “pequei...” (I Samuel 15:24, 30; 26:21). O que há com o “arrependimento” de Saul que o deixa tão longe de ser sincero? Vamos fazer uma pausa para refletir sobre seu “arrependimento”.
1) A primeira reação de Saul à repreensão profética é o silêncio. Devo ressaltar que, embora Saul pareça arrependido em I Samuel 15, assim como no capítulo 26, esse “arrependimento” é muito fraco e tardio demais. Isso deveria ter ocorrido logo no capítulo 13. Ali, Israel fora invadido em massa pelos filisteus. O exército de Saul nada mais era do que de um punhado de homens, os quais estavam rapidamente desertando. Mesmo tendo sido instruído a esperar por Samuel, o qual ofereceria os sacrifícios (I Samuel 10:8), Saul achou que o tempo estava se esgotando e ele não podia esperar mais. Por isso, ofereceu ele mesmo o holocausto, só para ver Samuel chegando assim que terminou. Quando Samuel o censurou por esse ato de rebelião contra Deus, Saul tentou se defender, afirmando ter agido adequadamente, dadas as circunstâncias. Samuel não aceitou suas desculpas e o repreendeu por sua tolice e desobediência, dizendo-lhe que isso lhe custaria o reino. A resposta de Saul foi o silêncio. Eis um homem a quem acabaram de informar que seus dias como rei de Israel estavam contados e que, em vez de confessar seu pecado, separou-se de Samuel em silêncio.
2) A segunda reação de Saul à repreensão profética de Samuel é resistente, e seguida de uma confissão relutante. Em I Samuel 15, Saul recebe ordem de Deus, por intermédio de Samuel, para aniquilar os amalequitas e seu gado como cumprimento do juízo divino (15:1-3). Saul obedece parcialmente, retendo o melhor do gado e poupando a vida de Agague, o rei amalequita. Quando Samuel chega, Saul audaciosamente se aproxima dele, pronunciando uma bênção e afirmando ter cumprido a ordem de Deus (15:13). Ouvindo o balido das ovelhas que foram poupadas, Samuel não se deixa impressionar pela saudação de Saul. Sentindo o desprazer de Samuel, Saul rapidamente começa a arranjar desculpas, jogando a culpa sobre o povo e insistindo que o gado fora poupado para ser oferecido como sacrifício2. Mesmo depois da repreensão de Samuel (algo que soa bem parecido com as repreensões a Davi em II Samuel 7:8-9 e 12:7-8), Saul ainda nega sua culpa, afirmando que “deu ouvidos à voz do Senhor” (I Samuel 15:20). Só depois de Samuel se recusar terminantemente a aceitar suas desculpas é que Saul finalmente confessa ter pecado (versos 24 e 30). Só posso chamar esse “arrependimento” de arrependimento relutante.
3) O “arrependimento” de Saul não assume a responsabilidade pelo pecado e tenta jogar a culpa nos outros. Como Adão e Eva, Saul tenta jogar a culpa pelo seu próprio pecado em outra pessoa (compare com Gênesis 3:11-13). Mesmo depois, no verso 24, ele ainda tenta se esquivar. Ele tenta convencer Samuel de que, embora tenha pecado, ele o fez devido à pressão do povo (15:15, 21, 24).
4) Saul “se arrepende” numa tentativa de minimizar as consequências do seu pecado. Saul parece não ter nenhum interesse nas causas do seu pecado, ou na sua cura. Ele só se preocupa em minimizar seu sofrimento. Ele pede a Samuel para rapidamente perdoá-lo e então continuar (com a adoração!) como se nada tivesse acontecido. Ele quer que Samuel o acompanhe e o honre, para que ele não fique mal diante do povo (15:30). Um rótulo melhor para o “arrependimento” de Saul seria “controle de danos”.
5) O “arrependimento” de Saul tem vida curta. Para Saul não existe “fruto digno de arrependimento”, mudança de atitude ou atos que perdurem. Seu “arrependimento” não dura mais que uma fração de segundo. Assim que a pressão diminui e o perigo parece ter passado, ele volta a pecar, se não da mesma forma, de alguma outra. Em I Samuel 26:21, ele confessa a Davi ter pecado ao tentar tirar a vida dele, mas se Saul não tivesse sido morto em batalha, temos poucas dúvidas do que ele poderia ter feito a Davi se tivesse oportunidade (Lembre-se de que Davi não “voltou” com Saul, quando este lhe pediu. Davi o conhecia muito bem!). O arrependimento de Saul era passageiro.
Vamos fazer um resumo da sequência dos eventos que resultaram no pseudo-arrependimento de Saul em I Samuel:
· Ele tenta justificar sua desobediência como se suas ações fossem ditadas pelas circunstâncias (uma espécie de “lei marcial” moral - 13:11-12);
· Ele permanece em silêncio quando fica evidente que Deus não aceitará suas desculpas (13:15);
· Ele procura redefinir sua desobediência, como se ela fosse justificada (15:13);
· Ele procura lançar sobre o povo a culpa pelo seu pecado, tentando ainda justificar o “pecado” deles como desejo de prestar culto (15:15);
· Ele diz que estava tentando obedecer a Deus, mas foi incapaz de controlar o povo, o qual pecou ao poupar alguns animais (embora ele omita qualquer menção à sua responsabilidade de matar Agague - 15:20-21);
· Relutantemente ele admite ter pecado, mas insiste em dividir a culpa com os outros (15:24);
· Ele tenta rapidamente se “arrepender” e ser perdoado, para poder “prestar culto” (15:25);
· Ele busca desesperadamente minimizar as consequências do seu pecado, a fim de que não tenha de sofrer muito por causa dele (15:25-31).
Antes de nos voltarmos para o arrependimento verdadeiro de Davi, deixe-me fazer uma pausa momentânea para fazer algumas comparações entre ele e Saul. De diversas maneiras, tenho retratado Saul de uma forma bem sombria, mas talvez distorcida. Apesar de todas as suas falhas e pecados, o autor de I e II Samuel faz um relatório geral bastante decente sobre a sua administração:
“Tendo Saul assumido o reinado de Israel, pelejou contra todos os seus inimigos em redor: contra Moabe, os filhos de Amom e Edom; contra os reis de Zobá e os filisteus; e, para onde quer que se voltava, era vitorioso. Houve-se varonilmente, e feriu os amalequitas, e libertou a Israel das mãos dos que o saqueavam.” (I Samuel 14:47-48)
As comparações anteriores entre Saul e Davi (como, por exemplo, a reação de ambos a Golias) fizeram Saul parecer muito mau e Davi muito bom. À luz dos pecados de Davi descritos em II Samuel 11 e 12, Saul já não parece tão mau assim. Em lugar algum nós o vemos tomando a esposa de outro homem e matando seu marido. Embora ele tenha tentado tirar a vida de Davi, isso foi às claras, não às ocultas (como Davi fez com Urias, por intermédio de Joabe). Os pecados de Davi fazem Saul parecer um pouco melhor do que antes. Há, no entanto, uma coisa que distingue radicalmente os dois: Davi realmente se arrepende de seus pecados; Saul não. Davi era um homem segundo o coração de Deus. Isso não o isentava das falhas humanas, nem o afastava do pecado, mas resultava em arrependimento genuíno. À medida que estudarmos esse arrependimento genuíno, tentaremos identificar o que isso significa.
Duas pequenas frases resumem o teor do capítulo 12. A primeira é dita por Natã: “Tu és o homem!” (verso 7). A segunda, por Davi: “Pequei contra o SENHOR.” (verso 13). É essa segunda afirmação e suas consequências que desejo explorar. Pense nas seguintes características do arrependimento de Davi, afirmadas de forma simples aqui, mas mais ampliadas nos Salmos 32 e 51, e evidenciadas em sua vida:
1) O arrependimento de Davi é resultado de um processo doloroso, cujo clímax é o confronto com Natã. Em nosso texto, a confissão de Davi vem logo após a narrativa do seu pecado. O próprio texto, porém, indica que o pecado de Davi durou um tempo considerável, um pouco mais de nove meses, de acordo com as estimativas normais. Embora o texto só nos informe o tempo e os acontecimentos que se passaram, o Salmo 32 nos dá uma visão muito oportuna sobre o trabalho de Deus no coração de Davi durante esse período:
“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio. Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.” (Salmo 32:3-5)
Nesse salmo, Davi diz que calou o seu pecado. Ele sabia que estava errado, mas preferiu persistir no erro durante algum tempo. Ele não confessou o pecado e o resultado foi um “verdadeiro inferno”. É uma coisa incrível mas, embora o pecado tenha seus momentos de prazer (ver Hebreus 11:25), eles não são tão agradáveis para os cristãos quanto o são para os ímpios. A razão é devido ao Espírito de Deus habitar nos santos. Como o pecado entristece o Espírito habitando em nós, nosso espírito também não consegue sentir grande prazer nele. Não estou dizendo que não há prazer; mas que o prazer é minimizado pelas alegrias de obedecer a Deus e desfrutar da Sua comunhão. A agonia descrita por Davi finalmente o leva a quebrar seu silêncio e confessar seus pecados. Seu arrependimento é o resultado de um processo doloroso, na maior parte ocorrido dentro dele mesmo.
Na maioria das vezes é assim. Estou pensando no “arrependimento” dos irmãos de José, o qual foi provocado por ele mesmo por meio dos acontecimentos descritos em Gênesis 42 a 45. Seus irmãos haviam claramente pecado contra ele ao vendê-lo como escravo (talvez se sentissem aliviados pensando que, pelo menos, não o tinham matado, como planejaram a princípio). Ao ascender à segunda posição mais alta do Egito, José tinha poder para lidar com os irmãos como quisesse. Quando eles foram para lá para comprar grãos, ele podia muito bem ter se vingado, mas, em vez disso, preferiu conduzi-los ao arrependimento3. Para tanto, ele disfarçou sua identidade (se quisesse acertar as contas, ele lhes teria dito quem era). José orquestrou tudo de forma que os irmãos tivessem de tomar uma decisão quase idêntica àquela tomada anos antes. Ele colocou seus irmãos numa situação em que poderiam entregar Benjamin, abandonando-o como escravo no Egito, ou poderiam ficar juntos e tentar salvá-lo. Judá, que recomendara a venda de José como escravo, agora se oferecia como escravo para que Benjamim pudesse voltar para Jacó, seu pai idoso. Esse é um arrependimento verdadeiro. O arrependimento verdadeiro não só lamenta ter feito o que é errado (os irmãos de José lamentaram o mal feito a ele anteriormente — 42:21-22), mas não o repete se tiver chance para tal. José deu aos irmãos uma oportunidade e, dessa vez, eles decidiram agir corretamente. Arrependimento verdadeiro é sempre resultado de um longo e doloroso processo.
2) O arrependimento de Davi é expresso por uma confissão completa de culpa diante de Deus. A brevidade e a simplicidade da confissão de Davi são impressionantes. As confissões de Saul não eram simples, nem diretas. Hoje, ele teria um advogado (e um assessor de imprensa) para rascunhar suas palavras. Davi assume totalmente a responsabilidade por seus pecados; Saul procurava jogar a culpa nos outros ou, pelo menos, dividi-la com eles. Davi confessa o pecado como pecado, sem desculpas, sem acusar ninguém. Ele sabe que o pecado é contra Deus.
3) Davi leva seu pecado muito a sério. Saul sempre procurou minimizar seu pecado, fazendo-o parecer menos mau do que realmente era. Davi faz o oposto. Os Salmos 32 e 51 indicam que ele pensou muito sobre suas ações e, quanto mais pensava, mais abominável o pecado lhe parecia. Uma vez que os salmos foram preservados para o culto e para a posteridade, o pecado e a confissão de Davi se tornaram de conhecimento público. Em última análise, o pecado de Davi é contra Deus, contra Deus somente. Isso não diminui o mal causado a Urias e Bate-Seba. Pecado é quebrar as leis de Deus e, nesse sentido, todo pecado é contra Deus, pois quebra Suas leis. Os crimes são ofensas cometidas contras as pessoas, mas o pecado (nesse sentido específico) é apenas contra Deus, naquilo em que quebra Suas leis. Davi quebrou pelo menos três mandamentos. Ele cobiçou a mulher do próximo, cometeu adultério e cometeu assassinato (Êxodo 20:13, 14 e 17).
4) Davi não espera que suas boas obras compensem ou diminuíam sua culpa. Chegamos agora a um dos maiores erros de todos os tempos: a falsa presunção de que Deus pode ser dobrado. Geralmente se pensa (ou, mais precisamente, se presume) que os homens só precisam superar a quantidade de seus pecados com boas obras. Se fazem mais coisas “boas” do que “más”, acreditam que, no cômputo geral, são mais bons do que maus e, assim, mais qualificados para serem aceitos por Deus. Tais pessoas não compreendem que o tipo de justiça requerida por Deus é a obediência perfeita à Sua Palavra. Uma única falha é suficiente para nos tornar culpados e, por isso, dignos de morte:
“Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos.” (Tiago 2:10, ver também Mateus 5:19 e Gálatas 5:3)
Davi foi um homem segundo o coração de Deus. Ele amava a lei de Deus. A mão do Senhor estava sobre ele em tudo o que fazia. No geral, sua vida foi um exemplo a ser seguido, estabelecendo um padrão pelo qual devemos nos esforçar. Seu pecado em relação a Urias e Bate-Seba foi uma clara exceção, não a regra:
“Porquanto Davi fez o que era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua vida, senão no caso de Urias, o heteu.” (I Reis 15:5)
Se alguma vez houvesse um homem que poderia ter dito que suas boas ações superaram seus pecados, esse homem seria Davi. Mas, em vez disso, nós o encontramos confessando seu pecado, evitando qualquer referência a algo de bom que tenha feito e reconhecendo merecer a ira de Deus.
“Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar.” (Salmo 51:3-4, ênfase do autor)
5) Davi não abusa da graça de Deus, esperando ser perdoado e ter a vida poupada. Existem pessoas que planejam e tencionam pecar, crendo que Deus é obrigado a perdoá-las, seja como for. Elas pensam que se fizerem algum ritual, recitarem alguma fórmula, serão automaticamente perdoadas e a vida poderá continuar como era. Quem abusa da graça de Deus em perdoar, por um lado confessa seu pecado, enquanto por outro planeja repeti-lo. Davi confessa seu pecado contra Deus e não pede nada. Ele sabe o que merece, e não pede para ser salvo.
Nesse sentido, ele é como o filho pródigo do Novo Testamento:
“Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se.” (Lucas 15:17-24)
Esse filho tinha “bagunçado” tudo, e sabia disso. Ele tinha abandonado a família e gasto toda a sua herança. Ele não tinha direito a qualquer reivindicação como filho. No entanto, ele conhecia seu pai e sabia que ser seu escravo era melhor do que ser escravo de um empregador ímpio numa terra distante. Por isso, ele volta para casa, confessa o pecado e não espera nada além de se tornar um empregado. A reação do pai é de pura graça, pois dá ao jovem o que ele não merece. Davi, como o filho pródigo, sabe que não merece o perdão de Deus ou Suas bênçãos; por isso, ele nem mesmo pede. Apenas confessa o pecado.
6) O arrependimento de Davi resulta em uma alegria renovada na presença e no serviço do Senhor e em um compromisso de ensinar aos outros a abandonar o pecado. Sabemos, pelo Salmo 51, que Davi orou para que sua alegria no Senhor fosse restituída (51:8, 12). Temos todas as razões para crer que seu pedido foi atendido. Além disso, ele também queria ensinar aos outros:
“Então, ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti.” (Salmo 51:13)
Davi agora ensinará pecadores como um pecador arrependido. Seu ensino procurará fazer com que eles abandonem seus pecados. Como essa atitude é diferente da atitude dos ímpios, que procuram seduzir os outros a seguir seu exemplo!
“Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.” (Romanos 1:32)
Lembro-me de Simão Pedro, cuja negação foi predita por nosso Senhor, juntamente com estas palavras de esperança:
“Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos.” (Lucas 22:31-32)
Pedro era arrogante, impaciente e impulsivo antes da crucificação e antes de negar o Senhor. Depois de ter falhado miseravelmente e de ter recebido a graça de Deus, ele foi restaurado. Foi aí que seu ministério realmente começou. De certa forma, Deus usa o nosso pecado para instruir outras pessoas. Talvez seja quando elas observam os resultados dolorosos do nosso pecado (Provérbios 19:25) ou quando veem a restauração e o profundo senso da graça de Deus produzidos na vida do pecador arrependido e restaurado.
7) O arrependimento de Davi, divinamente operado por Deus, produz frutos dignos de arrependimento. Deus responde ao arrependimento de Davi com graça, e assim Davi reage com graça para com aqueles que lhe fazem mal e se arrependem. Quando Absalão se rebela contra ele e está prestes a tomar seu reino, Davi foge de Jerusalém junto com seus seguidores. Enquanto ele deixa a cidade, um homem chamado Simei sai para amaldiçoá-lo e atirar-lhe pedras (II Samuel 16:5-8). Abisai quer cortar a cabeça de Simei, mas Davi não permite. Quando Davi volta a Jerusalém, uma das pessoas que sai ao seu encontro para saudá-lo é Simei, o qual confessa ter pecado ao amaldiçoá-lo e apedrejá-lo (II Samuel 19:16-20).
Abisai novamente quer executar Simei e, desta vez, ele tem um motivo bíblico. Ele chama a atenção para o fato de Simei ter amaldiçoado Davi, rei de Israel. A lei de Moisés proibia que se amaldiçoasse os líderes do povo (Êxodo 22:28). Tecnicamente, ou melhor dizendo, legalmente, Simei deveria ser morto, mas Davi o perdoa e poupa sua vida. Ao fazer isso, Davi o trata da mesma forma graciosa como Deus o tratou. Este incidente nos faz recordar da história contada por nosso Senhor sobre o servo incompassivo (ver Mateus 18:23-35), cuja enorme dívida é perdoada pelo rei, mas que se recusa a perdoar uma dividazinha do seu conservo. Quem realmente experimenta a graça de Deus, manifesta essa graça aos outros. A graça recebida por Davi em consequência do seu arrependimento é demonstrada ao “arrependido” Simei.4
8) O arrependimento de Davi produz frutos duradouros: ele abandona o pecado e não volta a repeti-lo. Há pessoas, como Faraó e Saul, que parecem se arrepender, mas cujo arrependimento é muito breve. Saul, com certeza, não demorou muito para retomar seus esforços para matar Davi; e Faraó, para resistir novamente à partida do povo de Israel. Isso aconteceu porque o arrependimento deles não foi verdadeiro. Na verdade, seu arrependimento foi só um caminho mais curto, um jeito de acabar com a dor do momento. Stuart Briscoe diferencia o falso do verdadeiro arrependimento desta forma:
“Lembro-me de um amigo na Inglaterra que me disse há muito tempo: ‘Arrependimento imaturo se desculpa pelo que fez. Arrependimento maduro lamenta pelo que é. Se só me desculpo pelo que fiz... então, vou fazer de novo.”5
Davi manifesta um “arrependimento maduro”. Ele vê seu pecado como realmente é e seu pesar é genuíno. Por isso, ele não o comete de novo.
“Disse Natã a Davi: Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás.”
Davi recebe aquilo que não ousou pedir. Que onda de alívio deve ter tomado conta dele ao ouvir as palavras de Natã: “Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás.” Quando reagiu à história contada por Natã sobre o roubo e a morte da cordeirinha, Davi condenou a si mesmo:
“Então, o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto.” (II Samuel 12:5)
Legalmente, é claro, a lei de Moisés requeria do culpado na história de Natã apenas uma restituição quádrupla (Êxodo 22:1). Davi, porém, deveria ser morto, tanto pelo adultério quanto pela morte de Urias.
Sob a lei de Moisés, Davi não tinha qualquer esperança. Ele era um homem condenado. Um homem morto! Como, então, é possível Natã lhe dizer que ele não morrerá? Repare que a promessa de que Davi não morrerá vem após a afirmação: “Também o SENHOR te perdoou o teu pecado.” A “salvação” de Davi da condenação divina, assim como a nossa, não vem pela guarda da lei, mas pela graça. E a razão para seu pecado ser perdoado é porque o Senhor o retirou.
Esse “retirar” do pecado não é algum truque de mágica, onde Deus simplesmente pega o pecado e o faz desaparecer. O pecado foi “retirado”. Creio que a declaração de Natã só pode ter sido feita com base na obra certa e segura de Cristo na cruz do Calvário, séculos mais tarde. Com base na obra de Cristo Davi é perdoado. Seus pecados foram suportados por nosso Senhor e, assim, a justiça de Deus foi satisfeita.
A expressão “foi retirado”, no verso 13 da versão NASB, pode ser literalmente interpretada como “fez morrer o seu pecado”, como se pode ver na nota à margem do texto. Esse é um verbo comum e, muitas vezes, é usado no sentido de passar por ou passar sobre, como na época em que os israelitas atravessaram o Mar Vermelho. Aqui, no texto original, o termo está no modo causativo (Hifil), de forma que pode ser traduzido como “fez passar sobre ou fez morrer”. Tanto a nova versão King James quanto sua versão original traduzem o termo como “eliminado”. Creio que a palavra hebraica encontrada em nosso texto é utilizada em sentido aproximado em mais dois outros textos da Bíblia. (Nota: em todas as versões em português o texto é traduzido como “o Senhor perdoou o teu pecado”.)
“Então, se irou muito Abner por causa das palavras de Isbosete e disse: Sou eu cabeça de cão para Judá? Ainda hoje faço beneficência à casa de Saul, teu pai, a seus irmãos e a seus amigos e te não entreguei nas mãos de Davi? Contudo, me queres, hoje, culpar por causa desta mulher. Assim faça Deus segundo lhe parecer a Abner, se, como jurou o SENHOR a Davi, não fizer eu, transferindo o reino da casa de Saul e estabelecendo o trono de Davi sobre Israel e sobre Judá, desde Dã até Berseba.” (II Samuel 3:8-10)
“Tirou o rei o seu anel, que tinha tomado a Hamã, e o deu a Mordecai. E Ester pôs a Mordecai por superintendente da casa de Hamã.” (Ester 8:2)
Nos dois casos acima, o mesmo termo hebraico encontrado em nosso texto é usado para descrever a “transferência” de alguma coisa de uma pessoa para outra.6 O reino de Israel foi transferido de Saul para Davi (II Samuel 3:8-10). O anel do rei, dando a um subordinado autoridade para agir em seu nome, foi tomado de Hamã e dado a Mordecai. O anel foi transferido de uma pessoa para outra. O pecado de Davi foi perdoado e ele recebeu a garantia de que não morreria porque Deus havia transferido os seus pecados. Essa transferência ocorreu séculos depois, quando o “filho” de Davi, o Senhor Jesus Cristo, morreu na cruz do Calvário. Os pecados de Davi foram suportados por nosso Senhor, e Ele pagou a pena pelo que Davi tinha feito. Davi não iria morrer por causa do seu pecado porque Cristo estava destinado a morrer, pagando a pena por eles.
Natã fala dessa transferência como se fosse um acontecimento passado. Os profetas do Antigo Testamento muitas vezes usavam o verbo no passado para falar de um acontecimento futuro. Isso, ao que parece, servia para enfatizar a realização da profecia. Quando Deus promete fazer alguma coisa é como se disséssemos: “está praticamente feito”. Quando os profetas falavam das promessas de Deus para o futuro, quase sempre o faziam empregando o verbo no passado. Mesmo séculos antes do nascimento e da morte de Cristo, os homens foram perdoados com base nesse acontecimento. Davi foi perdoado porque Cristo morreu por seus pecados na cruz do Calvário. Essa é a única base para o perdão. Davi corretamente confessou que havia pecado contra Deus e Natã lhe assegurou que seu pecado contra Deus fora perdoado por Ele, por meio da morte sacrificial e substitutiva do Filho de Deus, Jesus Cristo. Essa sempre foi a única base para o perdão dos pecados.
Vamos concluir esta mensagem com vários princípios e áreas de aplicação.
1) Arrependimento é uma obra realizada por Deus que emprega o Seu Espírito, a Sua Palavra e o Seu povo, na medida em que são utilizados em resposta ao pecado. Não temos o poder de mudar os corações, só Deus tem. Nesse sentido, arrependimento é uma obra de Deus. No entanto, Deus prefere utilizar certos meios para alcançar Seus objetivos, e assim é com o arrependimento. Deus usa gente do Seu povo, como fez com Natã, para confrontar as pessoas com seus pecados. Ele usa a Sua Palavra e o Seu Espírito para convencer os pecadores de seus pecados. Hoje, da mesma forma que no passado, é mais fácil falar com os outros sobre o pecado de alguém do que falar com a própria pessoa. A Bíblia nos dá instruções muito claras quanto a nossa obrigação para com um irmão ou irmã que parece ter caído em pecado (ver Mateus 7:1-5; 18:15-20: I Coríntios 5:1-13: Gálatas 6:1-5; I Tessalonicenses 5:14; II Tessalonicenses 3:14-15; II Timóteo 2:23-26; Tito 3:9-11 e Tiago 5:19-20). Ninguém realmente quer ser um “Natã” para um “Davi”, mas este é o meio normal que Deus designou para lidar com o pecado, ou para encorajar o pecador a se arrepender. O ponto alto da amizade de Natã com Davi é quando ele lhe mostra o seu pecado, preparando o terreno para o seu arrependimento.
2) Arrependimento é o meio divinamente designado para obter o perdão dos pecados e desfrutar da comunhão com Deus. Pelos salmos de Davi fica claro que, quando ele pecou e tentou esconder seu pecado, houve uma ruptura no seu relacionamento com Deus. Ele perdeu a alegria da salvação e a certeza da presença de Deus em sua vida. Essas coisas voltaram quando ele se arrependeu. Arrependimento é uma expressão de fé e, por isso, é o meio designado por Deus para o pecador perdido receber o perdão de seus pecados e ter segurança da vida eterna, em comunhão com Ele.
“Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizia: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 3:1-2)
“Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 4:17)
“Admirou-se da incredulidade deles. Contudo, percorria as aldeias circunvizinhas, a ensinar. Chamou Jesus os doze e passou a enviá-los de dois a dois... Então, saindo eles, pregavam ao povo que se arrependesse” (Marcos 6-7a, 12).
“Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e lhes disse: Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém.” (Lucas 24:45-47)
“Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.” (Atos 2:38)
“E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida.” (Atos 11:18)
“E, quando se encontraram com ele, disse-lhes: Vós bem sabeis como foi que me conduzi entre vós em todo o tempo, desde o primeiro dia em que entrei na Ásia, servindo ao Senhor com toda a humildade, lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram, jamais deixando de vos anunciar coisa alguma proveitosa e de vo-la ensinar publicamente e também de casa em casa, testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus [Cristo].” (Atos 20:18-21)
Arrependimento é também um requisito para que os pecadores abandonem seus pecados e voltem à comunhão com Deus, quebrada pelo pecado. Por isso, Paulo procurou conduzir os santos de Corinto ao arrependimento:
“Agora, me alegro não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis. Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte.” (II Coríntios 7:9-10)
No livro de Apocalipse, as cartas às sete igrejas da Ásia contêm um chamado ao arrependimento:
“Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas.” (Apocalipse 2:5)
“Portanto, arrepende-te; e, se não, venho a ti sem demora e contra eles pelejarei com a espada da minha boca.” (Apocalipse 2:16)
“Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido, guarda-o e arrepende-te. Porquanto, se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti.” (Apocalipse 3:3)
“Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te.” (Apocalipse 3:19)
Arrependimento não é uma palavra muito “legal” e, com certeza, também não é uma prática muito popular. Ele começa, creio eu, com um entendimento renovado da santidade de Deus e, dessa forma, com a compreensão da enormidade do nosso pecado. Isso leva a um modo inteiramente novo de encarar a vida, desta vez com os olhos de Deus, por meio das Sagradas Escrituras. O pecado se torna repulsivo, de forma que decidimos não repeti-lo. O resultado é um senso renovado da presença de Deus, uma nova alegria na nossa salvação e um desejo de dissuadir outras pessoas de pecar.
Em minha opinião, uma das características do genuíno avivamento é o arrependimento verdadeiro. Relacionamentos que pareciam irreversivelmente quebrados de repente são reconciliados. Casamentos mortos e moribundos são revitalizados. O amor perdido é novamente encontrado. O cativeiro que leva a um comportamento compulsivo e a um ciclo interminável de pecado é quebrado. É triste ver que, nesta época de tanta terapia, usemos termos psicológicos para descrever problemas espirituais para os quais a Bíblia tem uma definição e uma prescrição. Chegamos a aceitar a crença de que muitos problemas espirituais não podem ser revertidos ou radicalmente solucionados, mas que são necessários anos de terapia e mudança gradual, se houver. Esta não é a maneira como a Bíblia descreve a nossa reação ao pecado por meio do arrependimento. Arrependimento verdadeiro pode trazer, e realmente traz, mudanças radicais. Antes de tudo, precisamos nos voltar para a Palavra de Deus, precisamos chamar o pecado por seu nome bíblico e precisamos exortar as pessoas a reagir de forma bíblica: com arrependimento e fé.
Quando ocorre um verdadeiro arrependimento, creio que ele é óbvio. Nosso texto não apenas descreve o verdadeiro arrependimento em relação ao nosso pecado, ele o descreve de forma a sermos capazes de reconhecê-lo nos outros. E, quando há arrependimento, temos a obrigação de perdoar e receber esse indivíduo de volta à comunhão. Muitas igrejas não exercem a disciplina e não chamam seus membros ao arrependimento. Mas aquelas que o fazem, também precisam estar prontas e dispostas a reconhecer o verdadeiro arrependimento, e a receber o pecador arrependido de volta à comunhão.
Não quero ser como um dos amigos de Jó, exortando ao arrependimento quando isso não é necessário. Nem toda provação ou tribulação é decorrente de pecado. Há ocasiões, porém, em que as nossas provações são graciosamente dadas por Deus para chamar a nossa atenção para o pecado e para nos exortar ao arrependimento. Nessas ocasiões, que sejamos rápidos para assumir a responsabilidade pelo nosso pecado, para confessá-lo e abandoná-lo. Vamos procurar ver novamente as coisas de forma clara e, uma vez mais, desfrutar das bênçãos da salvação e da comunhão com Deus.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 A comida era tão boa que eu não ousava dizer à minha esposa o que tinha de almoço. E mesmo assim, um dos internos reclamava da forma como seu bife fora feito.
2 É muito importante notar aqui que Saul não menciona o rei Agague. Talvez ele tenha sido pressionado pelo povo para ficar com alguns dos despojos, mas quem iria lhe pedir para poupar a vida de Agague? Não faço idea. Agague era um troféu pessoal para Saul, a quem ele planejava manter vivo para servir a seus próprios interesses. Por isso, quando se justifica com Samuel, ele não menciona Agague, pois não havia desculpa razoável para mantê-lo vivo.
3 José já havia percebido que Deus o elevara ao poder, por isso, ele compreendia que Deus usara para o bem todas as coisas ruins feitas pelos irmãos contra ele (veja Gênesis 41:51-52; 50:20). Quando viu os irmãos, ele se lembrou dos sonhos e entendeu que sua posição lhe fora dada para que pudesse lidar com eles com autoridade (Gênesis 42:9).
4 Aliás, textos posteriores das Escrituras lançam dúvidas sobre a sinceridade do arrependimento de Simei. Davi, contudo, parece levar sua confissão ao pé da letra.
5 D. Stuart Briscoe, “Um Coração para Deus” (Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1984), p. 141.
6 Em Ester 8:10, a forma verbal é exatamente a mesma de nosso texto. Em II Samuel 3:10, o mesmo verbo é empregado como hifil no infinitivo. Minha opinião é que o mesmo verbo causativo é utilizado nos dois textos onde a ideia de “transferência” está implícita pelo contexto.
Há algo realmente trágico na morte de uma criança. Minha esposa e eu, como tantos outros pais, passamos pelo trauma de acordar e encontrar nosso filho morto no berço. Esse mal é conhecido como SMSI ou Síndrome da Morte Súbita Infantil. Num momento a criança está saudável e feliz, noutro, ela se foi. É realmente um choque. Nós, no entanto, sentimos uma paz inexplicável em meio à tristeza. Vários anos depois, a questão de para onde vão os bebês quando morrem foi levantada na aula de teologia no seminário. Lembro-me da discussão acadêmica, dos versículos bíblicos citados e das conclusões alcançadas. Finalmente, levantei a mão e disse:
Para minha esposa e eu, essa não é uma questão teórica. Nós perdemos um filho ainda bebê. Sabemos como é. Também conhecemos todos os textos bíblicos citados e estamos familiarizados com as diferentes opiniões sobre o assunto. Entretanto, quando nosso filho se foi, nós sentimos uma paz e uma confiança que vão muito além daquilo que estamos discutindo. Sabíamos que o Deus a quem confiamos nossa alma é bom e perfeito, e que Ele faria o que fosse melhor com nosso filho. Não foram os argumentos discutidos hoje que nos deram paz, foi o próprio Deus, e na Sua paz nós descansamos.
O texto desta lição é um dos mais usados para consolar pais que perdem um filho ainda pequeno. Gostaria de dizer que minha opinião sobre esse assunto, sem dúvida, é moldada pela minha experiência. Devo, no entanto, adverti-los que não falo com muita objetividade, mas da perspectiva de alguém que vivenciou a perda de um filho. Sei que nem todos em nossa igreja aceitam minhas conclusões sobre o destino das crianças quando morrem, talvez nem mesmo os presbíteros.
Como alguém que perdeu um filho ainda na infância, fico satisfeito com as conclusões a que cheguei. Devo salientar que elas foram resultado de inferências e processos lógicos. Nem sempre foram baseadas em afirmações claras e taxativas. Como tal, não devem ser defendidas tão categoricamente quanto opiniões que possuem sustentação bíblica clara, direta e repetitiva. Como tal, podem e devem ser rejeitadas por aqueles que chegam a conclusões diferentes, também fundamentadas em lógica e inferência. Em uma análise final, todos nós precisamos admitir que nossas conclusões sobre esse assunto não são tão indiscutíveis quanto outras verdades claramente afirmadas nas Escrituras. Enfim, precisamos confiar no Deus a quem entregamos nossa alma e nosso destino eterno. Como disse Abraão há muito tempo: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” (Gênesis 18:25).
Tendo dito isso, podemos observar que, de acordo com nosso texto, Davi sentiu uma paz incrível diante da morte do seu primeiro filho com Bate-Seba, uma paz que intrigou e surpreendeu aqueles que testemunharam os fatos. Ao examinar esta passagem, vamos atentar para a resposta dada por Davi à pergunta feita por seus servos. Vamos procurar aprender de seus lábios a razão pela qual ele conseguiu louvar e adorar Deus quando perdeu o filho.
Depois de se tornar rei de Israel, as coisas iam muito bem para Davi; talvez bem até demais. Ele parecia ter o toque de Midas: tudo em que tocava se transformava em ouro. Deus lhe dera êxito em todos os seus empreendimentos. No entanto, como o Israel de antigamente, momentaneamente Davi pareceu se esquecer de que seu sucesso era consequência da graça de Deus, não fruto de seus próprios esforços. O primeiro vislumbre de seu excesso de confiança se encontra em II Samuel 7, quando ele expressa o desejo de construir uma casa para Deus. Em resposta, Deus o relembra de que seus feitos são manifestações da Sua graça (7:8-9). Prosseguindo, Deus afirma que há ainda muitas coisas boas reservadas para Israel, as quais também serão obras Suas (7:10-11). Tendo gentilmente censurado Davi por supor que Ele realmente precise de uma “casa”, Deus promete edificar-lhe uma “casa” muito melhor, uma que será uma dinastia eterna:
“Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa. Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre.” (II Samuel 7:11b-16).
Nos capítulos seguintes, porém, a arrogância de Davi parece aumentar. Isso fica bem claro em II Samuel 11. Israel está em guerra com os filhos de Amom e, na primavera (época em que os reis saíam à guerra), Davi manda seu exército sitiar Rabá, capital amonita, onde os últimos inimigos buscam refúgio. Ele não sai à batalha junto com seu exército, mas permanece em Jerusalém, entregando-se à boa vida enquanto os soldados acampam ao ar livre. Ele se levanta perto da hora em que os soldados (e outras pessoas) costumam ir para a cama. Ao perambular pelo terraço do palácio, sem querer ele vê algo que não deve: uma jovem se banhando; provavelmente, a lavagem cerimonial feita em obediência à lei. A moça é muito bonita e Davi decide que a quer. Ele manda mensageiros para inquirir sobre sua identidade. A resposta — que ela é Bate-Seba, esposa de Urias, o heteu — deveria colocar um ponto final na questão, mas Davi não tem intenção de ser privado de qualquer coisa que deseje. Ele manda buscá-la e se deita com ela.
Para Davi, tudo termina depois daquela noite de autoindulgência. Ele não quer outra esposa e, aparentemente, nem mesmo um caso, só uma noite de prazer. Mas Deus tem outros planos. Bate-Seba concebe e manda dizer-lhe que está grávida. Quando fracassam as tentativas de Davi para levar Urias (e o povo) a pensar que ele (Urias) é o pai da criança, Davi, com o auxílio de Joabe, o envia para a batalha com o fim de ser morto. Após Bate-Seba prantear a morte do marido, Davi a leva para casa e a toma por esposa. Agora sim, ele espera que tudo esteja acabado.
Tudo isso, no entanto, desagrada a Deus, e Ele não dará descanso ou paz a Davi até que este reconheça seu pecado e se arrependa. Depois de algum tempo de aflição (ver Salmo 32:3-4), Deus envia Natã com uma história, uma história que deixa Davi profundamente transtornado. Ele fica furioso. Ele diz com veemência que o homem rico que roubou a cordeirinha do homem pobre deve morrer! Natã interrompe seu discurso com as seguintes palavras: “Tu és o homem!” (II Samuel 12:7). Quando ouve Natã falando do seu pecado, Davi desmorona e declara: “Pequei contra o SENHOR” (II Samuel 12:13).
A resposta de Natã à confissão de Davi é ao mesmo tempo consoladora e perturbadora. Embora Davi mereça morrer por causa dos seus pecados, ele não morrerá, porque Deus o perdoou (12:13). Que alívio essas palavras devem ter causado! Mas o que se segue transpassa seu coração: o filho, fruto do seu pecado, vai morrer. É a reação de Davi à morte desse filho que iremos enfocar nesta lição.
Antes de voltarmos a atenção para a história propriamente dita, gostaria de fazer algumas observações que podem nos auxiliar na compreensão do texto.
Este é o primeiro de uma série de acontecimentos dolorosos na vida de Davi resultantes do pecado relacionado a Urias e Bate-Seba. Em nosso texto, Davi irá sofrer a perda da criança concebida pela união pecaminosa com a esposa de Urias, Bate-Seba. Em seguida, sua filha será violentada por um de seus filhos. Em retaliação ao pecado de Amnom, ele será assassinado por Absalão. Depois, Absalão se rebelará contra o próprio pai e, durante algum tempo, assumirá o trono. Nesse meio tempo, ele também irá para a cama com algumas das concubinas de Davi, diante de todo Israel e no terraço do palácio de onde Davi viu Bate-Seba pela primeira vez. Todas essas coisas são, direta ou indiretamente, consequências do pecado de Davi com Bate-Seba.
A trágica morte do filho de Davi é consequência do seu pecado, mas não é a pena que ele merece. A pena para adultério e assassinato era a morte, tanto para um quanto para outro. Davi merecia morrer pelas duas coisas: pelo adultério e pelo assassinato. No entanto, Natã deixa bem claro que o pecado de Davi foi “perdoado”. A morte da criança é uma consequência dolorosa do seu pecado, mas, em si mesma, não é a sua punição. Sua punição foi retirada, foi paga pelo Senhor Jesus Cristo.
O jejum observado por Davi é coisa séria. No Velho Testamento hebraico havia uma forma singular de dar ênfase a alguma coisa. O hebraico antigo repetia a palavra como ênfase. Assim, quando Deus disse a Adão que ele “certamente morreria” (Gênesis 2:17), Ele disse algo como: “você vai morrer a morte”. Por isso, a Tradução Literal de Young interpreta: “E da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres — a morte tu morrerás.”
Em nosso texto, Deus usa esse método de repetição para enfatizar a certeza da morte da criança:
“Mas, posto que com isto deste motivo a que blasfemassem os inimigos do SENHOR, também o filho que te nasceu morrerá.” (II Samuel 12:14)
A mesma repetição é encontrada no verso 16: “Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra.”
Somente nas notas marginais da Versão King James é que vemos a tradução literal “jejuou um jejum”. O caso é que o jejum de Davi não foi feito por acaso. Foi algo que ele fez com muita seriedade, pois era uma questão de vida ou morte.
Outra vez, Bate-Seba não é importante neste texto, mas sim Davi. Quem cometeu o adultério foi Davi, enquanto (em minha interpretação da história) Bate-Seba foi apenas uma vítima. É por isso que só ele é importante no texto que descreve seu jejum e sua oração, suplicando a Deus pela vida da criança.
Neste texto, o autor muda a forma de se referir a Bate-Seba. No verso 15, ele fala de Bate-Seba, a mãe da criança que morreu, como a “viúva de Urias” (“a mulher de Urias”, na versão ARA). No verso 24, há uma mudança significativa. Nele, o autor se refere à mesma mulher, a mãe do segundo filho de Davi, Salomão, como “sua esposa Bate-Seba” (“Bate-Seba, sua mulher”, versão ARC). Deus não só aceita este segundo filho, como também aceita Bate-Seba como esposa de Davi.
Os acontecimentos finais do capítulo 12 nos dão uma sensação de desfecho. Devemos entender este pecado na vida de Davi como exceção, não a regra:
“Porquanto Davi fez o que era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua vida, senão no caso de Urias, o heteu.” (I Reis 15:5)
Portanto, os capítulos 11 e 12 de II Samuel são quase um parêntese, quando retratam esse período incomum da vida de Davi. Essa foi uma época em que ele não foi um “homem segundo o coração de Deus”. Assim, o início do capítulo 11 descreve a saída de Israel para a guerra, enquanto Davi fica em casa (11:1). Os versos 26 a 31 do capítulo 12 registram como Davi se apresenta na guerra e, quando ela é vencida, como Israel retorna a Jerusalém. Há aqui uma sensação de desfecho, de finalização, a qual creio que o autor pretendia que sentíssemos. Além disso, descobrimos que o texto também registra a morte do primeiro filho de Bate-Seba, seguida do relato do nascimento de Salomão, o qual reinaria em lugar de Davi, seu pai.
Há muitas maneiras de abordar esta passagem. Poderíamos dissecá-la, dando ênfase aos nuances de cada palavra e de cada frase. Prefiro não fazer isso, pois já apontei os detalhes que considero importantes. Assim, abordarei o texto mais ou menos da forma como Michael Landon, antigo ator e diretor de televisão, teria feito. É provável que muitos já tenham assistido (pelo menos os mais velhos) alguns trabalhos dirigidos por Michael. Ele tinha um jeito especial de captar a emoção do momento e retratá-la com dramaticidade. Lembro-me de um episódio em que ele ficou sabendo, para surpresa sua, que uma mulher ficara cega. Quando ele mostrou ao público o quanto a condição da mulher o abalara, até eu tive de enxugar os olhos. Nosso texto tem alguns momentos muito emocionantes, os quais eu creio que Michael Landon teria gostado de enfatizar. Por isso, tentarei capturar as emoções de Davi, e daqueles próximos a ele, enquanto ele lidava com a morte do filho, fruto do seu pecado.
“Disse Natã a Davi: Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás. Mas, posto que com isto deste motivo a que blasfemassem os inimigos do SENHOR, também o filho que te nasceu morrerá. Então, Natã foi para sua casa. E o SENHOR feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente.”
Davi se condenou com as suas próprias palavras ao reagir à história de Natã sobre o roubo da cordeirinha: “Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto” (12:5). A lei certamente não previa tal pena para um ladrão, mas condenava adúlteros e assassinos. De acordo com a Lei, Davi deveria ser morto por causa dos seus pecados. No entanto, com base na graça divina advinda da futura morte de Cristo, ele foi perdoado e teve a garantia de que não morreria. As palavras de Natã devem ter sido um grande alívio para ele, pois ele sabia que não merecia outra coisa além da ira de Deus. Sua sensação de alívio, contudo, foi muito breve, pois Natã ainda não terminara o que tinha a dizer:
“Mas, posto que com isto deste motivo a que blasfemassem os inimigos do SENHOR, também o filho que te nasceu morrerá.” (verso 14)
Natã garantiu a Davi que a punição merecida fora removida (ou seja, transferida para Cristo). Mas Deus não podia permitir que Seu nome fosse blasfemado e, com isso, parecesse que Ele não se importava com o pecado de Davi. A Bíblia nos ensina, desde o princípio, que o salário do pecado é a morte (ver Gênesis 2:17; 4:8, 23: 5:1 e ss; Romanos 6:23). Para Deus, deixar os pecados de Davi sem nenhuma consequência dolorosa seria dar ocasião aos ímpios para concluir que Ele não odeia realmente o pecado, nem toma alguma atitude quando pecamos.
A lei de Moisés foi dada para diferenciar Israel das outras nações. Foi dada para que eles refletissem o caráter de Deus no mundo. Quando Davi pecou, ele violou a lei de Deus, além de desonrá-lO. Essa hipocrisia era observada pelas outras nações e resultava em desonra a Deus. Séculos mais tarde, Paulo faria a mesma acusação contra os judeus:
“Tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Pois, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa.” (Romanos 2:21-24)
Em outro lugar, o apóstolo ensina a Timóteo que os presbíteros — líderes da igreja cujas vidas estão sob o escrutínio público — que persistem no pecado devem ser corrigidos publicamente, a fim de que todos aprendam (I Timóteo 5:19-20). Deus se preocupa muito com Sua reputação. Ele trabalha de forma a instruir não só aqueles que observam, mas também os anjos (ver Êxodo 32:9-14; 34:10; Efésios 3:8-10).
Deus não podia ignorar o pecado de Davi, pois a desobediência deste a Seus mandamentos era de conhecimento público. Assim como suas vitórias e seus triunfos, os pecados de Davi também deviam ser bem conhecidos entre os gentios. Ao tirar a vida da criança concebida em pecado, Deus Se manifestou para aqueles que estavam observando. Talvez eles pensassem que, se Deus não ligava para o pecado do Seu povo, também não ligaria para os deles. Assim, zombariam Dele com a convicção de que poderiam continuar pecando.
Anos atrás, dei aula para a sexta série. Não era muito frequente, mas, de vez em quando, algum dos alunos quebrava alguma regra de forma ostensiva e era preciso levá-lo para fora e aplicar-lhe um castigo. Minha classe (e todas as das proximidades) sabia o que ia acontecer quando eu saía da aula com alguém1. Entretanto, quando o aluno era encaminhado para o gabinete do Diretor, quase sempre a coisa era diferente. O Diretor lhe passava um pequeno sermão e o cara-de-pau voltava pra classe com um enorme sorriso no rosto. Tanto ele quanto os outros sabiam que ele tinha se safado, apesar da sua conduta. Deus não podia permitir que Davi saísse impune desse pecado monumental sem tomar alguma atitude, algo que todos vissem. A morte da criança era para disciplinar Davi e calar aqueles que quisessem usar seu pecado como desculpa para blasfemar contra Deus; era para proclamar e exaltar a glória de Deus.
“E o SENHOR feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente. Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra. Então, os anciãos da sua casa se achegaram a ele, para o levantar da terra; porém ele não quis e não comeu com eles. Ao sétimo dia, morreu a criança; e temiam os servos de Davi informá-lo de que a criança era morta, porque diziam: Eis que, estando a criança ainda viva, lhe falávamos, porém não dava ouvidos à nossa voz; como, pois, lhe diremos que a criança é morta? Porque mais se afligirá. Viu, porém, Davi que seus servos cochichavam uns com os outros e entendeu que a criança era morta, pelo que disse aos seus servos: É morta a criança? Eles responderam: Morreu. Então, Davi se levantou da terra; lavou-se, ungiu-se, mudou de vestes, entrou na Casa do SENHOR e adorou; depois, veio para sua casa e pediu pão; puseram-no diante dele, e ele comeu. Disseram-lhe seus servos: Que é isto que fizeste? Pela criança viva jejuaste e choraste; porém, depois que ela morreu, te levantaste e comeste pão. Respondeu ele: Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o SENHOR se compadecerá de mim, e continuará viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim.”
Após Natã deixar Davi, Deus fere o filho deste com a “mulher de Urias”. Não sabemos qual foi a doença, mas sabemos que a criança morre depois de sete dias.2 Davi lamentou a perda de Saul e de Jônatas, mortos em batalha (II Samuel 1), a morte de Abner por Joabe (II Samuel 3) e até mesmo a morte de Naás, o rei amonita (II Samuel 10). Aqui, no entanto, seu lamento não é pela morte da criança (pois ela ainda não morreu), mas de arrependimento. Ele lamenta em sinal de arrependimento, enquanto suplica a Deus pela vida do menino.
É certo Davi suplicar pela criança, quando Deus já havia dito que iria tirar-lhe a vida? Creio que a resposta é “Sim!”. Davi sabia que algumas profecias eram advertências sobre o julgamento divino em caso de não haver arrependimento. Às vezes, Deus anunciava um julgamento que só ocorreria se as pessoas não se arrependessem. A esperança pela compaixão divina em resposta ao arrependimento humano está registrada em Jeremias 18:5-8:
“Então, veio a mim a palavra do SENHOR: Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? — diz o SENHOR; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe.” (Jeremias 18:5-8)
Essa esperança de perdão foi confirmada na antiga Nínive (para desgosto de Jonas, ver Jonas 3 e 4), e também em Manassés (II Crônicas 33:10-13).
Além disso, Davi talvez tenha entendido a questão do ponto de vista da aliança davídica, que Deus fizera com ele pouco tempo antes:
“Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti.” (II Samuel 7:12-15)
Será que ele sentia ser essa criança a herdeira do trono? Se foi isso, certamente ele tinha razão em esperar que Deus a poupasse.
Ele tinha razão ao presumir que a vida da criança estava nas mãos divinas, e o melhor a fazer era suplicar ao Senhor para lhe poupar a vida. Davi acreditava na soberania de Deus, por isso, descansou nEle. Suas orações não foram apenas expressão do seu arrependimento, mas exercício da sua fé. Crer na soberania de Deus não o impediu de agir (jejuar e orar); sua fé o levou a tomar uma atitude.
Apesar da sua tristeza, da sua sinceridade e da sua persistência em suplicar pela vida da criança, Deus negou-lhe o pedido. O menino morreu. Davi não devia estar com ele quando isso ocorreu, senão teria visto por si mesmo. Ele percebeu os servos conversando em voz baixa, talvez olhando furtivamente em sua direção. Eles estavam receosos de lhe contar, pois temiam que talvez ele pudesse se afligir. O texto não é totalmente claro sobre a quem Davi poderia afligir. Note que, pelo uso de itálico, a NAB (New American Bible — Nova Bíblia Norte-Americana) indica que o pronome se foi acrescentado pelos tradutores. Não tenho certeza de que os servos temessem somente pelo bem estar de Davi. Talvez eles também temessem por si mesmos. Creio que a Nova Versão Internacional transmite melhor a ambiguidade do texto original:
“Sete dias depois a criança morreu. Os conselheiros de Davi ficaram com medo de dizer-lhe que a criança estava morta, e comentaram: “Enquanto a criança ainda estava viva, falamos com ele, e ele não quis escutar-nos.” Como vamos dizer-lhe que a criança morreu? Ele poderá cometer alguma loucura!” (II Samuel 12:18, NVI)3
Resumindo, o que ninguém queria era ser o portador das más notícias. Afinal, se Davi levou a doença da criança tão a sério, não levaria a notícia da sua morte ainda mais?4 Eles nem precisaram dizer nada, pois ele, instintivamente, soube que a criança se fora. As palavras de Natã foram cumpridas, como Davi pôde observar no rosto dos servos. Quando perguntou se a criança estava morta, eles não conseguiram negar. Disseram que sim.
O que acontece a partir daí é que deixa os servos de Davi perplexos. Enquanto a criança estava doente, eles não conseguiram levantá-lo do chão, nem fazê-lo comer alguma coisa. Por isso, presumiram que a situação ficaria ainda pior quando soubesse da morte do filho. Em vez disso, Davi se levantou, lavou-se, ungiu-se, mudou suas vestes, foi à casa do Senhor e adorou. Depois, voltou para casa e pediu comida. Quando a colocaram diante dele, ele comeu.
Os servos ficaram surpresos e intrigados. Um texto no Novo Testamento talvez nos ajude a explicar o que era de se esperar:
“Então os discípulos de João Batista chegaram perto de Jesus e perguntaram: — Por que é que nós e os fariseus jejuamos muitas vezes, mas os discípulos do senhor não jejuam? Jesus respondeu: — Vocês acham que os convidados de um casamento podem estar tristes enquanto o noivo está com eles? Claro que não! Mas chegará o tempo em que o noivo será tirado do meio deles; então sim eles vão jejuar!” (Mateus 9:14-15, NTLH)
Davi devia chorar após a morte da criança. Do ponto de vista dos servos, ele se entristeceu tanto enquanto ela ainda estava viva, que eles temeram pelo que poderia acontecer quando lhe dissessem que estava morta. Finalmente, eles reúnem coragem e lhe perguntam como ele conseguiu reagir com tanta calma ao saber da sua morte. Ele então lhes dá a razão da sua mudança de atitude. Creio que a reação incomum de Davi pode ser explicada desta forma:
A morte da criança não foi surpresa para Davi, pois ele já tinha sido advertido por Natã. Por intermédio do profeta, Deus o informou que seu filho, fruto da sua união pecaminosa com Bate-Seba, “a viúva de Urias”, morreria. Essa morte foi a vontade revelada de Deus. O grande pesar de Davi foi para expressar seu arrependimento diante dessa vontade. Sua atitude indica que ele aceitou a morte da criança como a vontade do Senhor.
Natã já tinha explicado a Davi o motivo para a morte da criança. A finalidade dessa morte não era puni-lo. A punição apropriada para seus pecados, de acordo com a lei, era a morte. Natã não lhe comunicou a redução da pena, mas o completo perdão, pois a culpa e a punição tinham sido “removidas” (12:13). O propósito para a morte da criança foi didático. Teve a intenção de calar qualquer blasfêmia por parte dos “inimigos de Deus”. A fim de que ninguém pudesse concluir erroneamente que o Deus de Israel tinha ignorado o pecado de Davi ao quebrar Sua lei, o Senhor mostrou claramente que Ele não iria tolerar esse pecado, mesmo tendo sido cometido por um homem segundo o Seu próprio coração. A morte do filho de Davi foi uma lição direta para os inimigos de Deus.
A tristeza de Davi durante a doença da criança foi um ato de arrependimento, não de pesar pela perda de um ente querido:
“Respondeu ele: Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o SENHOR se compadecerá de mim, e continuará viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim.”
A morte da criança foi aceita como a resposta final de Deus às petições de Davi por sua vida. Essa é a essência da resposta de Davi à pergunta feita pelos servos. Enquanto a criança estava viva, ele jejuou, chorou e orou. Mas agora ela está morta. Davi fez tudo o que podia. Deus lhe deu uma resposta clara e definitiva: “Não”. Davi vê a morte como o momento de cessar de fazer o que era adequado só em vida. Alguém já disse: “Onde há vida, há esperança.” Quanto à esperança da cura, Deus mostrou a Davi que era hora de parar de tentar persuadi-lO a não tirar a vida da criança.
Vejo um exemplo parecido da aceitação da morte como uma questão encerrada no capítulo 13, quando Davi encontra certo conforto no fato de seu filho Amnom estar morto:
“Então, o rei Davi cessou de perseguir a Absalão, porque já se tinha consolado acerca de Amnom, que era morto.” (II Samuel 13:39)
O consolo de Davi, até certo ponto, foi encontrado na morte de Amnom. Em sua cabeça, era como se Deus tivesse encerrado um capítulo. A morte de seu filho com Bate-Seba foi a resposta final de Deus a seu pedido pela vida da criança.
Davi é consolado pelo fato de que aquilo que ele pede (e lhe é negado) é graça. A graça de Deus, pela sua própria natureza, é graça soberana. Frequentemente ela é definida como “favor imerecido”. Deixando de lado por um momento essa definição simples, vejamos como Davi pôde ser consolado pelo fato de que aquilo que ele pediu — e é foi negado — é uma questão de graça.
Já ressaltei as palavras de Jeremias 18, onde o arrependimento é encorajado e onde Deus deixa Suas opções em aberto, no que diz respeito ao cancelamento (ou retardamento) do julgamento ameaçado. Há uma passagem bem parecida no livro de Joel, onde o arrependimento é incentivado e a compaixão divina é dita como uma possibilidade:
“Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto. Rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal. Quem sabe se não se voltará, e se arrependerá, e deixará após si uma bênção, uma oferta de manjares e libação para o SENHOR, vosso Deus?” (Joel 2:12-14, ênfase do autor).
Tanto em Jeremias como nesta passagem de Joel, os pecadores são encorajados a se arrepender exatamente da mesma forma como vemos Davi se arrependendo e suplicando a Deus em nosso texto. O apelo do pecador penitente — para Deus Se comparecer e reter Seu juízo — é fundamentado na Sua graça, não nos méritos do pecador. E justamente por ser uma questão de graça é que não nos atrevemos a presumir que Deus tenha de fazê-lo. Portanto, em Jeremias e Joel5 somos incentivados a esperar pela possibilidade da compaixão divina, mas não presumimos que Deus realmente vá Se compadecer.
Podemos ver um exemplo do tipo certo de pensamento no livro de Daniel. Seus três amigos, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, recusaram-se a se ajoelhar diante da imagem do rei Nabucodonosor. O rei ficou furioso, mas lhes deu uma segunda chance. Se eles se curvassem na oportunidade seguinte, não seriam punidos; mas, se se recusassem, seriam lançados na fornalha de fogo ardente. Esta foi a resposta dos três a tal oferta:
“Responderam Sadraque, Mesaque e Abede-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder. Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste.” (Daniel 3:16-18)
Os três sabiam que estavam obedecendo a Deus e não aos homens. Eles sabiam que Deus podia livrá-los da fornalha ardente. Eles não se atreveram a presumir que Ele o faria, por isso, responderam a Nabucodonosor de forma a deixar a opção em aberto. Deus poderia livrá-los, pois era capaz disso. No entanto, se Ele o faria ou não, eles não ousavam pressupor. De qualquer forma, eles não fariam o que o rei exigia, pois antes de mais nada, estavam comprometidos a servir a Deus.
Davi sabia que Deus poderia salvar seu filho. Ele também sabia que se Deus o fizesse, seria somente pela Sua graça, não com base em algum mérito. Se Deus tivesse poupado a vida do seu filho, Davi teria ficado muito feliz. Mas, quando a morte da criança deixou claro que Deus tinha Se recusado a poupar sua vida, Davi ainda pôde sentir-se consolado, pois sabia que a graça é sempre concedida soberanamente. A decisão de Deus não é estabelecida por méritos humanos, sendo um ato soberano, não determinado por alguma força externa, mas pela livre escolha do próprio Deus. Esse é o ponto defendido por Paulo quando ele fala da salvação como consequência da eleição soberana de Deus, muito antes de o homem ter nascido, antes de ter feito qualquer bem ou mal (como se isso pudesse afetar o resultado da escolha de Deus):
“Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados como descendência os filhos da promessa. Porque a palavra da promessa é esta: POR ESSE TEMPO, VIREI, E SARA TERÁ UM FILHO. E não ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um só, Isaque, nosso pai. E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O MAIS VELHO SERÁ SERVO DO MAIS MOÇO. Como está escrito: AMEI JACÓ, PORÉM ME ABORRECI DE ESAÚ.” (Romanos 9:8-13)
No caso do povo de Nínive, Deus Se compadece e a cidade é poupada (para o total desprazer de Jonas). No caso de Davi, Deus não Se compadece. Legalmente Davi não podia se zangar com Deus, pois não merecia o que pediu. Na verdade, ele merecia algo bem pior do que aquilo que recebeu. Ninguém se atreve a ficar chateado com Deus quando Ele não dá o que não é merecido. Nada pode ser reivindicado na graça divina. Quando ela é concedida, devemos recebê-la com gratidão, como indignos dela; quando não é concedida, devemos humildemente reconhecer, em primeiro lugar, que nada merecemos.
Somente essas cinco razões já são base suficiente para a atitude de Davi em nosso texto. Contudo, há ainda mais uma coisa para a qual gostaria de chamar sua atenção: Davi acha conforto e consolo na morte da criança porque tem certeza de que, embora a criança não possa voltar a ele em vida, ele estará com ela no céu:
“Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim.” (II Samuel 12:23)
Creio que haja somente uma forma desse versículo fazer algum sentido, e é entendendo que Davi diz algo como: “Não posso trazê-la de volta à vida, para estar comigo mais uma vez, mas posso ansiar para estar com ela no céu, depois da minha morte.”
Nem todos aceitam essa conclusão. Alguns acham que Davi tem certeza de um dia estar reunido com essa criança no céu. Eles não concluem necessariamente que todos os bebês vão para lá quando morrem. Quem crê no batismo infantil talvez fique tentado a acreditar que eles vão. Há também quem tenha a firme convicção de que, como os bebês não podem se arrepender e crer em Jesus Cristo, nenhum vai para o céu ao morrer. Se fosse assim, as palavras de Davi teriam de ser entendidas como: “Não posso trazer a criança de volta à vida, mas me juntarei a ela no túmulo.” Quero chamar a atenção para essa última ideia primeiro, para depois tentar defender meu próprio ponto de vista, de que os bebês quando morrem (quando ainda não têm entendimento) vão para o céu.
Há quem entenda que Davi esteja falando em juntar-se à criança no túmulo. Pelo contexto do texto, acho difícil entender dessa forma. Davi jejuou, chorou e orou tanto que seus servos ficaram preocupados com seu bem-estar. Eles não conseguiram convencê-lo a se levantar do chão ou a comer. De repente, após a morte da criança, sua vida continua como se nada tivesse acontecido e, quando os servos lhe perguntam o motivo, ele dá a resposta encontrada em nosso texto. Uma parte da resposta é que, embora ele não possa trazer a criança de volta, algum dia ele estará com ela. Para algumas pessoas, ele está dizendo:
“Eu queria muito demonstrar meu arrependimento e suplicar a Deus pela vida da criança. Mas agora ela está morta, e sei que será sepultada no lote nº 23 do Cemitério Descanse em Paz. Para minha grande alegria e conforto, sei que serei sepultado no lote nº 24. É por isso que sinto-me consolado na minha dor. Nós ficaremos lado a lado no túmulo.”6
Simplesmente não acho que essa explicação seja adequada para o consolo e para a conduta de Davi. Creio que ele está olhando para além do túmulo, para seu encontro com a criança na ressurreição. Não sentimos a mesma sensação com as palavras de Paulo no texto abaixo?
“Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes como os demais, que não têm esperança. Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem. Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.” (I Tessalonicenses 4:13-18)
Creio ser necessário admitir que a ideia de que todos os bebês vão para o céu quando morrem é algo no qual todos nós gostaríamos muito de acreditar. Só por isso, já temos motivo suficiente para examinar o assunto com muito cuidado e cautela. Eu também diria que apenas o texto de II Samuel seria uma evidência bem pequena para minhas conclusões se não houvesse outros textos e preceitos que lhe dessem suporte. É verdade ainda que minhas conclusões são baseadas em inferências. Assim sendo, também gostaria de dizer que qualquer outra opinião sobre o assunto é inferencial e baseada (em minha opinião) em evidências ainda menores.
Permitam-me esclarecer ainda uma última coisa antes de continuar minha argumentação. Este assunto (Quando morrem, os bebês vão para o céu?) não é algo que deva dividir os cristãos evangélicos. Esta não é uma questão primordial da fé cristã e não deve ser vista como heresia, sejam quais forem as opiniões (citadas acima) defendidas. Em última análise, devemos concordar com o fato de que Deus seria justo e estaria certo em mandar qualquer ser humano (inclusive os bebês) para o inferno, se Ele assim o desejasse. Além do mais, quem quer conhecer e amar a Deus deve confiar nEle em relação a essa questão. Ás vezes, determinados tópicos e questionamentos não são claramente respondidos. Em tais casos creio que isso seja deliberado, de modo a termos de confiar no próprio Deus.
Com tais ressalvas, deixem-me listar os fatores que me levaram à conclusão de que, quando os bebês morrem, eles vão o céu. Vou enfocar quatro linhas de evidência.
Primeiro, no livro de Jonas, Deus claramente distingue crianças de adultos, e repreende Jonas por desejar que o julgamento divino recaia sobre os pequeninos. Todo mundo conhece a história de como Jonas, o profeta de Israel, recebeu instrução para ir a Nínive e proclamar o julgamento divino sobre aquela cidade ímpia. Nós nos lembramos de como ele se rebelou, e de como, finalmente, foi compelido a ir à cidade, onde proclamou a derramamento da ira de Deus sobre os ninivitas dentro de 40 dias. O povo de Nínive se arrependeu, e Deus Se compadeceu deles. Jonas ficou furioso. Ele queria que o Senhor destruísse aquela cidade perversa e todos que ali viviam. Desafiadoramente ele permanece fora da cidade, esperando pela destruição ameaçada e cancelada por Deus. Jonas esperou no maior calorão só para ver a morte dos ninivitas. Então, a narrativa continua:
“Então, Jonas saiu da cidade, e assentou-se ao oriente da mesma, e ali fez uma enramada, e repousou debaixo dela, à sombra, até ver o que aconteceria à cidade. Então, fez o SENHOR Deus nascer uma planta, que subiu por cima de Jonas, para que fizesse sombra sobre a sua cabeça, a fim de o livrar do seu desconforto. Jonas, pois, se alegrou em extremo por causa da planta. Mas Deus, no dia seguinte, ao subir da alva, enviou um verme, o qual feriu a planta, e esta se secou. Em nascendo o sol, Deus mandou um vento calmoso oriental; o sol bateu na cabeça de Jonas, de maneira que desfalecia, pelo que pediu para si a morte, dizendo: Melhor me é morrer do que viver! Então, perguntou Deus a Jonas: É razoável essa tua ira por causa da planta? Ele respondeu: É razoável a minha ira até à morte. Tornou o SENHOR: Tens compaixão da planta que te não custou trabalho, a qual não fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” (Jonas 4:5-11)
Jonas ficou irado com Deus. E o motivo da sua ira foi chocante. Ele se irou por causa da graça que o Senhor demonstrou para com os ímpios ninivitas. Jonas ficou furioso por Deus ter perdoado pecadores indignos, quando eles se arrependeram de seus pecados. Mas ele estava totalmente errado, pois parece ter presumido que a bênção de Deus para os judeus tinha outro fundamento — o simples fato de serem judeus. Jonas odiava a graça, especialmente quando era concedida a quem ele considerava um pecador indigno.7 A triste ironia é que ele não conseguia ver que as bênçãos de Deus sobre Israel e sobre ele também eram baseadas única e exclusivamente na graça divina. Enfim, até mesmo Jonas parecia acreditar em algo mais além da graça.
Mas Deus lhe deu uma lição na graça. Ele providenciou para o profeta rebelde e carrancudo uma fonte de sombra, muito embora Jonas não tivesse motivo algum para ficar ali naquele sol quente. Quando Deus retirou a planta, e com isso a sombra que esta proporcionava a Jonas, o profeta ficou louco da vida. Deus, então, perguntou-lhe o motivo da sua ira. Será que Jonas merecia a planta e a sua sombra? Por que ele ficou tão bravo quando Deus a retirou? Jonas não merecia esse cuidado gracioso de Deus, mas, de alguma forma, ele achava que sim.
Agora Deus muda o foco da atenção de Jonas da lição prática para o verdadeiro problema, a destruição ou livramento dos ninivitas. Por que o profeta está tão interessado na condenação de 120.000 pessoas que não conseguem diferenciar a mão direita da mão esquerda? Para mim, o texto parece sugerir que Deus vê essas pessoas diferentemente da forma como Ele vê os ninivitas mais velhos. Quem pode discernir entre a mão direita e a esquerda também pode discernir entre o bem e o mal. Embora Jonas esteja ansioso para condenar essas crianças, Deus não está. Deus não discute com ele sobre a graça demonstrada para com os israelitas (adultos) arrependidos. Ele censura Jonas por desejar que as crianças sofram a ira divina junto com os adultos. Jonas não faz distinção entre crianças e adultos ninivitas; mas Deus faz. A base para tal distinção é o nosso assunto neste estudo sobre a morte do filho de Davi.
Deus repreende Jonas porque o profeta não quer fazer distinção entre os imorais (mas arrependidos) ninivitas adultos e as 120.000 crianças daquela cidade. A distinção não é só uma questão de idade, mas de capacidade de raciocínio. Essas 120.000 crianças não são capazes de distinguir entre a mão direta e a mão esquerda. Se é assim, e se elas não conseguem distinguir coisas concretas, como poderão distinguir coisas abstratas, como o bem e o mal? Como poderão, conscientemente, escolher entre deliberadamente desobedecer a Deus ou crer e obedecer a Ele? Deus também menciona os animais. Eles não podem escolher servir ou não a Deus, não por causa da sua idade, mas por causa da sua natureza incapaz de raciocinar. Jonas teria prazer em ver as crianças e o gado sofrendo a ira de Deus; Deus o repreende por pensar dessa forma. Será que esse princípio não se aplica a todas as crianças, e não apenas às crianças ninivitas? Creio que sim.
Segundo, de acordo com a antiga aliança, bem como com a nova, os filhos não devem sofrer a condenação divina pelos pecados dos pais.
“Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos, em lugar dos pais; cada qual será morto pelo seu pecado.” (Deuteronômio 24:16)
“Eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que semearei a casa de Israel e a casa de Judá com a semente de homens e de animais. Como velei sobre eles, para arrancar, para derribar, para subverter, para destruir e para afligir, assim velarei sobre eles para edificar e para plantar, diz o SENHOR. Naqueles dias, já não dirão: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram. Cada um, porém, será morto pela sua iniquidade; de todo homem que comer uvas verdes os dentes se embotarão. Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o SENHOR. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o SENHOR. Pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.” (Jeremias 31:27-34, ênfase do autor)
Seja na antiga aliança, seja na nova, as crianças não devem ser condenadas pelos pecados dos pais. Cada um deve ser condenado pelo seu próprio pecado. Em Romanos 5, Paulo escreve:
“Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei. Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir.” (Romanos 5:12-14)
Em outras palavras, o pecado de Adão foi imputado a toda raça humana. Mesmo antes de a Lei ser entregue, os homens já eram pecadores por natureza. E por isso, todos morrem a morte física. O pecado de Adão tornou toda a raça humana pecaminosa por natureza.
Em Romanos 7, Paulo fala sobre viver sem a lei, e depois sob a lei:
Outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri. (Romanos 7:9)
Pelo texto, parece que ele está falando da idade do entendimento. Na infância, ele “vivia sem lei”, pois não era capaz de compreendê-la e, dessa forma, discernir entre o bem e o mal. Já que ele era incapaz de entender a necessidade ou a natureza da escolha diante de si, ainda não estava vivo para a lei. No entanto, chegou a época em que se tornou vivo para a lei e, nesse momento, ele caiu sob sua maldição.
Nos capítulos 1 a 3 de Romanos, Paulo dá a base para o restante da epístola. Ele procura demonstrar que todos os homens são pecadores, sujeitos à ira eterna de Deus e incapazes de salvarem a si mesmos por suas próprias obras (necessitando, portanto, do dom da salvação em Cristo por meio da graça divina). A conclusão de Paulo (de que todos são pecadores) vem resumida no capítulo 3, à medida que ele faz uma lista de citações do Velho Testamento:
Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: NÃO HÁ JUSTO, NEM UM SEQUER, NÃO HÁ QUEM ENTENDA, NÃO HÁ QUEM BUSQUE A DEUS; TODOS SE EXTRAVIARAM, À UMA SE FIZERAM INÚTEIS; NÃO HÁ QUEM FAÇA O BEM, NÃO HÁ NEM UM SEQUER. A GARGANTA DELES É SEPULCRO ABERTO; COM A LÍNGUA, URDEM ENGANO, VENENO DE VÍBORA ESTÁ EM SEUS LÁBIOS, A BOCA, ELES A TÊM CHEIA DE MALDIÇÃO E DE AMARGURA; SÃO OS SEUS PÉS VELOZES PARA DERRAMAR SANGUE, NOS SEUS CAMINHOS, HÁ DESTRUIÇÃO E MISÉRIA; DESCONHECERAM O CAMINHO DA PAZ. NÃO HÁ TEMOR DE DEUS DIANTE DE SEUS OLHOS. (Romanos 3:9-18)
A acusação é a conclusão de tudo o que Paulo escreve até ali, começando no capítulo 1, especialmente o verso 18:
“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;”
Como Paulo faz para provar que os homens são pecadores e estão sob a condenação divina? No capítulo um, ele mostra que os gentios, os quais nunca ouviram o evangelho, são pecadores e estão sob condenação. Presume-se que eles nunca ouviram o evangelho de Jesus Cristo. No entanto, eles receberam a revelação divina sobre Deus, a qual deliberadamente rejeitaram. Essa revelação foi feita por intermédio da natureza:
“Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.” (Romanos 1:20-23)
Creio que o raciocínio seja o seguinte: Deus Se revela a todos os homens por meio da natureza. Essa revelação não é completa, e não inclui as boas novas de perdão dos pecados pela obra substitutiva de Cristo na cruz do Calvário. Mesmo assim, a reação de uma pessoa à revelação de Deus na natureza demonstra como ela reagiria se mais coisas lhe fossem reveladas. A revelação de Deus na natureza foi rejeitada por aqueles que a receberam, os quais a transformaram em sua própria religião, adorando a criatura em vez do Criador. Em Romanos 2, e na primeira parte do capítulo 3, Paulo mostra que Deus, com justiça, condena os homens como pecadores, porque eles não vivem de acordo com o padrão da sua própria consciência, e muito menos de acordo com os padrões estabelecidos na lei de Moisés. Ele mostra que todos são pecadores, merecedores da ira eterna de Deus, pois já receberam determinada revelação e a rejeitaram, pervertendo a verdade a eles relevada e trocando-a por algo no qual preferem acreditar.
Todo aquele que é condenado como pecador em Romanos 1 a 3 já recebeu a revelação de Deus e tem capacidade mental para compreendê-la e reagir a ela, mas a rejeitou. O que estou falando é que fetos e bebês (não tentarei definir onde tem início a assim chamada “idade do entendimento”) nunca receberam tal revelação e não têm capacidade para rejeitá-la como uma coisa ruim ou aceitá-la como uma coisa boa. Eles ainda não pecaram no sentido de saber o que é certo, decidindo deliberadamente fazer o que é errado.
É nesse ponto que algumas pessoas começam a ficar incomodadas. Elas receiam que dizendo isso estejam negando a natureza pecaminosa de toda raça humana, inclusive das crianças. Elas temem que seja o equivalente a dizer que crianças pequenas são inocentes. Não estou dizendo isso de forma alguma. Quer seja um feto, quer seja um bebê, todo descendente de Adão (isto é, todo ser humano, independentemente da sua idade) é pecador por natureza. A natureza pecaminosa é consequência do pecado de Adão, a qual foi imputada a toda sua descendência. Há uma diferença, no entanto, em ser pecador por natureza e ser pecador de fato. Um bebezinho recém-nascido é pecador por natureza, mas não se tornará um pecador atuante até deliberadamente fazer o que sabe ser errado. Sem contar as mortes prematuras, toda criança pecadora por natureza desabrochará numa criança pecadora de fato.
Mas o que acontece com as crianças que morrem antes de se tornarem pecadoras de fato? Se fôssemos concluir que são condenadas ao inferno por toda eternidade, por qual(is) pecado(s) seriam punidas? Eu teria de dizer que é pelo pecado de Adão. Elas sofreriam eternamente devido à sua natureza pecaminosa, por terem nascido. Creio que a distinção feita por Deus em Jonas 4 foi entre ninivitas pecadores de fato e ninivitas pecadores por natureza, mas não de fato. Creio que Deus repreende Jonas por querer ver pecadores por natureza (apenas) sofrerem a ira divina como se fossem pecadores por vontade e ação. Em que base Deus pode salvar pecadores por natureza para não serem condenados? Esse é o próximo tópico de discussão.
Terceiro, em Romanos 5 Paulo ensina que a morte sacrificial de nosso Senhor Jesus Cristo expia o pecado de Adão, a fim de que nenhum de seus descendentes seja condenado ao inferno devido ao seu pecado (de Adão). Se entendo as Escrituras corretamente, a única razão para uma criancinha ir para o inferno é por causa do pecado de Adão. Tanto a antiga como a nova aliança dizem que não é assim, pois as crianças não devem ser punidas pelos pecados dos pais. Romanos 5 nos diz como Deus criou um meio para os pequenos serem salvos da condenação. A questão abordada neste capítulo é: “Como uma pessoa — Jesus Cristo — pode salvar que nEle crê?” “Como um só homem pode salvar a muitos, morrendo por eles?”
A resposta dada por Paulo em Romanos 5 é muito simples: “Um só homem (Adão) trouxe o pecado para toda raça humana; da mesma forma, um só Homem (Jesus Cristo) deu a solução para o problema do pecado de todos os que creem.”
“Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida.” (Romanos 5:17-18)
“Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, e sim o natural; depois, o espiritual. O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem é do céu. Como foi o primeiro homem, o terreno, tais são também os demais homens terrenos; e, como é o homem celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial.” (I Coríntios 15:45-49)
Nosso Senhor Jesus Cristo é chamado de “o último Adão” porque Ele é o Único que pode reverter os efeitos do pecado de Adão. Ele o faz, não por salvar automaticamente todas as pessoas, mas por fazer expiação pelos pecados dos homens, de modo que todo aquele que recebe o dom da salvação tenha seus pecados perdoados e receba a vida eterna. Todas as crianças herdam a natureza pecaminosa de Adão. Elas não possuem essa natureza por terem cometido algum pecado, mas por terem nascido na raça humana. A natureza pecaminosa foi obtida involuntariamente. O argumento de Paulo em Romanos 5 é um argumento “muito maior”. Segundo ele, o que quer que Adão tenha feito ao pecar, Cristo fez (ou melhor, desfez), muito mais. Se uma criança vai para o inferno só por causa do pecado de Adão, então a obra de Cristo no Calvário não fez “tanto” assim. Quem sofre a ira eterna de Deus por causa do pecado é quem, deliberadamente, se rebela contra Deus e rejeita a revelação divina manifesta a ele. Quem ainda não praticou ato deliberado para se identificar com o pecado de Adão, e morre antes de praticá-lo, é involuntariamente coberto pelo sangue derramado de Jesus Cristo. Portanto, Adão pode ter corrompido toda raça humana, mas Cristo fez muito mais quando expiou o pecado de Adão e transformou pecadores culpados em santos perdoados. A morte de Cristo na cruz do Calvário é o meio pelo qual os pequeninos são salvos da culpa e da condenação da sua natureza pecaminosa, do mesmo modo que é o meio pelo qual todos (os adultos) que creem são salvos.
É assim que explico a confiança e a paz demonstradas por Davi quando seu filho morreu. Ele sabia que ele mesmo não morreria, pois seus pecados haviam sido “removidos”. Sob a antiga aliança não havia salvação para ele, só a condenação da morte. Por isso, ele teve de ser liberto da ira divina pela providência de Deus em Jesus Cristo de acordo com a nova aliança. Esta é a base para a salvação de qualquer santo, tanto do Novo como do Antigo Testamento. Se Deus foi gracioso com Davi, com base na nova aliança, não seria Ele também gracioso com seu filho, com base na mesma aliança?
Quarto, a convicção de que bebês são salvos pelo sangue de Cristo é uma posição sustentada por alguns dos mais conceituados estudiosos das Escrituras. A posição doutrinária da igreja ao longo de sua história não tem a autoridade das Escrituras, mas ajuda a validar ou por em dúvida as interpretações contemporâneas da Bíblia. Quando alguém sustenta uma opinião ou interpretação, da qual a Igreja sempre discordou ao longo da sua história, tal interpretação certamente é posta em xeque. Deixem-me mencionar algumas citações que expressam o ponto de vista de alguns conceituados teólogos e pregadores do passado.
Vamos começar com Charles Haddon Spurgeon:
“Bem, há uma ou duas questões secundárias nas Escrituras que também parecem lançar um pouco de luz sobre o assunto. Não se esqueçam do caso de Davi. Seu filho com Bate-Seba teve de morrer como punição pelo pecado de seu pai. Davi orou, jejuou e se entristeceu profundamente; finalmente, ele ficou sabendo que a criança era morta. Ele parou de jejuar e disse: “Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim.” Ora, para onde ele esperava ir? Bom, para o céu, é claro. Portanto, a criança deve ter ido para lá, pois ele disse: “Eu irei a ela.” Não o ouço dizendo o mesmo de Absalão. Ele não se estendeu sobre seu corpo e disse: “Eu irei a ele”; Davi não tinha esperanças para esse filho rebelde. Pela criança, ele não disse: “Ó, meu filho. Quem me dera que eu morrera por ti!” Não, ele podia deixar o bebê partir em plena confiança, pois disse: “Eu irei a ele.” “Eu sei”, ele poderia ter dito, “que o Senhor estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo bem definida e segura; e, quando eu andar pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque Ele está comigo; eu irei ao meu filho e, no céu, seremos reunidos um ao outro.”8
E outra vez:
“Ora, que cada mãe e pai aqui presentes saibam com certeza que a criança está muito bem se Deus a tomou de vocês ainda bebê. Nunca se ouviu sua declaração de fé — ela não era capaz disso; ela não foi batizada em nome de Jesus, nem sepultada com Ele no batismo; ela não podia dar “a resposta certa diante de Deus”; contudo, tenham certeza absoluta de que ela está bem, em sentido bem maior e melhor do que o bem de vocês mesmos; ela está bem sem restrições, sem exceções; infinitamente bem, eternamente “bem”. Talvez vocês digam: “Que motivos temos para acreditar que ela está bem?” Antes de examinar a questão, gostaria de fazer uma observação. Dizem que os calvinistas creem na perdição de alguns pequeninos. Tais acusações são vis, enganosas e caluniosas, pois quem as faz sabe que são falsas. Não ouso sequer esperar, embora o desejasse fazê-lo, que eles distorçam nossas doutrinas por ignorância. Maldosamente repetem coisas que já foram negadas milhares de vezes, as quais sabem não ser verdade. Em conselho a John Knox, Calvino interpreta o segundo mandamento — “demonstrando misericórdia para com milhares deles que me amam” — como se referindo a gerações, por isso, ele parece ensinar que as crianças que morrem ainda bebês, e cujos ancestrais foram tementes a Deus, não importando quão distantes, são salvas. Com certeza, isso inclui toda uma descendência. Quanto aos calvinistas atuais, não conheço nenhuma exceção, mas todos nós esperamos e cremos que quem morre ainda na infância seja salvo. O Dr. Gill9, considerado nos últimos tempos um modelo fiel do calvinismo, para não dizer do ultracalvinismo, ele mesmo não sugere por um momento sequer que algum bebê tenha perecido, mas afirma ser este um assunto obscuro e misterioso; no entanto, é sua opinião, a qual ele crê ter a garantia das Escrituras, que todos aqueles que adormecem ainda na infância não perecem, mas são contados entre os eleitos de Deus e, por isso, entram no descanso eterno. Nós nunca ensinamos o contrário e, quando alguém nos acusa, eu respondo: “Pense o que quiser, nós nunca dissemos tal coisa, e você sabe disso. Se ousar repetir essa infâmia, que a mentira cubra seu rosto de vergonha, se é que você ainda consegue ficar vermelho.” Jamais pensamos dessa forma. Com poucas e raras exceções, tão raras que só as ouvimos de lábios caluniadores, nunca sequer imaginamos que bebezinhos entrem na perdição quando morrem, mas sim que entram no paraíso de Deus.”10
Finalmente, ouçamos Loraine Boettner, o qual cita a posição de vários outros teólogos:
“A maioria dos teólogos calvinistas sustentam que quem morre ainda na infância é salvo. As Escrituras parecem ensinar com relativa clareza que os filhos dos crentes são salvos, mas são praticamente silentes quanto aos filhos dos ímpios. A Confissão de Fé de Westminster não se manifesta quanto aos filhos dos ímpios que morrem antes de chegar à idade do entendimento. Onde as Escrituras não se manifestam, a Confissão de Fé também não. Os grandes teólogos, no entanto, conscientes do fato de que “as ternas misericórdias de Deus permeiam todas as suas obras” e, confiantes na Sua imensurável misericórdia, nutrem a bondosa esperança de que, uma vez que esses pequeninos nunca cometeram um verdadeiro pecado por si mesmos, o pecado herdado seria perdoado e eles seriam salvos totalmente dentro dos princípios evangélicos.”
Essa, por exemplo, era a posição defendida por Charles Hodge, W. G. T. Shedd e B. B. Warfield. Diz o Dr. Warfield, a respeito de quem morre ainda na infância: “Seu destino é determinado, independentemente da sua escolha, por um decreto incondicional de Deus; sua execução é suspensa sem qualquer ação da sua parte; sua salvação é operada por uma aplicação incondicional da graça de Cristo à sua alma, por meio da operação imediata e irresistível do Espírito Santo, antes de, e sem levar em conta, qualquer ação da sua própria vontade... E se a morte na infância realmente depende da providência de Deus, seguramente é Deus que, na Sua providência, seleciona esta vasta multidão para ser participante da Sua salvação incondicional... Isso é o mesmo que dizer que eles são incondicionalmente predestinados para a salvação desde a fundação do mundo.”11
Prolongamos um pouco este triste incidente no qual Davi encontra alegria e conforto, mas permitam-me concluir apontando algumas áreas de aplicação.
Primeiro, este texto (juntamente com os outros mencionados) oferece conforto para todos aqueles que sofreram (ou irão sofrer) a perda de um bebezinho. Creio que nosso Senhor resumiu muito bem a questão quando disse: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus.” (Lucas 18:16). Como é bom saber que os nossos pequeninos estão em Seus braços!”
Segundo, aprendemos com este episódio que, mesmo quando Deus perdoa os nossos pecados, Ele não remove todas as suas consequências dolorosas. Os pecados de Davi com Bate-Seba e Urias foram perdoados, mas a morte da criança ainda era necessária. O pecado traz consequências muito tristes. Muito embora nossos erros sejam perdoados, eles nunca valem o preço das consequências.
Terceiro, Deus Se preocupa muito mais com a Sua própria reputação do que com a nossa felicidade. Algumas pessoas pensam que Deus é uma espécie de gênio da lâmpada, que fica aguardando cada um de seus pedidos, tentando satisfazer todos os seus desejos. Davi teria ficado muito feliz em receber seu filho de volta, mas a reputação de Deus exigia que Ele lidasse com a situação de forma a deixar bem claro como Se sente um Deus santo e justo em relação ao pecado.
Quarto, podemos aprender também uma lição sobre a oração não atendida. Davi orou com toda sinceridade, mas Deus claramente lhe disse: “Não!”. Davi ficou satisfeito com isso. Ele não protestou, nem reclamou. Ele aceitou a vontade de Deus como sendo o melhor. Ele cultuou a Deus a despeito da sua perda e dor. Ele não sofreu porque não tinha fé. Ele sabia que Deus o tinha ouvido e tinha lhe respondido. Quantos de nós louvamos a Deus quando Ele nos diz “não”?
Finalmente, a esperança e a alegria do cristão em meio às provações e tribulações são ocasião para o testemunho da sua fé em Jesus Cristo. Os servos de Davi esperavam que ele (re)agisse de forma diferente ao saber da morte do filho. Eles se surpreenderam com a maneira pela qual ele encontrou consolo, alegria e desejo de adorar a Deus, quando sua família foi afetada pela tragédia. Eles lhe perguntaram sobre sua esperança e Davi pôde lhes dar uma razão para ela. Nossa reação aos sofrimentos e tribulações nos dá a mesma oportunidade. Que aprendamos a descansar nAquele a quem confiamos a nossa esperança, para então compartilhar essa esperança com quem não a possui (ver I Pedro 3:15).
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 O que, aliás, era feito na presença de outro professor, o qual servia como testemunha.
2 Quando Deus feriu a Nabal, este morreu dez dias depois. Ver I Samuel 25:38.
3 A Nova Versão King James é semelhante, quando interpreta: “Talvez ele faça algo ruim.” (NT: em português, a versão que mais se assemelha é a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, que diz: “Ele poderá fazer alguma loucura!”)
4 Não sabemos realmente se algum dos servos sabia das palavras de Natã sobre a morte da criança. Se não, é provável que não tenham entendido a razão pela qual Davi leva tão a sério seu lamento de arrependimento e sua petição.
5 E também Jonas 3.
6 Sou forçado a recordar as palavras de Barzilai em II Samuel 19:37. Existe um certo consolo em ser sepultado perto dos nossos parentes, mas isso não parece ser consolo suficiente para explicar as palavras e a atitude de Davi em nosso texto.
7 Nisso, Jonas não é muito diferente dos escribas e fariseus hipócritas da época de Jesus.
8 “Salvação Infantil”, The Metropolitan Tabernacle Pulpit, sermão proferido na manhã de domingo do dia 29 de setembro de 1861 pelo Rev. C. H. Spurgeon, no Tabernáculo Metropolitano, Newington.
9 Nota da tradutora: Cerca de um século antes de Spurgeon, o Dr. John Gill ocupou o púlpito da igreja que veio a se tornar o Tabernáculo Metropolitano.
10 Spurgeon, no mesmo serão acima.
11 Loraine Boettner, A Doutrina Reformada da Predestinação (Filadélfia: The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1963 (11a. edição), pp. 143-144.
Há alguns anos, eu, Jeanette, minha esposa, e algumas de nossas filhas, voltávamos para casa depois de uma festa escolar. Paramos numa mercearia para comprar sorvete para a sobremesa. Ao retornar à estrada em direção de casa, repentinamente apareceu atrás de nós um carro em alta velocidade. Quando notei sua aproximação, pensei que fosse bater na nossa traseira, por isso, rapidamente mudei de faixa. Não devia ter mudado. Ou o motorista não estava prestando atenção (ou não estava sóbrio) ou pretendia mudar de pista no último instante. Não tenho certeza. Assim que mudei da direita para a faixa do meio, ele fez o mesmo. Como eu dirigia um carro a diesel, não tive tempo de acelerar com rapidez. O motorista percebeu e conseguiu desviar para a esquerda em cima da hora — rápido demais — e veloz demais.
Vimos quando o homem passou disparado por nós, perdeu o controle da direção e deslizou sobre o canteiro central. Ao passar pela mureta de concreto, o tanque de combustível se rasgou e a gasolina espalhou-se, deixando um rastro atrás do carro em velocidade. O metal da parte inferior do veículo também entrou em atrito com o concreto, criando uma chuva de faíscas. O que aconteceu em seguida foi inevitável. As faíscas atearam fogo ao rastro de gasolina deixado pelo carro desgovernado. Tudo se passou bem diante dos nossos olhos. Também não conseguimos parar. Finalmente, o outro carro saltou sobre o canteiro central, passou pelas três pistas em sentido contrário, e foi parar do outro lado da rodovia. Nós presenciamos tudo, horrorizados com a cortina de fogo que se levantou, separando-nos do outro carro e seu motorista. Impotentes, vimos a trilha de fogo envolver o automóvel, finalmente parado. O tanque de gasolina pegou fogo e, de onde estávamos, parecia que o motorista tinha sido engolfado pelas chamas. Não podíamos nos aproximar porque, além de estarmos muito longe, a cortina de fogo estava entre nós. Foi com grande alívio que vimos alguém puxando o homem para fora do carro, o qual logo depois foi levado por uma ambulância.
Quando leio o capítulo 13 de II Samuel, tenho a mesma sensação de tragédia iminente, sabendo que não vou conseguir parar o que está para acontecer. Lemos a história de Amnom, filho de Davi, o qual deseja Tamar, filha do rei com outra mulher. Vemos, incrédulos, quando Davi ordena a ela que vá à casa de Amnom, admirados com sua ingenuidade. Sentimos um calafrio quando ouvimos Amnom ordenando a todos que se retirem, menos Tamar. Observamos impotentes quando ela tenta resistir, mas acaba sendo violentada por ele. E, então, para piorar as coisas, vemos o “amor” de Amnom se transformar em ódio, de modo que ele expulsa Tamar de sua casa, condenando-a a viver desolada pelo resto da vida.
Como isso pôde acontecer? Como Davi pôde tomar parte disso? Por que Deus permite que o inocente sofra nas mãos do ímpio? Qual a relevância desse incidente para a vida atual? Quais as lições de Deus para os santos do Antigo Testamento que leram essa história? Quais as lições para nós? Vamos ouvir e prestar bastante atenção, pois há muito no que refletir, muito a aprender e muito a aplicar à nossa vida.
O título desta mensagem é “Tragédia na Família Real”. Não estou tentando ser engraçadinho, nem tentando tirar proveito da tragédia ocorrida com a morte da Princesa Diana. O título descreve exatamente o conteúdo do nosso texto e desta mensagem. Há grandes benefícios em se fazer parte da família real e, como demonstram os fatos ocorridos na época da morte da princesa, há também muitas responsabilidades. Do ponto de vista da mídia (pelo menos daquela época), a privacidade da família real foi invadida e atacada por alguns papparazzi, os quais aparentemente queriam uma foto exclusiva, sem se importar com as consequências para os membros da família real. No nosso texto não há nenhum papparazzi intrometido. Os pecados cometidos dentro da família real se tornam de conhecimento público, expostos por suas próprias ações e registrados pelo autor inspirado para nossa edificação. Não nos atrevemos a ler a história desta tragédia como alguns a leriam num sórdido tablóide. Esta é a Palavra de Deus para nós, ensinando-os o alto preço do pecado.
Saul, que vivia tentando matar Davi para garantir a longevidade do seu próprio trono, está morto, e agora Davi é rei tanto de Judá (sua tribo) quanto de Israel (as outras tribos). Ele já subjugou a maioria das nações circunvizinhas e capturou Jebus, fazendo-a capital do reino e mudando seu nome para Jerusalém. Davi também levou a Arca da Aliança para lá, com a intenção de construir um templo para Deus, pelo que foi gentilmente repreendido, mas animado pelo fato de que o Senhor iria edificar-lhe uma “casa” eterna, um reino sem fim.
Mas o poder e sucesso de Davi parecem subir à sua cabeça. Em vez de liderar os soldados na guerra, ele fica em casa, enviando Joabe e o exército de Israel contra Rabá, capital dos amonitas, para tomá-la e completar seu triunfo sobre os inimigos. Enquanto está em casa, em Jerusalém, Davi tem a vantagem de levar a “boa vida” de um rei. Ele se deita tarde e se levanta no horário em que os outros estão indo para a cama. Uma tarde, enquanto perambula pelo terraço do palácio, ele acaba vendo algo que não pretende, nem imagina: uma adorável mulher se banhando, provavelmente em obediência à lei cerimonial. Ele a observa atentamente durante muito tempo, e decide que a quer, não para esposa, nem para amante, mas só por uma noite. Quando manda os servos perguntarem quem é ela, eles o informam que ela é casada, e esposa de Urias, o heteu, um dos heróis militares de Israel.
Isso deveria colocar um ponto final na questão, mas não coloca. Davi manda os mensageiros pegarem Bate-Seba e levarem-na ao palácio, e lá ele dorme com ela. Algum tempo depois, ela manda lhe dizer que está grávida. Ele, então, faz o possível para Urias se deitar com ela, de modo a parecer que ele é o pai da criança; mas Urias tem muita personalidade e integridade para se deixar usar por Davi. Por isso, o rei dá ordens a Joabe, comandante das forças militares, para Urias ser morto de forma a parecer apenas outra baixa de guerra. Duvido que isso engane muitos israelitas, mas, com certeza, não engana a Deus, nem ao profeta Natã. Natã chega para Davi com uma historinha sentimental sobre um homem rico que rouba a cordeirinha de um homem pobre e, quando Davi condena o homem rico, Natã lhe diz que ele é o homem. Davi se arrepende e confessa seu pecado, não só para Deus, mas para toda nação nos Salmos 32 e 51.
A primeira das muitas consequências dolorosas do pecado de Davi vem com a morte do seu primeiro filho com Bate-Seba, a criança fruto do seu pecado. Embora Davi chore e suplique fervorosamente a Deus pela vida do menino, Deus não atende seu pedido e a criança vem a morrer. A reação de Davi à resposta de Deus é acertada, para grande espanto dos seus servos. Quando ouve que a criança está morta, ele se levanta, se lava e vai à casa do Senhor para adorar; depois, volta para casa e se alimenta. Davi esperou em Deus pela vida do filho, confiou nEle e dependeu dEle, mas Deus não o atendeu. No capítulo 13, chegamos às próximas consequências dramáticas do seu pecado: o estupro da sua filha Tamar, e o assassinato do seu filho Amnom. Davi, mais uma vez, lamentará a perda de um filho. Na verdade, ele lamentará a perda de dois: Amnom, que será assassinado por Absalão, e Absalão, que fugirá para escapar da punição.
“Tinha Absalão, filho de Davi, uma formosa irmã, cujo nome era Tamar. Amnom, filho de Davi, se enamorou dela. Angustiou-se Amnom por Tamar, sua irmã, a ponto de adoecer, pois, sendo ela virgem, parecia-lhe impossível fazer-lhe coisa alguma.”
“Tinha, porém, Amnom um amigo cujo nome era Jonadabe, filho de Simeia, irmão de Davi; Jonadabe era homem mui sagaz. E ele lhe disse: Por que tanto emagreces de dia para dia, ó filho do rei? Não mo dirás? Então, lhe disse Amnom: Amo Tamar, irmã de Absalão, meu irmão. Disse-lhe Jonadabe: Deita-te na tua cama e finge-te doente; quando teu pai vier visitar-te, dize-lhe: Peço-te que minha irmã Tamar venha e me dê de comer pão, pois, vendo-a eu preparar-me a comida, comerei de sua mão.”
“Deitou-se, pois, Amnom e fingiu-se doente; vindo o rei visitá-lo, Amnom lhe disse: Peço-te que minha irmã Tamar venha e prepare dois bolos à minha presença, para que eu coma de sua mão. Então, Davi mandou dizer a Tamar em sua casa: Vai à casa de Amnom, teu irmão, e faze-lhe comida.”
“Foi Tamar à casa de Amnom, seu irmão, e ele estava deitado. Tomou ela a massa e a amassou, fez bolos diante dele e os cozeu. Tomou a assadeira e virou os bolos diante dele; porém ele recusou comer. Disse Amnom: Fazei retirar a todos da minha presença. E todos se retiraram. Então, disse Amnom a Tamar: Traze a comida à câmara, e comerei da tua mão. Tomou Tamar os bolos que fizera e os levou a Amnom, seu irmão, à câmara. Quando lhos oferecia para que comesse, pegou-a e disse-lhe: Vem, deita-te comigo, minha irmã. Porém ela lhe disse: Não, meu irmão, não me forces, porque não se faz assim em Israel; não faças tal loucura. Porque, aonde iria eu com a minha vergonha? E tu serias como um dos loucos de Israel. Agora, pois, peço-te que fales ao rei, porque não me negará a ti. Porém ele não quis dar ouvidos ao que ela lhe dizia; antes, sendo mais forte do que ela, forçou-a e se deitou com ela.”
Se você é como eu, deve ficar zonzo ao ler a história dos parentes de Davi. Os personagens que fazem parte desta trama são: Jonadabe, sobrinho de Davi, filho de seu terceiro irmão, Simeia; Amnom, primogênito de Davi com Ainoã; e Tamar e Absalão, filhos de Davi com Maaca, sua terceira esposa (que era filha de Talmai, rei de Gesur). É bem difícil lembrar quem é filho de quem, não é?
Talvez seja útil resumir na tabela abaixo algumas informações genealógicas relativas ao nosso texto, para que possamos, pelo menos, visualizar esses relacionamentos.
Há uma porção de membros da família real — ou próximas a ela (os servos, por exemplo) que, querendo ou não, estão envolvidos nesta tragédia da família de Davi. Tudo começa com Amnom, o primogênito do rei (a primeira esposa de Davi, Mical, foi dada a ele por Saul, depois tirada e, finalmente retomada, mas nunca gerou um filho de Davi — II Samuel 6:23). Ainoã é sua segunda esposa, e a primeira a lhe dar um filho. Isso faz de Amnom seu primogênito, o sucessor mais provável do trono como rei de Israel, pelo menos de acordo com o costume da época. Tamar e seu irmão Absalão são filhos de outra esposa de Davi, Maaca, a qual também é filha do rei de Gesur.
Amnom tem um problema sério. Ele está “apaixonado”3 por sua bela meia-irmã, Tamar4. De acordo com a lei de Moisés, não há maneira possível de ele ter essa mulher como esposa.
“Se um homem tomar a sua irmã, filha de seu pai ou filha de sua mãe, e vir a nudez dela, e ela vir a dele, torpeza é; portanto, serão eliminados na presença dos filhos do seu povo; descobriu a nudez de sua irmã; levará sobre si a sua iniqüidade.” (Levítico 20:17)
Pelo que entendo do texto, a lei de Moisés que proíbe o casamento e sexo com uma irmã não é a principal preocupação de Amnom. Na verdade, é uma preocupação de Tamar, não dele. O autor continua a falar dos dois como irmão e irmã, mas quando menciona a frustração de Amnom, é por outra razão:
“Angustiou-se Amnom por Tamar, sua irmã, a ponto de adoecer, pois, sendo ela virgem, parecia-lhe impossível fazer-lhe coisa alguma.” (13:2, ênfase do autor)
Amnom adoece porque ela é virgem, e por isso “parece-lhe impossível fazer-lhe coisa alguma”. Não é dito que ele a ama e quer casar-se com ela. Acho que o texto diz que Amnom quer fazer sexo com Tamar, mas ela é virgem e pretende se manter assim até o casamento5. Ele quer ter relações sexuais com ela. Ele quer, mas ela não. Ela é virgem e parece disposta a permanecer assim. Não é de admirar que ele não consiga nada com ela. E não é de admirar que esteja frustrado. Sua frustração chega a ponto de deixá-lo doente (doente de amor?). Os sintomas da sua “doença” não são informados, mas imagino que sejam dor de estômago, falta de apetite e insônia.
Não é nenhuma surpresa que um dos sobrinhos de Davi, Jonadabe, filho de um de seus irmãos mais velhos, seja amigo de Amnom. Afinal, eles são primos e fazem parte da família real que vive em Jerusalém (ou nas proximidades). Jonadabe não deixa de notar que dia após dia Amnom está cada vez mais deprimido. Por isso, ele lhe pergunta o que há de errado. Amnom lhe conta o problema — ele está apaixonado por Tamar, sua irmã, cujo irmão é Absalão6. Jonadabe é um cara astuto e, para ele, o dilema de Amnom não é um grande problema. Afinal, não é Amnom “filho do rei” (verso 4)? A inferência é que, sendo “filho do rei”, Amnom tem direito de e autoridade para satisfazer a si mesmo; então, por que ficar tão deprimido? Isso me faz lembrar das palavras da terrível Jezabel a seu marido Acabe:
“Então, Acabe veio desgostoso e indignado para sua casa, por causa da palavra que Nabote, o jezreelita, lhe falara, quando disse: Não te darei a herança de meus pais. E deitou-se na sua cama, voltou o rosto e não comeu pão. Porém, vindo Jezabel, sua mulher, ter com ele, lhe disse: Que é isso que tens assim desgostoso o teu espírito e não comes pão? Ele lhe respondeu: Porque falei a Nabote, o jezreelita, e lhe disse: Dá-me a tua vinha por dinheiro; ou, se te apraz, dar-te-ei outra em seu lugar. Porém ele disse: Não te darei a minha vinha. Então, Jezabel, sua mulher, lhe disse: Governas tu, com efeito, sobre Israel? Levanta-te, come, e alegre-se o teu coração; eu te darei a vinha de Nabote, o jezreelita.” (I Reis 21:4-7)
Não posso dizer com certeza onde Jonadabe pretende chegar com sua estratégia. Não estou muito disposto a dizer que seu plano fará com que seu amigo violente Tamar. Seria esse um plano que daria a Amnom a chance de ficar a sós com ela para depois seduzi-la, ou talvez para convencê-la a se casar com ele? Não tenho certeza. É certo, porém, que o estratagema proposto por ele é traiçoeiro. Amnom tem de fingir que está doente, tão doente que não possa se levantar da cama. Quando o pai for visitá-lo, ele deve lhe pedir para deixar sua irmã ir à sua casa e lhe preparar a refeição.
O plano proposto por Jonadabe só vai até aí. De acordo com o texto, pelo menos, ele não diz a Amnom o que fazer a partir daí. Ele só lhe diz como se aproximar de Tamar. Não está escrito que ele diga a Amnom para mandar os servos se retirar (embora possa ter dito), ou para agarrá-la à força na tentativa de persuadi-la a fazer sexo com ele. Se Jonadabe é tão astuto quanto diz o texto, certamente ele deve imaginar o que pode acontecer quando Amnom ficar sozinho com ela. Ou ele sabe o que Amnom pretende e o ajuda a conseguir, ou suspeita mas não pergunta, ou então, não leva em consideração as opções. Ele é esperto demais para a última opção. Com certeza, ele também tem culpa no cartório7.
Amnom põe em prática o plano de Jonadabe, o qual funciona exatamente como previsto. Esse plano facilita a realização dos desejos ilícitos de Amnom. E também faz de Davi um cúmplice inconsciente e involuntário desse esquema perverso. O rei vai visitar Amnom, como era de se esperar. Quando este lhe pede para Tamar ir lá e preparar a comida sob as suas vistas, Davi consente. É o “decreto executivo” de Davi (pelo menos é sua ordem como chefe executivo de Israel — quem lhe diria não?) que “manda” os mensageiros à casa de Tamar, não muito diferente de quando foram mandados para convocar Bate-Seba. E assim, Davi é o meio pelo qual Amnom consegue ficar a sós com Tamar.
É surpreendente que tudo passe despercebido a Davi. Ele parece incrivelmente crédulo. Talvez ele saiba que Amnom não está se alimentando e está doente, mas ele pensa mesmo que essa jovem é melhor cozinheira que as experientes profissionais (perdão pelo trocadilho) à disposição de Amnom? Davi acredita mesmo que é uma boa terapia para Amnom ter uma bela jovem cozinhando para ele e servindo-o (na cama!)? Davi seria tão ingênuo? É preciso ler essa história com bastante desconfiança. Como ele pode ser tão crédulo a ponto de participar involuntariamente do esquema perverso de Amnom?
Conforme as instruções de Davi, Tamar vai à casa de Amnom e começa a preparar a comida para ele. Fico me perguntando o que se passa em sua cabeça enquanto ela vai para lá. Teria ele lhe passado alguma “cantada” anterior? Se sim, é provável que tenha sido repelido. Quando ela chega, ele está deitado. Ela começa a fazer o serviço, preparando, amassando e enrolando a massa em pequenos bolos. Durante todo o tempo, Amnom fica observando. Quando os bolos estão assados, ela tenta servi-los a ele, mas ele não quer. O filho do rei, então, ordena a todos que se retirem. Davi levou Tamar até lá e agora todos os presentes estão sob a autoridade de Amnom. Quem ousará desafiá-lo ou negar-lhe alguma coisa? E assim todos se retiram, deixando-o a sós com Tamar. Ele, então, diz a ela para levar-lhe a comida, no quarto, para “que ele coma de sua mão”. Assim, ela pega os bolos que fez e os leva para ele no quarto.
Nossa cabeça entra em parafuso quando lemos esse trecho. Será possível que nenhum dos que estavam presentes percebeu o que viria a seguir? Estavam todos com medo de fazer alguma objeção ou dizer não? E como Tamar não percebe nada? Ela não pode fugir? Os sinais de perigo estão lá, mas ela está na casa de Amnom a mandado do rei. É como observar um acidente de carro ocorrendo diante dos nossos olhos, vendo o que vai acontecer, mas impotentes para fazer alguma coisa.
Uma vez a sós, todas as sutilezas desaparecem. Amnom agarra Tamar, forçando-a a se deitar com ele. Ele não pede para eles se casarem — mas para ela dormir com ele. É interessante observar como ele expressa seu pedido: “Vem, deita-te comigo, minha irmã.” (verso 11, ênfase do autor). Por que ele ressalta este fato, relembrando Tamar exatamente daquilo que deveria impedi-lo de levar adiante seus desejos? Receio que a mesma coisa que deveria afastá-lo é o que o atraia a ela. Não teria ocorrido o mesmo com Davi? Conhecer o estado civil de Bate-Seba não o impediu de tomá-la; talvez até tenha reforçado seu desejo e sua determinação. Quando a “Dona Loucura” tenta atrair o “Sr. Simples”, no livro de Provérbios, ela usa coisas proibidas como parte da sua sedução (Provérbios 9:17). Isso deveria nos surpreender? Paulo não nos ensina que, quando a lei proíbe alguma coisa, o pecado usa essa mesma lei para nos instigar a fazer coisas ilícitas (Romanos 7:7ss)?
Tamar é realmente uma vítima inocente nessa história. Ela não encoraja Amnom; na verdade, ela o deixa frustrado com sua decisão de continuar virgem até se casar. Ela só vai à casa dele porque Davi mandou. Amnom ordena a todos que se retirem, para ninguém defendê-la. É difícil acreditar que ninguém saiba — ou pelo menos suspeite — das intenções dele. Quando ele faz o rude pedido a Tamar, ela responde exatamente como está na lei de Moisés. Quando ela fala: “Não, meu irmão” (ênfase do autor), ela dá a razão pela qual o pedido dele é errado. Ela fala da intimidade sexual desejada por ele como uma violação a ela, e será mesmo. O que ele fará com ela jamais poderá ser desfeito. A vergonha de Tamar nunca será removida, pois ele irá tirar sua virgindade. Ela não suplica só por si mesma, mas também para que ele aja em seu próprio interesse. Ao estuprá-la, ele se tornará como um dos loucos de Israel. Ele, o primogênito do rei, será como um dos homens mais vis da nação.
Suspeito que ela lhe faça um último apelo quando percebe que não poderá impedi-lo de tê-la. Que Amnom procure seu pai, Davi, e a peça em casamento. Certamente o rei não negará seu pedido. Há um certo precedente para suas palavras. Afinal, Sara era para Abraão o que Tamar será para Amnom. Eles tinham o mesmo pai, mas mães diferentes (ver Gênesis 20:12). Não acho que Tamar queira se casar com Amnom, mas casamento é melhor que estupro e desonra. Talvez ela espere que, ao falar com seu pai, ele seja repreendido e advertido a não pensar em tal coisa novamente ou a se aproximar dela.
Seu apelo não funciona. Amnom está determinado a se deitar com ela ali mesmo e naquele momento. Se ela não fizer de boa vontade, fará de qualquer jeito. Ele é maior e mais forte, e para ele, nesse momento, talvez não seja certo, mas vai acontecer.
Com certeza esta não é a cena que ele deve ter passado e repassado em sua cabeça, enquanto aguardava a ocasião propícia. Ela não quer, e este ato de violência nada tem a ver com amor. Da atração intensa e insuportável, os sentimentos de Amnom por Tamar se transformam em repulsa. Ele mal consegue olhar para a mulher que violentou. Ele ordena que ela saia. Novamente Tamar resiste. Ela lhe diz que, apesar de todo o mal feito por ele ao estuprá-la, será muito pior se ele lançá-la fora, pois deixará claro que não a terá como esposa. Quanto a se casar e ter filhos, ela não tem mais nenhuma opção. Mais uma vez, ele não dará ouvidos à razão ou à justiça.
Novamente vemos semelhanças entre o pecado de Amnom contra Tamar e o pecado de Davi contra Bate-Seba e Urias. Já foi mal suficiente Davi dormir com Bate-Seba, mas matar seu marido foi ainda pior. O segundo pecado de Amnom é a mesma coisa, quando ele lança fora Tamar depois de violentá-la.
Se antes foi Amnom quem agarrou Tamar, para não deixá-la ir, agora parece ser ela quem o agarra, para não ir. Já que ele a violentou, pelo menos que faça algo honroso e se case com ela. Amnom sente ainda mais aversão por isso, ordenando a seu servo que a lance para fora e tranque a porta. O servo obedece, e Tamar deixa a casa, rasgando sua túnica talar de mangas compridas e colocando cinzas sobre a cabeça. Enquanto segue seu caminho, ela põe as mãos na cabeça e chora. Com certeza, quem a vê, se não sabe exatamente o que aconteceu, pelo menos sabe que algo terrível lhe sucedeu.
Absalão, seu irmão, lhe disse: Esteve Amnom, teu irmão, contigo? Ora, pois, minha irmã, cala-te; é teu irmão. Não se angustie o teu coração por isso. Assim ficou Tamar e esteve desolada em casa de Absalão, seu irmão. Ouvindo o rei Davi todas estas coisas, muito se lhe acendeu a ira. Porém Absalão não falou com Amnom nem mal nem bem; porque odiava a Amnom, por ter este forçado a Tamar, sua irmã. Passados dois anos, Absalão tosquiava em Baal-Hazor, que está junto a Efraim, e convidou Absalão todos os filhos do rei. Foi ter Absalão com o rei e disse: Eis que teu servo faz a tosquia; peço que com o teu servo venham o rei e os seus servidores. O rei, porém, disse a Absalão: Não, filho meu, não vamos todos juntos, para não te sermos pesados. Instou com ele Absalão, porém ele não quis ir; contudo, o abençoou. Então, disse Absalão: Se não queres ir, pelo menos deixa ir conosco Amnom, meu irmão. Porém o rei lhe disse: Para que iria ele contigo? Insistindo Absalão com ele, deixou ir com ele Amnom e todos os filhos do rei. Absalão deu ordem aos seus moços, dizendo: Tomai sentido; quando o coração de Amnom estiver alegre de vinho, e eu vos disser: Feri a Amnom, então, o matareis. Não temais, pois não sou eu quem vo-lo ordena? Sede fortes e valentes. E os moços de Absalão fizeram a Amnom como Absalão lhes havia ordenado. Então, todos os filhos do rei se levantaram, cada um montou seu mulo, e fugiram. Iam eles ainda de caminho, quando chegou a notícia a Davi: Absalão feriu todos os filhos do rei, e nenhum deles ficou. Então, o rei se levantou, rasgou as suas vestes e se lançou por terra; e todos os seus servos que estavam presentes rasgaram também as suas vestes. Mas Jonadabe, filho de Siméia, irmão de Davi, respondeu e disse: Não pense o meu senhor que mataram a todos os jovens, filhos do rei, porque só morreu Amnom; pois assim já o revelavam as feições de Absalão, desde o dia em que sua irmã Tamar foi forçada por Amnom. Não meta, pois, agora, na cabeça o rei, meu senhor, tal coisa, supondo que morreram todos os filhos do rei; porque só morreu Amnom. Absalão fugiu. O moço que estava de guarda, levantando os olhos, viu que vinha muito povo pelo caminho por detrás dele, pelo lado do monte. Então, disse Jonadabe ao rei: Eis aí vêm os filhos do rei; segundo a palavra de teu servo, assim sucedeu. Mal acabara de falar, chegavam os filhos do rei e, levantando a voz, choraram; também o rei e todos os seus servos choraram amargamente.
Uma das pessoas cientes dos fatos acontecidos com Tamar é Absalão, seu irmão (por parte de pai e mãe). Ele a deixa saber que ele sabe o que Amnom fez a ela, e então faz algo surpreendente — nada, aparentemente. Ele parece dizer-lhe para manter segredo sobre isso, deixando tudo em família. Ela deve ficar em silêncio e não se angustiar. Será que ele acha mesmo que ela pode fazer isso? Talvez para mantê-la calada, ou para ajudá-la a lidar com o trauma, ele a leva para sua própria casa. Nesta passagem, pelo menos, ele não conta à irmã quais são suas intenções. No entanto, segundo as palavras de Jonadabe a Davi dois anos depois, Absalão já tinha intenção de matar Amnom desde quando soube que o irmão tinha violentado Tamar (verso 32). Jamais esta linda mulher poderá se casar ou ter filhos. É quase impossível calcular tudo o que Amnom roubou de sua irmã nesse dia terrível.
Superficialmente, a reação de Davi à notícia do estupro de sua filha parece semelhante à de Absalão. No entanto, ele não esconde sua raiva. O autor nos diz que ele sabe de tudo o que aconteceu (verso 21). Contudo, ele parece não fazer absolutamente nada. Por que será? Seria ele incapaz de obter o tipo de testemunho requerido pela lei? Pode ser, mas não parece provável. Estaria ele com medo de ser hipócrita? Como poderia punir o filho por fazer algo que ele mesmo fez? Ou ainda, Davi estaria indeciso por também ser parcialmente culpado? Afinal, foi ele quem mandou Tamar à casa de Amnom.
Ao que tudo indica, ele extravasa sua raiva, embora não lide com Amnom como deveria. Absalão, entretanto, parece a essência do autocontrole. Ele esconde o ódio e a fúria e age como se nada tivesse acontecido. No íntimo, porém, ele tem intenção de fazer com que Amnom pague por arruinar a vida da sua irmã. Motivo ele já tem. Só faltam os meios e a oportunidade. Eles virão dentro de dois anos. Até lá, ele nem mesmo fala de Amnom. Ele o trata como se Amnom nem existisse; e logo não existirá.
Dois anos se passam. Aparentemente tudo foi esquecido e Amnom escapou impune do seu crime. Talvez Absalão tenha feito outras tentativas para afastá-lo do olhar atento e protetor de Davi, e não tenha conseguido; mas desta vez seu plano será bem sucedido. Chega a época da tosquia, e ele, como muitos outros, termina o serviço e planeja uma comemoração. Ele sabe o quanto Davi aprecia essas coisas, não só por ter sido pastor quando garoto, mas também por suas experiências em um passado mais recente (ver I Samuel 25:2 e ss). Eis o pretexto pelo qual Absalão vem esperando.
Duvido muito que ele queira a presença de Davi na comemoração em Baal-Hazor, distante uns 30 km ao norte e a leste de Jerusalém. Davi não está disposto a fazer a jornada, e acho que Absalão sabe disso. Além do mais, Davi e seu séquito formarão um grupo enorme, grande demais para ser acomodado com facilidade. E assim, Davi não vai, mas dá a Absalão sua bênção. Absalão já esperava por essa resposta, e não desiste. Ele, então, pressiona o pai para obter aquilo que realmente deseja — que Davi mande8 Amnom. Estaria Absalão sugerindo que Amnom represente Davi como seu primogênito? Não sabemos, pois o texto não diz.
Davi, entretanto, estranha o pedido. Por que Absalão pede justamente a presença de Amnom? Ele pressiona o filho, mas este parece se esquivar da pergunta, continuando a insistir para o rei mandar Amnom. Será ideia de Davi mandar todos os filhos junto com Absalão? Talvez. Isso aparentemente acalma suas suspeitas. De uma forma ou de outra, Davi fica em casa (Ô cara, já viu esse filme?), enviando seus filhos em seu lugar.
Absalão já bolou um plano e deu instruções aos servos. Da mesma forma que Davi instruiu Joabe a matar Urias, agora é Absalão quem instrui os servos a matar Amnom9. Ele cuidará para que Amnom beba com ele, e assim fique “alegre de vinho” (isso também parece dar uma estranha sensação de deja vu, quando nos lembramos de que Davi também tentou deixar Urias de coração alegre para conseguir dele o que queria). Quando Amnom estiver suficientemente bêbado, Absalão dará a ordem, e os servos o matarão. Eles não devem temer; ele assumirá total responsabilidade pelo que fizerem a Amnom. Chegada a hora, Absalão ordena e a vida de Amnom é tirada.
Os outros filhos de Davi ficam apavorados quando veem Amnom ser morto pelos servos de Absalão. Será que Absalão pretende matá-los também? Eles não ficam esperando para descobrir. Todos montam em suas mulas e fogem de volta para Jerusalém. As notícias alcançam Davi antes de seus filhos serem avistados. Como quase sempre acontece, as primeiras informações são exageradas. Dizem a Davi que todos os seus filhos foram mortos e nenhum sobreviveu. Bem, antes que nossos pensamentos coloquem essa falsa informação de lado, deixe-me chamar a atenção para o intenso sofrimento vivido por Davi quando ele ainda acredita que a informação seja verdadeira. Seu sentimento deve ser muito parecido com o de Jó, quando este soube da morte de todos os seus filhos (ver Jó 1). Quanto sofrimento para tão pouco tempo! É como a morte do filho de Davi com Bate-Seba multiplicada muitas e muitas vezes (ver 12:14 e ss). Ele rasga suas vestes e se prostra no chão, seguido por todos os servos.
Nesse meio-tempo, entre a primeira informação (incorreta) e a chegada dos filhos de Davi, Jonadabe se aproxima dele, garantindo que a notícia não é verdadeira. Ele diz a Davi que apenas um de seus filhos está morto — Amnom — e que Absalão já tinha intenção de matá-lo desde quando sua irmã, Tamar, fora estuprada por ele. Por isso, insta Jonadabe, o rei não deve se afligir demais, como se todos estivessem mortos (versos 32-33).
Observe algo interessante sobre as palavras de Jonadabe: só há uma maneira de ele saber o que diz a Davi. Ele não foi à festa na fazenda de Absalão junto com os filhos do rei. Ele não estava lá para saber o que ocorreu. As informações iniciais vieram (direta ou indiretamente) de quem estava lá, em Baal-Hazor. Como ele pode garantir a Davi que as informações não são verdadeiras, quando não estava lá para ver o que aconteceu? Só há uma resposta, pelo que posso dizer. Jonadabe já sabia quais eram as intenções de Absalão com relação a Amnom. Ele conhecia seus planos, mas não disse nem fez nada para impedi-lo.
Não gosto do que vejo em Jonadabe neste capítulo. Talvez ele seja um rapaz muito esperto, mas também parece oportunista e sem escrúpulos. Ele devia ter ideia das intenções de Amnom com relação a Tamar, mas nada fez para impedi-lo. Em vez disso, ele lhe disse como alcançar seu vil objetivo. E agora, depois de ter sido apenas um coadjuvante antes do estupro de Tamar, ele aumenta ainda mais o seu pecado por saber dos planos de Absalão para matar Amnom e não fazer nada quanto a isso (francamente, me deixa surpreso ele não ter dito a Absalão como levar Amnom para a fazenda). Além do mais, ele usa esse conhecimento para tentar se promover diante de Davi. Ele parece ter uma razão bem matreira para lhe dizer que somente Amnom foi morto, antes do retorno dos filhos do rei a Jerusalém. Seu regresso prova que ele sabe do que está falando. Quando eles chegam, ele diz: “Eis aí vêm os filhos do rei; segundo a palavra de teu servo, assim sucedeu.” (verso 35). Acho que ele está tentando ganhar pontos com Davi.
Pouco depois de Jonadabe garantir a Davi que apenas um filho está morto, o vigia olha e vê muitos homens chegando. Logo, todos os filhos de Davi alcançam Jerusalém, exceto dois: Amnom, que está morto, e Absalão que o matou e fugiu. Nesse momento os filhos de Davi começam a chorar, e ele se junta a eles no lamento pela morte de Amnom. Todos choram amargamente.
Ao concluir esta lição, deixe-me sugerir algumas maneiras desta passagem nos instruir.
Primeira, o texto é colocado imediatamente após o trecho que descreve o pecado de Davi e suas consequências pessoais com a morte do seu primeiro filho com Bate-Seba. Isso ocorre não só devido aos acontecimentos do capítulo 13 se seguirem aos do capítulo 12, mas também porque o capítulo 13 descreve outras consequências do pecado de Davi. Esse pecado, antes pessoal e particular, agora tem impacto sobre toda nação. O pecado de Davi o afetou mesmo, afetou sua esposa e seu filho, e agora afeta os outros membros da sua família. Em breve, ele dividirá a nação e afastará Davi do trono durante um certo período.
Creio que a morte do bebê de Davi (capítulo 12), e agora o estupro da sua filha e assassinato do seu filho (capítulo 13) não sejam punições divinas por causa do seu pecado, mas disciplina de Deus. Se Davi tivesse de ser punido por seu pecado, ele teria de morrer. Natã lhe disse que ele não morreria, pois seus pecados foram removidos. As tragédias ocorridas a partir daqui são destinadas a educar e corrigir, mesmo sendo também dolorosas. Isso é totalmente condizente com os ensinamentos da Palavra de Deus (ver Hebreus 12:1-13).
Hugh Blevins, amigo e companheiro de conselho, fez uma observação a respeito deste texto. Deus orquestra os acontecimentos de forma que Davi viva o seu próprio pecado da perspectiva dos outros. De fato, algumas pessoas da sua família fazem a ele o que ele fez a Deus. Assim como ele abusou da sua autoridade como “rei de Israel” para pecar contra Deus aproveitando-se de Bate-Seba, Amnom agora abusa da sua autoridade e posição como “filho do rei” para se aproveitar de Tamar. Assim como Davi pecou matando Urias, Absalão peca ao matar Amnom. Agora Davi pode sentir o mesmo que Deus, Bate-Seba e outras pessoas afetadas por seu pecado sentiram.
Segunda, o texto tem muito a ensinar para Davi e para nós sobre pecado. Observe que o pecado quase sempre tem início com algum tipo de “fruto proibido”. Para Adão e Eva, foi comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Para José, a esposa de Potifar. Para Daniel e seus amigos, as iguarias do rei. Para Davi, Bate-Seba. Para Amnom, Tamar. Vemos que, embora o pecado geralmente comece pequeno e pessoal, ele cresce rapidamente, tornando-se maior e mais conhecido. E ainda, de acordo com o texto, o pecado não compensa. O preço é sempre muito mais alto que o valor. O pecado e suas consequências jamais serão motivo de riso para Davi, para sua família, ou para a nação de Israel. Como disse Mark Twain certa vez: “É melhor ficar do lado de fora do que ter de sair.” Com certeza isso se aplica ao pecado.
Esta passagem certamente nos encoraja a ficar do lado de fora do pecado. Mas ela também nos ensina que, uma vez começado, quanto mais cedo for interrompido, melhor para todos. Como teria sido melhor para todo mundo se o astuto Jonadabe tivesse repreendido Amnom pelo seu desejo pecaminoso ao invés de dizer-lhe como conseguir o que queria. Como teria sido melhor se Davi tivesse reconhecido a maldade do pedido de Amnom e não tivesse deixado sua filha ir vê-lo, e nem Amnom ir à fazenda de Absalão. Eis aqui uma passividade dolorosamente evidente diante do pecado dos outros. Quem não corrige aqueles que pecam torna-se coconspirador na ampliação do seu pecado. Quantas famílias já não tiveram grande sofrimento devido à mãe ou ao pai não querer disciplinar o filho teimoso ou rebelde? Quantos casamentos já não foram desfeitos devido ao marido ou a esposa não querer lidar com o pecado na sua vida ou na vida do seu cônjuge? Como é comum as famílias seguirem a recomendação de Absalão — mantendo o pecado como segredo de família.
Sem dúvida, vemos que o pecado separa. Nós sabemos (ou deveríamos saber) que ele nos separa de Deus. E também nos separa dos outros. O pecado de Adão e Eva provocou sua separação de Deus, e logo depois, o pecado separou Caim e Abel. O pecado separou José e seus irmãos. O pecado dividiu a família de Davi. O pecado separou Amnom e Tamar, Amnom e Absalão, Davi e Absalão e, finalmente toda a nação. O pecado é a raiz da falta de união e da divisão.
Terceira, cada um dos personagens do texto tem algo a nos ensinar. Amnom nos adverte a respeito da busca por paixões carnais (compare com I Coríntios 10). Jonadabe, sobre o perigo de usar o pecado alheio para favorecimento próprio, tornando-o parte dos nossos interesses, em vez de pagarmos o preço de repreender e corrigir. Davi nos ensina a respeito da passividade diante do pecado. Ele sabia de tudo sobre o crime cometido contra sua filha, e mesmo assim parece não ter feito nada a esse respeito. Por que não? Seria devido à sua própria culpa pelo pecado cometido com Bate-Seba? Estaria ele receoso de que, se corrigisse Amnom, alguém lhe dissesse quem era ele para atirar pedra em pecadores? Quaisquer que fossem as razões da sua inércia, isso só facilitou o pecado dos outros. E da parte de Absalão, aprendemos sobre os perigos do ressentimento e da amargura. Ele não quis resolver o problema com Amnom de forma bíblica. Ele preferiu se vingar do seu próprio jeito. Por isso, quando o fez, ele se tornou assassino e fugitivo.
Quarta, este texto tem muito a nos ensinar sobre amor. Nem tudo que é chamado de amor é necessariamente amor. É óbvio que Amnom acha que está amando, mas também é óbvio que não está. Para ele, amor é sinônimo de sexo. Seu tipo de “amor” é frustrado pela castidade, e não está nenhum pouco preocupado com a justiça (tal como a conduta prescrita pela lei de Deus). O “amor” de Amnom não passaria no teste de I Coríntios 13. Tamar nunca foi enganada por ele a esse respeito. Como é triste ver tantas jovens perdendo a virgindade devido a umas poucas palavras melosas, ditas por um jovem dominado por seus hormônios. Hoje em dia, há moças que não conseguem manter os mesmos valores ou o mesmo padrão de Tamar. Elas não veem a pureza sexual como algo a ser valorizado e protegido; elas a veem como maldição, a qual deve ser perdida o mais rápido possível. Que esta passagem nos ensine o verdadeiro significado do amor e o grande valor da pureza sexual, seja do homem ou da mulher.
Finalmente, esse texto lança luz sobre a boa nova do evangelho de Jesus Cristo. Pense em como Absalão se sentiu sobre o abuso de Amnom a Tamar, sua irmã. Pense em como Davi se sentiu sobre o abuso sofrido por sua filha. Só podemos imaginar como ele conseguiu não fazer nada a Amnom. Agora, com isso em mente, pense em como Deus Pai deve ter se sentido, e ainda se sente, sobre quem rejeita, e se rebela e blasfema contra Seu Filho inculpável, Jesus Cristo. Quando Deus O enviou ao mundo, há pouco mais de 2.000 anos, os homens O rejeitaram e O consideraram como pecador, crucificando-O na cruz do Calvário. Se você fosse Deus, como se sentiria em relação àqueles que fizeram isso, e em relação àqueles que não aceitam Cristo ainda hoje?
Tenho uma notícia boa e outra má para você. Deixe-me começar pela má. A má notícia é que Deus vai punir todos os que rejeitam Seu Filho. Quando voltar à terra, Cristo virá em glória e com poder para subjugar Seus inimigos:
“Respondeu-lhe (ao sumo sacerdote) Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que, desde agora, vereis O FILHO DO HOMEM ASSENTADO À DIREITA DO TODO-PODEROSO e VINDO SOBRE AS NUVENS DO CÉU.” (Mateus 26:64)
“A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara: DISSE O SENHOR AO MEU SENHOR: ASSENTA-TE À MINHA DIREITA, ATÉ QUE EU PONHA OS TEUS INIMIGOS POR ESTRADO DOS TEUS PÉS. Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.” (Atos 2:32)
“Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos.” (Atos 17:30-31)
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Filipenses 2:5-11)
“Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.” (Salmo 2)
Ninguém que tenha vivido é digno da vida eterna. Todo ser humano é nascido em pecado e incapaz de alcançar o padrão de justiça estabelecido por Deus (Romanos 3:23; 6:23). Todos nós merecemos a condenação da morte. Deus, em Sua graça e misericórdia, deu a solução na pessoa do Seu Filho Jesus Cristo. Ele veio à terra, acrescentando perfeita humanidade à Sua plena divindade. Ele viveu uma vida sem pecado, revelando a Si mesmo como o único caminho Deus para a vida eterna (João 14:6). Deus colocou sobre Seus ombros a culpa pelos nossos pecados e, quando Ele morreu na cruz e ressuscitou da morte, Ele providenciou um meio de salvação para todos os que a recebem.
“Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome.” (João 1:12)
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16)
“Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Romanos 3:21-26)
“De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.” (II Coríntios 5:20-21)
“Se admitimos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior; ora, este é o testemunho de Deus, que ele dá acerca do seu Filho. Aquele que crê no Filho de Deus tem, em si, o testemunho. Aquele que não dá crédito a Deus o faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá acerca do seu Filho. E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida. Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em o nome do Filho de Deus.” (I João 5:9-13)
A grande nova do evangelho é que nós não precisamos sofrer a ira de Deus por causa do nosso pecado. Cristo já pagou a pena para todos quantos recebem a sua salvação. A má notícia é que, quem rejeita o Filho, e a penalidade paga por Ele, algum dia estará diante Dele como inimigo derrotado, reconhecendo-O como o Rei soberano de toda terra. Oro para que você receba esta dádiva de perdão e vida eterna, a fim de que possa se tornar parte da família real de Deus, em vez de permanecer como um de Seus inimigos.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Separei os três primeiros irmãos de Davi dos três últimos porque eles são mencionados em I Samuel 16 como seus irmãos mais velhos, e no capítulo 17 como as únicas pessoas da sua família que vão para a guerra. O nome dos últimos está em I Crônicas 2. Jonadabe, filho de Simeia, é citado várias vezes em nosso texto. Abisai, Joabe e Asael são filhos de Zeruia, irmã de Davi, os quais desempenham papel significativo em sua vida. Amasa, filho de Abigail, será designado comandante do exército de Israel por Absalão, quando este temporariamente se apossar do reino de Davi em II Samuel 17. Ao retomar o trono, Davi o colocará em lugar Joabe (capítulo 19) e, logo em seguida, ele será morto por Joabe (capítulo 20).
2 Os três filhos de Davi que nos interessam aqui são: Amnom, filho de Ainoã, e Absalão e Tamar, filhos de Maaca. Adonias, filho de Hagite, é o único que tentará firmar-se como sucessor de Davi, conforme descrito em I Reis.
3 Talvez este seja um bom lugar para uma observação. A palavra “amor” é usada quatro vezes em nosso texto. É claro que o “amor” de Amnom nada mais é do que lascívia, e ainda assim, nessas quatro vezes os tradutores da Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento, usaram a palavra grega agapao. Quem sugere ou afirma que o “amor ágape” é amor divino, a forma mais sublime de amor, tome nota de que isso não condiz com o uso da palavra, seja na Septuaginta, seja no Novo Testamento. Sejamos cautelosos com as simplificações.
4 Há outras “Tamares” no Antigo Testamento. Uma é a nora de Judá, que se encontra em Gênesis 38, e outra é a “Tamar”, filha de Absalão (II Samuel 14:27). Será que ele honrou sua irmã (a qual permaneceu estéril pelo resto da vida), colocando o nome dela em sua filha?
5 Observe que, quando se torna evidente para ela quais são as intenções de Amnom, ela, então, se propõe a se casar com ele, de uma forma ou de outra (veja o verso 13).
6 Definitivamente tem-se a impressão de que Amnom tem um respeito saudável por (ou até medo de) Absalão. Não é só o fato de Tamar querer se manter virgem, mas ela também tem Absalão para proteger sua virtude. Irmãos adultos (e pais) têm uma certa forma de suscitar o temor de Deus nos pretendentes de suas irmãs (e filhas).
7 Ainda não terminamos de falar sobre Jonadabe. Este é apenas o primeiro de seus atos perversos, o segundo logo será mostrado.
8 A palavra “enviar” ou “enviou” (ou as equivalentes implícitas) continua aparecendo no texto. Inúmeras vezes ela é encontrada no capítulo 11, onde Davi usa sua autoridade para (manda) realizar, e aumentar, seu pecado com relação a Bate-Seba e Urias. Aqui no capítulo 13, ele “envia” Tamar para Amnom (verso 7) e, praticamente, Amnom (junto com os demais filhos) para Absalão (verso 27).
9 A diferença é que Urias foi morto por ser justo, enquanto Amnom é morto por ser depravado.
Quem já perdeu um filho conhece a dor causada por isso. A morte é uma experiência muito dolorosa, mas há outras maneiras — ainda piores — de se perder um filho. No que diz respeito à sua família, Davi sofreu muitas perdas, especialmente com relação aos filhos. Primeiro ele perdeu a primeira criança nascida de Bate-Seba, a viúva de Urias (capítulo 12). Algum tempo depois, sua filha Tamar perdeu a virgindade em um estupro, estupro esse cometido por seu meio-irmão Amnom. Em seguida, Davi perdeu Amnom, devido à vingança de Absalão por causa do estupro de Tamar, sua irmã. A perda mais dolorosa de todas parece ter sido a de Amnom. Finalmente, Davi “perdeu” Absalão, morto pelas mãos de Joabe e seus servos; mas, na verdade, ele já havia “perdido” Absalão muito tempo antes. Ele o perdeu quando Absalão matou o irmão, Amnom, e fugiu para Gesur, onde seu avô, Talmai, pai de sua mãe, Maaca (2 Samuel 3:3), era rei e ofereceu-lhe refúgio. Tal perda nunca foi recuperada, embora Absalão tenha obtido permissão para voltar a Jerusalém e à presença do rei. Esse é o tipo de perda mais doloroso para um pai, pois sei que muitos de vocês passam por isso.
Tenho certeza de que quem teve esse tipo de perda também já experimentou o sentimento de culpa que muitas vezes a acompanha. À primeira vista, essa culpa parece ter sido acrescentada ao texto. Não parece que foi Davi quem provocou grande parte do seu próprio sofrimento? A perda de Absalão não seria consequência de suas falhas paternas? Não foi Davi quem, mesmo sabendo do estupro de Tamar e tendo ficado furioso por causa disso, não fez nada a respeito? Não foi ele quem deixou Absalão viver em Gesur e depois permitiu, com relutância, a sua volta, mas só o viu pessoalmente quando foi literalmente pressionado a isso? Absalão não é fruto de um lar fracassado?
Devo confessar que, a princípio, esta também era minha opinião. Eu estava a ponto de mostrar as falhas paternas de Davi e sugerir que elas provocaram a queda e, por enfim, a morte do seu filho, Absalão. Agora, porém, já não vejo as coisas dessa maneira. Não é que Davi não tenha pecado ou cometido erros, mas é evidente que a queda de Absalão é consequência do seu próprio pecado, das suas próprias escolhas. Em meio ao sofrimento e à dor causados pela “perda” de Absalão, acredito que Deus esteja graciosamente ensinando Davi, levando-o para mais perto de Si e tornando-o um homem cada vez mais segundo o Seu próprio coração. A história é cheia de intriga e tristeza, mas, conforme lemos essa narrativa inspirada da Palavra de Deus, encontramos muita paz e consolação.
A história começa muito antes do nosso texto. Em 1 Samuel 8, os líderes de Israel confrontaram Samuel e exigiram a designação de um rei para governá-los. Essa exigência desagradou tremendamente a Samuel e a Deus, pois o coração do povo não era reto diante do Senhor. Sob orientação divina, Samuel advertiu o povo sobre o alto custo de ter um rei (capítulo 8). Pouco depois, ele os repreendeu por causa de seus pecados, relembrando-os da fidelidade de Deus no cumprimento das Suas promessas, levando-os àquela terra e dando-lhes sua possessão (capítulo 12). Deus deixou bem claro, por meio de Samuel, que um rei não iria, e não poderia, salvá-los; sempre fora Ele quem salvara Seu povo e quem continuaria a salvá-lo. Se o povo e seu rei confiassem em Deus e O obedecessem, Ele continuaria a livrá-los e abençoá-los. Se não, “pereceriam, tanto eles como o seu rei” (1 Samuel 12:25b).
Saul foi escolhido e designado por Deus para ser o primeiro rei de Israel. De modo geral, até que ele se saiu bem em seu trabalho (1 Samuel 14:47-48). Em algumas áreas, ele foi até melhor que Davi. Até onde sabemos, ele não multiplicou para si esposas, cavalos ou riquezas (ver Deuteronômio 17:14-20). Não há registro de que ele tenha cometido adultério como Davi. Ele realmente subjugou muitos inimigos de Israel. Seus grandes pecados foram aqueles decorrentes de sua rebeldia contra Deus: primeiro, por não esperar Samuel e acabar oferecendo ele mesmo os sacrifícios (1 Samuel 13); depois, por não aniquilar totalmente os amalequitas (1 Samuel 15); e então, por pedir orientação a uma médium e não a Deus (1 Samuel 28).
Davi foi um grande rei e um homem segundo o coração de Deus. O pecado relacionado a Urias e Bate-Seba foi exceção à regra, mas foi um pecado monumental (1 Reis 15:5). A chave para a compreensão do que acontece em nosso texto é a acusação feita por Natã a Davi:
“Então, disse Natã a Davi: Tu és o homem. Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Eu te ungi rei sobre Israel e eu te livrei das mãos de Saul; dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor em teus braços e também te dei a casa de Israel e de Judá; e, se isto fora pouco, eu teria acrescentado tais e tais coisas. Por que, pois, desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amnom. Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.” (2 Samuel 12:7-12)
Todo poder, todas riquezas e toda glória de Davi lhe foram dados por Deus. Sua prosperidade não foi fruto da sua grandeza, mas da graça de Deus. Deus lhe disse que, se ele pedisse, Ele lhe daria “muito mais”. Davi queria mais, mas em vez de obedecer a Deus e pedir-Lhe, ele tomou Bate-Sabe, a esposa de Urias, ao qual depois matou. Deus graciosamente “removeu” o pecado de Davi, para que ele não tivesse de morrer, como requerido pela lei. Todavia, houve algumas consequências. A primeira foi a morte de seu primeiro filho com Bate-Seba (2 Samuel 12:14-23). A segunda foi o estupro de Tamar, sua filha, por seu próprio filho (e meio-irmão de Tamar, Amnom; 2 Samuel 13:1-19). A consequência seguinte foi a morte de Amnom pelas mãos (ou melhor, pela ordem) de Absalão, filho de Davi e irmão de Tamar (2 Samuel 13:20-36). Por conseguinte, Davi perdeu outro filho, Absalão, o qual teve de fugir de Israel e procurar refúgio em Gesur, lugar governado por seu avô, Talmai (2 Samuel 13:37). Absalão ainda não estava literalmente morto, mas certamente estava perdido para Davi e, para todos os efeitos, continuaria assim até sua morte, inclusive, pelas mãos de Joabe (2 Samuel 18).
O objetivo desta mensagem é enfocar Absalão, seu caráter e sua rebelião contra o pai, e também a maneira como Deus o usou para disciplinar Davi e atraí-lo para mais perto de Si mesmo. Para tanto, precisamos voltar ao capítulo 13, onde vislumbramos pela primeira vez o caráter de Absalão.
Já estudamos este texto na mensagem anterior, por isso não vou repassar novamente os detalhes. O que desejo fazer agora é mostrar os primeiros sinais de insubordinação de Absalão (contra Deus e Davi), e o início do rompimento entre pai e filho.
Sabemos que Amnom, auxiliado por Jonadabe, fez um mal tremendo à sua família, especialmente à sua irmã. Ele enganou Davi, para que este desse ordens a Tamar para servir-lhe “café na cama”. Ele violentou a irmã e depois se recusou a fazer a coisa certa, casando-se com ela. Mas ele não foi o único a enganar o pai. Absalão fez a mesma coisa.
O que me perturba muito nesse texto são estas palavras sobre Davi:
“Ouvindo o rei Davi todas estas coisas, muito se lhe acendeu a ira.” (1 Samuel 13:21)
Fico me perguntando como ele pôde ficar tão irado com Amnom e mesmo assim não ter feito nada. Acho que agora estou entendendo. As palavras do verso 21 vêm não só depois da narrativa do pecado de Amnom, mas também da interferência de Absalão:
“Absalão, seu irmão, lhe disse: Esteve Amnom, teu irmão, contigo? Ora, pois, minha irmã, cala-te; é teu irmão. Não se angustie o teu coração por isso. Assim ficou Tamar e esteve desolada em casa de Absalão, seu irmão.” (2 Samuel 13:20)
Vamos voltar um pouco para refletir sobre como a justiça bíblica teria visto o caso do estupro de Tamar. Poderíamos pensar que Amnom, como Davi, merecia a pena de morte. Mas não era o caso, pois Davi adulterou com uma mulher casada; Amnom violentou uma virgem. A lei era bem clara quanto à pena para esses casos:
“Se alguém seduzir qualquer virgem que não estava desposada e se deitar com ela, pagará seu dote e a tomará por mulher. Se o pai dela definitivamente recusar dar-lha, pagará ele em dinheiro conforme o dote das virgens.” (Êxodo 22:16-17)
“Se um homem achar moça virgem, que não está desposada, e a pegar, e se deitar com ela, e forem apanhados, então, o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça cinqüenta siclos de prata; e, uma vez que a humilhou, lhe será por mulher; não poderá mandá-la embora durante a sua vida.” (Deuteronômio 22:28-29)
Tamar suplicou a Amnom que pedisse a Davi para dá-la a ele como esposa, mas Amnom não quis. No mínimo, ele deveria ter se casado com ela depois de tê-la violentado. Isso, na verdade, era o que a lei prescrevia. Somente a recusa de Davi teria impedido o casamento1. Por que, então, isso não aconteceu? Por que Amnom não se casou com Tamar? Pela história, fica bem claro que ele não queria mais nada com ela. Mas somente isso não teria impedido o casamento, pois Amnom não tinha escolha. O que o impediu de se casar com Tamar foi a interferência de Absalão, irmão dela.
Pelo texto, fica claro para mim que Absalão tinha em mente uma punição bem diferente:
“Mas Jonadabe, filho de Siméia, irmão de Davi, respondeu e disse: Não pense o meu senhor que mataram a todos os jovens, filhos do rei, porque só morreu Amnom; pois assim já o revelavam as feições de Absalão, desde o dia em que sua irmã Tamar foi forçada por Amnom.” (2 Samuel 13:32)
Absalão odiava o meio-irmão pelo que ele tinha feito com Tamar, sua irmã. Ele não tinha nenhuma intenção de permitir ao rapaz se safar com tanta facilidade quanto a lei teria permitido. Desde o dia em que Tamar fora violentada, Absalão pretendia matar Amnom. Era só uma questão de tempo e oportunidade. Foi por isso que ele agiu como está registrado no verso 20. Ele disse à irmã para se calar e manter o assunto em família. Em outras palavras, ela não devia acusar Amnom. Em linguagem jurídica atual, ela não devia prestar queixa. Ela devia deixar o assunto com Absalão. Além disso, ele a levou para a casa dele, onde ela permaneceria desolada pelo resto da vida2.
O comportamento de Absalão preparava o terreno para o assassinato de Amnom. Sua conduta impediu Tamar de se casar e ter filhos. E também impediu Davi de agir de acordo com a lei de Moisés. Não é de admirar que Davi tenha ficado tão irado quando ouviu todas aquelas coisas. Ele ficou furioso porque estava de mãos atadas para tratar do caso de Amnom. O estupro de Tamar era um rumor não consubstanciado. As mãos de Davi foram atadas por Absalão. Davi, creio eu, ficou furioso não só pelo que Amnom fez, mas também pela atitude de Absalão.
Mas as transgressões de Absalão não param por aqui. Após se passarem dois anos e surgir uma oportunidade para tirar a vida de Amnom, ele realiza seu intento, fazendo de Davi um cúmplice involuntário (embora um tanto relutante — como se pudesse sentir que algo não cheirava bem nas intenções de Absalão, mas sem saber exatamente o quê). Da mesma forma que Amnom enganou Davi, pedindo-lhe para mandar Tamar à sua cabeceira, Absalão também engana Davi, pedindo-lhe para mandar Amnom à sua fazenda.
A reação inicial de Davi, como era de se esperar, foi de tristeza pela morte de Amnom. Mas já que ele estava morto, Davi podia e queria seguir em frente. Como o autor do texto coloca, Davi “já se tinha consolado acerca de Amnom, que era morto” (13:39). O filho de Davi, Amnom, se fora; seu filho Absalão estava vivo, mas escondendo-se como fugitivo da justiça no reino de Gesur, governado por seu avô, Talmai (ver 2 Samuel 3:3). Davi amava Absalão e desejava poder vê-lo (ele sabia que Absalão não podia ir até ele, pois era um assassino condenado à morte se voltasse a Israel).
Joabe conhecia o desejo de Davi e bolou um plano para trazer Absalão de volta a Israel. De forma alguma quero dizer que os motivos de Joabe eram autênticos. Quero dizer que ele, como Absalão, parecia determinado a obstruir a justiça. Meu entendimento deste capítulo está, de alguma forma, relacionado à presunção de que as ações de Joabe não são muito confiáveis, por isso, permitam-me explicar como cheguei a essa conclusão.
Embora, possa parecer à primeira vista, a “história” contada pela mulher de Tecoa não é do mesmo tipo da história contada por Natã, a qual levou Davi ao arrependimento. Natã era profeta; a mulher de Tecoa, não. Natã foi enviado por Deus para falar com Davi; a mulher de Tecoa, por Joabe. A mulher parece temer Joabe e não estar muito disposta a fazer o que lhe foi pedido; Natã abordou Davi com confiança. A história da mulher não é real; a história de Natã, embora imaginária, retratou fielmente o pecado de Davi. A história de Natã terminou com uma acusação “Tu és o homem!” A historia da viúva não acusa Davi de pecado, mas de incoerência. Quando Natã acusou Davi, este prontamente reconheceu seu pecado; quando a viúva atinge o ponto principal do plano de Joabe, Davi cede a seu pedido com relutância. Joabe parece grato demais pelo consentimento de Davi, como se isso fosse um favor pessoal a ele, não a coisa certa a fazer.
Quando o encontro com a mulher de Tecoa chega ao fim, Davi parece suspeitar, com razão, que “tem caroço no angu”. O “caroço” é Joabe. Ao pressionar a mulher para lhe contar “toda a verdade e nada mais que a verdade” (que o plano foi de Joabe), ela diz a Davi que foi tudo ideia de Joabe e ela não queria levar o plano adiante. Ela parece suspirar de alívio quando a encenação termina. Ela diz que Joabe orquestrou tudo para “mudar a aparência das coisas” (verso 20). Isso não soa como se ela dissesse: “fiz tudo isso para o senhor fazer a coisa certa”?
As ações posteriores de Joabe (sem mencionar algumas anteriores, como o assassinato de Abner) parecem trair suas segundas intenções. O amor por Absalão aparentemente é o ponto fraco de Davi, o qual Joabe tenta explorar em benefício próprio. Quando Absalão se rebela contra o pai, mal se ouve falar de Joabe. Absalão faz de Amasa o comandante do exército de Israel (ou seja, do exército que decide segui-lo). Quando Davi luta contra ele e suas tropas, ao que tudo indica, Joabe não atua como comandante de todo o exército, mas apenas de um terço das forças de Davi (2 Samuel 18:2). Naturalmente, é Joabe quem mata Absalão, mesmo tendo ordens de Davi para “tratá-lo com brandura” (18:5; 11-15). Quando Davi reassume o trono, ele substitui Joabe por Amasa (19:13), mas Joabe acaba matando Amasa com o auxílio de seu irmão Abisai (20:8-10). Finalmente, quando Davi já está velho e Adonias tenta se afirmar como sucessor do trono em lugar de Salomão, Joabe se une a ele, o que lhe custa a vida (1 Reis 2:28-33).
Absalão cometeu assassinato e procurou asilo político em Gesur, com seu avô. Davi não estava errado por continuar a amar o filho e querer vê-lo. Mas não seria certo Davi perdoá-lo para ele poder voltar. Não seria certo nem mesmo Davi ir até Gesur para visitá-lo. Usando de artifício e artimanha, Joabe segue seus próprios interesses na tentativa de manipular Davi para trazer Absalão de volta a Israel.
A mulher da cidade de Tecoa procura Davi, pedindo seu auxílio. Quando ele lhe pergunta qual é o problema, ela lhe conta. Observar a troca de informações entre eles é como assistir a uma partida de tênis. Cada vez que a mulher “saca” uma pergunta, Davi responde, só para ela voltar com outra pergunta, até que, finalmente, ele assume um compromisso com ela. Tendo obtido a palavra do rei, ela então aplica o seu caso e a resposta dele ao problema de Davi e Absalão.
A mulher diz: — Sou uma viúva que tinha dois filhos. Eles brigaram entre si no campo, e não houve quem os apartasse.3 — Por isso, um matou o outro. Se não havia ninguém para apartá-los, também não havia nenhuma testemunha do ocorrido. A morte pode ter sido em defesa própria. É difícil presumir que tenha sido assassinato em primeiro grau (premeditado). Se o caso fosse levado aos portões da cidade de refúgio, era improvável que o filho sobrevivente fosse mandado para execução pelos vingadores do homem morto.
Davi responde: — Por que não vai para casa e me deixa pensar no assunto? Depois eu lhe mando a resposta.
A mulher tenta novamente: — Compreendo, ó rei, que este é um caso difícil e seria melhor o senhor não se envolver pessoalmente. Posso entender, por isso, vou seguir minha vida e continuar o que vinha fazendo (escondendo o filho sobrevivente), eu aguento! Serei a única culpada, mas o senhor será inocente.
Davi responde: — Ora, só minuto! Não estou dizendo que não vou fazer nada. Eu só queria pensar um pouco mais no assunto. Mas vou lhe dizer o que farei. Se alguém a importunar, é só me dizer e eu dou um jeito.
A mulher fala pela terceira vez: — Bem, é muita gentileza de vossa majestade. Mas não seria melhor e mais fácil se o rei fizesse logo um decreto, para não ter de lidar com cada pessoa que me importunasse? Se o senhor disser que ninguém pode fazer mal ao rapaz, ele ficará seguro e não vou mais ter de escondê-lo. E quando fizer o decreto, se for com juramento divino, as pessoas saberão que o senhor está falando sério (e provavelmente não voltará atrás).
Davi responde: — O. K. Você venceu, eis o decreto real: “Tão certo como vive o SENHOR, não há de cair no chão nem um só dos cabelos de teu filho.”
A mulher fala pela quarta vez: — Muito obrigada, ó rei, mas esse decreto não representará um problema para o senhor? Como pode legislar para proteger a vida do meu filho e não fazer o mesmo com o seu, Absalão? Todos sabem que um dia morrerão, mas Deus não tem prazer na morte. Ele procura formas de manter os homens vivos e fazer retornar aqueles que estão longe dEle. Por que o senhor não faz o mesmo, e tenta encontrar um meio de poupar a vida de Absalão e trazê-lo de volta a Israel?
Davi responde: — Êpa! De repente está começando a parecer que toda essa conversa tem mais a ver comigo e meu filho do que com você e o seu. Isso me parece coisa de Joabe. Diga-me a verdade: Ele está por trás disso, não está?
A mulher responde pela quinta vez: — Ó rei, quem pode vendar seus olhos? Sem dúvida eu não posso. O senhor é tão sábio que pode enxergar a verdade. Sim, Joabe está por trás de tudo. Eu realmente não queria fazer isso, mas fiquei com medo, principalmente dele. Ele fez tudo isso para mudar o aspecto das coisas, para que pareçam melhor.
Davi responde: — Tudo bem, Joabe4, vou atender seu pedido, feito com tanta artimanha por intermédio dessa mulher. Vá e traga de volta meu filho Absalão.
Estou pronto a admitir que esta é uma paráfrase bastante livre do diálogo entre Davi e a mulher de Tecoa; mas ela parece transmitir o sentido do que aparentemente ocorreu. Com muito cuidado, usando as palavras de Joabe, a mulher consegue fazer Davi assumir um compromisso com a segurança do seu filho. No fim, ele faz um decreto com juramento divino para que o rapaz não seja prejudicado. A mulher, então, apela para o precedente recém-estabelecido (o qual parece não poder ser alterado) e o pressiona a fazer o mesmo com seu próprio filho (cuja culpa é bem mais evidente).
Com relutância, Davi cede à pressão de Joabe. Ele lhe dá permissão para trazer Absalão de volta a Israel. Supõe-se que ele não deixará ninguém (nenhum vingador) tirar a vida de Absalão. Em determinado momento, porém, Davi pensa no que o filho fez e altera os planos. Absalão não deve retornar a Israel como um homem inocente, livre para ir e vir a seu bel-prazer. Ele deve ficar em “prisão domiciliar”, detido em Jerusalém e na sua própria casa5.
Talvez eu esteja vendo demais no texto, mas não haveria uma espécie de justiça poética nesta passagem, quando Davi detém Absalão em sua própria casa? Por um lado, Absalão ainda é um assassino não julgado. Mantê-lo “em isolamento” é uma forma bem prática de protegê-lo. É também uma maneira de mantê-lo fora de circulação. Afinal, aparentemente, foi a contragosto que Davi concordou com seu retorno. Mas também me lembro de que foi Absalão quem confinou sua irmã. Isolando Tamar na casa dele, ele a manteve calada. E também desolada. Tudo isso contribuiu para ele poder realizar o plano perverso de assassinar Amnom. Agora parece um tanto apropriado que o próprio Absalão fique detido no mesmo lugar onde sua irmã foi isolada pelo resto da vida.
Absalão tem uma grande coisa a seu favor. Sua aparência é excelente, sem um único defeito físico. O cabelo é seu ponto forte; e todos sabem disso. Ele tem três filhos e uma bela filha, o que também contribui para sua reputação. Ele é, por assim dizer, a princesa Diana daquela época. E Davi está se tornando o príncipe Charles, devido a uma conspiração cuidadosa e deliberada de Absalão. Mas falaremos disso mais tarde. Primeiro, vamos ver como Absalão obtém sua liberdade.
Ele ganha a liberdade após dois anos de prisão domiciliar. Ele está zangado e frustrado. Já que não pode sair de casa, ele convoca Joabe para ir até lá, mas é ignorado. Depois de tentar pela segunda vez uma audiência com Joabe, Absalão toma medidas drásticas. Ele manda seus servos atearem fogo ao campo de Joabe (pegado ao seu). É obvio que isso chama a atenção de Joabe! Rapidinho ele vai pedir satisfações a Absalão, mas, em vez disso, é Absalão quem lhe pede satisfação. Por que Absalão só pode ficar em sua casa? Se isso é tudo o que pode fazer, seria melhor ter ficado em Gesur, pois lá ele tinha liberdade. Absalão exige ver a face do rei.
É o que Absalão diz a seguir que me incomoda: “se há em mim alguma culpa, que me mate” (verso 32). Essas palavras nos soam um tanto familiares: “Dê-me a liberdade, ou a morte!”6 Mas, como ele pode falar desse jeito? Ele realmente acredita não ter culpa? Ele pensa não ser digno de morte? Pelo jeito, assim parece. Se for verdade, então, mais uma vez ele não demonstra nenhum respeito pela lei de Deus. Ele queria a pena de morte para Amnom, embora isso não fosse requerido pela lei. Ele pensa que a pena de morte é dura demais e não serve para ele, embora, segundo a lei, ele seja assassino. Eis um homem que não manifesta absolutamente nenhum arrependimento.
Joabe, no entanto, leva a exigência ao rei, o qual cede e permite a Absalão entrar em sua presença. Davi o beija pensando que certamente isso irá colocar um ponto final na questão. Agora Absalão tem acesso ao rei e liberdade para ir aonde quiser. E quando ele vai, sem dúvida é em grande estilo. Ele compra uma carruagem, cavalos e 50 corredores para ir à sua frente (Com tantos guarda-costas, quem vai querer matá-lo?!).
Absalão teria sido um grande político. Pense bem, ele é exatamente isso! Todos os dias ele se posta na estrada de Jerusalém (fora da vista da cidade, e do seu pai, é claro!). Que visão deve ser! Um homem extremamente belo, com um cabelo de fazer inveja a qualquer mulher. Imagino que sua carruagem fique estacionada à vista de todos os transeuntes, junto com os 50 corredores. Cada efeito visual emana realeza e classe.
Absalão chama todos que passam por ali, perguntando-lhes de onde vêm e por quê. Ele saúda todo mundo de forma a se lembrarem dele. Imagine, por exemplo, que você está em uma rodovia e alguém faz sinal para seu carro parar ao lado de uma limusine estacionada. A porta se abre e o Vice-Presidente da República desce do veículo, travando conversa com você. Quando você tenta ser cerimonioso, ele o agarra firmemente pela mão e lhe dá um grande e forte abraço “sem-cerimônia”. Uau! Esse, sim, seria um encontro realmente inesquecível.
Mas ainda tem mais. Absalão não só procura parecer bonzinho, ele também faz Davi parecer muito mau. Ao saber de algum viajante se aproximando de Jerusalém em busca de justiça, ele diz sentir muitíssimo informá-lo de que o rei não tomou as providências necessárias para os casos de julgamento (isso, é claro, é mentira, pois acabamos de ver Davi ouvindo o caso da “viúva” e julgando a seu favor). Absalão diz à pessoa como isso o entristece, pois, pelo que sabe do caso, o julgamento seria favorável a ela. A causa seria ganha, não fosse o fato de Davi não ter designado ninguém para ouvi-la. Não é possível fazer justiça com Davi no trono. E assim, com muita habilidade, Absalão espalha que, se ele fosse juiz em Israel, faria as pessoas serem ouvidas, e julgaria a seu favor. Não se pode obter justiça com Davi, mas com ele, a coisa seria bem diferente.
Absalão não é apenas mentiroso (dizendo não haver ninguém para ouvir os casos), ele também é hipócrita. Exatamente qual tipo de “justiça” ele dispensaria? O mesmo “tipo” assegurada por ele a Amnom? O tipo recebido por sua própria irmã? O “tipo” dispensado por ele a si mesmo? Absalão não é amigo da justiça, nem dos oprimidos. Ele só leva as pessoas a pensar que é seu amigo. E isso funciona! Ele conquista o coração do povo. Agora ele está pronto para agir.
Após quatro anos7 menosprezando Davi e exaltando a si mesmo diante do povo, Absalão está pronto para agir. Seu plano é fazer sua estreia como rei no mesmo lugar onde Davi fez a sua, e onde ele mesmo nasceu, Hebrom (2 Samuel 3:2-3). Primeiro, ele tem de dar um jeito de chegar lá sem levantar suspeitas ou despertar a curiosidade de Davi. Ele conversa com o pai e conta-lhe que fez um voto enquanto estava em Gesur8. Ele votou que, se Deus lhe concedesse o privilégio de voltar a Israel, ele pagaria o voto em Hebrom. Agora, diz ele, é hora de cumpri-lo. Davi lhe dá permissão para ir. E o despede “em paz”. O que, com toda certeza, não vai resultar em “paz”.
Absalão leva consigo 200 homens de Jerusalém. Eles não fazem ideia do que ele tem em mente. No entanto, ele já tinha enviado mensagem às tribos de Israel dizendo que ao ressoar das trombetas deveriam declarar lealdade a ele, não a Davi. Além disso, ele também tinha dado um jeito de recrutar Aitofel, o gilonita, conselheiro de Davi. Aitofel tinha um dom excelente; seu conselho era extremamente sábio:
“O conselho que Aitofel dava, naqueles dias, era como resposta de Deus a uma consulta; tal era o conselho de Aitofel, tanto para Davi como para Absalão.” (2 Samuel 16:23)
A perda de Aitofel para Absalão é um grande golpe. É de admirar que alguém tão sábio possa se aliar a Absalão. Todavia, Deus fará uso de Aitofel. Deus usará seu conselho para cumprir a profecia (compare 2 Samuel 12:11-12 e 2 Samuel 16:20-22), e frustrará seu conselho para salvar Davi das mãos de Absalão (2 Samuel 17:1-4).
Como é triste ler essa história. O autor não omite nenhum detalhe. O “rastro de lágrimas” principia com o pecado de Davi a respeito de Urias e sua esposa, Bate-Seba. Ele começa com a agonia de sua alma, antes mesmo de ele se arrepender e confessar seu pecado (ver Salmo 32:3-4). Depois continua com a morte de seu primeiro filho com a esposa de Urias. Logo em seguida, sua própria filha (Tamar) é violentada por um de seus filhos, e então, esse filho (Amnom) é assassinado por outro filho (Absalão). Absalão foge para Gesur, e Davi sente saudades, mas sabe que não pode vê-lo. Daí, manipulado pelo engodo de Joabe, Davi se vê forçado a trazer Absalão de volta a Israel. Esta também não é uma experiência muito agradável. Quando Absalão consegue a liberdade, ele a usa para arruinar a reputação de Davi e melhorar sua posição diante do povo. A seguir vem a rebelião de Absalão, a divisão de Israel e, finalmente, a morte de Absalão pelas mãos de Joabe. Esse é, realmente, um rastro de lágrimas.
Em meio a tanto sofrimento e adversidade, preciso novamente ressaltar que Deus não está punindo Davi por seus pecados. Natã deixou bem claro a Davi que ele não seria submetido à pena de morte por causa disso, pois o “Senhor removera seu pecado” (2 Samuel 12:13). Eis um erro bastante comum entre os cristãos, ou seja, de que uma pessoa sofre por estar sendo punida por seus pecados. Os amigos de Jó acreditavam nisso e estavam sempre tentando fazê-lo se arrepender (ver Jó 4 e 5). Os discípulos de nosso Senhor presumiram que o cego de nascença fosse assim por causa do pecado de alguém (João 9:1-2). Há aqueles cujo sofrimento é resultado direto do seu pecado (ver Deuteronômio 28:15 e ss), mas nem sempre essa é a explicação para o sofrimento. Às vezes, o justo sofre simplesmente por ser justo (1 Pedro 4).
E também há vezes em que os santos sofrem por serem “filhos de Deus”, os quais estão sendo preparados para a glória (ver Hebreus 12). Até mesmo nosso Senhor sofreu a fim de ser preparado para Sua glória (ver Hebreus 2:10-18; 5:7-10; Filipenses 2:5-11). Não estou dizendo que o sofrimento de Davi não esteja relacionado a seu pecado. Estou dizendo que o sofrimento não foi punição, mas disciplina de Deus, a qual tinha o propósito de aproximá-lo do Senhor e desapegá-lo das coisas do mundo (compare 2 Coríntios 4:16-18).
Uma das coisas que Deus faz para disciplinar Davi é permitir que ele veja seu pecado de um ponto de vista diferente. Davi foi insensível quando tomou Bate-Seba, deitou-se com ela e matou seu marido. Ele usou (ou abusou) do seu poder como rei para pecar. Agora, Deus graciosamente permite que ele veja seu pecado de outra perspectiva. Davi não abusou do seu relacionamento com Deus, usando seu poder para correr atrás dos seus próprios interesses? Em nosso texto, Joabe parece fazer o mesmo. Amnom abusou do poder para tomar sua irmã, da mesma forma que acredito Davi fez com Bate-Seba. Absalão também abusou do poder, menosprezando Davi enquanto tentava conquistar seu trono. Davi não tentou enganar Saul sobre sua ausência? Agora Absalão também engana Davi sobre sua ida a Hebrom. Davi não tentou enganar Urias para encobrir seu pecado? Agora ele é enganado por Amnom, depois por Absalão, e então por Joabe e a mulher de Tecoa. Davi, o “filho” de Deus (ver 2 Samuel 7:8-17), não se rebelou contra Deus quando pecou? Agora, seu(s) filho(s) se rebela(m) contra ele. Davi não abusou do poder, oprimindo quem era impotente contra ele? Agora ele sente sua impotência quando Absalão frustra todas as oportunidades para ele exercer justiça para Tamar, Amnom e até mesmo para o povo de Israel (2 Samuel 15:2-6). Davi agora é capaz de ver seu pecado sob uma luz diferente, conforme ele é repetido por outras pessoas.
O texto tem muito a dizer sobre educação de filhos. Mesmo uma leitura superficial da Bíblia deixará claro que não há pais perfeitos. Até os homens e mulheres mais piedosos falharam como pais (pense em Eli, Samuel, Saul e agora Davi). Todos nós almejamos ser pais melhores diante de Deus. Não porque “bons pais” garantam filhos tementes a Deus, mas porque “bons pais” agradam a Deus. Devemos procurar ser bons pais porque é isso o que Deus requer de nós.
Quando nossos filhos errarem, e eles vão errar, não devemos nos envergonhar e ficar cheios de culpa, como se fôssemos os únicos responsáveis por seus erros. Veja os filhos de Davi estudados até aqui. Amnom era um rapaz desprezível, um tolo. Salomão será o homem mais sábio que já viveu. Adonias tentará usurpar o trono do irmão. Absalão perverteu o juízo, assassinou o irmão e se voltou contra o próprio pai. Estou certo de que, no caso de Absalão, as falhas de Davi afetaram seu filho de modo prejudicial. Assim dizendo, não creio que o texto tenha sido escrito para nos mostrar como Davi foi um mau pai, mas para nos mostrar como Absalão foi desobediente. Sua desobediência foi devido às suas próprias escolhas. E ela foi usada por Deus para disciplinar Davi, para torná-lo um homem mais segundo o Seu coração.
Por favor, não deixe esta mensagem ou este texto sentindo-se fracassado, dominado pela culpa, porque um de seus filhos de alguma forma está “perdido” para você. Os pecados cometidos por você realmente fazem parte da vida dele, mas ele, como Absalão, tem de decidir se quer ou não ter fé e obedecer. Se ele não crê, a culpa não é toda sua; talvez nem mesmo seja sua. Mas se você é cristão, então, eu lhe garanto que Deus usará até mesmo a rebelião do seu filho para lhe aperfeiçoar e levar-lhe a ter um relacionamento mais íntimo com Ele. Às vezes, nossos filhos são o nosso “deus”, e essa é uma das formas como Deus esclarece as nossas prioridades. No Antigo Testamento em especial, muitas vezes vejo as falhas familiares fazendo parte do grande plano de Deus para o Seu povo. Essas falhas não O impedem de realizar aquilo que Ele prometeu; e muitas vezes são os meios pelos quais Ele cumpre Suas promessas.
Creio haver uma lição sobre disciplina a ser aprendida neste texto; no caso, disciplina dentro da família. Davi queria restaurar seu relacionamento com o filho, Absalão. Ele sabia que não podia ignorar ou distorcer a lei para facilitar esse reencontro. Ele teve de ser enganado para permitir o retorno do filho, mesmo sabendo não ser o certo. Podemos considerá-lo frio e insensível por não permitir a Absalão ver sua face. Não concordo. Creio que ele entendia que reconciliação só pode vir depois de arrependimento, não antes. Ele ficou furioso, não só por Amnom ter violentado Tamar, mas também por Absalão ter obstruído a justiça e assassinado Amnom. Ele não podia se reconciliar com Absalão até este se arrepender, e até sua ira (de Davi) ser “propiciada” (termo teológico pomposo para aplacada ou satisfeita). Quando Joabe enganou Davi para ele permitir o retorno de Absalão, ele o faz de forma a não facilitar o arrependimento ou a reconciliação. Se temos de culpar alguém pelo pecado de Absalão (além do próprio Absalão, principal responsável), esse alguém é Joabe, não Davi, pois é ele quem promove a reconciliação sem arrependimento.
Isso me faz lembrar da história de José e seus irmãos. Os irmãos de José haviam cometido um grande pecado contra ele ao raptá-lo e vendê-lo como escravo. De acordo com a história, José amava seus irmãos, e desejava se reconciliar com eles. Mas ele não podia fazê-lo até que se arrependessem. Por isso, vemos a saga prolongada das duas viagens daqueles homens ao Egito, culminando no seu arrependimento sincero. Foi então que José revelou sua identidade. Eles se arrependeram e José os perdoou. Aí, sim, a reconciliação foi possível. Isso também era necessário ao relacionamento de Davi com Absalão, mas os esforços de Joabe só conseguiram atrapalhar a reconciliação, não facilitá-la.
Conheço muitos pais que estão tão desesperados para se relacionar bem com seus filhos que deixam de discipliná-los. E quando os filhos se rebelam, ficam tão ansiosos para tê-los de volta que os recebem de braços abertos, sem ter havido arrependimento; por isso, a reconciliação não pode ser verdadeira. O mesmo acontece na igreja. Para se ter verdadeira união na igreja, sincera comunhão entre os santos, é preciso, antes da reconciliação, existir repreensão, disciplina e arrependimento.
O filho de Davi, Absalão, também tem algo a nos ensinar. É uma lição sobre qual é, ou não, a verdadeira submissão. Ele parece ser um caso clássico de alguém que “cospe no prato em que come”. Ele não tem senso de dever para com o pai, e nem um pingo de gratidão. Mas, muito além disso, ele não tem absolutamente nenhuma submissão verdadeira a seu pai e rei. Como Satanás, ele se acha o “sucessor” do trono. Ele não se submete ao pai. Pelo contrário, ele usa sua posição e poder para enfraquecer a autoridade de Davi e dividir o reino. Pelas costas, ele fala mal do pai, fazendo-o parecer mau aos olhos dos outros. E tudo isso só para “se promover”.
Quantos de nós não fazemos a mesma coisa no serviço? Quantos não falam pelas costas do chefe com os colegas de trabalho? Quantos não tentam passar uma péssima imagem de seus superiores e uma boa imagem de si mesmos? Quantas esposas não minam a autoridade e a dignidade do marido diante dos filhos? Quantos maridos não fazem o mesmo com a esposa (falando mal dela para os filhos ou colegas, seja verdade ou invenção)? Quantas vezes não acontece o mesmo na igreja! Quem gosta de se exibir e aparecer não costuma lançar dúvidas sobre a capacidade dos líderes, sobre suas decisões e sobre sua liderança, enquanto alega que faria um trabalho bem melhor no lugar deles? Absalão é um alerta para todos nós sobre a submissão e o seu contraponto, a rebelião.
Finalmente, para concluir esta lição, gostaria de deixar algo para você pensar: A mesma coisa que Davi estava disposto a fazer, mas não pôde — salvar seu filho, Absalão — Deus também não e, por isso, mediante Seu Filho sem pecado, Ele constituiu muitos “filhos”. No capítulo 18, verso 33, Davi expressou o desejo de ter morrido em lugar de Absalão. Não podia ser assim e, mesmo que pudesse, não seria bom para Absalão. Davi não podia salvar seu filho da mesma forma que não podemos salvar os nossos. Mas Deus fez o que o homem não pode fazer. Ele entregou o Seu Filho sem pecado, Jesus Cristo, para sofrer e morrer na cruz do Calvário para pagar os nossos pecados. Ele deu o Seu Filho amado para os nossos pecados serem perdoados, e para nos tornarmos Seus filhos. O que nenhum homem pode fazer (salvar seus entes queridos), Deus pode. Ele nos deu o perdão dos pecados e a filiação que tanto precisávamos. Ele o fez por um único meio, a morte sacrificial, o sepultamento e a ressurreição de Seu Filho, Jesus Cristo. Para se reconciliar com Deus, você precisa reconhecer seu pecado, sua rebeldia contra Deus, e aceitar a dádiva de perdão e vida eterna que Ele lhe oferece. Oro para que você já a tenha recebido e, se não, que a receba.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Há, é claro, a questão de Tamar ser meia-irmã de Amnom. Isso representa um problema, mas se eles tivessem se casado, ela seria para Amnom exatamente o mesmo que Sara foi para Abraão, esposa e meia-irmã. Em todo caso, no entanto, deixarei essa questão de lado, presumindo que o casamento fosse possível, assim como Tamar presumiu.
2 No início eu pensava que Absalão tivesse feito isso para o bem da irmã. No entanto, quanto mais leio a história, mais me convenço de que ele sacrificou os interesses dela pelos seus próprios interesses, para poder se vingar.
3 Um amigo meu me disse que, no Oriente Médio, uma briga deve continuar até que alguém intervenha para pará-la. Às vezes, uma luta tem início e uma das partes, ou ambas, espera pela intervenção para poder parar com dignidade. Se ninguém os detiver, eles devem lutar até a morte. Talvez seja esse o caso do texto.
4 Tem-se a nítida impressão de que Joabe estava bem ali, ao lado da mulher de Tecoa, dando-lhe uns cutucões enquanto ela dizia sua fala. O texto não diz que Davi mandou buscá-lo, mas que falou com ele. Pela narrativa, chego à conclusão de que Joabe estava ali o tempo todo em que a mulher falou com Davi.
5 Posso estar indo um pouco além, mas pense no seguinte. Davi deu instruções a Absalão para voltar para sua própria casa (verso 24). Absalão não devia ver a face de Davi, o que certamente teria acontecido se ele pudesse andar livremente por Jerusalém e arredores. Absalão se encheu da situação, mas teve de convocar Joabe para ir à sua casa; ele não foi à casa de Joabe ou de Davi. Creio que foi porque ele não podia deixar sua casa. Mas quando ganhou liberdade total, suas idas e vindas com uma carruagem e 50 corredores se tornaram muito mais visíveis.
6 Nota da Tradutora: Famosa frase de Patrick Henry, pronunciada na Convenção de Richmond em 1775, algo como o nosso “Independência ou Morte!”.
7 Observe a nota de rodapé da NASB, a qual indica que, embora o texto hebraico pareça indicar “quarenta”, outros manuscritos indicam “quatro”, o que parece ser requerido pelo contexto.
8 Talvez eu esteja vendo demais no texto, mas parece muita coincidência que Absalão explique sua ausência da presença do rei (Davi) com quase a mesma desculpa usada por Davi para explicar sua ausência da presença do seu rei (Saul, veja 1 Samuel 20:1-34). Será possível que o engodo de Davi não tenha sido tratado até agora, quando ele pode ver, novamente, como é sentir-se enganado?
Quando eu era criança, meus pais compraram um antigo pesqueiro, cujas terras foram cedidas aos primeiros donos pelo governo, e ao qual meu pai deu o nome de “Parque Pioneiro”. Minha família fez muitos amigos ao longo dos anos, mas, depois que compramos esse lugar, o número de “amigos” parece ter aumentado. Normalmente, cobrávamos uma pequena taxa das famílias que vinham nadar, fazer piquenique, usar as instalações sanitárias (latrinas) e acender a fogueira com a lenha dos nossos fogões externos (usando a madeira que eu ajudava a cortar, transportar e empilhar). De vez em quando vinha um carro e, em vez de pagar os cinquenta centavos de entrada, os ocupantes diziam: “A gente só quer conhecer vocês um pouco melhor...” Só que as crianças já estavam com roupa de banho, o lanche do piquenique estava no carro e, às vezes, até o barco já tinha sido lançado no acesso gratuito do terreno ao lado (só para não terem de pagar a pequena quantia que cobrávamos).
Todos nós temos “amigos” e amigos de verdade. O que parece separar os primeiros dos últimos são as adversidades. Quando a coisa fica feia, os “amigos” se vão. Em nosso texto, vemos alguns “amigos” de Davi, alguns deles amigos de verdade. A adversidade que ele enfrenta deixa clara a distinção entre uns e outros.
Você deve se lembrar que o adultério de Davi com Bate-Seba, a esposa de Urias, levou ao assassinato deste. Após Deus preparar o coração de Davi para a repreensão (ver Salmo 32:3-4), Natã o procura com uma história de cortar o coração, a qual mexe com suas emoções e o leva a condenar o culpado. Natã, então, acusa Davi pelo pecado envolvendo Bate-Seba e Urias, garantindo-lhe que ele não morreria, pois o pecado fora removido, mas haveria dolorosas consequências em decorrência disso:
“Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol. Então, disse Davi a Natã: Pequei contra o SENHOR. Disse Natã a Davi: Também o SENHOR te perdoou o teu pecado; não morrerás. Mas, posto que com isto deste motivo a que blasfemassem os inimigos do SENHOR, também o filho que te nasceu morrerá.” (2 Samuel 12:10-14)
O filho de Davi já morreu, sua filha Tamar foi violentada pelo irmão, Amnom, e Amnom foi assassinado por Absalão. Absalão fugiu e pediu asilo ao avô, rei de Gesur. Ele fica por lá cerca de dois anos, até Joabe, usando de artimanha, induzir Davi a trazê-lo de volta. Aparentemente Davi mantém o filho em prisão domiciliar, até Absalão não aguentar mais e, finalmente, receber permissão para andar livremente por Jerusalém. Durante esse período de relativa liberdade, Absalão volta o coração dos israelitas contra Davi, e a seu favor. Em seguida, Davi lhe dá autorização para ir a Hebrom, pretensamente para Absalão cumprir um voto, mas, na realidade para iniciar uma rebelião contra o rei, reivindicando o reino para si.
Em nosso texto, Davi recebe a notícia de que o povo declarou sua fidelidade a Absalão e uma rebelião maciça está prestes a acontecer. É neste ponto que Davi decide fugir de Jerusalém, junto com seus seguidores. Só quem estiver entre os seguidores que o acompanham (ou permanecem em Jerusalém) determinará se é ou não seu amigo de verdade.
Acho que nosso autor mostra uma estrutura organizacional nesta porção das Escrituras tanto cronológica quanto geográfica. Quando Davi foge de Jerusalém, ele se dirige para o norte e oeste. Ele vai até o deserto, no lado ocidental do rio Jordão, onde fica aguardando notícias sobre os planos de Absalão. Ao saber que Absalão vai persegui-lo e atacá-lo, Davi cruza o Jordão, indo mais para o norte. A estrutura do texto é organizada de acordo com as paradas de Davi, desde sua saída de Jerusalém até o deserto. A primeira cena é em Jerusalém, onde ele recebe a notícia de Hebrom e decide fugir. A última também, quando Absalão chega e possui as dez concubinas deixadas para trás. A segunda cena é na “última casa”, quando Davi está deixando Jerusalém. A terceira é junto ao rio Cedrom, e a quarta, na subida do monte das Oliveiras. A quinta ocorre logo após o cume do monte, e a sexta, em Baurim. Em cada lugar, há o encontro com um “amigo” ou amigo de verdade.
“Então, veio um mensageiro a Davi, dizendo: Todo o povo de Israel segue decididamente a Absalão. Disse, pois, Davi a todos os seus homens que estavam com ele em Jerusalém: Levantai-vos, e fujamos, porque não poderemos salvar-nos de Absalão. Dai-vos pressa a sair, para que não nos alcance de súbito, lance sobre nós algum mal e fira a cidade a fio de espada. Então, os homens do rei lhe disseram: Eis aqui os teus servos, para tudo quanto determinar o rei, nosso senhor. Saiu o rei, e todos os de sua casa o seguiram; deixou, porém, o rei dez concubinas, para cuidarem da casa.”
Um mensageiro chega com um comunicado que Davi não está muito a fim de ouvir: “Todo o povo de Israel segue decididamente a Absalão.” Acho que ele temia receber esse tipo de notícia mais cedo ou mais tarde. Não é possível que ele não tenha visto a maneira como Absalão estava sabotando seu reino e se colocando como seu sucessor. Davi não questiona, nem contesta a informação. Na verdade, ele até admite que, se não fugirem imediatamente, Absalão não só atacará Jerusalém, mas também o matará e a todos os seus seguidores.
Observe que o relato do mensageiro, da forma como é transmitido ao leitor, não mostra que Absalão já tenha “tocado a trombeta”, declarando-se rei de Israel (ver 15:10). Nem está escrito que ele está mesmo marchando contra a cidade. Mas é evidente que isso pode ser presumido. Se ainda não aconteceu, vai acontecer logo. É hora de agir.
Com relutância, Davi aceita a notícia e toma uma atitude. Seus servos se dispõem a fazer qualquer coisa ordenada por ele. Entendo que isso inclua defendê-lo, e a Jerusalém, do ataque de Absalão. No entanto, em vez de ordenar que se aprontem para a batalha, ele ordena que se aprontem para fugir. Eis aqui o homem que não hesitou em enfrentar Golias, quando ninguém mais o fez, incluindo o próprio Saul. Eis quem, quando insultado por Nabal (1 Samuel 15), ficou tão furioso que quis matá-lo, e a todos os homens da sua casa. Qual a razão, então, para Davi querer fugir em vez de lutar?
A primeira coisa que precisamos entender é que, ao fugir de Jerusalém, Davi não está indicando sua intenção de abdicar do trono. Por isso ele deixa dez concubinas para trás, para “cuidar da casa” (15:16). Ele está deixando a cidade, não o trono. Absalão pode se apossar dele, mas não devido à renúncia de Davi. As concubinas são um símbolo da continuidade do seu reinado sobre Israel.
Várias razões fazem Davi tomar a decisão fugir, mesmo sem abdicar do trono. Primeira, ele sabe que Deus suscitará tribulações ao seu reino, vindas da sua própria família. Se a rebelião de Absalão é parte da disciplina divina, ele não tem certeza se deve resistir a ela. Se isso vem de Deus, não estaria ele lutando contra Deus ao lutar contra a rebelião? Ele indica claramente sua intenção de esperar até ter estar certo do que fazer:
“Então, disse o rei a Zadoque: Torna a levar a arca de Deus à cidade. Se achar eu graça aos olhos do SENHOR, ele me fará voltar para lá e me deixará ver assim a arca como a sua habitação. Se ele, porém, disser: Não tenho prazer em ti, eis-me aqui; faça de mim como melhor lhe parecer. Disse mais o rei a Zadoque, o sacerdote: Ó vidente, tu e Abiatar, voltai em paz para a cidade, e convosco também vossos dois filhos, Aimaás, teu filho, e Jônatas, filho de Abiatar. Olhai que me demorarei nos vaus do deserto até que me venham informações vossas.” (2 Samuel 15:25-28)
Além disso, talvez ele esteja preocupado com o bem-estar dos moradores de Jerusalém. Estaria ele colocando-os em perigo, ao ficar e lutar para defender a cidade? De acordo com o Salmo 51:18, é possível pensar que, naquela época, os muros de Jerusalém ainda não estavam concluídos, tornando sua defesa mais difícil. Finalmente, sabemos que Davi ama Absalão. Ele não quer precipitar uma luta contra o filho, pois não deseja matá-lo (ver 2 Samuel 18). Por que começar uma luta quando não se quer vencer? Absalão está pronto e disposto a matar Davi, e outras pessoas, se for necessário; Davi, não. Por isso, ele decide fugir em vez de lutar.
“Tendo, pois, saído o rei com todo o povo após ele, pararam na última casa1. Todos os seus homens passaram ao pé dele; também toda a guarda real e todos os geteus, seiscentos homens que o seguiram de Gate, passaram adiante do rei. Disse, pois, o rei a Itai, o geteu: Por que irias também tu conosco? Volta e fica-te com quem vier a ser o rei, porque és estrangeiro e desterrado de tua pátria. Chegaste ontem, e já te levaria eu, hoje, conosco a vaguear, quando eu mesmo não sei para onde vou? Volta, pois, e faze voltar a teus irmãos contigo. E contigo sejam misericórdia e fidelidade. Respondeu, porém, Itai ao rei: Tão certo como vive o SENHOR, e como vive o rei, meu senhor, no lugar em que estiver o rei, meu senhor, seja para morte seja para vida, lá estará também o teu servo. Então, disse Davi a Itai: Vai e passa adiante. Assim, passou Itai, o geteu, e todos os seus homens, e todas as crianças que estavam com ele.”
Parece que Davi, e quem tem intenção de fugir com ele, formam uma procissão para fora da cidade. Na “última casa” ele para, deixando os outros passarem à sua frente. Talvez esta seja a última das casas de Jerusalém onde moram suas esposas e filhos, mas aparentemente fica na “periferia”, por assim dizer. Ele vai parando nos arredores da cidade, enquanto os outros passam por ele. Isso lhe dá oportunidade de permitir que alguns o acompanhem e outros retornem.
É aqui que aparecem alguns “antigos fiéis” de Davi. Dentre eles estão os quereteus, os peleteus e os geteus. Os quereteus e peleteus são mencionados antes (8:18, em português nas versões ARC e NTLH) e depois em 2 Samuel (23:22-23, idem). Eles são estrangeiros, não israelitas, liderados por Benaia. Talvez sejam uma espécie de guarda real de David, agentes do seu serviço secreto, cuja missão é defender o rei2. “Geteu” era alguém da cidade filisteia de Gate. O geteu mais famoso provavelmente foi Golias (ver 2 Samuel 21:19). E, assim, o primeiro e maior grupo de pessoas leais a Davi, que o acompanha em sua fuga de Jerusalém, é formado por estrangeiros — gentios. Eles não são seguidores recentes. Todos parecem ser homens cuja associação com Davi remonta à época em que ele se escondia de Saul, na terra dos filisteus. São os homens que “vieram com ele de Gate” (15:18).
Além desse grupo maior de fiéis gentios de longa data, há também um outro gentio, relativamente recém-chegado3. É Itai, o geteu. O autor chama a atenção para ele em diversos versículos (19-22). Esse homem deve ter sido muito leal e capaz, para Davi tê-lo feito comandante de uma parte de suas tropas no capítulo 184. Há diversas razões pelas quais Itai talvez não se sinta obrigado a seguir Davi. Ele é estrangeiro — a luta não é sua. Ele é recém-chegado. Ele está acompanhado de uma porção de “pequenos”, o quais certamente serão um fardo para ele, e estarão em perigo se Absalão perseguir Davi.
Davi o chama de lado e lhe pede que permaneça em Jerusalém ou volte para sua pátria. Essa luta não é dele. Ele realmente não precisa se arriscar, nem àqueles que estão com ele. Davi insiste para ele não o seguir, mas Itai não quer nem saber. Observe como sua resposta é parecida com a de Rute a Noemi:
“Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o SENHOR o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” (Rute 1:16-17)
“Respondeu, porém, Itai ao rei: Tão certo como vive o SENHOR, e como vive o rei, meu senhor, no lugar em que estiver o rei, meu senhor, seja para morte seja para vida, lá estará também o teu servo.” (2 Samuel 15:21)
O compromisso de Itai parece bem maior do que uma simples ligação pessoal com Davi; parece parte de sua fé. Itai começa sua declaração com estas palavras: “Tão certo como vive o SENHOR...” Creio que ele, como Rute, se tornou um verdadeiro crente no Deus de Israel, e não tem a menor intenção de voltar à sua própria terra e aos seus deuses.
“Toda a terra chorava em alta voz; e todo o povo e também o rei passaram o ribeiro de Cedrom, seguindo o caminho do deserto. Eis que Abiatar subiu, e também Zadoque, e com este todos os levitas que levavam a arca da Aliança de Deus; puseram ali a arca de Deus, até que todo o povo acabou de sair da cidade. Então, disse o rei a Zadoque: Torna a levar a arca de Deus à cidade. Se achar eu graça aos olhos do SENHOR, ele me fará voltar para lá e me deixará ver assim a arca como a sua habitação. Se ele, porém, disser: Não tenho prazer em ti, eis-me aqui; faça de mim como melhor lhe parecer. Disse mais o rei a Zadoque, o sacerdote: Ó vidente, tu e Abiatar, voltai em paz para a cidade, e convosco também vossos dois filhos, Aimaás, teu filho, e Jônatas, filho de Abiatar. Olhai que me demorarei nos vaus do deserto até que me venham informações vossas. Zadoque, pois, e Abiatar levaram a arca de Deus para Jerusalém e lá ficaram.”
Saindo de Jerusalém, Davi e todos os que o acompanham têm de descer ao vale do Cedrom e depois subir o monte das Oliveiras, do outro lado. A terceira cena tem lugar no vale, logo após a travessia do ribeiro. O sacerdote Zadoque chega, junto com todos os levitas, os quais carregam a arca da Aliança. Eles abaixam a arca e esperam todos passarem o ribeiro. Davi, então, conversa com Zadoque, dizendo-lhe para levar a arca de volta a Jerusalém. Se Deus realmente está com Davi, Ele não o fará retornar a Jerusalém, ao lugar onde escolheu habitar? Se não está, Davi sabe que a arca não fará nenhuma diferença.
Isso é totalmente diferente do que vimos em 1 Samuel 4. Ali, quando os israelitas foram derrotados pelos filisteus, o povo foi buscar a arca, presumindo que ela pudesse lhes dar a vitória como num passe de mágica. Ao invés disso, eles foram novamente derrotados, os dois filhos de Eli foram mortos e a arca foi levada pelos filisteus. Além de tudo, Eli caiu morto ao saber da morte dos filhos e da arca nas mãos do inimigo. Davi não vê a arca como uma espécie de amuleto que garante a presença de Deus ou o livramento divino. Jerusalém é onde ela deve ficar, e ele não vai tentar levá-la com ele.
Além disso, ele sabe que Zadoque não é só sacerdote, ele é também profeta (naquela época os profetas eram conhecidos como videntes — ver 1 Samuel 9:6-9). Isso significa que Zadoque pode dar a ele notícias confiáveis. Afinal, quem não gostaria de ter um relatório sobre a situação dado por um profeta ao invés de alguma fonte menos confiável? Zadoque precisa ficar em Jerusalém para estar junto da arca, e também para manter Davi informado, de lá de dentro. Ele pode usar seu filho Aimaás, e Jônatas, filho de Abiatar, para mandar notícias sobre os planos de Absalão, enquanto Davi espera nos vaus do deserto. Dessa forma, Davi pode decidir se deve recuar mais para o deserto, ficar onde está, ou mesmo se deve voltar a Jerusalém.
“Seguiu Davi pela encosta das Oliveiras, subindo e chorando; tinha a cabeça coberta e caminhava descalço; todo o povo que ia com ele, de cabeça coberta, subiu chorando. Então, fizeram saber a Davi, dizendo: Aitofel está entre os que conspiram com Absalão. Pelo que disse Davi: Ó SENHOR, peço-te que transtornes em loucura o conselho de Aitofel. Ao chegar Davi ao cimo, onde se costuma adorar a Deus, eis que Husai, o arquita, veio encontrar-se com ele, de manto rasgado e terra sobre a cabeça. Disse-lhe Davi: Se fores comigo, ser-me-ás pesado. Porém, se voltares para a cidade e disseres a Absalão: Eu serei, ó rei, teu servo, como fui, dantes, servo de teu pai, assim, agora, serei teu servo, dissipar-me-ás, então, o conselho de Aitofel. Tens lá contigo Zadoque e Abiatar, sacerdotes. Todas as coisas, pois, que ouvires da casa do rei farás saber a esses sacerdotes. Lá estão com eles seus dois filhos, Aimaás, filho de Zadoque, e Jônatas, filho de Abiatar; por meio deles, me mandareis notícias de todas as coisas que ouvirdes. Husai, pois, amigo de Davi, veio para a cidade, e Absalão entrou em Jerusalém.”
A cena é realmente muito triste. Davi sobe o monte das Oliveiras, chorando enquanto se dirige para o topo. Ele tem a cabeça coberta e os pés descalços, assim como todos que o acompanham. Ele recebe a notícia de que Aitofel se uniu a Absalão em sua revolta. O golpe é devastador, pois o conselho de Aitofel é extremamente confiável:
“O conselho que Aitofel dava, naqueles dias, era como resposta de Deus a uma consulta; tal era o conselho de Aitofel, tanto para Davi como para Absalão.” (2 Samuel 16:23)
Embora a perda de Aitofel seja terrível para a administração de Davi, isso não deve ser muito surpreendente, tendo em vista a relação entre os textos abaixo:
“Davi mandou perguntar quem era. Disseram-lhe: É Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o heteu.” (2 Samuel 11:3)
“Elifelete, filho de Aasbai, filho de um maacatita; Eliã, filho de Aitofel, gilonita;” (2 Samuel 23:34)
Por estes versículos ficamos sabendo que Eliã é filho de Aitofel, o gilonita, e Bate-Seba é filha de Eliã. Em suma, Bate-Seba é neta de Aitofel. Seria preciso pensar muito para se entender o motivo de Aitofel abandonar Davi e se aliar a Absalão, o qual pretende tomar o trono e, se for preciso, tirar a vida do próprio pai? Talvez Aitofel sinta por Davi o mesmo que Absalão sentiu por Amnom5.
A reação de Davi é orar pedindo a Deus que, de alguma forma, reverta o conselho de Aitofel. A resposta não demora muito, pois mal ele termina de orar, chega seu amigo leal, Husai, o arquita. Husai tem o manto rasgado e terra na cabeça, em sinal de tristeza. O que aconteceu foi realmente terrível. Ele está pronto a acompanhar Davi aonde quer que ele vá. Mas Davi muda os planos de Husai. O rei diz a ele que, se ele o acompanhar em sua fuga, será somente um fardo a mais. Husai pode prestar um serviço muito mais valioso voltando para Jerusalém e fingindo ser um dos fiéis colaboradores de Absalão. Desse jeito, ele estará em posição de se opor ao conselho de Aitofel. Davi lhe diz que os sacerdotes Zadoque e Abiatar também estão do seu lado. Quando Zadoque ou Abiatar souberem de alguma coisa do palácio, podem mandar um recado para Davi por um de seus filhos: Aimaás, filho de Zadoque, ou Jônatas, filho de Abiatar. E assim, Husai vai para Jerusalém, e está lá na chegada de Absalão.
“Tendo Davi passado um pouco além, dobrando o cimo, eis que lhe saiu ao encontro Ziba, servo de Mefibosete, com dois jumentos albardados e sobre eles duzentos pães, cem cachos de passas, cem frutas de verão e um odre de vinho. Perguntou o rei a Ziba: Que pretendes com isto? Respondeu Ziba: Os jumentos são para a casa do rei, para serem montados; o pão e as frutas de verão, para os moços comerem; o vinho, para beberem os cansados no deserto. Então, disse o rei: Onde está, pois, o filho de teu senhor? Respondeu Ziba ao rei: Eis que ficou em Jerusalém, pois disse: Hoje, a casa de Israel me restituirá o reino de meu pai. Então, disse o rei a Ziba: Teu é tudo que pertence a Mefibosete. Disse Ziba: Eu me inclino e ache eu mercê diante de ti, ó rei, meu senhor.”
Davi e seus seguidores acabam de passar pelo cume do monte das Oliveiras. Ali, Ziba, servo de Mefibosete, vai ao seu encontro. Vimos Ziba pela primeira vez em 2 Samuel 9. Ele era servo de Saul. Para cumprir a aliança feita com Jônatas, Davi precisava encontrar um herdeiro de Saul a quem pudesse favorecer, por amor a Jônatas. Ele ouve falar de Ziba, antigo servo de Saul. Ziba é convocado ao palácio e lhe fala sobre Mefibosete. Quando Davi leva Mefibosete para casa, para comer à sua mesa, ele também restaura todos os bens que eram dele como herdeiro de Saul e Jônatas. Davi também designa Ziba e sua família para servi-lo, como haviam feito antes da morte de Saul.
Agora encontramos Ziba novamente. Desta vez, ele vai ao encontro de Davi com provisões para a jornada. Davi lhe pergunta por que ele traz suprimentos e Ziba lhe responde que é tudo para o rei e seus acompanhantes, pois a jornada não será fácil6. Davi, então, lhe pergunta onde está seu senhor, Mefibosete. Ziba diz que Mefibosete foi a Jerusalém, na esperança de ver o reino de Saul, seu pai, restaurado. Com base na narrativa de Ziba, Davi dá a ele, e a seus filhos, tudo o que antes fora dado a Mefibosete.
“Tendo chegado o rei Davi a Baurim, eis que dali saiu um homem da família da casa de Saul, cujo nome era Simei, filho de Gera; saiu e ia amaldiçoando. Atirava pedras contra Davi e contra todos os seus servos, ainda que todo o povo e todos os valentes estavam à direita e à esquerda do rei. Amaldiçoando-o, dizia Simei: Fora daqui, fora, homem de sangue, homem de Belial; o SENHOR te deu, agora, a paga de todo o sangue da casa de Saul, cujo reino usurpaste; o SENHOR já o entregou nas mãos de teu filho Absalão; eis-te, agora, na tua desgraça, porque és homem de sangue. Então, Abisai, filho de Zeruia, disse ao rei: Por que amaldiçoaria este cão morto ao rei, meu senhor? Deixa-me passar e lhe tirarei a cabeça. Respondeu o rei: Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia? Ora, deixai-o amaldiçoar; pois, se o SENHOR lhe disse: Amaldiçoa a Davi, quem diria: Por que assim fizeste? Disse mais Davi a Abisai e a todos os seus servos: Eis que meu próprio filho procura tirar-me a vida, quanto mais ainda este benjamita? Deixai-o; que amaldiçoe, pois o SENHOR lhe ordenou. Talvez o SENHOR olhará para a minha aflição e o SENHOR me pagará com bem a sua maldição deste dia. Prosseguiam, pois, o seu caminho, Davi e os seus homens; também Simei ia ao longo do monte, ao lado dele, caminhando e amaldiçoando, e atirava pedras e terra contra ele. O rei e todo o povo que ia com ele chegaram exaustos ao Jordão e ali descansaram.”
Baurim é uma cidadezinha, abaixo, não muito longe de Jerusalém. Paltiel, o (segundo) marido de Mical, pôde segui-la até lá e então teve de voltar (2 Samuel 3:14-16). É lá também que os dois espiões, Aimaás e Jônatas, ficam escondidos num poço até os homens de Absalão desistirem de procurá-los (2 Samuel 17:17-20). Ali aparece um homem chamado Simei, não para lamentar com Davi, nem para fornecer suprimentos para sua jornada, mas para zombar dele e amaldiçoá-lo, atirando pedras e sujeira nele e em seus acompanhantes.
Quando leio esta história, fico surpreso com o quanto esse homem parece estúpido. Eis aqui um único homem, sem mais nem menos, xingando e ofendendo Davi (embora eu suspeite que os guarda-costas não o deixem se aproximar o suficiente para causar qualquer dano físico a Davi). Porventura ele não sabe que um dos guarda-costas pode decepar sua cabeça de um só golpe, se Davi permitir? Acho que já vi esse tipo de comportamento nos noticiários, quando manifestantes, armados só com paus e pedras, desafiam tropas de choque equipadas com tanques e armas automáticas, como se fossem seus inimigos. Apesar do poderio do adversário, eles não podem ser detidos ou silenciados, senão pela morte.
As acusações de Simei são interessantes. Vamos examinar suas palavras com cuidado. Ele acusa Davi de ser um “homem de sangue”. Logo pensamos na morte de Urias, ordenada pelo próprio Davi. Mas não é isso especificamente o que Simei diz. Ele fala de derramamento de sangue em relação a Saul e sua casa (versículo 8). Acho que ele está totalmente fora de sintonia ao chamar Davi (o rei ungido de Deus) de “homem de Belial”, e acusá-lo de derramar o sangue de Saul e sua família, pelo que Davi não foi responsável. Abisai quer calar a boca do homem de uma vez por todas, decepando sua cabeça. Davi não permite, convencido da soberania de Deus em todas as coisas. Ele sabe que Simei está errado e suas acusações são infundadas. Mesmo assim ele acredita que Deus talvez esteja lhe falando por intermédio desse homem e, por isso, não tentará silenciar quem pode estar sendo usado por Deus. Em vez disso, ele continua seu caminho, esperando em Deus pela sua vindicação. Cansados, sem dúvida, dos aspectos físicos da jornada, bem como do desgaste emocional, David e seus seguidores chegam ao seu destino, onde aguardarão notícias de Jerusalém.
“Absalão, pois, e todo o povo, homens de Israel, vieram a Jerusalém; e, com ele, Aitofel. Tendo-se apresentado Husai, o arquita, amigo de Davi, a Absalão, disse-lhe: Viva o rei, viva o rei! Porém Absalão disse a Husai: É assim a tua fidelidade para com o teu amigo Davi? Por que não foste com o teu amigo? Respondeu Husai a Absalão: Não, mas àquele a quem o SENHOR elegeu, e todo este povo, e todos os homens de Israel, a ele pertencerei e com ele ficarei. Ainda mais, a quem serviria eu? Porventura, não seria diante de seu filho? Como servi diante de teu pai, assim serei diante de ti. Então, disse Absalão a Aitofel: Dai o vosso conselho sobre o que devemos fazer. Disse Aitofel a Absalão: Coabita com as concubinas de teu pai, que deixou para cuidar da casa; e, em ouvindo todo o Israel que te fizeste odioso para com teu pai, animar-se-ão todos os que estão contigo. Armaram, pois, para Absalão uma tenda no eirado, e ali, à vista de todo o Israel, ele coabitou com as concubinas de seu pai. O conselho que Aitofel dava, naqueles dias, era como resposta de Deus a uma consulta; tal era o conselho de Aitofel, tanto para Davi como para Absalão.”
Vou analisar rapidamente este último parágrafo, pois ele é a chave para a transição para o capítulo 17. As versões bíblicas geralmente começam o versículo 1 do capítulo 17 com “Disse mais” ou “Disse ainda”. Na verdade, a conjunção hebraica utilizada é mais simples (a vav), podendo ser traduzida, na maioria das vezes, por “e”. O que quero ressaltar é que a quebra do capítulo neste ponto é estranha e acaba separando o que deveria ser considerado junto. Os versículos 25 a 33 do capítulo 16 e os versículos 1 a 4 do capítulo 17 constituem o conselho de Aitofel a Absalão, o qual tem duas partes: 1) Coabita com as concubinas de teu pai e, com isso, proclama-te “rei”; 2) “Deixa-me escolher doze mil homens, e me disporei, e perseguirei Davi esta noite.”
Para esta lição, vou me concentrar apenas nos versículos do capítulo 16, abordando um dos aspectos do conselho de Aitofel e a atitude de Absalão. Na próxima lição, voltaremos a estes versículos, analisando-os em relação aos demais.
Nosso autor não diz realmente que Absalão “tocou a trombeta”, o que serviria de sinal para Israel declarar sua lealdade a ele como o novo rei (15:10). A fuga de Davi de Jerusalém certamente propicia o ousado avanço de Absalão contra a cidade e sua tomada. Uma vez em Jerusalém, Absalão procura Aitofel para saber o que deve fazer a seguir. Aitofel o aconselha a simbolicamente se declarar rei, de forma que Davi e todo Israel fiquem sabendo. Ele diz ainda para Absalão tomar as dez esposas de Davi (ou concubinas — os termos parecem ser usados quase sem distinção neste ponto) e publicamente dormir com elas, como símbolo de sua posse do trono (junto com o harém). Tomar o harém, com certeza, simboliza tomar o lugar do homem da casa, substituindo-o. Rubem fez a mesma coisa ao tomar uma das concubinas de Jacó (Gênesis 35:22, cf. 49:4). Adonias vai tentar fazer o mesmo com Abisague, uma das concubinas de Davi (1 Reis 2:13-25).
O que desejo ressaltar é que o comportamento de Absalão em relação às esposas de Davi não é só um gesto para proclamar simbolicamente sua posse do trono; é também o cumprimento das palavras proféticas de Natã no capítulo 12:
“Por que, pois, desprezaste a palavra do SENHOR, fazendo o que era mau perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amnom. Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.” (2 Samuel 12:9-12, ênfase do autor)
Nunca houve qualquer dúvida de que Deus cumpriria a promessa feita por intermédio de Natã. O que o autor do texto deseja é que não percamos de vista o fato desse acontecimento ser, em parte, cumprimento das palavras do profeta. Davi pecou com uma mulher, tomando-a como esposa quando ela ainda era esposa de outro homem. Agora, Absalão toma dez esposas de Davi e as torna suas esposas ao dormir com elas. Davi pecou em oculto; Absalão propositadamente faz do seu pecado um espetáculo, para todo Israel saber o que ele fez. Com isso, a humilhação de Davi é enorme. Nunca nos enganemos pensando que o pecado vale a pena. Se Davi pudesse ter visto onde ele o estava levando, jamais teria escolhido esse caminho. Vamos aprender com seu erro (pecado), em vez de aprender como ele aprendeu, da forma mais difícil, que o pecado nunca vale a pena.
Ao concluir esta lição, vamos fazer uma pausa para considerar algumas implicações e aplicações de nosso texto.
O texto tem muito a nos ensinar sobre a verdadeira amizade. O livro de Provérbios tem muito a dizer sobre os verdadeiros amigos e sobre os outros “amigos”:
“Ao generoso, muitos o adulam, e todos são amigos do que dá presentes.” (Provérbios 19:6)
“Se os irmãos do pobre o aborrecem, quanto mais se afastarão dele os seus amigos! Corre após eles com súplicas, mas não os alcança.” (Provérbios 19:7)
“Não abandones o teu amigo, nem o amigo de teu pai, nem entres na casa de teu irmão no dia da tua adversidade. Mais vale o vizinho perto do que o irmão longe.” (Provérbios 27:10)
Em nosso texto, descobrimos quem são os verdadeiros amigos de Davi. O incrível é que muitos deles nem mesmo são judeus, mas gentios. Muitos se tornaram seus amigos quando ele enfrentava adversidades, fugindo para salvar sua vida.
Espero que em nossa igreja, e em muitas outras, os verdadeiros amigos estejam entre os irmãos e irmãs com quem adoramos e servimos a Deus. Mas nem sempre é assim. Até mesmo o apóstolo Paulo foi abandonado por seus amigos (ver 2 Timóteo 4:9-11, 16). Não havia muitas igrejas como a de Filipos, na Macedônia, que sempre o apoiava (Filipenses 4:10-16). Não havia muitos homens como Timóteo e Epafrodito, com quem Paulo podia contar quando as coisas ficavam difíceis (Filipenses 2:19-30). A única certeza de Paulo era que havia um “Amigo” que jamais o abandonaria:
“O homem que tem muitos amigos sai perdendo; mas há amigo mais chegado do que um irmão.” (Provérbios 18:24)
“Na minha primeira defesa, ninguém foi a meu favor; antes, todos me abandonaram. Que isto não lhes seja posto em conta! Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de forças, para que, por meu intermédio, a pregação fosse plenamente cumprida, e todos os gentios a ouvissem; e fui libertado da boca do leão. O Senhor me livrará também de toda obra maligna e me levará salvo para o seu reino celestial. A ele, glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (2 Timóteo 4:16-18)
“Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito: DE MANEIRA ALGUMA TE DEIXAREI, NUNCA JAMAIS TE ABANDONAREI.” (Hebreus 13:5)7
O único “Amigo” que nunca abandonaria Moisés, Josué, Paulo ou Davi é o nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não se deixa intimidar por ninguém, nem é dissuadido pelo sofrimento e pela tristeza. Ele é o único que suportou a rejeição e o sofrimento para que pudéssemos ser salvos. Ele é o modelo, a referência de um verdadeiro amigo.
Nosso texto nos lembra que Deus sempre mantém Sua Palavra, e que o pecado não compensa. Por intermédio de Natã, Deus disse a Davi que o pecado cometido com Bate-Seba teria consequências dolorosas, semelhantes a ele, mas em escala muito maior. Davi pecou ao tomar a mulher de outro homem, em particular; e sofreu quando um homem tomou suas dez esposas, em público. O pecado não compensa. Nunca vale o preço. Esta mensagem retrata a jornada Davi e seus acompanhantes como um “rastro de lágrimas”. No texto há muito tristeza, muito pranto, tudo consequência do pecado, do pecado de Davi.
Nosso texto chama atenção para a verdade reconfortante da soberania de Deus. Ser soberano é ter autoridade e controle absoluto sobre tudo. Deus é soberano sobre toda criação. Ele é soberano sobre os homens. Nada pode frustrar Seus planos, Seus propósitos e Suas promessas. Deus disse a Davi o que aconteceria em consequência do seu pecado e, em nosso texto, vemos isso acontecendo. Não deveria ser surpresa. Deus também prometeu que Davi não morreria, e seu reino seria eterno. Por isso, vemos Deus protegendo sua vida, mesmo em meio ao sofrimento. Deus supre as necessidades de Davi de forma totalmente inesperada, mas em especial por meio de seus amigos, muitos dos quais nem mesmo são israelitas.
Em Sua soberania, Deus emprega os inimigos de Davi, e até mesmo os ímpios, para cumprir Seus propósitos e Suas promessas. Deus levanta Husai para frustrar o conselho de Aitofel. Ele usa mercenários gentios para lutar com e por Davi. Ele usa até mesmo um inimigo linguarudo — Simei — para humilhar Davi, embora os motivos de Simei e sua mensagem estejam errados. Deus usa tudo isso para corrigir Davi e propiciar sua restauração.
Em Sua soberania, Deus usa essa época difícil para fazer Davi amadurecer na fé e na prática. Deus usa o “mal” para fazer o “bem” para Davi. Com certeza, Romanos 8:28 está sendo representado em sua vida, especialmente em nosso texto. Incluídas em “todas as coisas” empregadas por Deus para nos fazer o “bem”, e para a Sua glória, estão as provações e tribulações desta vida. Deus não permitiu que todas essas coisas dolorosas acontecessem com a finalidade de destruir Davi, mas para aproximá-lo dEle, para torná-lo mais humilde e dependente.
É fácil ser envolvido pela tristeza dessa fuga de Jerusalém e se emocionar com as lágrimas derramadas. Mas toda tristeza também tem seu lado bom. Quando vemos a reação de Davi aos acontecimentos das horas mais negras da sua vida, percebemos algumas qualidades que lhe faltaram em outras épocas. Aqui, vemos em Davi um quebrantamento e uma humildade que nem sempre foram evidentes quando ele foi bem sucedido. O “Davi” que estava louco para dar cabo de Nabal, e de todos os homens da sua casa, pela rudeza com que fora tratado, agora suporta os insultos de Simei, pois sabe que há uma certa verdade naquilo que o inimigo está dizendo. Davi está disposto a aprender com seus inimigos e a enfrentar pacientemente as perseguições e aflições.
O sofrimento de Davi, de diversas maneiras, nos mostra o tipo de sofrimento de nosso Senhor Jesus Cristo. É difícil ler estes versos sem pensar na rejeição do Senhor por Seu próprio povo, os judeus, e de Sua aceitação por tantos gentios. Não é difícil perceber que a traição de Absalão ao seu próprio pai e rei é uma figura da traição de Jesus Cristo por Judas. Assim como Davi e uma procissão saíram de Jerusalém e subiram o monte das Oliveiras, é fácil recordar da procissão que deixou Jerusalém, a caminho da cruz do Calvário. No meio de toda tristeza e sofrimento do nosso texto, há um prenúncio da esperança que vem da obra de nosso Senhor na cruz do Calvário. Assim como Davi foi rejeitado como rei de Israel, só para derrotar seus inimigos e retornar como rei, nosso Senhor também voltará para subjugar Seus inimigos e estabelecer Seu trono eterno sobre a terra. Que a nossa esperança e a nossa confiança estejam depositadas no Filho de Davi, que veio para salvar pecadores e estabelecer Seu reino de justiça sobre a terra.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 A New International Version (NVI) diz: “um lugar a certa distância”. A Nova Versão Internacional, no entanto, interpreta: “na última casa da cidade” (NT).
2 Um amigo me chamou a atenção para o fato de Aquis, o rei de Gate, ter designado Davi como seu guarda-costas vitalício (1 Samuel 28:1-2). Seria possível haver o sentimento de que um fiel guarda-costas estrangeiro não se envolveria com tanta facilidade no tipo de intriga que derrubava um rei? De qualquer forma, não deve ter sido tão incomum Davi usar quereteus e peleteus para esses fins.
3 No texto Davi diz que Itai “chegou ontem” (15:20). É óbvio que Itai estava com Davi há mais tempo que isso, pois ele se tornará comandante de um terço das forças empregadas contra Absalão no capítulo 18, versículo 2. “Chegou ontem” deve ser apenas uma figura de linguagem, significando “relativamente recém-chegado”.
4 Seria de estranhar se Itai não fosse o comandante dos geteus que acompanharam Davi quando ele fugiu de Jerusalém.
5 “Não é nada impossível que, desde a violenta morte de Urias, Aitofel esteja procurando uma oportunidade para se vingar. Com a rebelião do filho de Davi, Absalão, ele tem sua chance.” John J. Davis e John C. Whitcomb, Israel: Da Conquista ao Exílio (Winona Lake, Indiana, BMH Books, 1969, 1970, 1971), p. 313.
6 Fico um tanto perplexo com aqueles que parecem ansiosos para acusar Ziba de segundas intenções. Isso se baseia, em parte, no aparecimento de Mefibosete no capítulo 19, onde ele encontra Davi voltando para Jerusalém e para o trono. Ele joga a culpa pela sua ausência em Ziba. O resultado é que, embora Davi tenha dado a Ziba tudo o que pertencia a Mefibosete, no capítulo 19 ele dividirá a herança. Parece impossível destrinchar totalmente essa história. Davi parece ter pensado a mesma coisa, por isso, dividiu os bens de Saul, dando metade a Ziba. Acho meio difícil culpar somente Ziba e acreditar piamente na história de Mefibosete, quando nem Davi faz isso.
7 Se foi Paulo ou não quem escreveu a carta aos Hebreus, o apóstolo conhecia a verdade, que vem do Antigo Testamento (Deuteronômio 31:6; Josué 1:5).
Os primeiros parágrafos do nosso texto soam como a cena introdutória daquela antiga série de TV “Missão Impossível”. Na série, o Sr. Phelps sempre recebia uma missão importante — a qual parecia literalmente impossível de realizar. Esta passagem tem quase o mesmo começo. Absalão, finalmente, está prestes a se declarar rei de Israel em lugar de seu pai. Quando Davi recebe a notícia da revolução iminente, decide fugir de Jerusalém, junto com vários seguidores leais. Os parágrafos anteriores são cheios de lágrimas, por Davi ter de deixar Jerusalém e fugir para o deserto. Ele pede que Husai, seu fiel companheiro, e os sacerdotes Zadoque e Abiatar (junto com a arca) fiquem em Jerusalém, onde podem ser mais úteis para ele. Zadoque é profeta, por isso pode dar a Davi um relatório acurado (inspirado) do que Absalão está fazendo. Os filhos de Zadoque e Abiatar, Aimaás e Jônatas, podem servir de mensageiros para levar os recados de Zadoque para Davi. Davi irá esperar notícias suas “nos vaus do deserto”, a oeste do Jordão, para saber o que Absalão tem em mente.
Absalão chega a Jerusalém e toma posse da cidade real. Ele, então, chama Aitofel e pede conselho sobre a melhor maneira de se estabelecer como rei. O conselho de Aitofel tem duas partes, infelizmente separadas (não consta do original) pela divisão do capítulo (capítulo 17). A primeira diz que Absalão deve tomar posse simbólica do trono dormindo publicamente com as dez esposas deixadas por Davi para guardar a casa em Jerusalém. Isso irá transmitir uma mensagem bem clara a todo Israel sobre o relacionamento de Absalão com o pai e o trono.
A segunda parte do conselho está registrada nos versos 1 a 3 do capítulo 17. Ele diz a Absalão para sair logo em perseguição a Davi, para isolá-lo e matá-lo, e assim desmoralizar seus seguidores e garantir a posição como rei em lugar do pai. A ideia parece boa a Absalão e aos anciãos de Israel, mas Absalão decide pedir também o conselho de Husai. Husai é convocado e, ao chegar, é informado de que Aitofel já deu seu conselho.
Como seria estar no lugar de Husai? Ele sabe que Absalão duvida da sua lealdade, pois ele (Husai) é amigo de Davi (16:16-19). Ele deve saber que Absalão e os anciãos já deram seu aval ao plano de Aitofel. Além disso, ele sabe que Absalão deposita muita confiança no conselho de Aitofel, pois seu conselho é como se alguém “perguntasse a Deus” (16:23). Husai é também amigo de Davi e sabe que a vida dele depende da sua resposta a Absalão. Não concordam que essa é uma situação típica para ser chamada de “missão impossível”?
Na verdade não existe muito perigo, pois você e eu sabemos uma coisa que Husai não sabe. Davi já tinha orado a Deus pedindo que, de alguma forma, o conselho de Aitofel fosse anulado (15:31). O texto também dirá que “ordenara o SENHOR que fosse dissipado o bom conselho de Aitofel, para que o mal sobreviesse contra Absalão” (17:14). Talvez queiramos minimizar a dificuldade da tarefa de Husai, como se Absalão e os anciãos de Israel devessem aceitar sua palavra mesmo sendo uma grande tolice. Por isso, achamos que o conselho é tolo e sem fundamento, mas aceito por Absalão e seus servos porque eles estão com os olhos vendados para enxergar a verdade.
Gostaria de dizer que Deus dá grande sabedoria a Husai, e seu plano faz todo sentido quando visto pelo lado de Absalão. Precisamos tomar muito cuidado em pensar no conselho de Aitofel como sendo “bom” no sentido moral. É um bom plano no sentido de que, se for seguido, resultará na morte de Davi e na consolidação do governo de Absalão sobre Israel. Mas não é “bom” em qualquer sentido moral, pois sanciona — não, recomenda — a morte do rei ungido de Deus. Não é bom, também, na medida em que incentiva Absalão a cometer adultério, dormindo com as esposas de seu pai. Nem é bom, ainda, no sentido de que são os interesses e ambições pecaminosas de Aitofel que o levam a aconselhar Absalão.
Esta passagem é cheia das intrigas e elementos necessários para um excelente drama. É também uma passagem que descreve as horas mais sombrias da vida de Davi. Não creio que alguma vez ele tenha sido dominado pela dor e pela tristeza como foi nessa época. Vamos dar uma olhada em como Deus cuidou dele, pois todos nós já passamos por isso uma vez ou outra. Se há livramento e esperança para Davi nessas horas difíceis, então há também para nós quando passarmos pelo “vale da sombra da morte”.
Então, disse Absalão a Aitofel: Dai o vosso conselho sobre o que devemos fazer. Disse Aitofel a Absalão: Coabita com as concubinas de teu pai, que deixou para cuidar da casa; e, em ouvindo todo o Israel que te fizeste odioso para com teu pai, animar-se-ão todos os que estão contigo. Armaram, pois, para Absalão uma tenda no eirado, e ali, à vista de todo o Israel, ele coabitou com as concubinas de seu pai. O conselho que Aitofel dava, naqueles dias, era como resposta de Deus a uma consulta; tal era o conselho de Aitofel, tanto para Davi como para Absalão. Disse ainda Aitofel a Absalão: Deixa-me escolher doze mil homens, e me disporei, e perseguirei Davi esta noite. Assaltá-lo-ei, enquanto está cansado e frouxo de mãos; espantá-lo-ei; fugirá todo o povo que está com ele; então, matarei apenas o rei. Farei voltar a ti todo o povo; pois a volta de todos depende daquele a quem procuras matar; assim, todo o povo estará em paz. O parecer agradou a Absalão e a todos os anciãos de Israel.
Demorei um pouco para me dar conta deste texto. A princípio, achei que algum tempo tivesse decorrido entre a primeira e a segunda parte do conselho de Aitofel. Presumi que Absalão tivesse primeiro buscado, e recebido, seu conselho relativamente às esposas deixadas por Davi em Jerusalém. Não sei por que, mas achei que ele as tivesse "possuído" por um ou dois dias, à vista de todos. Depois, pensei, ele procurou novamente Aitofel para um segundo conselho, pedindo também a opinião de Husai. Mas não foi bem assim.
Primeiro, vamos pensar nos acontecimentos do capítulo apenas em termos de tempo. Davi fica sabendo que Absalão está prestes a se apossar do trono e foge de Jerusalém. Ele tem consigo suas esposas e filhos, e algumas pessoas mais velhas, significando que não pode avançar muito rápido. A narrativa toda é escrita de forma a ressaltar a urgência da fuga. Absalão e seus homens estão praticamente a algumas horas de Davi. Se ele não receber logo alguma notícia e sumir rapidamente no deserto, Absalão os alcançará.
Davi foge de Jerusalém enquanto Absalão se aproxima, pronto a ocupar a cidade e o trono. Após sua chegada, Absalão pede o conselho de Aitofel, o qual lhe dá — em duas partes. A primeira é uma recomendação quanto ao que Absalão deve fazer: possuir as esposas de Davi. A segunda se refere ao que o próprio Aitofel se propõe a fazer por ele — reunir imediatamente 12.000 homens e sair em perseguição a Davi nessa mesma noite, atacando-o repentinamente para deixá-lo aterrorizado, e a todos que estão com ele. Aitofel se oferece para, pessoalmente, matar só Davi, diminuindo, assim, o derramamento de sangue, para consolidação do reino em curto prazo.
Se observarmos os pronomes no texto acima, veremos que Aitofel já tem um curso de ação preparado para Absalão e outro para si. Creio que ele pretende realizar as duas ações simultaneamente, não uma seguida da outra. Por isso, recomenda: 1) Absalão deve se ocupar da tarefa de possuir as esposas de Davi, à vista de todo Israel; 2) Enquanto isso, ele pegará os 12.000 homens e dará início a uma intensa perseguição a Davi, a quem surpreenderá e matará pessoalmente, concluindo assim a tomada do reino, em tempo recorde.
O conselho de Aitofel é bastante "engenhoso" em diversos aspectos. Primeiro, o plano teria dado certo, barrando a intervenção direta de Deus. Segundo, ele oferecia um curso de ação bem atrativo a Absalão. Este, não muito diferente do pai, podia ficar em casa e "fazer amor", enquanto Aitofel e seu exército lutariam contra Davi. Absalão poderia tomar posse do trono rapidamente, sem os perigos e desconfortos de ir a guerra. Como incentivo adicional, ele poderia se divertir com as esposas de Davi, de forma a puni-lo, magoá-lo e humilhá-lo. Só Davi seria morto, pois é ele o verdadeiro inimigo de Absalão.
Quando o texto diz que Absalão aceita o conselho de Aitofel a respeito das esposas de Davi, creio que o faça enquanto Israel está sendo reunido para sair à guerra, não enquanto Aitofel e os 12.000 homens perseguem Davi. Se for isso mesmo — e parece necessário entender dessa forma — temos, então, uma perspectiva ligeiramente diferente da atitude de Absalão em relação às esposas de Davi. Este é cumprimento das palavras do profeta Natã. A afirmação simbólica de Absalão é a parte mais dolorosa para Davi. Mas é também parte do plano maior de Deus para retardar sua perseguição, para que ele possa escapar, entrincheirar-se e derrotar Absalão, retornando depois como rei de Israel. Alguns dos acontecimentos mais dolorosos da nossa vida podem ser também alguns dos mais úteis para produzir o bem que Deus quer para nós. Aitofel e Absalão intentam tudo para o mal (e para sua própria satisfação), mas Deus usa o mal para o bem (ver Gênesis 50:20).
Aitofel propõe uma vitória fácil e rápida para Absalão, a ser vencida por ele enquanto o "rei" fica em Jerusalém. É bom demais para ser verdade. O fato é que teria funcionado; mas Deus tem outros planos para Davi e Absalão. Esses planos serão realizados por intermédio dos amigos de Davi: Husai, os sacerdotes Zadoque e Abiatar e seus filhos Aimaás e Jônatas, a esposa de um fazendeiro em Baurim, e uma porção de outros colaboradores e amigos leais de Davi. É a história de seu livramento que vamos estudar agora.
Disse, porém, Absalão: Chamai, agora, a Husai, o arquita, e ouçamos também o que ele dirá. Tendo Husai chegado a Absalão, este lhe falou, dizendo: Desta maneira falou Aitofel; faremos segundo a sua palavra? Se não, fala tu. Então, disse Husai a Absalão: O conselho que deu Aitofel desta vez não é bom. Continuou Husai: Bem conheces teu pai e seus homens e sabes que são valentes e estão enfurecidos como a ursa no campo, roubada dos seus cachorros; também teu pai é homem de guerra e não passará a noite com o povo. Eis que, agora, estará de espreita nalguma cova ou em qualquer outro lugar; e será que, caindo no primeiro ataque alguns dos teus, cada um que o ouvir dirá: Houve derrota no povo que segue a Absalão. Então, até o homem valente, cujo coração é como o de leões, sem dúvida desmaiará; porque todo o Israel sabe que teu pai é herói e que homens valentes são os que estão com ele. Eu, porém, aconselho que a toda pressa se reúna a ti todo o Israel, desde Dã até Berseba, em multidão como a areia do mar; e que tu em pessoa vás no meio deles. Então, iremos a ele em qualquer lugar em que se achar e facilmente cairemos sobre ele, como o orvalho cai sobre a terra; ele não ficará, e nenhum dos homens que com ele estão, nem um só. Se ele se retirar para alguma cidade, todo o Israel levará cordas àquela cidade; e arrastá-la-emos até ao ribeiro, até que lá não se ache nem uma só pedrinha. Então, disseram Absalão e todos os homens de Israel: Melhor é o conselho de Husai, o arquita, do que o de Aitofel. Pois ordenara o SENHOR que fosse dissipado o bom conselho de Aitofel, para que o mal sobreviesse contra Absalão.
Não sabemos o motivo de Absalão pedir a opinião de Husai. Seria para testar sua lealdade? Não se esqueça de que Husai não tem tempo para refletir no que deve dizer. Ele é levado à presença de Absalão, informado do conselho de Aitofel e solicitado a dar sua opinião. A resposta de Husai é brilhante. Ele começa reconhecendo a enorme sabedoria e habilidade de Aitofel como conselheiro, mas depois diz que, desta vez, o conselho não é bom. Ninguém é perfeito. Ninguém está sempre certo. Aitofel está quase sempre certo, mas não desta vez.
Husai tem uma grande desvantagem: Absalão e todos em Israel sabem que ele é amigo de Davi. Como pode Absalão confiar em um homem que é amigo de Davi há tanto tempo? Seu conselho deve ser suspeito. Em vez de tentar evitar o problema, Husai usa sua amizade com Davi. É quase como se ele dissesse a Absalão:
"Davi não é meu amigo? Sim, há muitos anos. E é exatamente essa amizade que me faz compreendê-lo tão bem. Eu o conheço muito melhor que qualquer um de vocês. Por isso, sei como ele vai reagir à revolta de Absalão. Deixe-me bolar um plano com base no meu conhecimento sobre ele, e o Davi que vocês conhecem já era."
A atratividade do plano de Aitofel está no fato de que Davi pode ser derrotado com rapidez e relativa facilidade, com um mínimo de perdas e esforço simbólico. Absalão nem precisa ir à guerra. Ele pode ficar em Jerusalém com as esposas de Davi. Aitofel sairá imediatamente com 12.000 soldados para caçar Davi, matar somente a ele e levar seus seguidores para Absalão. O plano também é baseado em certas premissas. O pressuposto é que Davi esteja cansado e desanimado, sem vontade de lutar, e possa ser vencido com facilidade. Se não for assim, todo o esquema proposto por Aitofel cairá por terra como um castelo de cartas.
Husai contesta as suposições de Aitofel, e assim, todo o plano. Ele apresenta um Davi bem diferente e, por isso, um plano totalmente diverso. Ele insiste em dizer que Aitofel está subestimando perigosamente Davi e sua capacidade de se defender e a seu reino. Ele relembra a Absalão e aos anciãos de Israel o tipo de homem que Davi é. Davi não é nenhum débil mental; ele é um guerreiro valente e experiente. A rebelião de Absalão não vai deixá-lo abatido; vai provocá-lo. Ele vai ficar como uma ursa roubada de seus filhotes. E estará pronto a lutar como doido. Se Aitofel atacá-lo no deserto, o combate será no território de Davi. Afinal, foi lá que ele passou anos se escondendo de Saul. Aitofel acha mesmo que vai encontrá-lo sentado no meio do povo? Davi vai se esconder e, quando Aitofel e seu pequeno exército chegarem, vai atacá-los, causando uma derrota humilhante. Quem vai ficar desanimado e fugir serão os soldados de Absalão, não Davi e seus homens.
Se sua suposição estiver correta (e todo o passado de lutas de Davi parece sustentá-la), então é necessário um plano de batalha totalmente diferente. Não vai ser fácil, nem rápido. É preciso muito mais que a morte de Davi; e por isso, um exército muito maior é imprescindível para atacá-lo e derrotá-lo, e seus seguidores. Vai demorar um pouco mais para reunir todos os soldados, por isso Absalão terá de esperar (e, enquanto espera, ele pode possuir as esposas de Davi; não haverá outra hora para isso). Será preciso também um grande líder militar, em vez de alguém como Aitofel. O próprio Absalão terá de liderar o exército. Será uma grande batalha, com um grande líder, e o resultado será uma grande vitória. Ora, esse é tipo de plano que atrai um homem que anda por aí de carruagem, com 50 homens correndo à sua frente. Absalão adora aparecer, e o plano de Husai cheira a ostentação. Por isso, ele prevalece. O plano não é proposto com descuido, mas com extrema perspicácia e extremo apelo. É um plano que Deus garantiu que seria adotado. É também um plano que Absalão acha muito atraente.
O plano de Husai vai provocar uma batalha muito maior, de modo que, não só os seguidores de Absalão morrerão, mas também o próprio Absalão, pondo fim à revolução1. O plano também dará a Davi o tempo necessário para preparar o seu tipo de batalha: a guerrilha. Isso permitirá que ele lute em seu próprio território, a fim de que a floresta mate mais que os seus próprios soldados (18:8). O plano de Husai faz o conselho de Aitofel parecer tolo, exatamente como Davi pediu a Deus (15:31). Ele trará libertação Davi e a derrota de seus inimigos.
Disse Husai a Zadoque e a Abiatar, sacerdotes: Assim e assim aconselhou Aitofel a Absalão e aos anciãos de Israel; porém assim e assim aconselhei eu. Agora, pois, mandai avisar depressa a Davi, dizendo: Não passes esta noite nos vaus do deserto, mas passa, sem demora, ao outro lado, para que não seja destruído o rei e todo o povo que com ele está. Estavam Jônatas e Aimaás junto a En-Rogel; e uma criada lhes dava aviso, e eles iam e diziam ao rei Davi, porque não podiam ser vistos entrar na cidade. Viu-os, porém, um moço e avisou a Absalão; porém ambos partiram logo, apressadamente, e entraram em casa de um homem, em Baurim, que tinha um poço no seu pátio, ao qual desceram. A mulher desse homem tomou uma coberta, e a estendeu sobre a boca do poço, e espalhou grãos pilados de cereais sobre ela; assim, nada se soube. Chegando, pois, os servos de Absalão à mulher, àquela casa, disseram: Onde estão Aimaás e Jônatas? Respondeu-lhes a mulher: Já passaram o vau das águas. Havendo-os procurado, sem os achar, voltaram para Jerusalém. Mal se retiraram, saíram logo os dois do poço, e foram dar aviso a Davi, e lhe disseram: Levantai-vos e passai depressa as águas, porque assim e assim aconselhou Aitofel contra vós outros. Então, Davi e todo o povo que com ele estava se levantaram e passaram o Jordão; quando amanheceu, já nem um só havia que não tivesse passado o Jordão. Vendo, pois, Aitofel que não fora seguido o seu conselho, albardou o jumento, dispôs-se e foi para casa e para a sua cidade; pôs em ordem os seus negócios e se enforcou; morreu e foi sepultado na sepultura do seu pai. Davi chegou a Maanaim. Absalão, tendo passado o Jordão com todos os homens de Israel, constituiu a Amasa em lugar de Joabe sobre o exército. Era Amasa filho de certo homem chamado Itra, o ismaelita, o qual se deitara com Abigail, filha de Naás, e irmã de Zeruia, mãe de Joabe. Israel, pois, e Absalão acamparam-se na terra de Gileade. Tendo Davi chegado a Maanaim, Sobi, filho de Naás, de Rabá, dos filhos de Amom, e Maquir, filho de Amiel, de Lo-Debar, e Barzilai, o gileadita, de Rogelim, tomaram camas, bacias e vasilhas de barro, trigo, cevada, farinha, grãos torrados, favas e lentilhas; também mel, coalhada, ovelhas e queijos de gado e os trouxeram a Davi e ao povo que com ele estava, para comerem, porque disseram: Este povo no deserto está faminto, cansado e sedento.
Por enquanto, pelo menos, Absalão escolhe o conselho de Husai, não o de Aitofel. Embora esse plano dê a Davi um pouco mais de tempo, ele também exige um ataque por um exército muito maior, liderado por Absalão. Agora é imperativo que Davi seja informado dos últimos acontecimentos. Ele precisa fugir para além do Jordão, para acampar em um lugar que lhe ofereça proteção e posição estratégica para se defender do ataque de Absalão e seus seguidores.
Husai envia uma mensagem aos sacerdotes Zadoque e Abiatar, falando do seu conselho e do de Aitofel, instruindo-os a informar Davi por intermédio de Jônatas e Aimaás. Os dois estão em En-Rogel, um vilarejo (ao que parece) localizado no vale abaixo de Jerusalém. Aparentemente o lugar era uma fonte nos arredores da cidade, onde as mulheres costumavam ir buscar água. Provavelmente, é com esse pretexto que a criada vai falar com os dois mensageiros.
Infelizmente, um dos partidários de Absalão vê Jônatas e Aimaás, os quais aparentemente são conhecidos por sua lealdade a Davi. Isso precipita uma busca pelos dois, pois deve ser evidente que estão indo falar com ele. Os dois saem com pressa e chegam à casa de outro colaborador de Davi, o qual vive em Baurim2. Lá, a esposa desse homem esconde os mensageiros em um poço, cobrindo-o e colocando grãos de cereal sobre a cobertura, de modo a não deixá-lo visível. Os servos de Absalão chegam, querendo saber onde estão os homens, e a mulher lhes diz que eles atravessaram o riacho e fugiram. Eles já estão "longe". Quando os servos de Absalão procuram e não encontram ninguém, voltam a Jerusalém. Os filhos dos sacerdotes rapidamente vão até o acampamento de Davi e lhe contam o que aconteceu. Eles lhe dizem para cruzar logo o Jordão e encontrar um lugar seguro. De madrugada, Davi e todos os que estão com ele cruzam o rio (se Aitofel tivesse dado início à perseguição de Davi na noite anterior, a história teria sido bem diferente).
Aitofel permanece em Jerusalém só o suficiente para se convencer de que seu conselho não será seguido por Absalão. Quando se torna evidente a prevalência do conselho de Husai, ele sabe ser o seu fim. Ele tinha apostado todas as suas fichas na suposição de que Absalão venceria Davi. Agora ele sabe que Absalão será derrotado. Ele, então, volta para casa, põe os negócios em ordem e se mata. Que fim trágico para um homem com tanto potencial!
Enquanto Absalão cruza o Jordão em perseguição a Davi, este adentra aos portões de Maanaim. Essa cidade, de fato, tem uma história. Foi Jacó quem lhe deu esse nome. Quando ele voltava à terra prometida, temeroso do que poderia acontecer em seu encontro com Esaú, anjos foram ao seu encontro, o que o fez dizer: "Este é o acampamento de Deus". Por isso, Jacó deu ao lugar o nome de Maanaim (que significa "dois campos" — ver nota à margem da versão NASB). Estaria Davi com medo de encontrar seu filho Absalão? Ele deve ter se lembrado de que Deus sempre protege Seu povo, Suas promessas e Seus propósitos, até por meio de anjos, se for preciso. Maanaim também serviu como capital para Isbosete quando Abner o estabeleceu em lugar de Saul, seu pai, por um curto período de tempo (2 Samuel 2:8, 12, 29).
Em Maanaim, Deus também cuida de Davi de forma mais tangível e visível. Quando ele e seus seguidores leais chegam, há pessoas prontas e dispostas a ajudá-los. A primeira é o rei vigente dos amonitas, Sobi, filho de Naás. Isso é realmente incrível. Davi e Naás foram relativamente amigos, mas quando Naás morreu e seu filho Hanum assumiu o trono, este fez uma besteira, humilhando a delegação oficial enviada por Davi para lamentar a morte de Naás (2 Samuel 10:1 e ss). Esse fato levou à guerra entre Israel e os filhos de Amon. Na verdade, foi essa guerra com os amonitas (especialmente o cerco a Rabá) que Davi resolveu evitar, deixando a batalha para os israelitas liderados por Joabe (2 Samuel 11:1 e ss). No final os amonitas foram derrotados por Davi (2 Samuel 12:26-31). E agora Sobi está no trono, ansioso para ajudar Davi quando Absalão está contra ele. Mas que surpresa!
A segunda pessoa a ir em auxílio de Davi em Maanaim é Maquir, filho de Amiel, de Lo-Debar (17:27). Foi ele quem cuidou de Mefibosete após a morte do rei Saul e de Jônatas (2 Samuel 9:4-5). Por último, Barzilai, o gileadita, um ancião muito rico, leva suprimentos para Davi e seu pessoal. Aprenderemos mais sobre ele no capítulo 19, versos 31 a 40. Que força esses homens e sua ajuda devem ter dado a Davi!
Contou Davi o povo que tinha consigo e pôs sobre eles capitães de mil e capitães de cem. Davi enviou o povo: um terço sob o comando de Joabe, outro terço sob o de Abisai, filho de Zeruia e irmão de Joabe, e o outro terço sob o de Itai, o geteu. Disse o rei ao povo: Eu também sairei convosco. Respondeu, porém, o povo: Não sairás, porque, se formos obrigados a fugir, não se importarão conosco, nem ainda que metade de nós morra, pois tu vales por dez mil de nós. Melhor será que da cidade nos prestes socorro. Tornou-lhes Davi: O que vos agradar, isso farei. Pôs-se o rei ao lado da porta, e todo o povo saiu a centenas e a milhares. Deu ordem o rei a Joabe, a Abisai e a Itai, dizendo: Tratai com brandura o jovem Absalão, por amor de mim. Todo o povo ouviu quando o rei dava a ordem a todos os capitães acerca de Absalão. Saiu, pois, o povo ao campo, a encontrar-se com Israel, e deu-se a batalha no bosque de Efraim. Ali, foi o povo de Israel batido diante dos servos de Davi; e, naquele mesmo dia, houve ali grande derrota, com a perda de vinte mil homens. Porque aí se estendeu a batalha por toda aquela região; e o bosque, naquele dia, consumiu mais gente do que a espada. Indo Absalão montado no seu mulo, encontrou-se com os homens de Davi; entrando o mulo debaixo dos ramos espessos de um carvalho, Absalão, preso nele pela cabeça, ficou pendurado entre o céu e a terra; e o mulo, que ele montava, passou adiante. Vendo isto um homem, fez saber a Joabe e disse: Vi Absalão pendurado num carvalho. Então, disse Joabe ao homem que lho fizera saber: Viste-o! Por que logo não o feriste ali, derrubando-o por terra? E forçoso me seria dar-te dez moedas de prata e um cinto. Disse, porém, o homem a Joabe: Ainda que me pesassem nas mãos mil moedas de prata, não estenderia a mão contra o filho do rei, pois bem ouvimos que o rei te deu ordem a ti, a Abisai e a Itai, dizendo: Guardai-me o jovem Absalão. Se eu tivesse procedido traiçoeiramente contra a vida dele, nada disso se esconderia ao rei, e tu mesmo te oporias. Então, disse Joabe: Não devo perder tempo, assim, contigo. Tomou três dardos e traspassou com eles o coração de Absalão, estando ele ainda vivo no meio do carvalho. Cercaram-no dez jovens, que levavam as armas de Joabe, e feriram a Absalão, e o mataram. Então, tocou Joabe a trombeta, e o povo voltou de perseguir a Israel, porque Joabe deteve o povo. Levaram Absalão, e o lançaram no bosque, numa grande cova, e levantaram sobre ele mui grande montão de pedras; todo o Israel fugiu, cada um para a sua casa. Ora, Absalão, quando ainda vivia, levantara para si uma coluna, que está no vale do Rei, porque dizia: Filho nenhum tenho para conservar a memória do meu nome; e deu o seu próprio nome à coluna; pelo que até hoje se chama o Monumento de Absalão.
Era inevitável. Davi provavelmente negou essa necessidade durante muito tempo, mas agora é óbvio que ele não pode mais fugir; ele tem de lutar contra o exército do próprio filho. Ele dispõe as tropas em três divisões. Não sabemos ao certo quantos homens lutam a seu lado, mas sabemos que são milhares, pois o texto diz que há grupos com capitães de mil e de cem. Joabe e Abisai lideram duas divisões, enquanto Itai, o geteu, lidera a terceira. Davi diz que vai junto com seus homens, mas eles lhe dizem para permanecer em Maanaim. Se tiverem de fugir, não serão de grande valia para Absalão, mas se Davi estiver entre eles, não poderão parar até serem capturados e mortos. É melhor para Davi estar em outro lugar.
No entanto, quando eles estão prestes a sair para lutar em nome do seu rei, Davi tem algumas palavras finais a lhes dizer. Não são as palavras de costume, de estímulo e enfoque na vitória. Nem como as palavras de Joabe, proferidas pouco antes do ataque contra os sírios e amonitas:
Disse Joabe: Se os siros forem mais fortes do que eu, tu me virás em socorro; e, se os filhos de Amom forem mais fortes do que tu, eu irei ao teu socorro. Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso povo e pelas cidades de nosso Deus; e faça o SENHOR o que bem lhe parecer (2 Samuel 20:11-12).
A “incumbência” dada por Davi é bem diferente: “Tratai com brandura o jovem Absalão” (18:5). Todos ouvem suas palavras. Como elas são diferentes do conselho de Aitofel, que pretende matar só Davi, deixando vivo o restante do povo. Davi permite que seus homens matem qualquer israelita, menos seu filho, o líder da revolução. Ele ordena que eles se arrisquem para lutar por ele, mas não para vencer. Que espetáculo patético deve ter sido.
Apesar disso, o exército luta corajosamente, e as forças de Absalão sofrem grande derrota, não só pelas mãos dos homens de Davi, mas muito mais pela própria floresta. Os homens de Absalão não foram talhados para esse tipo de combate. Um total de 20.000 soldados morrem no massacre, o qual se alastra pelo campo inteiro conforme eles dão meia volta e fogem para se salvar. A vitória é grande para Davi, e a derrota, devastadora para Absalão.
Não sabemos se Absalão está ou não fugindo para se salvar, mas ele parece estar sozinho quando sua mula passa por debaixo dos galhos de um grande carvalho e sua cabeça acaba ficando presa entre eles3. Nenhum de seus homens parece estar por perto para tentar soltá-lo (talvez tenham fugido para se salvar). Um dos homens de Joabe se depara com ele e menciona o fato a seu comandante. Joabe fica indignado pelo rapaz não ter matado Absalão logo de uma vez. Não teria ele sido recompensado por isso? O jovem não é dissuadido por sua repreensão. Ele diz que Davi, o comandante em chefe, proibiu expressamente qualquer pessoa de fazer mal a seu filho. Não importa o que Joabe lhe diga, o soldado sabe que quando Davi descobrir que ele matou Absalão, ele estará perdido. Ele também sabe que apesar das palavras duras de Joabe, quando a ira de Davi pela morte de Absalão se voltar contra ele, Joabe vai ficar lá parado, deixando-o levar toda culpa. Não há jeito de fazer esse camarada desobedecer as ordens do rei, matando seu filho.
Joabe se enche da submissão do rapaz às ordens do rei. Ele vai cuidar do assunto pessoalmente. E assim, ele sai e encontra Absalão, exatamente como o jovem disse. Ele pega três dados e os crava em seu peito. Seus escudeiros fazem o mesmo, dando cabo de Absalão. O inimigo de Davi está morto.
Não é irônico que justamente Joabe tenha matado Absalão? Foi ele quem orquestrou sua anistia e sua volta a Jerusalém. Foi ele também quem lhe conquistou maior liberdade e levou-o à presença do rei. E mesmo assim, depois de tudo o que Joabe fez por ele, Absalão procurou afastar o trono de Davi e estabelecer outro comandante nas forças de Israel. Foi Joabe ainda quem, sob as ordens de Davi, matou Urias em batalha, sem sequer levantar uma palavra de protesto. E agora, esse líder militar, que matou um homem justo a pedido de Davi, mata o próprio filho do rei, violando diretamente suas ordens. Há um ditado que diz: “Tudo que vai, volta.” De alguma forma isso parece se encaixar nesta história. Davi, que abusou de sua quase absoluta autoridade ao tomar a esposa de Urias, e em seguida a vida dele, agora é impotente para salvar o próprio filho das mãos de Joabe (ou de qualquer outro).
O texto inclui uma espécie de epitáfio na narrativa da morte de Absalão. O autor nos informa que anteriormente ele não tinha filhos e, temendo ser esquecido, levantou para si uma coluna no vale dos reis. Com isso, pensava ele, teria seu nome preservado. Como vemos depois, Absalão teve filhos, mas na ânsia de se apossar do trono do pai, ele só conseguiu ser rei por alguns dias, e agora seria lembrado como o traidor que morreu pendurado em uma árvore, a morte mais desprezível de todas. Sua coluna no vale dos reis nunca apagaria a lembrança de sua loucura e de sua morte.
Então, disse Aimaás, filho de Zadoque: Deixa-me correr e dar notícia ao rei de que já o SENHOR o vingou do poder de seus inimigos. Mas Joabe lhe disse: Tu não serás, hoje, o portador de novas, porém outro dia o serás; hoje, não darás a nova, porque é morto o filho do rei. Disse Joabe ao etíope: Vai tu e dize ao rei o que viste. Inclinou-se a Joabe e correu. Prosseguiu Aimaás, filho de Zadoque, e disse a Joabe: Seja o que for, deixa-me também correr após o etíope. Disse Joabe: Para que, agora, correrias tu, meu filho, pois não terás recompensa das novas? Seja o que for, tornou Aimaás, correrei. Então, Joabe lhe disse: Corre. Aimaás correu pelo caminho da planície e passou o etíope. Davi estava assentado entre as duas portas da entrada; subiu a sentinela ao terraço da porta sobre o muro e, levantando os olhos, viu que um homem chegava correndo só. Gritou, pois, a sentinela e o disse ao rei. O rei respondeu: Se vem só, traz boas notícias. E vinha andando e chegando. Viu a sentinela outro homem que corria; então, gritou para a porta e disse: Eis que vem outro homem correndo só. Então, disse o rei: Também este traz boas-novas. Disse mais a sentinela: Vejo o correr do primeiro; parece ser o correr de Aimaás, filho de Zadoque. Então, disse o rei: Este homem é de bem e trará boas-novas. Gritou Aimaás e disse ao rei: Paz! Inclinou-se ao rei, com o rosto em terra, e disse: Bendito seja o SENHOR, teu Deus, que nos entregou os homens que levantaram a mão contra o rei, meu senhor. Então, perguntou o rei: Vai bem o jovem Absalão? Respondeu Aimaás: Vi um grande alvoroço, quando Joabe mandou o teu servo, ó rei, porém não sei o que era. Disse o rei: Põe-te ao lado e espera aqui. Ele se pôs e esperou. Chegou o etíope e disse: Boas-novas ao rei, meu senhor. Hoje, o SENHOR te vingou do poder de todos os que se levantaram contra ti. Então, disse o rei ao etíope: Vai bem o jovem Absalão? Respondeu o etíope: Sejam como aquele os inimigos do rei, meu senhor, e todos os que se levantam contra ti para o mal. Então, o rei, profundamente comovido, subiu à sala que estava por cima da porta e chorou; e, andando, dizia: Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!
Acabou. Aitofel sabia que se Davi fosse morto, toda a oposição a Absalão seria esmagada. O inverso funciona da mesma forma. Muitos homens de Absalão estão mortos e seu exército sofre grande derrota, mas quando o próprio Absalão morre, a revolução em si está morta. É por isso que suas tropas fogem da cena de batalha para o próprio acampamento. Acabou! Davi venceu! É um grande dia de vitória.
A cena do exército vitorioso retornando a Maanaim deve ter sido exultante. Seria mais ou menos como a volta da Seleção Brasileira depois de vencer a Copa do Mundo. Muita gritaria e comemoração. Que grande dia, um dia de vitória. O rei Davi, no entanto, não está com seu exército. Ele está de volta à cidade, esperando notícias do resultado da guerra. O retorno dos soldados é triunfante, até eles perceberem que o rei não está nos portões da cidade para saudá-los. É porque Davi já sabe da morte do filho.
Tudo começa com a derrota do exército de Absalão, seguida da sua morte. Aimaás suplica a Joabe para ser o portador das “boas novas” a Davi. Joabe sabe que não serão “boas novas” para o rei, embora o sejam para qualquer outra pessoa. Por isso, ele proíbe Aimaás de correr até Maanaim. Em seu lugar, ele envia um etíope. Aimaás insiste e, finalmente, Joabe, com relutância, o deixa correr também para levar as notícias a Davi. Altamente motivado (sendo bom corredor e também escolhendo um caminho mais rápido), Aimaás dá um jeito de chegar a Maanaim antes do etíope. Entre os dois mensageiros, Davi descobre que seu filho Absalão foi morto. Sua tristeza é realmente muito grande.
Antes de continuar a história, gostaria de ressaltar que há mais espaço dedicado aos mensageiros que relatam os acontecimentos a Davi do que há para a guerra entre os dois exércitos inimigos, incluindo a narrativa da morte de Absalão. Qual será o motivo? Por que o autor dá tanta ênfase ao desejo de Aimaás de levar a mensagem da vitória do exército de Davi ao rei? A resposta é chave para o entendimento da mensagem desejada pelo autor a seus leitores.
Já ressaltei a ênfase (em termos de espaço) dada à questão dos mensageiros. Deixem-me salientar também a repetição de uma expressão muito importante: boas novas. Na versão NASB4, ela ocorre quatro vezes entre os versos 25 a 31 (em português, na versão ARA, também), mas há uma porção de outras referências às novas que, no contexto, espera-se sejam boas. A expressão boas novas é uma interpretação do termo hebraico que significa (como era de se esperar) “boas novas”. Quando os tradutores da Septuaginta fizeram a versão para o grego, eles usaram o mesmo termo referente à proclamação do evangelho normalmente encontrado no Novo Testamento. As boas novas que Aimaás queria proclamar a Davi era que Deus lhe dera a vitória, derrotando o exército de Absalão e destruindo-o.
O problema é que Davi não está disposto a aceitar a informação como boa notícia. Observe que quando os mensageiros se aproximam, eles dão indícios de que as notícias são boas para ele. Mas Davi não pergunta o resultado da batalha, só se seu filho, Absalão, está bem. Para ele, boa nova é Absalão estar vivo. Para qualquer outro envolvido na guerra com Absalão e seus homens nesse dia, boa nova seria que seu exército foi derrotado e o encrenqueiro, destruído.
Joabe conhece seu rei muito bem. Ele sabe que Davi não aceitará bem a notícia da morte de Absalão. Por isso ele hesita em enviar Aimaás para lhe contar sobre a morte do filho. Por isso, também, Aimaás evita responder a pergunta específica de Davi sobre o bem-estar de Absalão. E, assim, quando retornam a Maanaim, os soldados vitoriosos não encontram o rei nos portões para saudá-los e expressar seu reconhecimento. Em vez disso, eles ficam sabendo que Davi está de luto pela morte do filho. Agora, ao invés de sentir orgulho pelo que fizeram, os homens de Davi sentem vergonha.
Disseram a Joabe: Eis que o rei anda chorando e lastima-se por Absalão. Então, a vitória se tornou, naquele mesmo dia, em luto para todo o povo; porque, naquele dia, o povo ouvira dizer: O rei está de luto por causa de seu filho. Naquele mesmo dia, entrou o povo às furtadelas na cidade, como o faz quando foge envergonhado da batalha. Tendo o rei coberto o rosto, exclamava em alta voz: Meu filho Absalão, Absalão, meu filho, meu filho! Então, Joabe entrou na casa do rei e lhe disse: Hoje, envergonhaste a face de todos os teus servos, que livraram, hoje, a tua vida, e a vida de teus filhos, e de tuas filhas, e a vida de tuas mulheres, e de tuas concubinas, amando tu os que te aborrecem e aborrecendo aos que te amam; porque, hoje, dás a entender que nada valem para contigo príncipes e servos; porque entendo, agora, que, se Absalão vivesse e todos nós, hoje, fôssemos mortos, então, estarias contente. Levanta-te, agora, sai e fala segundo o coração de teus servos. Juro pelo SENHOR que, se não saíres, nem um só homem ficará contigo esta noite; e maior mal te será isto do que todo o mal que tem vindo sobre ti desde a tua mocidade até agora. Então, o rei se levantou e se assentou à porta, e o fizeram saber a todo o povo, dizendo: Eis que o rei está assentado à porta. Veio, pois, todo o povo apresentar-se diante do rei. Ora, Israel havia fugido, cada um para a sua tenda.
Os guerreiros de Davi, os quais arriscaram o pescoço para salvar seu rei, agora baixam a cabeça envergonhados. Um dia de vitória de repente se transforma em dia de luto. Os soldados começam a entrar furtivamente na cidade, como se tivessem feito algo errado. Eles são como um centroavante que tem a chance de fazer o gol da vitória e ganhar o jogo, mas acaba chutando pra fora. Eles estão com vergonha de voltar ao seu campo, se aproximar do banco e encarar seu técnico. É como se sentem os soldados de Davi.
O rei está chorando e lamentando a morte de Absalão. Ele fica repetindo “Meu filho Absalão, Absalão, meu filho, meu filho!”. Joabe não está disposto a se juntar ao luto do rei. Na verdade, ele não está disposto nem a tolerar a choradeira de Davi. Ele entra na casa. E não trata Davi com brandura. Em sua cabeça, David está cometendo o maior erro de sua vida, e vai sofrer consequências muito maiores do que quaisquer outras já sofridas.
Joabe dá uma bronca em Davi por envergonhar quem veio com ele de Jerusalém; não só os soldados, mas também suas esposas e filhos, e suas concubinas. Por sua reação aos acontecimentos, Davi revela que ama mais o inimigo do que os amigos e a família. Ele ama mais quem o odeia do que quem o ama. Ele demonstra total desrespeito para com quem se dispôs a dar tudo por seu rei. Joabe diz isso da forma mais cruel possível: Davi preferia ouvir que todo o exército foi dizimado e Absalão estava vivo do que saber que seu exército prevaleceu, mas Absalão está morto.
Joabe praticamente diz a Davi o que fazer a seguir. Ele deve se levantar, parar de chorar e ir aos portões cumprimentar os guerreiros vitoriosos que estão retornando da batalha. Se ele não fizer isso imediatamente, Joabe lhe garante que ao amanhecer não haverá nenhum soldado com ele. O rei faz o que Joabe diz. Ele desce aos portões e, tão logo as pessoas tomam conhecimento disso, vão até ele. Nesse meio tempo, os israelitas que se haviam se juntado a Absalão fogem para suas tendas. A guerra acabou. Davi é rei de Israel novamente.
Temos muito a aprender com esta passagem. Creio que cada um dos personagens principais desse drama nos ensina alguma coisa. Vou chamar sua atenção para algumas lições.
Primeiro, podemos aprender com os dois vilões do texto, Absalão e Aitofel. Desde cedo os dois estiveram muito perto de Davi. Ambos decidiram se rebelar contra ele, tentando arruiná-lo. Nenhum deles parece temer a Deus ou ver sua situação do ponto de vista de Deus. Nenhum deles parecer se incomodar com o fato de ter tentado matar o rei ungido de Deus. A vida de ambos termina tragicamente, em morte. Ambos devem ter percebido a mão de Deus operando na vida de Davi e em seu governo como rei. Ambos estão dispostos a afastar Davi para tentar construir algum tipo de “reino” próprio. Ambos são como Satanás, e como Adão e Eva, no que diz respeito a não querer desempenhar um papel secundário. Eles parecem pensar que, estando sob a autoridade de Davi, estão sendo privados de algo melhor, que eles podem conquistar correndo atrás de seus próprios interesses.
Ambos, Absalão e Aitofel, deixam de responder corretamente à pergunta mais importante da vida de qualquer pessoa: “A quem servirei como rei?” Eles não querem Davi como rei. Os dois, na verdade, querem ser rei da sua própria vida. Contudo, rejeitando Davi, eles estão rejeitando o rei de Deus, e por isso, estão se rebelando contra o próprio Deus. Ambos têm grande potencial, mas no fim, seus talentos não prestam para nada.
O problema é sempre o mesmo. Foi assim antes mesmo de haver um rei humano em Israel, e tem sido assim desde então. Adão e Eva rejeitaram a Deus como autoridade suprema e tentaram se colocar acima Dele. Os israelitas rejeitaram a Deus como Rei, exigindo um rei como o das outras nações (ver 1 Samuel 8:7). Absalão e Aitofel, e quem os seguiu em sua rebelião contra Davi, também rejeitaram o rei de Deus como seu rei. Quando nosso Senhor Jesus Cristo veio à terra, Ele veio como Aquele que se assentaria no trono de seu pai, Davi. Ele veio como o Rei ungido de Deus, e mesmo assim as multidões disseram não ter outro rei além de César. O Senhor Jesus veio a primeira vez para ser rejeitado como Rei de Israel, a fim de levar a culpa pelo nosso pecado e prover o meio de podermos entrar em Seu reino. Quem recebe o perdão e a vida eterna oferecidos por Ele, reinará com Ele por toda eternidade. Ele vai voltar mais uma vez, para derrotar Seus inimigos e estabelecer Seu trono sobre a terra. Quem O recebe como o caminho de Deus para a salvação também O recebe como Rei. Quem rejeita o dom da Sua salvação, rejeita-O como Rei. Quando Ele vier novamente, todos se dobrarão diante Dele como o Rei de Deus, mas somente quem O recebeu como Salvador entrará no Seu reino. Quem é o seu rei? Essa é a pergunta mais importante que você deve responder.
Segundo, podemos aprender com Joabe. É discutível se Joabe deveria ter ou não matado Absalão, contra as ordens de Davi. Talvez Absalão tivesse morrido por si só. Acho que podemos ver que Joabe tinha razão ao repreender o rei por sua reação à vitória e à morte de Absalão. Joabe era subordinado de Davi, mas estava certo em repreendê-lo. Às vezes, a admoestação bíblica é necessária em resposta ao pecado de quem tem autoridade sobre nós. Para isso, é preciso orar e tomar muito cuidado; mas a repreensão pode ser boa.
Além disso, devemos aprender com o texto que podemos ser corrigidos não só por quem é nosso subordinado, mas também por quem não é nosso mentor. Há muitas coisas para se criticar em Joabe, mas o fato é que ele tem razão naquilo que diz a Davi. Hoje em dia há muita conversa sobre “aconselhamento” e “responsabilização”. O pressuposto parece ser que cada um de nós precisa de alguém a quem prestar contas, algum “mentor” para nos orientar. Há uma certa verdade nisso, e muita coisa a ser esclarecida e corrigida. Mas o que eu gostaria de ressaltar aqui é que não devemos restringir de quem podemos aprender, limitando-nos à uma lista de possíveis mentores. Nosso inimigo pode ser o nosso melhor crítico. Ele não se importa se vai ou não perder o nosso respeito ou amizade. Ele não se preocupa em não nos ofender. Ele (ou ela) pode nos dizer coisas que os nossos “amigos” nunca dirão. Joabe repreende Davi. Davi ouve, e aprende. Temos de aprender a aprender de quem não gostamos, e de quem talvez não goste de nós.
Terceiro, podemos aprender com a perda de perspectiva de Davi. Joabe acertadamente repreende Davi, pois seus valores tinham ficado totalmente desordenados. Nas palavras de Joabe, Davi passou a amar seus inimigos e a odiar seus amigos. Ele se importa mais com o bem-estar de seu arqui-inimigo do que com a nação que ele deve pastorear por Deus. Davi chega a se preocupar mais com um único membro da sua família do que com todos os outros. Nesse sentido, ele está errado, e Joabe está certo.
Davi está errado em instruir seus comandantes a não fazer mal a Absalão. Absalão já deveria ter sido morto em outras ocasiões. Ele deveria ter sido morto pelo assassinato premeditado de Amnom, contrário a lei. Por se rebelar contra o pai (antes deste texto). E por alta traição, ao tentar matar o rei ungido de Deus e estabelecer a si mesmo no trono. Como Davi podia esperar que seu exército lutasse contra o exército de Absalão sem lutar contra o próprio Absalão? Assim como anteriormente ele usou sua autoridade para condenar um homem justo à morte (Urias), agora ele tenta usar sua autoridade como rei para salvar um revolucionário que merece pena de morte. A perspectiva de Davi está completamente distorcida. É a tremenda bronca de Joabe que o tira do seu estupor mental.
Gostaria de dizer que, exatamente como Davi perdeu a perspectiva em nosso texto, muitas vezes nós também perdemos, sem nem mesmo perceber. Por exemplo, sabemos que este mundo e tudo o que há nele vai acabar num piscar de olhos. Mesmo assim, insistimos em acumular coisas. Nós acumulamos tesouros na terra em vez de acumular no céu. Nós sabemos (em tese) que os perdidos irão passar toda a eternidade no inferno, separados de Deus. Mesmo assim, deixamos de tentar conhecer o nosso próximo ou pregar o evangelho (a “boa nova”) a ele. Será que a nossa perspectiva não está tão distorcida quanto a de Davi?
Vemos Davi colocando o bem-estar de Absalão acima do bem-estar dos demais membros da sua família e do seu reino. Nesse caso, não colocou Davi a “família” acima de coisas mais importantes? Assim como ele não quis lidar com o filho da forma requerida por seu pecado, tentando “poupá-lo”, também não deixamos de lidar com a desobediência e rebelião dos nossos filhos, com medo de perdê-los? Será que não deixamos de disciplinar um crente deliberadamente em pecado porque não podemos suportar a ideia de perdê-lo ou àquilo que ele nos oferece? Aprendamos com Davi que podemos perder rapidamente a perspectiva, sem nem perceber. A única forma de mantermos a perspectiva correta é enchendo cada vez mais a nossa mente com a Palavra de Deus. É na Bíblia que adquirimos perspectiva bíblica. Sejamos homens e mulheres da Palavra para podermos ver a vida pela perspectiva de Deus.
Finalmente, aprendemos muito com a depressão de Davi. Estes são os dias mais sombrios da sua vida. Para mim, é difícil descrever seu estado de espírito com qualquer outra palavra a não ser depressão. Levei muito tempo para poder dizer isso, mas creio que um cristão pode ficar deprimido. Indo mais a fundo nessa questão, creio que um cristão pode ficar deprimido, sem com isso “estar em pecado”. Depressão, algumas vezes, é fruto de pecado (o que certamente é parte da depressão de Davi). Em outras, a própria depressão pode ser pecado. Isto é, podemos deliberadamente ficar deprimidos, apesar de saber que a nossa depressão tem raiz no pecado. Contudo, não estou mais disposto a rotular toda depressão em si mesma como pecaminosa.
Anos atrás um senhor muito temente a Deus levantou-se durante o culto e leu o texto de nosso Senhor no Jardim do Getsêmani. Ele disse (na verdade, leu uma tradução atual do texto) que nosso Senhor estava deprimido. Para minha vergonha, devo dizer que me levantei e o corrigi, dizendo que depressão é pecado e, por isso, nosso Senhor não podia estar deprimido. Mas podemos estar deprimidos e não estar em pecado. Davi, creio eu, estava deprimido. Sua depressão talvez tenha ajudado a distorcer suas perspectivas e prioridades.
O que eu gostaria que notassem em nosso texto é que Deus poupou Davi da morte e lhe deu a vitória sobre Absalão, apesar do fato de ele estar deprimido, apesar de ele ter ordenado a seus homens a não prejudicar Absalão. Os propósitos e as promessas de Deus não podem ser frustrados pelo nosso pecado, muito menos pela nossa depressão. Estes foram dias em que a fé e a esperança de Davi estavam no nível mais baixo. Será que isso impediu Deus de alcançar Seus propósitos? Nem por um instante!
Ressaltei esse ponto por uma razão muito importante. Há muitos ensinamentos e ideias evangélicas sugerindo que Deus não possa operar enquanto estamos deprimidos. O ensino da AMP (Atitude Mental Positiva) é abundante hoje em dia. Se tivermos uma atitude positiva, as coisas boas terão de vir. Se formos propensos a “pensamentos derrotistas”, só teremos problemas. É isso o que algumas pessoas ensinam. Essa é a sua própria forma de cristianismo. Se tivermos fé suficiente, Deus fará grandes coisas por nós. Se não tivermos, merecemos o sofrimento e a tristeza decorrentes da nossa falta de fé.
Há muita coisa errada com esse tipo de pensamento. Damos a nós mesmos crédito demais pelas bênçãos de Deus. Atribuímos Suas bênçãos à nossa fé, à nossa obediência, à nossa disposição mental positiva. Mas quando vem a depressão (e ela sempre vem), de acordo com a corrente ideológica da AMP, não temos esperança. Nós acreditamos que Deus Se limita a operar somente quando somos otimistas, cheios de fé e alegria. Muitas vezes os cristãos saem por aí fingindo ter paz, alegria e fé porque esperam por isso. Naquele ponto da sua vida, Davi não tinha paz, nem alegria, nem muita fé. Ele estava no fundo do poço. No entanto, apesar da sua disposição mental, Deus cumpriu Seus intentos e Suas promessas. Ele cuidou para que muitos amigos estivessem a seu lado naqueles momentos difíceis. Deus usou Husai para frustrar o conselho de Aitofel. Usou Joabe para eliminar Absalão e repreender Davi. Deus agiu na vida de Davi, não porque ele estivesse cheio de fé, alegria e esperança naquele momento, mas porque Deus é fiel em cumprir Suas promessas.
Desejo explorar um pouco mais essa questão da depressão. Muitas vezes, quando alguém está deprimido, sua perspectiva das coisas fica distorcida — ele ou ela não consegue ver a vida do jeito certo. No entanto, há também um certo sentido em que a depressão pode nos ajudar a ver as coisas com mais clareza. Será que não confiamos demais nos nossos próprios esforços, na nossa própria justiça, na nossa própria fé? A depressão acaba com toda essa autoconfiança. Quem é muito confiante, alegre e feliz, e tem muito êxito na vida, acaba se enganando quanto a fonte de suas habilidades e do seu sucesso. Quando estava no auge do sucesso, Davi via a vida com menos clareza do que quando estava nas profundezas da sua humilhação. Em seu desespero, ele não confiou em si mesmo. Tudo o que ele pôde fazer foi lançar-se sobre Deus, descansando e esperando nEle.
Já disse que Deus trabalhou muito na vida de Davi quando ele estava em depressão. Agora vou dizer também que Ele trabalhou muito por intermédio de Davi quando ele estava em depressão. Não posso mostrar isso de forma conclusiva, mas imagino que muitos de seus salmos vieram do “fundo do poço”. Muitos deles foram escritos em tempos de crise. Quando ele manifestava seus medos, seu desespero e sua depressão para Deus, encontrava esperança e auxílio, lembrando-se do Deus com quem falava. E, ao escrever esses salmos, Davi também ministrava a outras pessoas em seu desespero. Muitas vezes, quando estamos tristes e abatidos, começamos a ver a vida com mais clareza, confiando em Deus mais plenamente. Se é assim, então o sofrimento e as tristezas, e até mesmo a depressão, podem ser nossos aliados, não nossos inimigos. Tudo o que nos aproxima de Deus é nosso aliado.
Estou certo de que, quando falo e escrevo estas palavras, estou falando e escrevendo a quem talvez esteja em depressão. Alguns podem nem saber disso, ou relutem em admiti-lo. Isso porque, como eu mesmo, dizem que depressão é pecado e não querem ser culpados desse pecado. Mas muitos estão deprimidos e sabem que estão. Muitos estão deprimidos e têm vergonha de contar a outra pessoa. Deixem-me apenas dizer que Deus agiu na vida de Davi, a despeito da sua depressão. Deus também agiu por meio dele por causa da sua depressão.
Vou encerrar com estas palavras do próprio Senhor:
Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; e ele passou a ensiná-los, dizendo: Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. (Mateus 5:1-4)
Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mateus 11:28-30)
1 Não consigo deixar de pensar que o aumento no tamanho do exército de Absalão só vai atrapalhar sua causa. Muitos dos seguidores de Davi são valentes que lutaram com ele em situações difíceis, muitas delas parecidas com a que vão enfrentar aqui. Eles são unha e carne com seu comandante. O vasto “exército de voluntários” que segue Absalão não deve ser tão habilidoso, nem tão acostumado à guerra, nem tão disciplinado. Seu comandante em chefe é novo, e pouco experiente. É como um time recém-formado, com jogadores novatos, novo técnico e nenhuma experiência, enfrentando a seleção nacional.
2 Baurim não ficava muito longe de Jerusalém. Foi até lá que Paltiel, o segundo marido de Mical, pôde acompanhar a esposa quando ela foi levada de volta a Davi (2 samuel 3:14-16). Lá também era onde morava Simei, o homem que amaldiçoou Davi quando este fugia de Jerusalém.
3 Apesar da opinião popular de que Absalão ficou preso pelos cabelos, o texto diz que foi sua cabeça que ficou presa. Seu cabelo, é claro, deve ter sido parte do problema. Parece óbvio que ele não conseguiu se soltar dos galhos desse carvalho gigante, sugerindo que se ele fosse deixado à própria sorte, seria mais um cuja vida foi reivindicada pela floresta, não pela espada de um dos homens de Davi.
4 NASB (New American Standard Bible), ARA (Almeida Revista e Atualizada)
Nossa história me faz lembrar do caminho para um campo de treinamento missionário na região central da Índia com tantas reviravoltas que mal dá para imaginar. Davi pecou quando cometeu adultério com Bate-Seba e tirou a vida de seu marido (com a ajuda de ninguém menos que Joabe, a figura central do texto). Deus indiciou Davi por seu pecado por meio do profeta Natã, e Davi se arrependeu. No entanto, há consequências que ele terá de enfrentar. Sua filha Tamar é violentada por seu meio-irmão, Amnom. Depois Amnom é assassinado por seu meio-irmão, Absalão. Absalão foge para Gesur, onde recebe asilo de seu avô, Talmai. Por intervenção e intriga de Joabe, Davi é pressionado a permitir o retorno de Absalão a Jerusalém. Depois de algum tempo, Absalão consegue desprestigiar o governo do pai, dando início a uma revolução que obriga Davi, sua família e seus amigos a fugir para o deserto. Deus poupa Davi, dá a seu exército a vitória sobre as forças rebeldes, e providencialmente elimina Absalão por meio de Joabe, o qual o mata apesar das ordens específicas de Davi para o jovem não ser maltratado.
Agora Davi está prestes a voltar para Jerusalém e retomar seu governo sobre a nação de Israel. A fim de ganhar o favor do povo (e talvez tirar um espinho da própria carne), ele afasta Joabe do comando das forças armadas, substituindo-o por Amasa. Parece o fim de Joabe, mas no final do nosso texto veremos que é o fim de Amasa, o qual será morto por Joabe. E Joabe será novamente nomeado comandante do exército de Israel. Quem poderia imaginar uma coisa dessas?
Mas não para por aí. Davi foi forçado a fugir de Jerusalém devido à revolução instigada por Absalão. Embora ele nunca tenha abdicado do trono, Absalão agiu como rei por alguns dias, até ser derrotado em batalha e ter sua vida ceifada por Joabe. Davi é convidado a retornar a Jerusalém para retomar o governo sobre a nação. No entanto, no caminho há uma disputa entre os homens de Judá (a tribo de Davi) e os homens das outras tribos de Israel. Em algum ponto entre o rio Jordão e Jerusalém, uma rebelião é incitada por Seba, e os israelitas renegam Davi como rei e voltam para casa. Por meio de uma estranha reviravolta do destino (humanamente falando), Seba acaba encurralado numa cidade fortificada de Israel. Com a intervenção de uma sábia mulher da cidade, ele é morto, a cidade libertada e a divisão de Israel revertida. Resumindo: 1) Davi é rei; 2) Davi não é mais rei; 3) Davi é convidado a ser rei outra vez; 4) Davi tem o reino dividido; 5) Davi tem o reino reunido.
Acima de tudo, há uma incrível demonstração de derramamento de sangue e violência. Com toda certeza a história receberia classificação “18” (proibido para menores) por sua barbaridade. Joabe dá uma “mãozinha” (perdão pelo trocadilho) ao destino, atravessando Amasa com sua espada, espalhando suas entranhas pelo caminho; o exército, então, pára para ficar olhando o homem chafurdando no próprio sangue. O grand finale é a decapitação de Seba, cuja cabeça é lançada por sobre os muros da cidade para Joabe e o exército do lado de fora.
Esta história fascinante tem todos os ingredientes de um filme de ação. Mas não é só por isso (nem mesmo por isso, principalmente) que devemos estudá-la com cuidado. Esta é uma história religiosa inspirada; é uma história provavelmente escrita por um profeta e, por isso, com uma mensagem para ouvir e aprender. Então, vamos abordar o assunto com grande expectativa no coração e na mente, prontos para ouvir e aprender aquilo que Deus tem a nos dizer.
Todo o povo, em todas as tribos de Israel, andava altercando entre si, dizendo: O rei nos tirou das mãos de nossos inimigos, livrou-nos das mãos dos filisteus e, agora, fugiu da terra por causa de Absalão. Absalão, a quem ungimos sobre nós, já morreu na peleja; agora, pois, por que vos calais e não fazeis voltar o rei?
É muito difícil para quem vive numa democracia entender a situação embaraçosa em que se encontram os israelitas. Quando o presidente Kennedy foi assassinado, apenas algumas horas depois Lyndon Johnson teve de prestar juramento como novo presidente e assumir o cargo. A constituição dos Estados Unidos tem um processo muito claro para sucessão governamental. Mas quando um monarca deixa de atuar como rei, o que faz a nação? Muita gente está discutindo e se acusando em Israel. Todo mundo está culpando alguém e exigindo que (esse) alguém faça alguma coisa. Davi tinha sido rei. Então ele fugiu para o interior. O povo ungiu Absalão em seu lugar, mas agora Absalão está morto. Parece haver uma conclusão precipitada de que Davi voltará e reassumirá seu papel como rei de Israel, mas como isso vai acontecer? O que eles devem fazer? O que podem fazer? E quem o fará? A discussão toda é sobre essas coisas.
Mais um fator contribui para tornar esse problema tão desagradável — estas são as mesmas pessoas que apoiaram a rebelião de Absalão. Quem está discutindo é o povo de Israel, o qual permaneceu na terra. Eles não são os amigos de Davi que foram com ele para o deserto. Esse pessoal rejeitou Davi como rei e agora sabe que sua volta ao poder é inevitável. Quem gostaria de dar um passo à frente para trazer de volta o homem a quem eles rejeitaram, contra quem cometeram alta traição? Não é à toa que ninguém queira ser o líder.
Então, o rei Davi mandou dizer a Zadoque e a Abiatar, sacerdotes: Falai aos anciãos de Judá: Por que seríeis vós os últimos em tornar a trazer o rei para a sua casa, visto que aquilo que todo o Israel dizia já chegou ao rei, até à sua casa? Vós sois meus irmãos, sois meu osso e minha carne; por que, pois, seríeis os últimos em tornar a trazer o rei? Dizei a Amasa: Não és tu meu osso e minha carne? Deus me faça o que lhe aprouver, se não vieres a ser para sempre comandante do meu exército, em lugar de Joabe. Com isto moveu o rei o coração de todos os homens de Judá, como se fora um só homem, e mandaram dizer-lhe: Volta, ó rei, tu e todos os teus servos. Então, o rei voltou e chegou ao Jordão; Judá foi a Gilgal, para encontrar-se com o rei, a fim de fazê-lo passar o Jordão. Apressou-se Simei, filho de Gera, benjamita, que era de Baurim, e desceu com os homens de Judá a encontrar-se com o rei Davi. E, com ele, mil homens de Benjamim, como também Ziba, servo da casa de Saul, acompanhado de seus quinze filhos e seus vinte servos, e meteram-se pelo Jordão à vista do rei e o atravessaram, para fazerem passar a casa real e para fazerem o que lhe era agradável.
A notícia do que está acontecendo chega aos ouvidos de Davi enquanto ele ainda está em Maanaim. Ele age de forma a tornar sua volta mais fácil para os israelitas. Ele manda um recado para Zadoque e Abiatar (os sacerdotes que ficaram em Jerusalém e continuaram leais a ele), dando-lhes instruções para falar aos anciãos de Judá. Essa é a tribo de Davi, a primeira a ungi-lo como rei quando ele estava em Hebrom. Eles são os parentes mais próximos de Davi. E é lógico que devem tomar a iniciativa de levá-lo de volta a Jerusalém. Davi facilita as coisas para eles anunciando a demissão de Joabe do comando do exército, e sua substituição por Amasa. Isso é um artifício da parte de Davi. Os anciãos de Judá mandam lhe dizer que ele está convidado a voltar. Davi e todos os que estão com ele partem de Maanaim para as margens do rio Jordão. O povo de Judá se reúne em Gilgal para ajudá-los a passar o rio, e para receber Davi de volta como rei. Além do povo de Judá, está presente também uma delegação razoável de israelitas, representando as outras tribos. Entre eles estão Mefibosete, Ziba (seu servo, junto com seus filhos e servos), e Simei, junto com mil benjamitas.
Então, Simei, filho de Gera, prostrou-se diante do rei, quando este ia passar o Jordão, e lhe disse: Não me imputes, senhor, a minha culpa e não te lembres do que tão perversamente fez teu servo, no dia em que o rei, meu senhor, saiu de Jerusalém; não o conserves, ó rei, em teu coração. Porque eu, teu servo, deveras confesso que pequei; por isso, sou o primeiro que, de toda a casa de José, desci a encontrar-me com o rei, meu senhor. Então, respondeu Abisai, filho de Zeruia, e disse: Não morreria, pois, Simei por isto, havendo amaldiçoado ao ungido do SENHOR? Porém Davi disse: Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia, para que, hoje, me sejais adversários? Morreria alguém, hoje, em Israel? Pois não sei eu que, hoje, novamente sou rei sobre Israel? Então, disse o rei a Simei: Não morrerás. E lho jurou.
Simei não nos é estranho, nem a Davi. Ele é aquele descendente de Saul que atormentou Davi e seus acompanhantes quando fugiam de Jerusalém (2 Samuel 16:5 e ss). Ele lançou pedras, sujeira, acusações e insultos contra Davi. Abisai quis calar sua boca permanentemente, mas Davi não deixou, presumindo que Deus, de alguma forma, o estivesse repreendendo por meio desse falastrão. Agora, em seu retorno, Davi deve passar por Baurim, cidade natal de Simei. Simei sabe que está numa grande enrascada. Davi é novamente rei de Israel, e pode muito bem vê-lo como um traidor que precisa ser eliminado.
Simei chega, aparentemente convicto da sua loucura e do seu pecado, ansioso para demonstrar seu arrependimento a Davi enquanto pede perdão. Ele traz consigo 1.000 benjamitas, os quais também demonstram submissão a Davi como rei. Simei não perde tempo. Ele confessa seu pecado e sua loucura e implora o perdão de Davi. Uma vez mais, Abisai expressa o desejo de executar o encrenqueiro e livrar-se dele de uma vez por todas. Uma vez mais, Davi não permite, repreendendo não só ele, mas também Joabe (que obviamente está por trás disso — note a expressão “filhos (plural) de Zeruia” no verso 22). Este é um dia de reconciliação. Não haverá execuções, embora Simei mereça morrer por ter amaldiçoado um governante do seu povo (ver Êxodo 22:28). Davi lhe assegura: “não morrerás” (verso 23).1
Também Mefibosete, filho de Saul, desceu a encontrar-se com o rei; não tinha tratado dos pés, nem espontado a barba, nem lavado as vestes, desde o dia em que o rei saíra até ao dia em que voltou em paz. Tendo ele chegado a Jerusalém a encontrar-se com o rei, este lhe disse: Por que não foste comigo, Mefibosete? Ele respondeu: Ó rei, meu senhor, o meu servo me enganou; porque eu, teu servo, dizia: albardarei um jumento e montarei para ir com o rei; pois o teu servo é coxo. Demais disto, ele falsamente me acusou a mim, teu servo, diante do rei, meu senhor; porém o rei, meu senhor, é como um anjo de Deus; faze, pois, o que melhor te parecer. Porque toda a casa de meu pai não era senão de homens dignos de morte diante do rei, meu senhor; contudo, puseste teu servo entre os que comem à tua mesa; que direito, pois, tenho eu de clamar ao rei? Respondeu-lhe o rei: Por que ainda falas dos teus negócios? Resolvo que repartas com Ziba as terras. Disse Mefibosete ao rei: Fique ele, muito embora, com tudo, pois já voltou o rei, meu senhor, em paz à sua casa.
Quando Davi se tornou rei de Israel pela primeira vez, para cumprir sua aliança com Jônatas, ele começou a procurar algum descendente de Saul e Jônatas. Ele ouviu falar de Ziba, o qual serviu Saul até a morte deste. Ziba foi convocado ao palácio e disse ao rei que um filho de Jônatas havia sobrevivido, Mefibosete, aleijado desde a infância. Davi mandou buscar Mefibosete e deu-lhe todas as propriedades anteriormente pertencentes a Saul, assim como Ziba e sua família para servi-lo. Além disso, Davi tinha Mefibosete sentado à sua mesa como filho. Quando Davi fugiu de Jerusalém, Ziba saiu a encontrá-lo com provisões para a viagem. Quando Davi perguntou por Mefibosete, Ziba lhe disse que ele tinha preferido ficar em Jerusalém, esperando recuperar o trono do avô, Saul. Naquela ocasião, Davi deu a Ziba toda a herança que antes dera a Mefibosete.
Agora Davi está voltando a Jerusalém e ao trono. Ziba, seus filhos e servos, e Mefibosete, estão lá para recebê-lo e ajudá-lo na travessia do Jordão, e no caminho para Jerusalém. Embora Ziba esteja por perto, a conversa aqui é entre Davi e Mefibosete. É ele que parece ter abandonado Davi, enquanto Ziba parece gozar de boa reputação. Davi pergunta a Mefibosete por que ele não o acompanhou quando fugia de Jerusalém.
Algumas pessoas talvez não saibam que comecei minha carreira como professor. Dei aulas durante vários anos, e naquela época, ouvi uma porção de desculpas esfarrapadas (minha esposa e eu somos pais de cinco filhas, e também temos ouvido algumas desculpas lamentáveis). Por mais que eu tente entender o que Mefibosete está dizendo, para mim, não faz sentido. Ele não admite ter feito algo errado e tenta se defender dizendo a Davi ter sido enganado, pois tentou selar um jumento para si. Por que, então, ele não foi? Se Ziba não o impediu de selar o jumento, por que Mefibosete não seguiu em frente? Não entendo. Ele, então, acrescenta que Ziba o difamou diante do rei, sem dúvida por ter dito que ele tinha ficado em Jerusalém na esperança de reaver o trono.
Pessoalmente, não creio haver alguma forma de conciliar as duas histórias sobre a ausência de Mefibosete quando Davi fugiu de Jerusalém. Davi também não parece ter resolvido a questão, pois ele não julga um certo e o outro errado. Em vez disso, ele declara que as terras de Mefibosete (dadas a ele, e depois a Ziba) serão divididas igualmente entre ele e o servo, Ziba. Mais uma vez, esse é um dia de alegria e conciliação. Davi vai dar a ambos o benefício da dúvida e emitir um julgamento que beneficie tanto um quanto outro, e talvez facilite sua reconciliação.
Mefibosete certamente não pede nada. Ele reconhece a benevolência de Davi para com ele no passado, e também ser indigno e não merecedor de qualquer consideração especial da sua parte. Ele, então, parece abrir mão daquilo que Davi lhe dá, transferindo seus direitos (por assim dizer) a Ziba. Se ele realmente fez isso ou não, é outro assunto. Mas a impressão que ele tenta passar a Davi é a de que ele está feliz demais em viver na presença do rei, e não quer, nem precisa, de outros benefícios.
Também Barzilai, o gileadita, desceu de Rogelim e passou com o rei o Jordão, para o acompanhar até ao outro lado. Era Barzilai mui velho, da idade de oitenta anos; ele sustentara o rei quando este estava em Maanaim, porque era homem mui rico. Disse o rei a Barzilai: Vem tu comigo, e te sustentarei em Jerusalém. Respondeu Barzilai ao rei: Quantos serão ainda os dias dos anos da minha vida? Não vale a pena subir com o rei a Jerusalém. Oitenta anos tenho hoje; poderia eu discernir entre o bom e o mau? Poderia o teu servo ter gosto no que come e no que bebe? Poderia eu mais ouvir a voz dos cantores e cantoras? E por que há de ser o teu servo ainda pesado ao rei, meu senhor? Com o rei irá o teu servo ainda um pouco além do Jordão; por que há de me retribuir o rei com tal recompensa? Deixa voltar o teu servo, e morrerei na minha cidade e serei sepultado junto de meu pai e de minha mãe; mas eis aí o teu servo Quimã; passe ele com o rei, meu senhor, e faze-lhe o que bem te parecer. Respondeu o rei: Quimã passará comigo, e eu lhe farei como for do teu agrado e tudo quanto desejares de mim eu te farei. Havendo, pois, todo o povo passado o Jordão e passado também o rei, este beijou a Barzilai e o abençoou; e ele voltou para sua casa.
Barzilai é um dos meus personagens favoritos nesta história. Ele é um senhor de idade, de 80 anos, para ser mais preciso. Ele é também muito rico. Ele deve ter vivido perto de Maanaim, pois foi lá que supriu as necessidades de Davi e de seus companheiros no exílio. Agora que Davi está voltando a Jerusalém, Barzilai faz um grande esforço para estender sua amizade e hospitalidade durante a sua volta. São cerca de 30 a 40 km (aproximadamente, pois não sabemos exatamente onde ficava Maanaim) até o Jordão, onde Davi cruzará o rio, e outro tanto até Jerusalém. Esse senhor idoso acompanha Davi até o rio, e depois até Gilgal (não muito longe de onde teria sido a antiga Jericó), e aí se despede.
Davi deseja demonstrar sua gratidão a esse velho companheiro, e o convida a ir com ele para Jerusalém, onde promete sustentá-lo com fartura. Barzilai graciosamente recusa a oferta de Davi. Ele admite estar velho demais para apreciar a diferença entre um filet mignon e um mingau, ou entre a voz de soprano de um dos músicos de Davi e sua própria cantoria no chuveiro. As iguarias de Davi seriam desperdiçadas com ele e, além disso, não lhe resta muito tempo de vida. Ele prefere ficar em sua própria casa, perto de onde seus parentes estão sepultados, e onde ele, em breve, também estará.2
Barzilai não deseja se beneficiar pessoalmente da generosidade de Davi, mas propõe uma alternativa. Ele recomenda um jovem, Quimã, ao rei, pedindo-lhe para conceder suas bênçãos ao rapaz como se fosse para ele. De acordo com 1 Reis 2:7, sabemos que Davi pretende manter sua promessa a Barzilai não só enquanto estiver vivo, mas também depois da sua própria morte. Ele dá instruções a Salomão para continuar sendo benevolente para com os filhos de Barzilai (note o plural). Com isso, presumo que Quimã seja filho de Barzilai e que, nessa época ou mais tarde, um ou mais de seus irmãos se juntou a ele. Davi generosamente cuida desses homens como o próprio Barzilai cuidou dele.
Dali, passou o rei a Gilgal, e Quimã passou com ele; todo o povo de Judá e metade do povo de Israel acompanharam o rei. Eis que todos os homens de Israel vieram ter com o rei e lhe disseram: Por que te furtaram nossos irmãos, os homens de Judá, e conduziram o rei, e a sua casa através do Jordão, e todos os homens de Davi com eles? Então, responderam todos os homens de Judá aos homens de Israel: Porque o rei é nosso parente; por que, pois, vos irais por isso? Porventura, comemos à custa do rei ou nos deu algum presente? Responderam os homens de Israel aos homens de Judá e disseram: Dez tantos temos no rei, e mais a nós nos toca Davi do que a vós outros; por que, pois, fizestes pouco caso de nós? Não foi a nossa palavra a primeira para fazer voltar o nosso rei? Porém a palavra dos homens de Judá foi mais dura do que a palavra dos homens de Israel.
As sandálias mal tinham secado após a travessia do Jordão e eles começaram a murmurar um contra o outro. Todos os homens de Judá acompanham Davi, assim como metade do povo de Israel. A cena me faz lembrar de quando eu estava dirigindo e após algum tempo algumas das minhas filhas começavam a brigar e discutir. Alguns israelitas começam a discutir pelo fato de os homens de Judá, além de tomar a iniciativa, estão também assumindo a liderança para levar o rei de volta a Jerusalém (ninguém parece se lembrar de que poucos dias antes esse mesmo grupo estava discutindo entre si sobre quem deveria tomar tal iniciativa — e ninguém tomou, até os anciãos de Judá o fazerem). Inveja e ciúme começam a aflorar e, finalmente, os israelitas verbalizam sua fúria e frustração: “Como os homens de Judá vêm nos dizer o que fazer? Quem os designou para trazer Davi de volta ou para guiar essa gente?”
Os homens de Judá têm uma resposta pronta, com a qual revidam asperamente: “Estamos levando o rei para Jerusalém porque somos seus parentes mais próximos”. Posso até imaginar que seria algo mais do tipo: “Somos parentes de Davi, por isso, calem a boca!” Eles continuam a se defender dizendo que, embora sejam os parentes mais próximos de Davi, nunca se beneficiaram pessoalmente desse parentesco de forma discriminatória. Mas os homens de Israel não se dão por vencidos por essa contestação. Será que os parentes de Davi pensam que só por serem os parentes mais próximos têm prioridade? Eles têm uma maneira muito diferente de ver o assunto. Eles representam dez tribos, enquanto Judá, apenas uma. Eles deveriam ter dez vezes mais a reivindicar de Davi dos que os homens de Judá.
A discussão não para por aí, mas vai de mal a pior. O autor do texto achou melhor parar por aqui, acrescentando o comentário de que as palavras seguintes dos homens de Judá foram mais duras (“mais fortes”, ARC; “mais violentas”, NTLH; “mais asperamente”, NVI) do que as dos homens de Israel (verso 43). Desconfio que o autor não quis registrar para a posteridade as palavras tolas e cheias de ira ditas além desse ponto. Além disso, nós já entendemos a mensagem. A disputa grosseira e enciumada prevaleceu, de modo que as dez tribos ficaram irritadas e cheias de amargura contra Judá. A tensão foi grande o tempo todo. Qualquer ação precipitada poderia fazer o problema pegar fogo.
Então, se achou ali, por acaso, um homem de Belial, cujo nome era Seba, filho de Bicri, homem de Benjamim, o qual tocou a trombeta e disse: Não fazemos parte de Davi, nem temos herança no filho de Jessé; cada um para as suas tendas, ó Israel. Então, todos os homens de Israel se separaram de Davi e seguiram Seba, filho de Bicri; porém os homens de Judá se apegaram ao seu rei, conduzindo-o desde o Jordão até Jerusalém.
Mas algo precipitado realmente acontece. E acontece de ser justamente um homem do povo de Israel, cujo nome é Seba. O autor nos diz que ele é um “homem de Belial” (“homem sem valor”). Seba é um joão-ninguém que não seria levado a sério em circunstâncias normais. Mas no calor do momento, ele perde a paciência (ou vê a oportunidade de assumir a liderança), e fala sem pensar: “Não fazemos parte de Davi, nem temos herança no filho de Jessé; cada um para as suas tendas, ó Israel.” Isso é tudo o que é preciso para os israelitas baterem os calcanhares e irem embora com ele. E assim, uma discussão amarga estraga a alegre procissão, que acaba se tornando um grande cisma. Num momento, os israelitas aclamam Davi como líder; noutro, vão atrás de Seba, um joão-ninguém. Davi nem mesmo chegou a Jerusalém e seu reino já está dividido. É como se ele começasse tudo de novo, só como rei da tribo de Judá.
Vindo, pois, Davi para sua casa, a Jerusalém, tomou o rei as suas dez concubinas, que deixara para cuidar da casa, e as pôs em custódia, e as sustentou, porém não coabitou com elas; e estiveram encerradas até ao dia em que morreram, vivendo como viúvas.
Disse o rei a Amasa: Convoca-me, para dentro de três dias, os homens de Judá e apresenta-te aqui. Partiu Amasa para convocar os homens de Judá; porém demorou-se além do tempo que lhe fora aprazado. Então, disse Davi a Abisai: Mais mal, agora, nos fará Seba, o filho de Bicri, do que Absalão; pelo que toma tu os servos de teu senhor e persegue-o, para que não ache para si cidades fortificadas e nos escape. Então, o perseguiram os homens de Joabe, a guarda real e todos os valentes; estes saíram de Jerusalém para perseguirem Seba, filho de Bicri. Chegando eles, pois, à pedra grande que está junto a Gibeão, Amasa veio perante eles; trazia Joabe vestes militares e sobre elas um cinto, no qual, presa aos seus lombos, estava uma espada dentro da bainha; adiantando-se ele, fez cair a espada. Disse Joabe a Amasa: Vais bem, meu irmão? E, com a mão direita, lhe pegou a barba, para o beijar. Amasa não se importou com a espada que estava na mão de Joabe, de sorte que este o feriu com ela no abdômen e lhe derramou por terra as entranhas; não o feriu segunda vez3, e morreu.
A primeira coisa que Davi faz ao chegar em Jerusalém é cuidar das dez esposas (ou concubinas) deixadas para cuidar da casa. Absalão dormiu com elas em público; não há como Davi voltar as coisas ao que eram. Ele jamais dormirá com elas novamente. Ele designa um lugar para elas ficarem e providencia generosamente (tenho certeza disso) tudo de que precisam, mas não dorme com elas outra vez. Elas foram desonradas por Absalão.
O item seguinte da agenda de Davi é a rebelião em curso, liderada por Seba. Davi sabe que rapidez é essencial. Ele nem se atreve a dar tempo a Seba para reunir seguidores, organizar um exército e encontrar cidades fortificadas onde possa se esconder ou lutar. Quanto mais rápido o exército de Davi puder alcançá-lo e dar um jeito nele, melhor. Por isso, Davi convoca seu novo comandante, Amasa4 e lhe dá instruções para reunir as forças militares de Judá e, em seguida, perseguir e subjugar Seba o quanto antes.
Por alguma razão não explicada, Amasa não consegue reunir as forças armadas de Judá no prazo de três dias estipulado por Davi. Dá para imaginar o quanto Davi deve estar inquieto, sabendo que cada hora de liberdade de Seba aumenta a ameaça a seu reino. Deve ser muito doloroso para ele ter de, finalmente, admitir que Amasa não virá, pelo menos por enquanto, e chamar Abisai, irmão de Joabe e antiga dor de cabeça de Davi (ver 1 Samuel 26:6-11; 2 Samuel 16:9-12; 19:21-22). Davi não pediria a Joabe para fazer o serviço, pois ia parecer reconhecimento de que estava errado quando o demitiu e substituiu por Amasa. Mas quando Abisai sai de Jerusalém, liderando os guerreiros especiais de Davi (os Boinas Verdes ou Seals daquela época) em perseguição a Seba, ele vai acompanhado por Joabe.
Joabe e seus homens partem, junto com a guarda real de Davi, os quereteus e peleteus, e todos os “valentes”. Quando chegam a uma pedra grande e bem conhecida de Gibeão, Amasa sai para encontrá-los. Eu esperava que Abisai estivesse na liderança. É possível que as forças que partiram de Jerusalém à procura de Seba estivesse dividida em pequenos grupos, os quais se espalharam para localizar o traidor rapidamente. Daqui por diante no capítulo, Abisai é mencionado só de passagem, enquanto Joabe se torna eminente. Talvez Joabe tenha saído por conta própria, com seus próprios homens, e oportunamente tenha encontrado Amasa. É possível também que ele acreditasse saber onde Amasa poderia ser encontrado e decidisse lidar com ele primeiro. Será Amasa um trapalhão, que não faz nada direito? Ou é covarde, com medo de tentar? Não temos nenhuma pista, mas sua conduta certamente é um enigma. De uma forma ou de outra, sua atitude abre caminho para o que vai acontecer.
Joabe e Amasa se aproximam um do outro. O cumprimento de Joabe parece caloroso e amigável (“meu irmão”, verso 9), de modo que Amasa não fica de sobreaviso. Joabe está com vestes militares, o que inclui um cinto e uma bainha, portando a espada. De alguma forma (não parece intencional), quando ele se move para frente, a espada cai da bainha. Ele se abaixa e a pega com a mão esquerda. Amasa nem parece notar a espada na mão de Joabe quando eles se aproximam. Aparentemente, naquele exato momento, Joabe avalia a situação e percebe como seria fácil matar Amasa, e é isso o que ele faz, no que aparenta ser um impulso repentino. Joabe pega Amasa pela barba; talvez fosse essa a forma usual de segurar um homem para beijá-lo. Conforme ele agarra Amasa com a mão direita, com a esquerda ele o atravessa, provavelmente torcendo a espada em seu abdome, fazendo suas entranhas pularem para fora.
Pelo jeito, quase de imediato Joabe se vira e vai embora, junto com seu irmão Abisai, para retomar a perseguição a Seba. De acordo com o texto, não tenho certeza se ele tinha outra intenção além de matar Amasa. Não é dito que ele tentou assumir o controle do exército de Davi; só que saiu para continuar a perseguição a Seba.
Joabe Assume o Comando (20:10b-13)
Então, Joabe e Abisai, seu irmão, perseguiram a Seba, filho de Bicri. Mas um, dentre os moços de Joabe, parou junto de Amasa e disse: Quem está do lado de Joabe e é por Davi, siga a Joabe. Amasa se revolvia no seu sangue no meio do caminho; vendo o moço que todo o povo parava, desviou a Amasa do caminho para o campo e lançou sobre ele um manto; porque via que todo aquele que chegava a ele parava. Uma vez afastado do caminho, todos os homens seguiram Joabe, para perseguirem Seba, filho de Bicri.
Não parece ser por iniciativa de Joabe que um dos soldados assuma a tarefa de dizer aos demais o que fazer. Ele é “um dos moços de Joabe”, por isso, deve ser leal a ele, e um de seus partidários. Vendo Amasa estendido no chão, parece-lhe óbvia a necessidade de haver um novo comandante do exército. Afinal de contas, alguém precisar dar as ordens. Abisai, evidentemente, parece o próximo na linha de comando. Ele é o filho mais velho (1 Crônicas 2:16), mas o mais importante é que foi ele quem Davi enviou para perseguir Seba quando Amasa não voltou. Apesar disso, o jovem insta seus colegas a reconhecer Joabe como o novo comandante, acontecendo exatamente isso. Não há menção de nenhum protesto, e Joabe é dito como líder daqui pra frente.
Os soldados estão hesitantes, mas não tem nada a ver com o fato de Joabe estar no comando. Sua hesitação é devido à visão de Amasa, que jaz no meio da estrada revolvendo-se no seu próprio sangue. Todos param e ficam olhando como bobos seu corpo estendido, como fazem os curiosos na rodovia quando há algum acidente pavoroso. O mesmo jovem vê que isso está impedindo os soldados de seguir Joabe na perseguição a Seba e resolver o problema. Ele retira o corpo do meio da estrada e o coloca no campo, onde o cobre com um manto. Agora todos passam e nem olham. A perseguição continua.
Seba passou por todas as tribos de Israel até Abel-Bete-Maaca; e apenas os beritas se ajuntaram todos e o seguiram. Vieram Joabe e os homens, e o cercaram em Abel-Bete-Maaca, e levantaram contra a cidade um montão da altura do muro; e todo o povo que estava com Joabe trabalhava no muro para o derribar. Então, uma mulher sábia gritou de dentro da cidade: Ouvi, ouvi; dizei a Joabe: Chega-te cá, para que eu fale contigo. Chegando-se ele, perguntou-lhe a mulher: És tu Joabe? Respondeu: Eu sou. Ela lhe disse: Ouve as palavras de tua serva. Disse ele: Ouço. Então, disse ela: Antigamente, se costumava dizer: Peça-se conselho em Abel; e assim davam cabo das questões. Eu sou uma das pacíficas e das fiéis em Israel; e tu procuras destruir uma cidade e uma mãe em Israel; por que, pois, devorarias a herança do SENHOR? Respondeu Joabe e disse: Longe, longe de mim que eu devore e destrua! A coisa não é assim; porém um homem da região montanhosa de Efraim, cujo nome é Seba, filho de Bicri, levantou a mão contra o rei, contra Davi; entregai-me só este, e retirar-me-ei da cidade. Então, disse a mulher a Joabe: Eis que te será lançada a sua cabeça pelo muro. E a mulher, na sua sabedoria, foi ter com todo o povo, e cortaram a cabeça de Seba, filho de Bicri, e a lançaram a Joabe. Então, tocou este a trombeta, e se retiraram da cidade, cada um para sua casa. E Joabe voltou a Jerusalém, a ter com o rei.
Joabe, acompanhado do seu exército, passa um pente fino nas terras de Israel à procura de Seba. O autor nos diz que “Seba passou por todas as tribos de Israel até Abel...” (verso 14). Isso significa que a nação inteira sabe da busca de Davi por ele. Sem dúvida, isso é muito angustiante para quem decidiu seguir os conselhos de Seba e voltar para casa. Será que os israelitas ficaram chateados por Judá ter tomado a iniciativa de levar Davi de volta a Jerusalém? Pois agora devem estar muito mais perturbados por Judá estar tomando a iniciativa de varrer Israel para eliminar Seba, sem o menor escrúpulo de usar as forças armadas para isso.
Joabe e seu exército finalmente localizam Seba em Abel Bete-Maaca. Quando ouvem que ele se refugiou na cidade fortificada, eles a colocam sob estado de sítio. As pessoas do lado de dentro nem sabem porque estão sendo atacadas5, mas observam atemorizadas enquanto Joabe e seus homens começam a desmantelar a cidade. É só uma questão de tempo até Joabe entrar nela. Aí, então, não só a cidade será destruída, mas muitas pessoas provavelmente morrerão no confronto.
Uma mulher sábia avalia a situação e toma uma atitude. Ela vai até os muros, grita e pede para falar com Joabe. Ele se aproxima e ela lhe conta como a cidade já fora muito respeitada como fonte de sabedoria e conselho. Era um local conhecido por acabar com as disputas. Por que, então, Joabe quer destruir um lugar assim? Continuando, ela lhe diz que está entre as pessoas pacíficas da cidade, e entre os fieis de Israel. Eles nada fizeram para merecer o que eles estão fazendo. A cidade é parte da “herança do Senhor”. Joabe quer mesmo ser responsável por sua destruição?
Ele lhe assegura que não deseja destruir o lugar. Depois ele conta a razão do cerco. Eles estão à procura de uma pessoa, Seba, filho de Bicri, culpado de se rebelar contra o rei Davi. Se a mulher conseguir lhes entregar Seba, eles seguirão seu caminho em paz. Ela garante a Joabe que a cabeça de Seba será lançada por sobre os muros. A seguir, ela convence o povo do lugar a executar Seba, e sua cabeça é jogada para Joabe e seu exército. Com isso, ele toca a trombeta, indicando o fim das hostilidades. Depois ele volta para Jerusalém e para Davi.
Joabe era comandante de todo o exército de Israel; e Benaia, filho de Joiada, da guarda real; Adorão, dos que estavam sujeitos a trabalhos forçados; Josafá, filho de Ailude, era o cronista. Seva, o escrivão; Zadoque e Abiatar, os sacerdotes; e também Ira, o jairita, era ministro de Davi.
Estou certo de que há muita coisa a ser dita sobre todos esses homens, mas nem vou tentar. Desejo apenas me concentrar em um deles, e é em Joabe. Quanta ironia! Esse sujeito é como mau hálito, a gente simplesmente não consegue se livrar dele. Pense nisso. Ele se juntou a Davi enquanto este fugia de Saul (ver 1 Samuel 22:1-2; 26:6). Ele e Abner deram início a uma espécie de luta homem a homem, a qual resultou em muitas mortes, incluindo a de Asael, irmão mais novo de Joabe (2 Samuel 2). Em retaliação contra Abner, o qual matou Asael em batalha, Joabe o mata à traição. Por causa disso, ele leva uma tremenda bronca de Davi (2 Samuel 3). É bastante improvável que Davi o tivesse escolhido como comandante do exército, mas ele havia oferecido o posto a quem primeiro atacasse a cidade de Jebus, e Joabe aceitara a oferta (1 Crônicas 11:4-6). Foi ele também quem manipulou Davi para trazer Absalão de volta a Israel e lhe conceder a liberdade (2 Samuel 14). Foi ele ainda quem matou Absalão, apesar da ordem em contrário de Davi (2 Samuel 18). Não é à toa que Davi o tenha substituído por Amasa. Mas o mais incrível é que, depois de matar Amasa, Joabe volta a ser o comandante do exército. Em vista do início do capítulo 19 (19:13), nunca iríamos imaginar que o capítulo 20 pudesse terminar assim.
Quanto à história da vida de Davi, sentimos agora uma forte sensação de alívio, pois ele está novamente em Jerusalém, reinando sobre Israel. Foi uma luta longa e árdua enquanto ele esperou que Deus cumprisse a promessa de que ele reinaria em Israel no lugar de Saul. Durante anos ele teve de se esconder do rei, o qual tentava matá-lo como se ele fosse um inimigo. Uma vez no trono, Davi teve muitos anos de sucesso, mas esse mesmo sucesso o levou a ficar descuidado, o que acabou causando a sua queda. O resultado dessa queda foi uma grande dose de sofrimento e adversidade, culminando com a rebelião de seu filho Absalão, e a consequente fuga de Davi de Jerusalém. Agora Absalão está morto, a revolução esmagada e Davi de volta à cidade. Que alívio!
A vida de Davi não é um conto de fadas. Ele não vive “feliz para sempre”. As dificuldades depois do seu colapso moral foram muitas, e extremamente dolorosas. Que todos nós aprendamos com elas. Há quem diga: “Bom, Davi também pecou”. Com isso, quase sempre querem dizer: “Davi pecou, se arrependeu, e então continuou exatamente como antes”. Mas isso não é verdade. Ele pecou sim, e também se arrependeu, mas as coisas não continuaram como antes. Depois da queda, sua vida nunca mais foi a mesma. Que ninguém ouse minimizar as consequências do pecado na vida de Davi. O pecado nunca vale a pena, e a vida de Davi ilustra muito bem esse fato.
Também precisamos reconhecer que todas essas dificuldades, afinal, foram para o bem de Davi, e para o bem do povo de Deus. Suas tribulações devem nos ensinar que o pecado não compensa. Por outro lado, elas também serviram para torná-lo mais humilde e mais dependente de Deus. Observe como esses fatos dolorosos lhe deram a humildade e a graça não tão evidentes no início da sua vida. Ele bondosamente perdoou Simei dos pecados contra ele. Não teria sido isso propiciado, pelo menos em parte, por ele mesmo ter sido perdoado por Deus? Vemos a mesma coisa em sua resposta a Mefibosete. Ele aprendeu a dar, e também a receber, com amigos queridos como Barzilai.
Os acontecimentos destes dois capítulos de 2 Samuel ressaltam a realidade da providência divina. Há vezes nas quais Deus intervém na vida dos homens de forma direta. Na época do êxodo, Ele Se revelou aos egípcios e aos israelitas de forma bem visível e dramática. Há outras vezes nas quais Deus age em conjunto com a fé e a obediência de um (ou mais) de Seus santos. Davi, por exemplo, tinha deixado bem claro que a vitória sobre Golias seria do Senhor, e assim foi. Há outras vezes ainda nas quais a mão de Deus não é tão evidente, pelo menos para quem não olha com os “olhos da fé”. Deus prometeu a Davi que ele seria rei, e que seu reino seria eterno. Por meio do profeta Natã, Deus lhe garantiu que ele não morreria por causa do seu pecado. Houve algumas vezes nas quais parecia que Davi tinha “pouca ou nenhuma” chance de sobrevivência. No entanto, Deus manteve Sua promessa, com frequência empregando as pessoas mais improváveis para isso. Ele usou os gentios (o rei de uma nação com a qual Davi tinha guerreado — ver 17:27), assim como os judeus. Ele usou ações provenientes de fé e generosidade, assim como decorrentes de interesses carnais (como quando Joabe matou Absalão, contra as ordens de Davi, e Amasa, por motivos agora desculpáveis). Por mais “fora de controle” que as coisas pudessem parecer, Deus sempre esteve no controle absoluto de tudo, usando os meios mais imprevistos para alcançar Seus propósitos e Suas promessas.
Pense em todas as reviravoltas do nosso texto. Davi designa Amasa como comandante em lugar de Joabe, obtendo com isso o favor dos homens de Judá. No entanto, Amasa demora para voltar a Jerusalém com as forças armadas de Judá, levando Davi a enviar Abisai, irmão de Joabe, à procura de Seba. Uma espada caída e um Amasa desprevenido se transformam em oportunidade para Joabe eliminar Amasa e tomar seu lugar. Dois homens, Seba e um soldado desconhecido, conclamam os soldados a agir, e eles agem. Uma mulher sábia fala, convencendo Joabe da inutilidade de transformar a rebelião de Seba numa guerra, e Joabe concorda. Este texto abre os nossos olhos para “vermos” a mão invisível de Deus operando na vida do Seu povo.
No texto, há também um exemplo bem claro da providência divina: a preparação oportuna da nação de Israel para a futura divisão. Observe as palavras ditas por Seba:
“Não fazemos parte de Davi, nem temos herança no filho de Jessé; cada um para as suas tendas, ó Israel.” (2 Samuel 20:1b)
Compare as palavras de Seba nesse texto com as palavras de Israel após a morte de Salomão:
“Vendo, pois, todo o Israel que o rei não lhe dava ouvidos, reagiu, dizendo: Que parte temos nós com Davi? Não há para nós herança no filho de Jessé! Às vossas tendas, ó Israel! Cuida, agora, da tua casa, ó Davi! Então, Israel se foi às suas tendas.” (1 Reis 12:16)
É quase como se as palavras de Seba tivessem se tornado o lema dos rebeldes de Israel. As raízes da divisão entre Judá e as outras tribos são profundas em sua história, mas é evidente que a nação ficou dividida por pouco tempo nos dias de Davi. Essa divisão nunca foi totalmente reparada. Talvez tenha ficado adormecida durante o reinado de Salomão, mas despertou após sua morte. Em todas essas coisas, Deus esteve preparando a nação para a divisão intencionada por Ele. Quando se dividir pela segunda vez, a nação não se reunirá novamente. O reino do norte será dominado pela Assíria, como lição para Judá, lição esta que não será aprendida. Por isso, o reino do sul também será dominado, desta vez pelos babilônios. Nos acontecimentos do nosso texto, Deus está providencialmente preparando a nação para a futura divisão.
Nosso texto nos dá uma visão da condição espiritual de Israel nessa época da sua história. É muito fácil perceber a pecaminosidade de Israel em relação à liderança divinamente designada de Davi. A nação exigiu um rei, e Deus lhes deu um. Quando Deus substitui Saul por Davi, é por meio dele que tem início a dinastia davídica. Davi se recusou a levantar a mão contra o ungido de Deus; mas as tribos de Israel acham muito fácil seguir o conselho de Seba e rejeitar Davi como rei. Eles o renegam, a despeito do fato de Deus tê-lo ungido. Eles acham que o rei é alguém como eles, alguém obrigado a lhes dar o que querem, quando querem. E se ele não der, eles podem rejeitá-lo. A rebelião de Israel contra Davi é também rebelião contra Deus.
Mas não vamos cometer o erro de supor que por Israel ter pecado rebelando-se contra Davi, Judá seja fiel a Deus, por ter permanecido fiel a ele. Quando o povo de Israel está discutindo com o povo de Judá, o argumento dos israelitas é que, por serem dez tribos, eles têm dez vezes mais direito às posses de Davi, dez vezes mais a reivindicar dele. Em outras palavras, Davi tem dez vezes mais obrigações para com eles. Mas quando o povo de Judá fala de sua relação com Davi, sua reivindicação é o parentesco com ele. Nem as dez tribos, nem a tribo de Judá falam de Davi como o rei ungido de Deus. Todos eles seguem Davi por razões egoístas. Portanto, Judá não é melhor por seguir Davi do que os homens de Israel por deixá-lo.
Não é esse o problema da raça humana, em todas as épocas? Quando Deus criou Adão e Eva, Ele os colocou no jardim do Éden. Ele lhes deu liberdade para comer de toda árvore do jardim, com exceção de uma, que Ele proibiu. Aí veio Satanás e convenceu-os de que, se eles conheciam suas necessidades e sabiam como satisfazê-las, mas isso não se enquadrava nos padrões de Deus, eles podiam agir como quisessem, sem dar satisfações a Ele. E assim foi. E, daquele momento em diante, o homem tem se rebelado contra a autoridade de Deus.
Quando o Senhor Jesus Cristo veio à terra, Ele foi o Messias de Deus, o Seu Ungido. Ele foi o Rei de Deus. No início, muitos O seguiram, animados com a possibilidade do Seu reino. Mas quando souberam que o Seu reino não era o que eles esperavam, eles O repudiaram, afirmando ser César o seu rei.
Hoje em dia é a mesma coisa. Há muita discussão e debate sobre a questão da soberania, mas não se pode dizer que Jesus Cristo só queira que creiamos nEle como Salvador, mas não precisamos obedecê-lO como Senhor. Como somos demorados e hesitantes para aceitar isso. Como somos rápidos para rejeitar Seu senhorio sobre a nossa vida. A Bíblia fala claramente, ordenando-nos a fazer certas coisas e a abster-nos de outras. No entanto, quando esses mandamentos entram em conflito com aquilo que queremos, rapidamente, e sem nenhum pudor, rejeitamos o senhorio de Cristo, descartando Seus mandamentos como culturalmente irrelevantes (ou dando qualquer outra desculpa esfarrapada para justificar nossa rebeldia e desobediência). Quando os líderes designados por Deus (maridos, pais, autoridades governamentais, líderes da igreja) nos pedem para fazer algo de que não gostamos, nós nos recusamos a aceitar sua liderança e procuramos outros líderes, os quais nos “guiarão” como realmente sempre quisemos. É impressionante como não gostamos de nos submeter ao senhorio de Deus.
Enfim, só há um “Líder” a quem devemos seguir, e ele é a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo:
“Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados. Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus.” (Colossenses 1:13-20)
Quem O rejeita, o faz por sua conta e risco, e algum dia irá reconhecê-lO como o Rei de Deus:
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Filipenses 2:5-11)
O Senhor dá aos homens oportunidade de crer em Jesus Cristo como o Salvador de Deus, o portador de pecados de Deus, assim como de se sujeitar a Ele como o Rei de Deus. Quem se submete a Jesus como Salvador e Rei, recebe o perdão dos pecados e um lugar no Seu reino. Quem O rejeita, um dia O reconhecerá como Rei, mas será banido para sempre do Seu reino, sofrendo a pena da condenação eterna por sua rebelião. Aquele a quem Deus designou como nosso Rei Soberano é também aquele a quem Ele enviou como Servo Sofredor, o qual suportou a pena pelos nossos pecados e nos dá a vida eterna. Vamos nos submeter a Ele como Senhor e Salvador, e viver como súditos fiéis, para Sua glória e para o nosso bem eterno.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 No texto hebraico, as (duas) palavras de Davi são exatamente as mesmas faladas por Natã a ele em 2 Samuel 12:13. A graça que Deus demonstrou a Davi, agora Davi demonstra a Simei.
2 Preciso fazer uma confissão neste ponto. Quando estudávamos o capítulo 12, salientei o fato de que Davi não teria tido nenhum conforto em saber que seria sepultado próximo ao túmulo do filho que ele acabara de perder, e que ele devia estar falando de sua esperança em ver o filho no céu. Não quero mudar minha opinião, mas devo ressaltar que Barzilai parece encontrar algum tipo de consolo em ser sepultado perto de seus entes queridos. Se isso é consolo suficiente para explicar a mudança de atitude de Davi no capítulo 12 é uma questão ainda aberta à discussão.
3 Você deve se lembrar que Abisai, irmão de Joabe, pediu a Davi para deixá-lo matar Saul, e que se ele o ferisse uma vez, não haveria necessidade de atacá-lo de novo (1 Samuel 26:8). Esses dois rapazes parecem se orgulhar de fazer o serviço completo na primeira vez.
4 Amasa era filho de Abigail, irmã de Davi (2 Samuel 17:25; 1 Crônicas 2:17). Joabe era filho de Zeruia, a outra irmã de Davi. Então, Joabe e Amasa eram primos.
5 Isso fica evidente pelas palavras da mulher registradas no verso 19.
Eu e minha esposa, Jeanette, recentemente saímos de férias, o que incluiu uma semana no nordeste dos Estados Unidos. Viajamos por Massachussets, Maine, Nova Escócia, Ilha do Príncipe Eduardo, Nova Brunswick, Vermont, Nova Hampshire e Rhode Island. Amamos a costa, com todas aquelas baías e portos. Ficamos embasbacados com a mudança das folhas de outono para amarelo-ouro e vermelho vivo. Tendo sempre vivido no noroeste do país e no Texas, ficamos muito impressionados com as coisas antigas do nordeste. Vimos igrejas construídas antes da Declaração de Independência, e lápides em túmulos de pessoas que morreram séculos atrás.
A palavra “antigo” tomou um novo significado; o “antigo” era “mais antigo” do que pensávamos. No entanto, na América, mesmo esse tipo de “antiguidade” não é tão “antiga” assim. Seria “antigo” um prédio ou túmulo de 200 anos? Pense, então, no que a palavra significava para os crentes do Velho Testamento. Por exemplo, os israelitas fizeram uma aliança com os gibeonitas quatro séculos antes da época de Davi. Não creio que Saul tenha se esquecido dessa aliança. Com toda probabilidade ele deve ter se convencido de que ela tão “antiga” que já não estava mais em vigor. Como ele estava enganado! Sua atitude em relação aos gibeonitas provocou a fome em Israel tempos depois da sua morte. Sobrou para Davi lidar com o problema criado por ele e endireitar as coisas.
Para os nossos ouvidos ocidentais, essa história soa estranha. Ficamos nos perguntando como e por que é necessário matar sete descendentes de Saul por uma coisa feita anos antes, relacionada a uma aliança de quatrocentos anos de idade. Ficamos intrigados quando a mãe de dois dos executados envida todos os esforços para proteger os corpos dos filhos, e quando pedem a Davi que lhes dê um enterro apropriado, junto com os ossos de Saul e de seu(s) filho(s). Mais estranho ainda é descobrir que Golias, com quem Davi lutou no início de sua carreira, teve uma porção de descendentes, os quais também são todos gigantes.
Todas essas histórias estranhas estão juntas no capítulo 21 de 2 Samuel, e foram registradas e preservadas por inspiração e supervisão divina. Tenhamos em mente que elas são como uma conclusão ou clímax de 1 e 2 Samuel. Até aqui o autor esteve aumentando a tensão, por isso, a mensagem deve ser importante para todos nós. Vamos prestar muita atenção a essas histórias para aprender a mensagem que Deus tem para nós.
Houve, em dias de Davi, uma fome de três anos consecutivos. Davi consultou ao SENHOR, e o SENHOR lhe disse: Há culpa de sangue sobre Saul e sobre a sua casa, porque ele matou os gibeonitas. Então, chamou o rei os gibeonitas e lhes falou. Os gibeonitas não eram dos filhos de Israel, mas do resto dos amorreus; e os filhos de Israel lhes tinham jurado poupá-los, porém Saul procurou destruí-los no seu zelo pelos filhos de Israel e de Judá. Perguntou Davi aos gibeonitas: Que quereis que eu vos faça? E que resgate vos darei, para que abençoeis a herança do SENHOR? Então, os gibeonitas lhe disseram: Não é por prata nem ouro que temos questão com Saul e com sua casa; nem tampouco pretendemos matar pessoa alguma em Israel. Disse Davi: Que é, pois, que quereis que vos faça? Responderam ao rei: Quanto ao homem que nos destruiu e procurou que fôssemos assolados, sem que pudéssemos subsistir em limite algum de Israel, de seus filhos se nos dêem sete homens, para que os enforquemos ao SENHOR, em Gibeá de Saul, o eleito do SENHOR. Disse o rei: Eu os darei. Porém o rei poupou a Mefibosete, filho de Jônatas, filho de Saul, por causa do juramento ao SENHOR, que entre eles houvera, entre Davi e Jônatas, filho de Saul. Porém tomou o rei os dois filhos de Rispa, filha de Aiá, que tinha tido de Saul, a saber, a Armoni e a Mefibosete, como também os cinco filhos de Merabe, filha de Saul, que tivera de Adriel, filho de Barzilai, meolatita; e os entregou nas mãos dos gibeonitas, os quais os enforcaram no monte, perante o SENHOR; caíram os sete juntamente. Foram mortos nos dias da ceifa, nos primeiros dias, no princípio da ceifa da cevada.
Os gibeonitas são um povo muito interessante. O autor se refere a eles como amorreus (21:2), mas tecnicamente eles são mais conhecidos como os heveus (Josué 9:1, 7; 11:19).1 Eles estavam entre os moradores de Canaã, a quem Deus tinha ordenado a Israel aniquilar (Êxodo 33:2; 34:11; Deuteronômio 7:1-2). Isso teria ocorrido, não fosse uma estranha reviravolta na situação, a qual é descrita no capítulo nove do livro de Josué. Sob a liderança de Josué, os israelitas tinham acabado de cruzar o rio Jordão (Josué 3) e capturado a cidade de Jericó (capítulo 6), e em seguida Ai (capítulos 7 e 8). A cidade seguinte a ser atacada por Israel com toda certeza seria Gibeão, e os gibeonitas sabiam disso.
Gibeão era uma cidade grande, e seus guerreiros estavam entre os melhores (10:2). Era de se esperar que saíssem à luta, mas eles preferiram fazer uma abordagem diferente. Como Raabe, em Jericó, eles acreditavam que Deus dera a terra de Canaã a Israel. Eles sabiam que não teriam nenhuma chance se lutassem contra os israelitas. Por isso, enviaram uma delegação ao acampamento deles fingindo ter feito uma longa jornada, vindo de um lugar distante. Os emissários tinham colocado pano de saco e odres velhos em seus jumentos, estavam vestidos com roupas esfarrapadas e levavam consigo provisões e pão mofado. Tudo isso dava uma espécie de credibilidade à alegação de que vinham de muito longe. Os israelitas fizeram uma aliança de paz com esse povo “distante”. Quando perceberam que tinham sido enganados, os israelitas quiseram matar os gibeonitas, mas a aliança recém firmada os impediu de fazê-lo. Por isso, os israelitas tornaram os gibeonitas seus escravos, usando-os para cortar lenha e tirar água, principalmente para a casa de Deus (Josué 9:16-17)
O tratado dos gibeonitas com Israel salvou-os da morte, mas também os colocou em perigo com seus compatriotas amorreus. Quando cinco reis amorreus ficaram sabendo da deserção de Gibeão e da sua aliança com os israelitas, passaram a vê-los como inimigos. Os cinco reis fizeram uma coligação e partiram para atacar e destruir Gibeão (10:1-5). Quando perceberam que estavam sendo atacados, os gibeonitas mandaram uma mensagem a Josué em Gilgal, pedindo ajuda, e conseguiram (o acordo feito com eles também lhes assegurava a proteção de Israel). Deus garantiu a Josué que lhes daria a vitória: “nenhum deles te poderá resistir” (10:8). Saindo de Gilgal e marchando durante toda a noite, Josué derrotou os reis amorreus, fazendo um grande morticínio em Gibeão. Quando fugiam de Josué, Deus mandou grandes pedras de granizo sobre os amorreus, matando mais com a chuva de granizo do que com a espada (10:11). Mesmo assim, a vitória não foi completa, por isso, Josué orou a Deus pedindo para o sol parar no céu, dando mais tempo aos israelitas para destruir os amorreus. O sol parou sobre Gibeão, de modo que jamais houve um dia de batalha como aquele, nem antes nem depois. Só dá para imaginar o que se passava na cabeça dos gibeonitas enquanto viam a mão de Deus, e partilhavam das Suas bênçãos sobre o Seu povo, Israel.
Quando os israelitas tomaram posse da terra de Canaã, a cidade de Gibeão foi atribuída ao território de Benjamim, e também separada para os levitas (Josué 21:17). Essa cidade era o “altar lugar” onde o tabernáculo foi assentado e mantido até o término do templo de Salomão (Davi levou a arca para Jerusalém, mas o tabernáculo e o altar permaneceram em Gibeão, ver 2 Samuel 6; 1 Crônicas 16:39-40; 21:29). Logo no início do seu reinado, Salomão subiu a Gibeão para adorar e oferecer sacrifícios a Deus. Foi lá que Deus disse que lhe concederia qualquer coisa pedida por ele (1 Crônicas 16:39; 21:29; 2 Crônicas 1:1-13; 1 Reis 3:4-5).
Gibeão era a cidade natal dos antepassados de Saul (1 Crônicas 8:29-30; 9:35-39). Foi lá que doze homens de Isbosete (filho de Saul) se envolveram em uma espécie de competição com doze homens de Davi, a qual se transformou em uma batalha sangrenta (2 Samuel 2:12-17). Ali ficava também a “pedra grande”, onde Joabe encontrou Amasa e o matou (2 Samuel 20:8). Depois, quando Davi envelheceu e Joabe fez a besteira de apoiar Adonias como sucessor do trono (contra Salomão), foi para lá que ele fugiu e se agarrou nas pontas do altar, mas sem êxito (1 Reis 2:28-34).
Quando chegamos ao nosso texto, já se passaram mais ou menos quatrocentos anos desde a aliança feita entre os líderes de Israel e os gibeonitas. Somos tentados a descartar esse pacto como história antiga, mas, de repente, nos deparamos com os gibeonitas surgindo de novo em 2 Samuel. Há três anos consecutivos a nação vem sofrendo com a fome, por isso Davi consulta o Senhor para saber por que Ele a enviou. Deus responde que é por causa do pecado de sangue de Saul e sua casa, um pecado contra os gibeonitas. Devido a uma percepção equivocada de lealdade para com os filhos de Israel e Judá, Saul e sua casa tinham dado início a um programa de extermínio dos gibeonitas. Sistematicamente eles começaram a eliminá-los, talvez envolvendo apenas algumas pessoas (o que incluía a sua família). Se ele planejou o extermínio dos gibeonitas, poderia muito bem ter executado a missão da sua própria casa em Gibeá. Não sabemos até onde ele foi com esse plano perverso, nem o que o impediu de completar sua tarefa.
As ações de Saul violaram a aliança de Israel com os gibeonitas, feita quatrocentos anos antes.2 A aliança foi uma atitude imprudente dos líderes de Israel. Os israelitas nunca deveriam tê-la feito. Mas fizeram; por isso, eram obrigados a cumpri-la. Foi por isso que Josué saiu em auxílio deles logo após ter feito o acordo. E então, alguns séculos mais tarde, Saul age de forma totalmente contrária ao passado. Ele começa a eliminar os gibeonitas, não muito diferente da maneira como Hamã procurou destruir os judeus (ver o livro de Ester). De alguma forma, Deus impede seu esquema sinistro de ter êxito. Até lermos sobre isso em nosso texto, não fazíamos a mínima ideia desse plano sanguinário. Mas agora, anos depois, Deus traz a fome sobre o território de Israel, levando Davi a investigar o assunto para fazer o que é certo.
O autor do texto não faz nenhum esforço para nos dar uma data precisa dos acontecimentos. Não sabemos quando ocorre esse período de fome na vida de Davi. Só sabemos que é após a morte de Saul e seus filhos. Quando chega, a fome se mantém durante três anos consecutivos. Não é uma coisa fortuita, mas algo que faz Davi sentir a mão de Deus. A aliança mosaica dizia que a fome viria das mãos de Deus como forma de julgamento pelo pecado (ver Deuteronômio 28:23-23; 2 Crônicas 6:26-31). Por isso, Davi consulta o Senhor sobre sua causa. A resposta de Deus é bem clara:
“A fome veio por causa de Saul e de sua família sanguinária, por terem matado os gibeonitas” (2 Samuel 21:1b, NVI).
Resolvi citar a resposta do Senhor com a versão King James (em português, a NVI), por acreditar que ela reflita com mais exatidão o texto hebraico: “É por causa de Saul e da [sua] casa sanguinária” (em português, “por terem matado”). Essa afirmação soluciona o que talvez pareça um problema nas outras traduções. Por que Davi executaria os filhos e netos de Saul por um mal cometido pelo próprio Saul? A lei de Moisés proibia punir os filhos pelos pecados dos pais:
“Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos, em lugar dos pais; cada qual será morto pelo seu pecado.” (Deuteronômio 24:16, ARA).
As palavras de Deus a Davi parecem salientar o fato de Saul não ter agido sozinho quando tentou aniquilar os gibeonitas. Ele precisava de ajuda, e quem melhor para isso do que a sua própria família? Se o sangue de algum gibeonita foi derramado pelas mãos deles ou não, eles deviam saber, por isso, tornaram-se cúmplices do seu plano hediondo.3
Eu achava que a motivação de Saul para eliminar os gibeonitas fosse interesseira. Afinal, ele vivia no território de Benjamim, e Gibeá de Saul não era muito distante de Gibeão. Talvez aquela terra tivesse sido da sua própria família. Mas o texto nos diz que ele fez isso por patriotismo equivocado. Ele “procurou destruí-los no seu zelo pelos filhos de Israel e de Judá” (verso 2). Como comentou um amigo meu após ouvir esta mensagem: “parece que Saul simplesmente não consegue fazer nada direito”. Ele não quis exterminar totalmente os amalequitas, a quem Deus ordenara matar (1 Samuel 15), e tentou exterminar os gibeonitas, aos quais não podia matar. Pensando em fazer um favor a Israel e Judá, Saul provoca a fome na terra.
Davi sabe que, de alguma forma, precisa fazer expiação pelo pecado de Saul e obter a bênção dos gibeonitas para Deus abençoar novamente Seu povo removendo a fome. Isso é realmente incrível. Os gibeonitas precisam “abençoar” Israel, o povo de Deus, para Deus abençoar novamente Israel. Parece quase a exata reversão da aliança abraâmica:
“Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gênesis 12:3)
Devido ao pecado de Saul e sua casa sanguinária, os gibeonitas tinham sofrido injustamente. Parece que eles clamaram a Deus por justiça, e uma maldição (a fome) caiu sobre Israel. Isso não acontece nos dias de Saul, mas depois (talvez porque Saul não teria tentado descobrir suas causas ou tomado as medidas necessárias para corrigir a situação). Agora, para solucionar o caso, é preciso fazer uma expiação (a execução de sete dos descendentes de Saul). Depois, os gibeonitas precisam abençoar os israelitas para Deus poder abençoar o Seu povo outra vez.
Davi chama os gibeonitas e lhes pergunta o que deve fazer para consertar a situação. A resposta deles é bem diferente da esperada. Talvez naquela época não houvesse advogados (desculpem o sarcasmo) para lhes dizer o quanto poderiam ganhar com a causa. Eles deixam claro que não querem dinheiro. Dinheiro não “expiará” o sangue derramado por Saul. As palavras ditas a seguir abrem caminho para o que eles realmente acham que poderá servir à causa da justiça: “nem tampouco pretendemos matar pessoa alguma em Israel” (verso 4). Não está em seu poder, como povo subjugado, executar os judeus. Davi percebe ser esse o seu desejo, por isso, pergunta-lhes o que querem, prometendo atender seu pedido.
Os gibeonitas dizem a Davi que, já que Saul destruiu alguns deles e pretendia matar a todos, será justo se sete de seus “filhos”4 forem entregues a eles para execução. Eles os enforcarão “ao SENHOR, em Gibeá de Saul, o eleito do SENHOR” (verso 6). O enforcamento era a punição usada para crimes muito graves (ver Gênesis 40:19; Deuteronômio 21:22-23; Josué 8:29; 10:26). Os gibeonitas prometem enforcar os filhos de Saul “ao Senhor”. Parece-me que eles estão vendo esse assunto da maneira correta, cuidando em fazer a vontade de Deus de modo a satisfazê-lO (aplacando Sua ira), e a eles também. Eles farão a execução ao Senhor em Gibeá de Saul, a cidade de Saul.
Acho muito interessante os gibeonitas fazerem questão de se referir a Saul como “o eleito do Senhor”. Sem dúvida, essa era uma forma comum de se referir a ele, com a qual eles estavam familiarizados. Creio que isso é dito intencionalmente. Saul presumia que por ser “o eleito do Senhor” podia fazer qualquer coisa? Ele achava que isso o colocava num patamar especial, de forma que Deus ignoraria seus pecados? Não mesmo! O “eleito do Senhor” estava prestes a ter seus filhos executados bem na frente da sua própria cidade. Deus não desculpa ou ignora os pecados daqueles a quem escolheu. Ele não condenou os cananeus por seus pecados para depois tolerar esses mesmos pecados entre o Seu povo escolhido, Israel. Deus não tolerou os pecados de Davi e não iria tolerar os de Saul, seu “eleito”.
Algumas vezes os cristãos ficam um pouco confusos sobre esse ponto. Quando algum grupo árabe explode um prédio, matando pessoas inocentes, somos rápidos para condenar esse ato “terrorista” e clamar por justiça. Mas quando um grupo israelense faz a mesma coisa, nós achamos que foi em defesa própria ou uma retaliação justificada. Ser do povo escolhido de Deus não nos dá licença para pecar. Deus ouve o clamor dos oprimidos e julga o pecado, mesmo quando ele é cometido por um dos Seus “eleitos”.
“Se do teu próximo tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol; porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se deitaria? Será, pois, que, quando clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso.” (Êxodo 22:26-27)
“Porque ele acode ao necessitado que clama e também ao aflito e ao desvalido.” (Salmo 72:12)
“Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos.” (Tiago 5:4)
O julgamento de Deus pode não vir imediatamente, mas virá.
E assim, sete dos “filhos” de Saul são escolhidos. Mefibosete, o filho de Jônatas, é poupado devido à aliança de Davi com seu pai. Os dois filhos de Rispa5, concubina de Saul, são executados, junto com os cinco filhos de Merabe6, filha de Saul. Os gibeonitas pegam os sete homens e “os enforcam no monte, perante o SENHOR” (verso 9). A execução ocorre no início da sega da cevada.
Antes de passarmos para a conclusão da questão entre Israel e os gibeonitas, descrita nos versos 10 a 14, deixem-me fazer uma pausa para fazer algumas observações e aplicações com base naquilo que já vimos.
Nesta passagem somos relembrados da importância das alianças. Ao longo da história do Velho Testamento, e também do Novo, Deus sempre tratou com os homens por meio de alianças. Quando poupou Noé e sua família, Deus fez um pacto com eles e deu o arco-íris como sinal do pacto (Gênesis 9:1-17). Tempos depois, Deus fez uma aliança com Abraão, com um sinal correspondente, a circuncisão (Gênesis 12:1-3; 17:1-22). Então Deus fez aliança com Israel por intermédio de Moisés, e o sinal foi o sábado (Êxodo 19-20; 31:12-17; Deuteronômio 5). Deus fez aliança com Davi para edificar-lhe uma casa eterna (2 Samuel 7:12-17). Posteriormente, é claro, houve a Nova Aliança instituída por nosso Senhor Jesus Cristo por meio do Seu sangue derramado na cruz (Jeremias 31:31-34; Lucas 22:20; 1 Coríntios 11:25; 2 Coríntios 3:6; Hebreus 9:11-22). Deus não se relaciona com os homens de um jeito qualquer; Ele sempre trata conosco com base em uma aliança.
O problema de Davi com os gibeonitas, no fundo, é uma questão de manter a palavra. Israel tinha feito aliança com eles. Mesmo depois de quatrocentos anos, ela devia ser honrada. Saul quebrou-a quando tentou deixar a terra livre deles. Não interessa o quanto suas intenções pudessem ser boas, a aliança tinha de ser cumprida. Sua violação teve graves consequências. Custou a Saul e seus filhos suas vidas. Provocou a fome em Israel. Envolveu também outras alianças. Muitas das coisas descritas em nosso texto parecem cumprimento das advertências de Deus pela violação da aliança mosaica de Deuteronômio 28-30. Além disso, a aliança de Davi com Jônatas tinha de ser honrada, por isso Mefibosete não foi entregue aos gibeonitas.
Deus se relaciona com os homens em termos de alianças. O tempo não as enfraquece. Elas devem ser cumpridas. Mesmo quando os homens não as levam a sério, Deus leva. Ele espera que guardemos as nossas alianças:
“O que, a seus olhos, tem por desprezível ao réprobo, mas honra aos que temem ao SENHOR; o que jura com dano próprio e não se retrata”. (Salmo 15:4)
Mesmo quando uma aliança é feita de forma imprudente, como a dos israelitas com os gibeonitas, Deus espera que a guardemos. Quantas vezes já assistimos a cerimônias de casamento onde um homem e uma mulher fazem votos matrimoniais e, poucos anos depois, um dos cônjuges (ou ambos) decide que o casamento não é como ele (ou ela) esperava. Eles acham que a pessoa com quem se casaram não é realmente quem pensavam que fosse. Por isso, sentem-se livres para quebrar seus votos e passar para outro relacionamento. Se Deus esperava que os israelitas mantivessem sua aliança com os gibeonitas, mesmo tendo sido enganados por eles, e mesmo após quatrocentos anos, como você pensa que Ele se sente sobre a violação dos votos matrimoniais? Não há dúvida quanto a isso:
“Ainda fazeis isto: cobris o altar do SENHOR de lágrimas, de choro e de gemidos, de sorte que ele já não olha para a oferta, nem a aceita com prazer da vossa mão. E perguntais: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher da tua aliança. Não fez o SENHOR um, mesmo que havendo nele um pouco de espírito? E por que somente um? Ele buscava a descendência que prometera. Portanto, cuidai de vós mesmos, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR, Deus de Israel, diz que odeia o repúdio e também aquele que cobre de violência as suas vestes, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto, cuidai de vós mesmos e não sejais infiéis.” (Malaquias 2:13-16)
Graças a Deus por Ele guardar Suas alianças. Ao longo da história de Israel, Seu povo escolhido endureceu a cerviz e desobedeceu Aquele que os salvou da escravidão do Egito. Como teria sido fácil para Deus lavar as mãos e deixar esse povo rebelde. Mas Ele manteve Sua aliança. Ele o fez trazendo adversidade sobre o Seu povo quando ele pecou (tal como a fome que sobreveio a Israel na época de Davi); mas também providenciando um Salvador, o qual guardou perfeitamente a aliança mosaica e cumpriu a aliança com Abraão e com Davi. Ele instituiu a Nova Aliança, pela qual o homem pecaminoso é salvo pela fé em Jesus Cristo e no Seu sangue, o qual foi derramado para fazer expiação pelo pecado dos homens.
Fico impressionado com tantos prenúncios do evangelho nesta história. Não só o texto nos lembra de que Deus se relaciona com os homens por meio de Suas alianças, mas acima de tudo ele nos fala da Nova Aliança. Os pecados de Saul precisavam ser expiados ou as bênçãos de Deus não poderiam ser desfrutadas. O pecado de Saul causou adversidade, na forma de uma fome. Dinheiro não podia expiar esse pecado, só derramamento de sangue. Foi o derramamento de sangue que propiciou a expiação e apaziguou a Deus e os gibeonitas.
Há quem pense no evangelho do Novo Testamento como sangrento demais (lembre-se: “testamento” é uma palavra antiga para aliança). O que mais poderia remover os nossos pecados? Seriam os nossos esforços para fazer boas obras? Será que o nosso dinheiro pode nos salvar? Só o derramamento de sangue expia o pecado:
“Com efeito, quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e, sem derramamento de sangue, não há remissão.” (Hebreus 9:22)
Só o sangue de uma Pessoa pode nos salvar dos nossos pecados — o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, derramado na cruz do Calvário:
“no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” (Efésios 1:7)
“Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo.” (Efésios 2:13)
“porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus.” (Colossenses 1:19-20)
“Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!” (Hebreus 9:11-14)
“Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação, sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram,” (1 Pedro 1:17-18)
Há uma passagem no livro de Apocalipse que sempre me deixa atônito:
“E o lagar foi pisado fora da cidade, e correu sangue do lagar até aos freios dos cavalos, numa extensão de mil e seiscentos estádios.” (Apocalipse 14:20)
Esse texto descreve o derramamento da ira de Deus sobre aqueles que rejeitaram Jesus Cristo e se rebelaram contra Ele. Como a ira de Deus poderia ser descrita em termos mais sangrentos? Tanto sangue foi derramado que chegou até o freio dos cavalos — em mais de 300 km. Isso é inacreditável! Seria exagero poético ou deve ser entendido literalmente? Não tenho certeza, mas eu diria que isso indica o quanto os homens são pecaminosos e o quanto é grande a pena pelo pecado. Quanto sangue de culpa teria de ser derramado para expiar os pecados do mundo inteiro? Nunca seria o suficiente. Só o derramamento do sangue de nosso Senhor, Seu precioso sangue, é suficiente. Você já reivindicou esse Seu sangue derramado como base para o seu perdão?
A história de Saul, Davi e os gibeonitas nos ensina ainda mais. Ela nos lembra não só de que o pecado precisa ser expiado pelo derramamento de sangue, mas também de que, um dia, ele terá de ser pago. Não estou certo da razão pela qual Deus esperou até depois da morte de Saul e seus filhos para causar a fome em Israel, mas fico impressionado por esse pecado não ter sido esquecido. No tempo de Deus, Ele cuidou desse pecado, como Ele cuidará de todo pecado. Algumas pessoas parecem pensar que, se Deus não lidar imediatamente com o pecado, Ele nunca o fará; elas não conseguem compreender que a demora de Deus é uma manifestação da Sua graça, não uma garantia para os homens pecarem sem medo do julgamento (ver 2 Pedro 3:1-3).
Os gibeonitas parecem prenunciar a graça salvadora de Deus concedida aos gentios como parte do Seu plano eterno de salvação. Os gibeonitas eram pecadores, merecedores da ira de Deus. Foi a imprudência de Israel (para não dizer pecado) que os levou a fazer aliança com eles. Esses gentios condenados foram salvos por uma falha de Israel. E, a maravilha das maravilhas, será por meio deles que Israel gozará novamente das bênçãos de Deus. Não é isso um prenúncio da forma como Deus levará a salvação aos gentios, e depois, por intermédio deles, abençoará os judeus? Peço que leiam os capítulos 9 a 11 de Romanos para ver como Paulo descreve essa maravilha.
Quando perceberam ter sido enganados pelos gibeonitas, os israelitas ficaram com muita raiva. Eles não podiam matá-los, pois a aliança acabara de ser feita, mas podiam “amaldiçoá-los”, tornando-os seus escravos, fazendo com que fossem cortadores de lenha e tiradores de água. Seria essa “maldição” uma maldição de fato? Não mesmo. Era uma grande bênção. Os gibeonitas foram privilegiados em ter parte na adoração do povo de Deus, cortando lenha para o altar e tirando água para o tabernáculo. Não é de admirar que eles, quatrocentos anos mais tarde, tenham uma percepção espiritual tão grande da vontade de Deus, de certo e errado, de expiação e justiça. Lembro-me de um salmo que diz:
“Pois um dia nos teus átrios vale mais que mil; prefiro estar à porta da casa do meu Deus, a permanecer nas tendas da perversidade.” (Salmo 84:10)
Quão gracioso foi Deus ao abençoar esses gentios, e por meio deles abençoar novamente Israel.
Então, Rispa, filha de Aiá, tomou um pano de saco e o estendeu para si sobre uma penha, desde o princípio da ceifa até que sobre eles caiu água do céu; e não deixou que as aves do céu se aproximassem deles de dia, nem os animais do campo, de noite. Foi dito a Davi o que fizera Rispa, filha de Aiá e concubina de Saul. Então, foi Davi e tomou os ossos de Saul e os ossos de Jônatas, seu filho, dos moradores de Jabes-Gileade, os quais os furtaram da praça de Bete-Seã, onde os filisteus os tinham pendurado, no dia em que feriram Saul em Gilboa. Dali, transportou os ossos de Saul e os ossos de Jônatas, seu filho; e ajuntaram também os ossos dos enforcados. Enterraram os ossos de Saul e de Jônatas, seu filho, na terra de Benjamim, em Zela, na sepultura de Quis, seu pai. Fizeram tudo o que o rei ordenara. Depois disto, Deus se tornou favorável para com a terra.
Concordam comigo que essa história é muito estranha, mais até que o enforcamento dos “filhos” de Saul? Qual o motivo para o autor de Samuel registrar este incidente? Aonde ele queria chegar? Observe comigo, em primeiro lugar a história é tanto continuação quanto conclusão dos versos 1 a 9. É a execução dos filhos de Saul que faz Rispa agir, e depois Davi. A fome só termina depois do funeral de Saul e seus filhos (verso 14). Precisamos, então, tentar entendê-la dentro do contexto daquilo que já lemos e do capítulo como um todo.
Eis aqui Rispa, concubina de Saul, cujos filhos foram executados pelos gibeonitas. Aparentemente, seus corpos não foram removidos, como parece que deveriam ter sido (ver Deuteronômio 21:22-23). Quando eu estava lendo o Velho Testamento, deparei-me com um verso muito interessante:
“O teu cadáver servirá de pasto a todas as aves dos céus e aos animais da terra; e ninguém haverá que os espante.” (Deuteronômio 28:26)
Esse texto sugere que Rispa, de forma alguma, estava agindo normalmente. Qual mãe gostaria de ver os pássaros devorando a carcaça de seu(s) filho(s)? Uma vez que os corpos dos filhos de Saul ainda não tinham sido sepultados, essa mãe resolveu vigiá-los, ficando ali para poder espantar pássaros e animais selvagens. Davi soube disso, e por causa da atitude de Rispa, resolveu fazer alguma coisa. Os corpos eram de sete dos filhos de Saul, aos quais ainda não tinha sido dado um funeral apropriado. Davi lembrou-se de que Saul e seus três filhos7 também não tinham recebido um enterro adequado.
Vocês devem se lembrar de que Davi não teve nada a ver com o enterro precipitado de Saul e seus filhos, conforme descrito em 1 Samuel 31. Davi estava em Ziclague quando soube da morte de Saul. O corpo dele e os dos filhos foram levados pelos filisteus e pendurados no muro de Bete-Seã. Homens corajosos de Jabes-Gileade marcharam a noite inteira para roubá-los, queimá-los e enterrar seus ossos debaixo de um arvoredo em Jabes (31:11-13). Tudo foi feito na ausência de Davi. Saul e seus filhos ainda não tinham recebido um funeral adequado, embora seus corpos tenham sido resgatados da exposição vergonhosa feita pelos filisteus.
Aparentemente, pelo menos, é possível ver como Davi deve ter raciocinado. Os ossos dos sete filhos de Saul não tinham sido sepultados, isso levou Rispa a agir como agiu. O problema não seria “enterrado” até eles terem um funeral apropriado. Ao pensar nisso, talvez Davi tenha se lembrado de que Saul e seus três filhos também não tinham recebido um funeral digno. Para “enterrar o assunto” de vez, ele providencia para que os ossos de Saul e seus filhos sejam levados para o túmulo do pai de Saul, junto com os ossos dos sete homens executados. Uma vez sepultados, o caso estará encerrado, de uma vez por todas.
Tem mais alguma se passando também, eu acho. Há uma clara ligação entre a execução dos sete filhos de Saul pelos gibeonitas, as ações de Rispa e as medidas tomadas por Davi. Creio que o elo de ligação não seja só o fato de tudo estar relacionado a Saul e à falta de um sepultamento adequado. O que esses sete homens têm em comum com Saul e seus três filhos? Todos são filhos de Saul. E todos foram “pendurados”. Creio que posso inferir disso que Davi percebe a conexão entre Saul e os três filhos, os quais foram mortos e depois pendurados, e os outros sete filhos, os quais foram enforcados em público devido a tentativa de extermínio dos gibeonitas. Não seriam aquelas mortes e estes enforcamentos expiação pelo mesmo pecado? Quando Davi sepulta todos os “filhos” no túmulo do pai de Saul, ele não só lhes dá um enterro decente, mas também parece ligá-los ao mesmo pecado e ao mesmo julgamento. Esta é a única maneira de eu poder entender a razão pela qual o autor do texto dá tanta ênfase às ações de Rispa e à atitude de Davi. Pelo menos, podemos dizer que o assunto agora parece ter sido encerrado.
Mais um fato deve ser observado. As palavras finais do verso 14 são muito importantes: “Depois disto, Deus se tornou favorável para com a terra”. Talvez esperássemos ler algo como: “E então Deus retirou a fome que atormentava a terra há três anos”. Em vez disso, lemos que Deus, depois de expiado o pecado, ouve novamente as orações do povo suplicando-Lhe para cessar o julgamento imposto sobre a terra. Em outras palavras, o povo devia estar orando para Deus retirar a fome há três anos, mas Deus não atendia suas petições por causa do pecado de Saul e de sua casa sanguinária. Uma vez expiado o pecado, Deus ouve novamente as preces do povo. Deus é soberano, mas com frequência Ele age em resposta aos meios designados por Ele. Neste caso, o meio é a oração do Seu povo. Repare no que Salomão dirá alguns anos mais tarde:
“Quando os céus se cerrarem, e não houver chuva, por ter o povo pecado contra ti, e ele orar neste lugar, e confessar o teu nome, e se converter dos seus pecados, havendo-o tu afligido, ouve tu nos céus, perdoa o pecado de teus servos e do teu povo de Israel, ensinando-lhes o bom caminho em que andem, e dá chuva na tua terra que deste em herança ao teu povo. Quando houver fome na terra ou peste, quando houver crestamento ou ferrugem, gafanhotos e larvas, quando o seu inimigo o cercar em qualquer das suas cidades ou houver alguma praga ou doença, toda oração e súplica, que qualquer homem ou todo o teu povo de Israel fizer, conhecendo cada um a sua própria chaga e a sua dor, e estendendo as mãos para o rumo desta casa, ouve tu dos céus, lugar da tua habitação, perdoa e dá a cada um segundo todos os seus caminhos, já que lhe conheces o coração, porque tu, só tu, és conhecedor do coração dos filhos dos homens; para que te temam, para andarem nos teus caminhos, todos os dias que viverem na terra que deste a nossos pais.” (2 Crônicas 6:26-31)
Deus responde a oração. Neste caso, o autor do texto de 2 Samuel ressalta o fato de que Ele retira a fome porque atende as orações do Seu povo. E Ele atende porque o pecado que as impedia foi expiado. Precisamos entender bem esse ponto que o autor procura ressaltar: O pecado atrapalha as nossas orações, mas quando ele é tratado, Deus atende a nossa súplica. Não subestimemos a importância da oração.
De novo, fizeram os filisteus guerra contra Israel. Desceu Davi com os seus homens, e pelejaram contra os filisteus, ficando Davi mui fatigado. Isbi-Benobe descendia dos gigantes; o peso do bronze de sua lança era de trezentos siclos, e estava cingido de uma armadura nova; este intentou matar a Davi. Porém Abisai, filho de Zeruia, socorreu-o, feriu o filisteu e o matou; então, os homens de Davi lhe juraram, dizendo: Nunca mais sairás conosco à peleja, para que não apagues a lâmpada de Israel. Depois disto, houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; então, Sibecai, o husatita, feriu a Safe, que era descendente dos gigantes. Houve ainda, em Gobe, outra peleja contra os filisteus; e Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu a Golias, o geteu, cuja lança tinha a haste como eixo de tecelão. Houve ainda outra peleja; esta foi em Gate, onde estava um homem de grande estatura, que tinha em cada mão e em cada pé seis dedos, vinte e quatro ao todo; também este descendia dos gigantes. Quando ele injuriava a Israel, Jônatas, filho de Simeia, irmão de Davi, o feriu. Estes quatro nasceram dos gigantes em Gate; e caíram pela mão de Davi e pela mão de seus homens.8
Parece que as coisas ficam ainda mais estranhas quando chegamos ao final do capítulo 21. Primeiro o pecado de um homem morto e sua casa sanguinária resultam na execução de sete de seus filhos. Quando esses homens são executados, seus corpos ficam expostos, de modo que a mãe de dois deles fica por perto para não deixar pássaros e animais selvagens se alimentarem deles. Davi, então, desenterra os ossos de Saul e seus filhos e os sepulta no túmulo do pai de Saul, junto com os corpos dos sete executados. Agora, para finalizar o assunto, lemos sobre as batalhas com os filisteus, onde o ponto alto é a aparição de uma porção de descendentes de Golias, tão terríveis e mortais quanto ele.
Mais uma vez não temos o período exato onde encaixar esses acontecimentos. Sabemos apenas que os filisteus estão atacando Israel e Davi lidera seus homens contra eles. No decorrer da batalha, Davi acaba ficando muito cansado, e Isbi-Benobe, um dos soldados filisteus, percebe suas condições e decide tirar o máximo proveito da situação. Ele é descendente dos gigantes, com armas muito parecidas com as de seu predecessor, Golias. Entre elas há uma lança nova, a qual ele espera estrear tirando o sangue do rei de Israel.
Quem mais está lá para socorrer Davi, senão Abisai, irmão de Joabe e do falecido Asael, todos filhos de Zeruia, irmã de Davi (2 Samuel 2:18)? Esse é o mesmo camarada que acompanhou Davi ao acampamento de Saul, oferecendo-se para matá-lo de um só golpe (1 Samuel 26:6-8). Ele também deu uma mãozinha a Joabe no assassinato de Abner (2 Samuel 3:30). Em algumas ocasiões, ele comandou uma das divisões do exército de Davi (2 Samuel 10:10; 18:2). Por duas vezes ele quis acabar com Simei pelas ofensas ditas contra Davi quando este fugia de Absalão (2 Samuel 16:9-12; 19:21-22). Ele também foi o cabeça de trinta valentes que enfrentou trezentos homens só com sua espada e matou a todos eles. Ele foi um herói de renome em Israel (2 Samuel 23:18). Muito embora Davi possa ter tido algumas decepções com ele — e talvez nem goste dele — certamente Davi fica em débito com Abisai.
O incidente deixa o exército de Davi perturbado, da mesma forma que talvez o deixe incomodado. Eles quase perdem seu rei na batalha. Quando Davi saía à guerra, ele ia à frente dos homens. Portanto, era o alvo principal, sobretudo dos campeões do exército inimigo (ver 1 Reis 22:29-33). Uma coisa é perder um soldado na guerra; outra, completamente diferente, é perder o rei. Desta vez Davi é salvo por Abisai, mas e na próxima? A época áurea de Davi já passou; ele não é mais o homem de guerra de antigamente. Seus homens não querem perdê-lo como rei, por isso, insistem para ele não sair mais à guerra com eles.
O parágrafo seguinte, versos 18 a 22, vem na sequência dos versos 15 a 17. Na batalha anterior com os filisteus, Davi foi atacado por um dos descendentes de Golias e quase foi morto. Os soldados decidiram que ele não iria mais acompanhá-los na guerra. Mas como poderiam vencer sem seu matador de gigantes? Davi era essencial para a vitória de Israel contra os filisteus? Os versos 18 a 22 nos dão a resposta. Nas batalhas subsequentes9, surgem outros descendentes de Golias, os quais também são mortos. Um deles é Safe, que é ferido por Sibecai, o husatita (verso 18). Depois, na batalha de Gobe, Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, mata Golias, o geteu10 (verso 19).
O último descendente de Golias á guardado para o final, e não é de admirar. Esse camarada não só intimida os adversários por seu tamanho, mas também por suas extremidades. Dá para imaginar se ele fosse da linha ofensiva do Denver Broncos (time de futebol americano dos Estados Unidos), e você da linha defensiva do outro time? Os dois se abaixam, preparando-se para o chute da bola. Você olha para o chão e repara nas mãos dele. Aí começa a contar os dedos... um... dois... três... quatro... cinco............. seis? E então olha para a outra mão, e depois para os pés. Mas que visão sinistra! No entanto, Jônatas, filho de Simeia, irmão de Davi, também põe o gigante abaixo. Ele não cai de quatro; cai de vinte e quatro... Se pelas mãos de Davi ou por um de seus homens, todos eles caem diante do exército de Israel.
Por que estas histórias estão aqui, principalmente quando parecem estar fora da ordem cronológica, perto do fim do livro?11 Permitam-me fazer algumas observações, para depois tirar algumas aplicações.
Primeiro, o texto me faz lembrar das palavras do Senhor, registradas em Mateus:
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.” (Mateus 5:21-26)
Devo confessar que a relação desta passagem com o nosso texto não me ocorreu até o comentário de um irmão chamar minha a atenção, e com razão, creio eu. Certamente seria muito bom meditarmos nas lições do Senhor sobre ódio e assassinato, mas não é disso que vou falar. Gostaria de salientar a relação que nosso Senhor faz entre a ofensa a um irmão e a nossa adoração. Nosso Senhor nos ensina a primeiro por em ordem as nossas injustiças para depois começar a nossa adoração. O texto de 2 Samuel nos ensina algo muito parecido. Até o erro de Saul e sua casa contra os gibeonitas ser corrigido, Deus não derrama Suas bênçãos sobre a terra (por isso há fome). Quando a injustiça é reparada, as bênçãos de Deus voltam, e Ele ouve novamente as súplicas do povo para eliminar a fome.
Segundo, devo lembrar que o autor deste livro é altamente qualificado, especialista naquilo que se propõe a fazer. Se fico confuso com o que estou lendo, não é por falha do autor, mas porque ainda não consegui compreender o que ele se propôs a fazer — e fez. Neste trecho, ele não segue uma linha de tempo cronológica, mas trabalha cuidadosamente um tema, e é minha tarefa estudar o capítulo e descobrir qual é esse tema.
Terceiro, vejo uma certa ênfase no texto sobre a nova geração. Saul já saiu de cena, assim como seus filhos. São esses filhos que poderiam desafiar Salomão, filho de Davi, pelo trono. Mas Deus, na Sua providência, retirou-os da história. Davi se aposenta da carreira militar e não vai demorar a se retirar do trono, dando lugar a seu filho, Salomão. Rispa demonstra uma preocupação especial com os corpos dos filhos, protegendo-os dos pássaros e animais selvagens. E Golias, mesmo morto, é sucedido por seus descendentes, os quais continuam a andar nos passos (extragrandes) do pai. Parece que estamos passando de uma geração para outra.
Quarto, há uma sensação muito clara de fechamento neste capítulo. Se pensarem nisso, o capítulo descreve o fim da carreira militar de Davi. Ainda não é o final do seu reinado sobre Israel, mas é o fim de sua carreira militar. Ele não sairá mais para lutar junto com seus homens (verso 17). Sua carreira começou, como devem se lembrar, com o confronto com Golias e a vitória sobre os filisteus (1 Samuel 17). O início foi a derrota de Golias e do exército filisteu. O fim de sua carreira é um confronto final com um dos descendentes de Golias e a derrota dos filisteus.
Vocês já viram como um atleta profissional se “aposenta”? Eles só não querem é se aposentar depois de uma temporada ruim. Eles querem parar enquanto ainda estão por cima. Eu entendo isso. É melhor sair com um grito de triunfo do que com um gemido de derrota. Creio que podemos concordar que Davi saiu tão bem como qualquer outra pessoa. É bem verdade que ele precisou de uma certa ajuda para acabar com Isbi-Benobe, mas o sujeito foi morto e os filisteus foram derrotados.
O sucesso na forma como estou pensando deve ser visto em maior escala. Quando os israelitas exigiram um rei, era para poderem ter alguém lutando suas batalhas e liderando-os na guerra, principalmente contra os filisteus (1 Samuel 8:19-20; 9:16). O que farão agora, se Davi não é mais capaz de estar à sua frente?
A resposta é linda, mas deixem-me retroceder um pouco no tempo. Quando a primeira geração de israelitas teve a chance de conquistar Canaã, eles não conseguiram por terem ficado com medo dos gigantes que disseram haver na terra (Números 13:25-33). Quando estavam sendo ameaçados pelos filisteus, Golias era o campeão que aterrorizada o exército de Israel. Davi se apresentou e matou Golias, e os filisteus foram derrotados. Mas agora Davi não pode mais lidar com os “Golias” levantados pelos filisteus contra ele. Isso significa que Israel está em apuros? Não mesmo! A liderança de Saul não conseguiu produzir ninguém para enfrentar Golias, incluindo o próprio Saul. Mas a liderança de Davi gerou muitos valentes homens de guerra. Davi não pode mais lutar? Sem problemas. Os rapazes fazem fila para enfrentar todos os Golias levantados pelo exército filisteu contra eles. E assim os descendentes de Golias são mortos e o exército filisteu é derrotado. Que maneira de encerrar a carreira militar de Davi! O povo não precisa mais de um rei para lutar por eles; eles mesmos estão dispostos a lutar, mesmo contra os descendentes de Golias. Isso é o que eu chamo de aposentadoria em grande estilo.
Há também uma sensação de conclusão de coisas inacabadas, coisas não resolvidas pela administração de Saul, mas agora corrigidas por Davi. O pecado de Saul e sua casa sanguinária contra os gibeonitas é expiado, e a terra pode novamente desfrutar das bênçãos de Deus. Não só os sete “filhos” de Saul recebem um funeral adequado, mas também Saul e seus filhos, os quais tinham sido sepultados às pressas em Jabes-Gileade. E o exército de Israel atinge um ponto em que não precisa mais de Davi para lutar suas batalhas por eles, ou mesmo com eles. Há muitos valentes capazes de fazer o que Davi não pode mais fazer.
Para mim, essa é uma lição muito importante sobre liderança. Com frequência as pessoas querem líderes para trabalhar por elas. A grandeza e a contribuição de um líder são julgadas pelo tamanho do buraco deixado por ele ao sair. Em termos bíblicos, isso deveria ser uma ofensa para o líder temente a Deus. A tarefa dos líderes não é fazer tudo, mas facilitar o ministério, treinar, equipar e incentivar outras pessoas a substituí-los e até mesmo a serem melhores que eles. Se liderança cristã deve ser assim, então Davi foi um grande líder. Sob o comando de Saul, ninguém estava disposto a enfrentar Golias. No ministério de Davi, muitos se dispuseram a isso e foram capazes disso. Agora Davi está livre para se afastar (primeiro como comandante das forças militares e depois como rei), pois ele fez um trabalho muito bem feito — e ajudou a criar um nível subalterno de liderança que está pronto para assumir o seu lugar. A maioria dos ditadores temem o fato de haver outros como eles, e tentam eliminá-los porque os vêem como concorrentes. Esse não é o caso com Davi. E não deveria ser assim com nenhum de nós.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 O termo “cananeus” é usado tanto em sentido mais estrito como de forma mais ampla quando se refere de modo geral aos habitantes de Canaã. Aqui parece acontecer a mesma coisa com o termo “amorreus”. O autor de Samuel parece usar o termo no sentido geral.
2 Em 1 Samuel 15:7, vemos que Saul se lembra de que os queneus ajudaram Israel na época do Êxodo, e por isso ele os poupa quando ataca os amalequitas. Será que ele simplesmente se esquece da aliança entre Israel e os gibeonitas? É difícil de acreditar.
3 Existe, é claro, uma questão dolorosa a respeito da relação de Jônatas com tudo isso. Ele não parece ter sido alguém que compactuaria com esse pecado, nem que manteria silêncio sobre isso se soubesse. Simplesmente não sabemos.
4 Aqui “filhos” é usado em sentido mais amplo, como em outros lugares, para incluir os cinco filhos de Merabe, os quais, na verdade, são netos de Saul.
5 Rispa é a concubina com quem Abner dormiu após a morte de Saul. Quando Isbosete o confrontou sobre isso, Abner transferiu sua lealdade para Davi (ver 2 Samuel 3:7 e ss).
6 Há algumas ironias muito estranhas aqui. Merabe era a filha mais velha de Saul, e Mical, a mais nova (1 Samuel 14:49). Saul ofereceu a primeira a Davi e depois retirou a oferta (1 Samuel 18:17-19). Mical, então, foi dada a Davi como esposa (1 Samuel 18:27) e depois tomada e dada a outro homem (1 Samuel 25:44); posteriormente ela voltou para Davi por insistência deste (2 Samuel 3:13-16). Ela nunca lhe deu filhos (2 Samuel 6:23), por isso, não foi envolvida na agonia de perdê-los.
7 O autor menciona somente Saul e Jônatas, mas em 1 Samuel 31 está escrito que ele e seus três filhos foram mortos. Presumo, então, que não é só Saul e Jônatas que têm um funeral apropriado, mas todos os três filhos.
8 Veja a passagem paralela em 1 Crônicas 20:4-8.
9 Observe o “depois disto” no verso 18.
10 O nome “Golias” não apresenta muitos problemas para nós. Acabamos de ler sobre dois Mefibosetes nos início do capítulo (versos 7 e 8). Esse Golias talvez tenha recebido o nome de seu pai, mas a passagem paralela de 1 Crônicas 20:5 o chama de “Lami, irmão de Golias”.
11 Por “este livro” estou me referindo ao único livro de Samuel do Velho Testamento hebraico, o qual está dividido em 1 e 2 Samuel na nossa Bíblia.
Conforme estudo os dois salmos de Davi em 2 Samuel 22 (inteiro) e 23 (versos 1 a 7), lembro-me de nossos queridos amigos Karl e Martha Lind. Karl atualmente1 está na casa dos 80 anos e está em uma casa de saúde com problemas do coração e falência renal. Ele enfrenta a doença com coragem, aguardando a partida para o lar celestial. Minhas lembranças dele são bem antigas, e algumas ainda estão muito vívidas em minha memória. Quando eu e Jeannette nos casamos, tínhamos muito pouco dinheiro, por isso, passamos a noite do quarto dia da nossa lua de mel no quarto de hóspedes da casa deles. Na manhã seguinte, Karl e Martha tinham preparado um belo café da manhã, e um de seus filhos, John, recebeu a tarefa de anunciá-lo pelo interfone. “O café da manhã será servido na sala de jantar em cinco minutos”, disse ele, com toda formalidade que, como adolescente, conseguiu reunir. Pouco depois, antes do botão do interfone tocar, ouviu-se um barulho terrível, como se todos os pratos do armário tivessem quebrado, e em seguida a voz de Karl – “John!”.
Karl é um excelente cozinheiro. Para descrever o jeito como alguém menos experiente fazia seu serviço, ele dizia: “Quando fumega, ‘tá cozinhando; quando queima, ‘tá pronto”. Há alguns anos, seu pastor fez uma pregação sobre administração, indo em seguida para a porta dos fundos para receber os cumprimentos da igreja. Quando Karl se aproximou dele, o pastor (vou chamá-lo de Chuck, para evitar constrangimentos) ficou na expectativa, aguardando algum comentário favorável sobre o seu sermão. Sem meias palavras, Karl olhou-o nos olhos e disse: “Chuck, da forma como vejo, seus sermões fazem um rombo de 25 pratas no meu bolso. E, francamente, nós dois sabemos que eles não valem isso”. Esse é Karl, o nosso querido amigo de muitos anos.
Karl desempenhou um papel significativo em outra lembrança da minha infância, a fundação de uma igreja em Auburn, Washington, Estados Unidos. Meus pais, ele, Martha e uma porção de outras pessoas tiveram o privilégio de participar da fundação daquela que foi chamada de “Igreja Batista Bíblica”. Na minha pré-adolescência, lembro-me nitidamente de ter participado de um culto fúnebre num pequeno salão (durante a oração dei uma espiada em volta, curioso para saber onde colocavam os corpos)2, o qual depois se transformou em um salão maior e, finalmente, no auditório que veio a se tornar o primeiro prédio da nossa igreja. Com a força dada por Deus no que parece ser o último capítulo da sua vida, Karl começou a registrar suas lembranças dos primórdios da Igreja Batista Bíblica de Auburn. No final da vida, ele está olhando para trás e traçando o curso da mão de Deus no passado.
É isso o que o rei Davi faz nos dois salmos do fim de 2 Samuel. O capítulo 22 registra suas reflexões, escritas no início do seu reinado sobre Israel3. Os primeiros sete versos do capítulo 23 são um segundo salmo; este talvez seja o último salmo de Davi. Dizem que essa reflexão inspirada no final do seu reinado contém suas últimas palavras como rei de Israel. Juntos, os dois salmos nos dão uma avaliação inspirada da ação de Deus sobre sua vida como rei de Israel, desde o início do seu reinado até seus últimos dias.
Como já disse — e como podem verificar pela maioria das traduções — as palavras do texto são poesia hebraica, dois salmos se quiserem. Na verdade, 2 Samuel 22 é literalmente idêntico ao Salmo 18, com pouquíssimas variações. Os dois salmos são cânticos de Davi4. Na realidade, 2 Samuel 22 é seu salmo mais antigo5. Tanto na forma quanto no conteúdo, eles não são novos ou originais, mas seguem a tradição dos salmos anteriores. Alguns deles são:
Mesmo uma leitura superficial dos cânticos acima mostrará sua semelhança com o salmo de Davi, objeto do nosso estudo. Em nosso texto, o salmo faz parte de uma narrativa histórica6. No livro dos Salmos (Salmo 18), este mesmo cântico é empregado como padrão para o culto de Israel, um padrão tão útil para nós como foi para os antigos israelitas. Ele foi registrado para ser cantado (talvez precise ser musicado, uma vez que a melodia já se perdeu), aprendido e proclamado no culto7. Em 2 Samuel 23:1-2, somos relembrados de que os salmos foram escritos sob inspiração do Espírito Santo. Eles devem ser levados a sério, não só pelos leitores antigos, mas também por nós.
Um salmo normalmente é visto como a essência ou a condensação de um conjunto mais complexo de verdades ou declarações. Nada contra, mas gostaria de salientar que um salmo também pode funcionar de outra forma. Às vezes, ele é a expansão de um pensamento simples, por meio de paralelismo e repetição. Por exemplo, Davi poderia simplesmente dizer que Deus é o nosso refúgio, mas em vez disso, nos versos 2 e 3, ele emprega oito figuras diferentes para descrever o Senhor. A mensagem do capítulo 22 é realmente muito simples e pode ser reduzida a umas poucas sentenças. Vou tentar fazê-lo, a fim de tornar a mensagem do salmo mais clara; em seguida, para apreciá-la, daremos mais consideração a esses versos.
1-3 |
Louvo a Deus, pois só Ele me mantém seguro. |
4-20 |
Quando O invoco, Ele me salva. Quando em perigo; clamei a Deus e Ele me ouviu, e me livrou. |
21-29 |
Deus me salvou por causa da minha justiça. |
30-46 |
Deus me salvou, dando-me força para lutar e prevalecer sobre meus inimigos. |
47-50 |
Louvado seja Deus! |
51 |
Deus salva o rei, o Seu Rei, o Seu Ungido. |
Quando eu estava estudando este texto, também li alguns sermões sobre esta passagem disponíveis na Internet, publicados pela Peninsula Bible Church, na Califórnia. Em geral, os sermões desse site têm metade dos meus (talvez porque eu leve o dobro do tempo para dizer a mesma coisa). Quando peguei as lições do Salmo 18, acho que a passagem foi dividida de forma a expor o salmo durante seis aulas. E pensar que vou fazer isso de uma só vez! Nesta lição, nossa tarefa principal será explanar a ideia central do salmo, evitando muitos detalhes, embora isso possa ser útil. Tentarei seguir o fluxo de pensamento de Davi para ver a quais conclusões o autor/rei inspirado nos leva.
Falou Davi ao SENHOR as palavras deste cântico, no dia em que o SENHOR o livrou das mãos de todos os seus inimigos e das mãos de Saul. E disse: O SENHOR é a minha rocha, a minha cidadela8, o meu libertador; o meu Deus, o meu rochedo em que me refugio; o meu escudo, a força da minha salvação, o meu baluarte e o meu refúgio. Ó Deus, da violência tu me salvas.
No primeiro verso, temos o contexto histórico deste cântico de Davi. O salmo foi escrito após Deus tê-lo livrado das mãos de seus inimigos e das mãos de Saul. Parece, então, que ele foi escrito logo após a morte de Saul e no início do reinado de Davi. Davi está no trono, e desse ponto privilegiado, ele medita sobre o cuidado gracioso de Deus sobre a sua vida em cumprimento à promessa de que ele seria rei de Israel.
O referido salmo começa com Davi louvando a Deus por quem Ele é — seu refúgio. Empregando uma porção de símbolos, ele fala de Deus como seu lugar seguro. Deus é sua rocha (ou penhasco, v. 2). Sem dúvida, Davi passou muito tempo nos penhascos, olhando lá do alto, sabendo que era praticamente inacessível a seus inimigos. Deus é sua “cidadela” e sua “fortaleza”. Ele é seu “escudo” e a “força da sua salvação”. Tais figuras não são meramente ilustrativas, são os próprios meios empregados por Deus para salvar a vida de Davi das mãos dos seus inimigos. E agora, Davi nos exorta a olhar para além dos meios empregados por Deus, para o próprio Deus. É Ele quem salva, Ele é o nosso protetor e libertador. Ele é o lugar da nossa salvação.
Invoco o SENHOR, digno de ser louvado, e serei salvo dos meus inimigos. Porque ondas de morte me cercaram, torrentes de impiedade me impuseram terror; cadeias infernais me cingiram, e tramas de morte me surpreenderam. Na minha angústia, invoquei o SENHOR, clamei a meu Deus; ele, do seu templo, ouviu a minha voz, e o meu clamor chegou aos seus ouvidos. Então, a terra se abalou e tremeu, vacilaram também os fundamentos dos céus e se estremeceram, porque ele se indignou. Das suas narinas, subiu fumaça, e, da sua boca, fogo devorador; dele saíram carvões, em chama. Baixou ele os céus, e desceu, e teve sob os pés densa escuridão. Cavalgava um querubim e voou; e foi visto sobre as asas do vento. Por pavilhão pôs, ao redor de si, trevas, ajuntamento de águas, nuvens dos céus. Do resplendor que diante dele havia, brasas de fogo se acenderam. Trovejou o SENHOR desde os céus; o Altíssimo levantou a sua voz. Despediu setas, e espalhou os meus inimigos, e raios, e os desbaratou. Então, se viu o leito das águas, e se descobriram os fundamentos do mundo, pela repreensão do SENHOR, pelo iroso resfolgar das suas narinas. Do alto, me estendeu ele a mão e me tomou; tirou-me das muitas águas. Livrou-me do forte inimigo, dos que me aborreciam, porque eram mais poderosos do que eu. Assaltaram-me no dia da minha calamidade, mas o SENHOR me serviu de amparo. Trouxe-me para um lugar espaçoso; livrou-me, porque ele se agradou de mim.
O verso 4 estabelece um princípio, fundamentado na verdade de que Deus é o refúgio de Davi (versos 2 e 3), e demonstrado nos vários livramentos proporcionados por Ele (versos 5-20). Nesse versículo, Davi não se limita a dizer, “invoquei o Senhor… e Ele me salvou”. De fato, ele diz, “toda vez que invoco o Senhor, Ele me salva”. Ele, então, continua a descrever com cenas dramáticas os perigos que correu (versos 5-6), e os livramentos dados pelo Senhor (versos 8-20) em resposta ao seu clamor (verso 7).
Davi usa a imagem de águas turbulentas para descrever como sua vida vinha sendo ameaçada pelos inimigos. Primeiro, ele descreve a si mesmo como alguém que está se afogando no mar revolto, não muito diferente de Jonas9. Em seguida, o quadro muda de se afogando para sendo arrastado pela correnteza (verso 5). Ele conta como quase foi cingido pelas cordas do Sheol (ou do túmulo; a ARA traduz como “infernais”), e surpreendido pela morte (verso 6). Com um último suspiro, ou na terceira vez em que está como se estivesse submergindo, ele conta como invocou o Senhor, e Ele, da Sua morada, ouviu seu clamor (verso 7).
Davi, então, descreve como Deus o salva com a figura de uma teofania (manifestação de Deus ao homem). Em diversos aspectos, as imagens usadas por Davi lembram a linguagem utilizada para descrever a aparição de Deus no Monte Sinai, quando Ele dá a Sua lei por intermédio de Moisés:
Ao amanhecer do terceiro dia, houve trovões, e relâmpagos, e uma espessa nuvem sobre o monte, e mui forte clangor de trombeta, de maneira que todo o povo que estava no arraial se estremeceu. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. Todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR descera sobre ele em fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente. E o clangor da trombeta ia aumentando cada vez mais; Moisés falava, e Deus lhe respondia no trovão. (Êxodo 19:16-19)
As palavras são semelhantes também às encontradas no “cântico” de Débora:
Saindo tu, ó SENHOR, de Seir, marchando desde o campo de Edom, a terra estremeceu; os céus gotejaram, sim, até as nuvens gotejaram águas. Os montes vacilaram diante do SENHOR, e até o Sinai, diante do SENHOR, Deus de Israel. (Juízes 5:4-5, ver também o Salmo 69:8 e Habacuque 3:3-15)
Davi invoca o Senhor, e Ele lhe responde de forma a assinalar Sua soberania sobre toda a criação. Quando Deus ouve o seu clamor, Ele responde, e Sua resposta é sancionada pela criação. Deus fica furioso por causa dos inimigos que colocam em perigo a vida do Seu rei ungido, e toda a criação reflete a Sua ira. Esta não é somente a descrição de um Deus que quer salvar Seu rei, mas a de um Deus cujo objetivo é destruir os inimigos que o ameaçam.
A primeira indicação de intervenção divina é um terremoto. Toda a terra se abala e treme (verso 8). Fumaça sobe das narinas de Deus, e o fogo da Sua boca devora tudo em seu caminho. Dela saem carvões em chama (verso 9). Quando Deus desce, os céus se prostram e Ele fica sobre a densa escuridão, um prenúncio sinistro das coisas do porvir (verso 10). Ele anda sobre as asas do vento e nuvens espessas e trevas estão ao Seu redor, e um brilho incandescente se irradia adiante dEle (versos 12-13). A voz de Deus é ouvida no som do trovão, e os relâmpagos desferem raios como setas (versos 14-15). Diante da Sua aproximação, os mares se abrem, a terra abaixo fica exposta ante a Sua repreensão e o resfolgar das Suas narinas (verso 16). Deus estende a mão e tira Seu servo das águas, livrando-o do forte inimigo, colocando-o num lugar espaçoso em terra firme. Embora os inimigos de Davi sejam mais fortes, Deus o livra das suas mãos. Ele é o amparo10 de Davi quando eles o confrontam.
Retribuiu-me o SENHOR segundo a minha justiça, recompensou-me conforme a pureza das minhas mãos. Pois tenho guardado os caminhos do SENHOR e não me apartei perversamente do meu Deus. Porque todos os seus juízos me estão presentes, e dos seus estatutos não me desviei. Também fui inculpável para com ele e me guardei da iniquidade. Daí, retribuir-me o SENHOR segundo a minha justiça, segundo a minha pureza diante dos seus olhos. Para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro. Com o puro, puro te mostras; com o perverso, inflexível. Tu salvas o povo humilde, mas, com um lance de vista, abates os altivos.
Quando Deus deu a Israel a lei de Moisés, Ele deixou bem claro que a obediência traria bênçãos (Deuteronômio 28:1-4), mas a desobediência, maldição e desastre (28:15-68)11. Davi era um homem segundo o coração de Deus. Com poucas exceções (ver 1 Reis 15:5), ele amava a lei de Deus, e vivia de acordo com ela. Ele entendia que quem se aproxima de Deus é quem guarda a Sua lei:
Quem, SENHOR, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? O que vive com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade; o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança injúria contra o seu vizinho; o que, a seus olhos, tem por desprezível ao réprobo, mas honra aos que temem ao SENHOR; o que jura com dano próprio e não se retrata; o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente. Quem deste modo procede não será jamais abalado. (Salmo 15)
Quem subirá ao monte do SENHOR? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade, nem jura dolosamente. Este obterá do SENHOR a bênção e a justiça do Deus da sua salvação. (Salmo 24:3-5)
Davi acreditava, assim como todos os israelitas fiéis, que Deus vai punir os ímpios e salvar os justos que nEle se refugiam:
Vi um ímpio prepotente a expandir-se qual cedro do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi encontrado. Observa o homem íntegro e atenta no que é reto; porquanto o homem de paz terá posteridade. Quanto aos transgressores, serão, à uma, destruídos; a descendência dos ímpios será exterminada. Vem do SENHOR a salvação dos justos; ele é a sua fortaleza no dia da tribulação. O SENHOR os ajuda e os livra; livra-os dos ímpios e os salva, porque nele buscam refúgio. (Salmo 37:35-40)
Na lei de Moisés, Deus deixou claro a Seu povo que Ele os abençoaria enquanto confiassem nEle e guardassem a Sua lei (ver Deuteronômio 7:12-16). Por outro lado, também ficou claro que a justiça alcançada por suas próprias obras não seria base para a graça de Deus:
Quando, pois, o SENHOR, teu Deus, os tiver lançado de diante de ti, não digas no teu coração: Por causa da minha justiça é que o SENHOR me trouxe a esta terra para a possuir, porque, pela maldade destas gerações, é que o SENHOR as lança de diante de ti. Não é por causa da tua justiça, nem pela retitude do teu coração que entras a possuir a sua terra, mas pela maldade destas nações o SENHOR, teu Deus, as lança de diante de ti; e para confirmar a palavra que o SENHOR, teu Deus, jurou a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó. Sabe, pois, que não é por causa da tua justiça que o SENHOR, teu Deus, te dá esta boa terra para possuí-la, pois tu és povo de dura cerviz. (Deuteronômio 9:4-6)
Davi não se esqueceu de que era pecador e precisava de perdão e graça:
Não há parte sã na minha carne, por causa da tua indignação; não há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado. Pois já se elevam acima de minha cabeça as minhas iniqüidades; como fardos pesados, excedem as minhas forças. Tornam-se infectas e purulentas as minhas chagas, por causa da minha loucura. (Salmo 38:3-5)
Ele compreendia que Deus salva o justo e condena o ímpio. É por isso que Deus ouve o seu clamor e o socorre dos vis inimigos. Não só Deus salva o justo, Ele salva o aflito, enquanto condena o soberbo.
Mais tarde voltaremos à questão da retidão de Davi; por enquanto, lembro-me de que o pecado de Saul e sua casa sanguinária resultaram em três anos consecutivos de fome em Israel. Só depois do pecado ter sido expiado, Deus ouviu novamente as orações do Seu povo e retirou a fome (ver 2 Samuel 21). É por isso que Davi acredita que se confiar em Deus e obedecê-lO, Ele ouvirá suas preces.
Tu, SENHOR, és a minha lâmpada; o SENHOR derrama luz nas minhas trevas. Pois contigo desbarato exércitos, com o meu Deus, salto muralhas. O caminho de Deus é perfeito; a palavra do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam. Pois quem é Deus, senão o SENHOR? E quem é rochedo, senão o nosso Deus? Deus é a minha fortaleza e a minha força e ele perfeitamente desembaraça o meu caminho. Ele deu a meus pés a ligeireza das corças e me firmou nas minhas alturas. Ele adestrou as minhas mãos para o combate, de sorte que os meus braços vergaram um arco de bronze. Também me deste o escudo do teu salvamento, e a tua clemência me engrandeceu. Alongaste sob meus passos o caminho, e os meus pés não vacilaram. Persegui os meus inimigos, e os derrotei, e só voltei depois de haver dado cabo deles. Acabei com eles, esmagando-os a tal ponto, que não puderam levantar-se; caíram sob meus pés. Pois de força me cingiste para o combate e me submeteste os que se levantaram contra mim. Também puseste em fuga os meus inimigos, e os que me odiaram, eu os exterminei. Olharam, mas ninguém lhes acudiu, sim, para o SENHOR, mas ele não respondeu. Então, os moí como o pó da terra; esmaguei-os e, como a lama das ruas, os amassei. Das contendas do meu povo me livraste e me fizeste cabeça das nações; povo que não conheci me serviu. Os estrangeiros se me sujeitaram; ouvindo a minha voz, me obedeceram. Sumiram-se os estrangeiros e das suas fortificações saíram espavoridos.
Davi louva a Deus por Ele ser seu libertador e seu refúgio (versos 2-3). Quando ele invoca a Deus pedindo socorro, Deus o ouve e responde (verso 4) de forma a mostrar a Sua santidade e a sua ira contra os ímpios que se opõem ao Seu servo e ao Seu poder soberano (versos 5-20). Deus livra Davi dos seus inimigos porque ele é justo e eles são perversos (versos 21-28). Talvez concluamos, pelo que foi dito, que se “a salvação vem do Senhor”, nós não precisamos fazer nada. Devemos, então, ficar sentados, de braços cruzados, vendo Deus fazer tudo? Às vezes, é exatamente isso o que Ele quer de nós, que nos lembremos de que é Ele quem nos dá a vitória. Foi assim no êxodo, quando Deus afogou os egípcios no Mar Vermelho. Mas, com frequência, Ele terá um papel para desempenharmos no Seu livramento. Neste caso, Ele é quem nos dará força e capacidade para vencermos o inimigo. Davi enfrentou Golias e prevaleceu, mas foi Deus quem lhe deu a vitória. Nos versos 30 a 46, Davi fala da capacitação divina, a qual lhe deu forças para enfrentar seus inimigos e prevalecer sobre eles.
A força de Deus não é adicionada à nossa força; Sua força é dada em lugar da nossa fraqueza. É por isso que Davi começa com esta declaração:
Tu, SENHOR, és a minha lâmpada; o SENHOR derrama luz nas minhas trevas. (verso 29)
Deus derrama luz nas trevas de Davi. Deus o fortalece na sua fraqueza. É justamente isso o que Paulo ensina no Novo Testamento:
E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte. (2 Coríntios 12:7-10)
Davi descreve a força dada por Deus em termos de um combate de guerra. A força de Deus o capacita a saltar muralhas e a esmagar ou desbaratar uma tropa de homens (verso 30). A força militar começa na mente. Davi teve a coragem moral para enfrentar Golias, assim como a habilidade dada por Deus para derrubá-lo com sua funda. A base para essa força corajosa (vamos chamá-lo pelo que ela é — fé) é a Palavra de Deus. Ela é a fonte da sua fé, a qual o capacita a lutar. Sua palavra para nós é sobre Deus, a nossa rocha e o nosso refúgio (versos 31-33). Deus não apenas coloca Davi nos altos lugares (pontos militares estratégicos), Ele também dá a ele a estabilidade que lhe permite lutar dessa posição (verso 34). Deus é aquele que adestra as mãos de Davi para o combate, quem lhe dá força para vergar um arco de bronze (verso 35). Ele lhe dá o escudo da Sua salvação, e depois lhe dá firmeza para resistir e lutar (versos 36-37).
Todas essas coisas permitem a Davi ter êxito na perseguição dos seus inimigos a fim de que eles façam meia volta e fujam (verso 38). No entanto, eles não escapam, pois Deus lhe dá condições de destruir (moer, verso 43) quem se opõe a ele (versos 39-43). Alguns dos inimigos de Davi — talvez até mesmo muitos deles — parecem ser camaradas israelitas, mas seus inimigos e aliados também incluem os gentios. Nos versos finais do salmo, os gentios se tornam mais proeminentes. Ao livrar Davi das contendas do seu próprio povo (verso 44), Deus também incute terror no coração dos outros povos (os gentios). Em decorrência disso, Deus não só estabelece Davi como rei de Israel, mas também faz as demais nações se sujeitarem a ele. Os gentios temem Davi, e se sua sujeição não é genuína, pelo menos eles fingem ser leais a ele (versos 44-45). Eles desistem e saem espavoridos das suas fortalezas (verso 46).
Vive o SENHOR, e bendita seja a minha Rocha! Exaltado seja o meu Deus, a Rocha da minha salvação!12 O Deus que por mim tomou vingança e me submeteu povos; o Deus que me tirou dentre os meus inimigos; sim, tu que me exaltaste acima dos meus adversários e me livraste do homem violento. Celebrar-te-ei, pois, entre as nações, ó SENHOR, e cantarei louvores ao teu nome.
Deus é refúgio e defensor de Davi. Quando ele clama por socorro, Deus o ouve e socorre. Deus moverá céus e terra para ajudá-lo, embora às vezes Ele o salve dando-lhe forças para confrontar seus inimigos e derrotá-los. Agora chegamos ao ponto onde as coisas ficam muito interessantes. Quem são, exatamente, os inimigos de Davi? E quem são aqueles com quem ele vai louvar a Deus? Os judeus fanáticos teriam a resposta na ponta da língua: “Os amigos de Davi são os judeus, os quais se juntarão a ele para adorar a Deus; os gentios são inimigos de Deus, e merecem ser reduzidos a pó”. Mas, de modo algum, é isso o que Davi diz.
Ele indica claramente que vários de seus inimigos são pessoas do seu próprio povo (ver verso 44a), e que há gente entre as nações sujeitas a ele que cultuará a Deus com ele (verso 44b). A afirmação mais clara está no verso 50:
Celebrar-te-ei, pois, entre as nações, ó SENHOR, e cantarei louvores ao teu nome.
Alguns dos judeus se opõem a Deus, opondo-se a Davi. Alguns dos gentios são aqueles com quem Davi celebra a Deus como o grande Libertador. Para não pensarem que estou extrapolando o texto, permitam-me lembrar que este é precisamente o enfoque de Paulo, quando usa este texto como uma de suas provas:
Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus. Digo, pois, que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais; e para que os gentios glorifiquem a Deus por causa da sua misericórdia, como está escrito: POR ISSO, EU TE GLORIFICAREI ENTRE OS GENTIOS E CANTAREI LOUVORES AO TEU NOME. E também diz: ALEGRAI-VOS, Ó GENTIOS, COM O SEU POVO. E ainda: LOUVAI AO SENHOR, VÓS TODOS OS GENTIOS, E TODOS OS POVOS O LOUVEM. Também Isaías diz: HAVERÁ A RAIZ DE JESSÉ, AQUELE QUE SE LEVANTA PARA GOVERNAR OS GENTIOS; NELE OS GENTIOS ESPERARÃO. (Romanos 15:7-12)
Será que Deus é o libertador, o refúgio de Davi? Sim. Mas Ele é também o refúgio e o libertador de todos aqueles que confiam nEle, inclusive dos gentios. Quem se coloca contra o rei de Deus (Davi, ou Messias) é inimigo de Deus, e será reduzido a pó pelo rei de Deus.
É Ele quem dá grandes vitórias ao Seu rei e usa de benignidade para com o Seu ungido, com Davi e sua posteridade, para sempre.13
A conclusão de Davi é cheia de esperança e expectativa. Ele é o rei ungido de Deus, mas seu reinado está prestes a acabar. Deus provou ser sua “torre de libertação”, mas isso não vai cessar, devido à aliança feita por Deus com ele, uma aliança que teria um trono eterno:
Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. (2 Samuel 7:12-16, ênfase do autor)
Estará Davi seguro por ser Deus o seu refúgio? Sim, no final deste verso, ele revela que sua confiança e sua segurança são muito mais duradouras do que a sua própria vida terrena. Ele sabe que, assim como Deus tem sido benevolente para com ele, Ele também será para com seus descendentes, por isso, as bênçãos das quais fala são eternas. Deus não apenas mantém Sua promessa a Davi, protegendo-o de quem tenta destruí-lo, e fazendo-o assentar-se no trono, mas Ele também irá instalar Aquele que cumpre a aliança davídica, o Seu Ungido, o Messias.
Ao concluir esta mensagem, muitas coisas me impressionam quando medito neste salmo.
Primeiro, vejo os “sucessos” de Davi basicamente como feitos de Deus. Quando Davi medita em sua ascensão ao trono, ele compreende que sua escalada ao poder e à proeminência foi devido à graça divina. Ele recorda os perigos em que esteve, quando a morte parecia certa e inevitável, e louva a Deus como o seu resgatador, o seu refúgio, a sua fonte de força e sucesso. Não é como se ele não tivesse feito nada, esperando Deus fazer tudo; antes, apesar das suas ações, Davi sabe que foi Deus quem preservou sua vida e o promoveu a rei de Israel. Davi, aqui, ilustra a verdadeira humildade. Vamos aprender com ele. Se alguém da sua posição e com a sua força espiritual pode dar glória a Deus, com certeza nós também podemos. Como diz Paulo:
Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido? (1 Coríntios 4:7)
Segundo, vejo os sucessos de Davi como resultado das suas adversidades e aflições, muitas das quais foram causadas por seus inimigos. Davi louva a Deus pela Sua salvação. Muitas vezes, essa “salvação” foi física (Deus salvou a vida de Davi). Quando olhamos para os evangelhos, encontramos a mesma coisa. A “salvação” fundamental é aquela que nos livra da condenação eterna e viabiliza o perdão dos nossos pecados por meio do sangue de Jesus Cristo, garantindo-nos a vida eterna. Mas, por toda parte nos evangelhos, nosso Senhor é visto “salvando” pessoas em um sentido mais amplo, o que apenas reforça a Sua reivindicação de ser um Salvador maior do que isso.
No Novo Testamento, a palavra grega para salvar é empregada para uma grande variedade de “salvações”. A mesma palavra (raiz) é utilizada para “salvar” os discípulos da tempestade no mar (Mateus 8:25), para curar a mulher com hemorragia (Mateus 9:21-22), para não deixar Pedro afundar quando ele andava sobre as águas (Mateus 14:30), para atender ao pedido de Jairo de “cura” da sua filha (Marcos 5:23), para curar enfermidades de todos os tipos (Marcos 6:56), para restaurar a vista de um cego (Marcos 10:52) e para expulsar demônios (Lucas 8:36).
A lição a ser aprendida é que Deus é o nosso Salvador em muitos aspectos, sendo o maior deles a salvação proporcionada pelo sangue derramado de Jesus. A primeira e mais importante maneira de podermos experimentar a salvação de Deus é recebendo o dom da salvação da culpa e da pena pelos nossos pecados, crendo na morte sacrificial, no sepultamento e na ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. E então, dia após dia, precisamos olhar para Ele como nosso Libertador, nossa Fortaleza e nosso Refúgio, sob cuja guarda e cuidado estamos eternamente seguros.
É nesse contexto de sofrimento e adversidade que experimentamos a graça salvífica de Deus (2 Coríntios 12:7-10). Se for assim (e com certeza é), então devemos ver as nossas aflições de uma forma bem diferente. Embora não nos agradem, elas produzem o doce fruto da intervenção divina e a alegria de uma comunhão mais íntima com nosso Senhor (Filipenses 3:10). Não é à toa que o Senhor tenha dito: “Bem-aventurados os que choram…” (Mateus 5:4).
Terceiro, o livramento dos justos ocorre quando Deus manifesta a Sua ira. Davi fala do perigo vindo de quem é seu inimigo, de quem procura a sua morte (22:18-19, 38-46). Quando Deus é descrito indo em seu auxílio nos versos 8 a 16, Ele vai com toda a natureza a Seu comando. Ele anda, por assim dizer, sobre as asas do vento (verso 11); Ele usa trovões e relâmpagos (versos 14-15), e terremotos (verso 8). Tudo isso é manifestação da ira de Deus aos pecadores que se opõem a Ele quando se opõem ao Seu rei escolhido (ver verso 8). Deus livra o Seu servo, defendendo-o e derrotando seus inimigos.
Davi não fala sobre a salvação de Deus sem considerar também a Sua condenação. Deus o salva, destruindo os seus inimigos. Não existe nada mais assustador do que se encontrar em oposição a um Deus santo e justo. Não há nada mais aterrorizante do que se chegar à conclusão — tarde demais — de que se está contra o ungido de Deus, contra o “filho” de Deus (ver 2 Samuel 7:12-16). Se foi assim para os inimigos de Davi, imagine como será para quem rejeita Jesus Cristo, o “filho de Davi” e “Filho de Deus”. Não há nada pior do que se rebelar contra Deus, rejeitando o Seu Filho.
Quarto, nosso texto certamente fala de alguém superior a Davi. Quando lemos o Salmo 22, percebemos que, embora o salmo tenha sido escrito por Davi, que estava sofrendo às mãos de seus inimigos, há coisas no texto que só podem estar falando de Cristo, o descendente de Davi. O mesmo se aplica ao Salmo 18 (2 Samuel 22). Em última análise, é o “Filho de Davi”, Jesus Cristo, quem está sendo descrito.
Como disse Calvino, “muita coisa neste salmo tem mais a ver com Cristo do que com Davi; e em Romanos 15:9, Paulo não precisou de outro argumento para embasar o seu entendimento do verso 49 (Salmo 18; verso 50 em 2 Samuel) como parte de uma profecia sobre o Messias”.14
Jesus Cristo, o Filho de Deus, foi rejeitado pelos ímpios, os quais O condenaram à morte. É Jesus quem Deus resgata da morte quando O ressuscita dentre os mortos. Serão os inimigos de nosso Senhor que o Pai destruirá quando enviar Seu Filho de volta a terra. O cântico de Davi é justamente sobre isso — um salmo que anseia pelo tempo em que o “trono eterno” for estabelecido sobre a terra, quando os inimigos de nosso Senhor serão reduzidos a pó e punidos, enquanto aqueles que creem nEle serão salvos. Que dia será esse! A alegria da Sua salvação será igualada pelo terror da Sua justa ira.
Quinto, se Deus é o nosso refúgio, então não é preciso temer. Muitas vezes vejo aquele adesivo de para-choque (na verdade, é mais comum no vidro traseira de uma caminhonete) que diz: Não tenho medo. Não tenho muita certeza do que isso significa para quem o usa. Seria “você não me assusta, por isso, não se meta comigo”, ou “ando sempre com uma arma carregada?” Seja qual for o sentido, não tem nem comparação com as palavras de nosso Senhor, “não temais”. Não há nada neste mundo que se compare à segurança e à proteção dos santos:
Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco; não vos deixará, nem vos desamparará. (Deuteronômio 31:6)
Eu vi que o povo estava preocupado e por isso disse a eles, e às suas autoridades, e aos seus oficiais: - Não tenham medo dos nossos inimigos. Lembrem como Deus, o Senhor, é grande e terrível e lutem pelos seus patrícios, pelos seus filhos, suas esposas e seus lares. (Neemias 14:4, Almeida Atualizada)
Não tenho medo de milhares do povo que tomam posição contra mim de todos os lados. (Salmo 3:6)
Em Deus, cuja palavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer um mortal? (Salmo 56:4)
Neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o homem? (Salmo 56:11)
O SENHOR está comigo; não temerei. Que me poderá fazer o homem? (Salmo 118:6)
Eis que Deus é a minha salvação; confiarei e não temerei, porque o SENHOR Deus é a minha força e o meu cântico; ele se tornou a minha salvação. (Isaías 12:2)
Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar, diz o SENHOR. (Jeremias 1:8)
Não temais o rei da Babilônia, a quem vós temeis; não o temais, diz o SENHOR, porque eu sou convosco, para vos salvar e vos livrar das suas mãos. (Jeremias 42:11)
Mas Jesus imediatamente lhes disse: Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais! (Mateus 14:27)
Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; (Atos 18:9)
Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito: DE MANEIRA ALGUMA TE DEIXAREI, NUNCA JAMAIS TE ABANDONAREI. Assim, afirmemos confiantemente: O SENHOR É O MEU AUXÍLIO, NÃO TEMEREI, QUE ME PODERÁ FAZER O HOMEM? (Hebreus 13:5-6)
Para quem conhece Jesus Cristo e crê nEle como seu Salvador, não há nada a temer. Não é preciso temer o julgamento de Deus, pois a nossa punição foi suportada por nosso Salvador. Não é preciso temer as necessidades, pois Ele prometeu cuidar de nós. Não é preciso temer qualquer circunstância da vida, pois Ele é por nós. Que esta seja a sua confiança, na medida em que você crer na salvação de Deus, Jesus Cristo.
Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: POR AMOR DE TI, SOMOS ENTREGUES À MORTE O DIA TODO, FOMOS CONSIDERADOS COMO OVELHAS PARA O MATADOURO. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8:31-39)
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 NT: na época em que Mr. Deffinbaugh escreveu este estudo
2 Quando contei a Karl sobre minhas lembranças daquele velório, ele me disse que sua esposa, Martha, dava aulas na Escola Dominical numa sala do outro lado do corredor da sala de embalsamamento, de modo que a classe estava sempre sentido cheiro de formol.
3 O texto nos diz que este salmo é uma resposta de Davi aos livramentos de Deus da mão de seus inimigos e da mão de Saul. Por isso, estou presumindo que tenha sido escrito no início de seu reinado, logo após a morte de Saul. Confirmações adicionais da minha suposição vêm do fato de que alguns teólogos acreditam que este salmo seja um dos mais antigos de Davi.
4 “Além de ser a citação mais longa atribuída a Davi (365 palavras em hebraico) e exibir uma rica variação de vocabulário, a seção tem os mesmos moldes da estrutura formal, um exemplo clássico da poesia hebraica”. Robert D. Bergen, 1 e 2 Samuel (Broadman and Holman Publishers, 1996), p. 450.
5 O cântico de Habacuque não é o mais antigo. No entanto, ele se assemelha ao salmo de Davi, como se o profeta não só estivesse familiarizado com ele, mas também o tivesse tomado de empréstimo.
6 Bergen chama a atenção para a posição relevante dada ao salmo no final de 2 Samuel: “A presente seção é claramente uma das passagens de destaque de 2 Samuel, sendo realçada de pelo menos três maneiras. Primeira, a passagem — junto com 22:1-51 — foi colocada no centro da estrutura quiástica do apêndice: por isso, funciona como parte do tema principal dessa porção de 1 e 2 Samuel. Segunda, foi designada como “oráculo”, uma categoria especial da fala reservada para declarações proféticas de importância incomum. Finalmente, foi imortalizada como o enunciado final do “homem exaltado pelo Altíssimo” que se tornou o maior rei de Israel. Bergen, p. 464-465.
7 “Há um relato de que Atanásio, notável líder cristão do século IV, declarou que os Salmos possuem um lugar especial na Bíblia porque a maior parte das Escrituras fala para nós, enquanto os Salmos falam por nós.” Citado por Bernard Anderson, Das Profundezas: Hoje os Salmos Falam por Nós (Filadélfia: The Westminster Press), p. x.
8 “Cidadela (2) é a palavra usada para a caverna de Adulão (1 Samuel 22:1-5, cf. 23:14, 19, 29), e para o forte jebuseu que se tornou a “cidade de Davi” (5:9)”. Robert P. Gordon, I & II Samuel: Comentário (Grand Rapids: Regency Reference Library, Zondervan Publishing House, 1986), p. 304.
9 Seria estranho pensar que Jonas parece ter emprestado as palavras de Davi para descrever a sua própria situação quando estava no mar (compare 2 Samuel 22:5 com Jonas 2:3-5)?
10 “No verso 19, Davi muda o ambiente poético do mar para a campina, baseando-se na sua própria história pastoril. Neste verso, ele poeticamente descreve o Senhor como seu “cajado” (v. 19: ARA, “amparo”). O termo empregado aqui… se refere à grande vara com a parte superior encurvada usada pelos pastores para tirar as ovelhas do perigo ou afastá-las do caminho errado”. Bergen, p. 456.
11 “...este salmo pode ser visto como uma reafirmação do tema central da Torá — a obediência ao Senhor resulta em bênçãos. Portanto, sua mensagem pode ser resumida desta forma: Uma vez que Davi obedecia escrupulosamente ao Senhor, o Senhor o recompensou atendendo suas súplicas, livrando-o nos tempos de crise e exaltando-o. Por isso, o Senhor deve ser louvado”. Robert D. Bergen, 1 & 2 Samuel (Broadman and Holman Publishers, 1996), p. 451.
12 “As referências ao Senhor como a Rocha, as declarações de que Deus ‘se vinga’ (literalmente, ‘dá a vingança a’) dos inimigos de Davi e a afirmação de que ‘o Senhor vive’ ligam esta parte final do último cântico de Davi à última parte do cântico de Moisés, especialmente Deuteronômio 32:31-43. A semelhança no vocabulário e no assunto sugere que o escritor tentou conscientemente produzir um eco e um paralelo entre o último cântico de Moisés e o último cântico de Davi”. Bergen, p. 462.
13 “Há uma semelhança notável entre o final do cântico de Ana (1 Samuel 2:10) e o verso final do cântico de Davi. Ambos falam do Senhor dando assistência ao “seu rei” e ao “seu ungido”, e mencionam os dois substantivos na mesma ordem. Ao mesmo tempo, há uma notável diferença — Davi chama a si mesmo e aos seus descendentes de reis do Senhor, enquanto Ana não faz tal menção. O efeito resultante desse contraste aparentemente intencional é a afirmação de que a casa de Davi é, de fato, o cumprimento da profecia de Ana”. Bergen, p. 463
“Quanto ao tema, o salmo ecoa e amplia o cântico de Ana (1 Samuel 2:1-10). Cada clímax com uma referência à fidelidade de Yahweh ao seu rei ungido, mas com a diferença de que, com o cumprimento da profecia dinástica (2 Sm. 7:8-16), agora toda a descendência de Davi é objeto do Seu favor. De forma apropriada, a seção seguinte retoma o tema da “aliança eterna” entre Yahweh e Davi (cf. 2 Sm. 23:5)”. Gordon, p. 309
14 Derek Kidner, Salmos 1 a 72: Introdução e Comentário (Drowners Grove: Inter-Varsity Press, 1973), v. 1, p. 90.
Em minha última mensagem, falei sobre meu amigo Karl Lind, o qual está esperando para estar com o Senhor. Liguei para ele na semana passada e lhe disse que eu e minha esposa estávamos pensando nele e orando por ele. Também lhe disse que falei sobre ele na introdução do meu sermão; depois relembramos os “bons tempos” do início da Igreja Batista Bíblica e do nosso encontro num velório. Mencionei que, quando menino, eu ficava sempre olhando em volta, perguntando-me onde ficavam os corpos. “Isso não é nada”, disse ele, “Marta (sua esposa) costumava dar as aulas da Escola Dominical na classe do outro lado do corredor da sala de embalsamamento. Toda vez que tínhamos aula, a gente ficava sentindo cheiro de formol.”
Na verdade, um pouco de cheiro de formol de vez em quando talvez seja bom para nos lembrar da nossa mortalidade. Há pouco tempo, quando minha esposa e eu viajávamos pela Costa Leste dos Estados Unidos, vimos uma porção de igrejinhas pitorescas, muitas das quais tinham um cemitério ao lado. É muito triste que uma cidade grande como Dallas não tenha mais esse tipo de coisa, pois a morte e o evangelho devem estar estreitamente ligados. Toda vez que formos à igreja, deveríamos nos lembrar da inevitabilidade da morte, e toda vez que formos a um enterro, deveríamos considerar a morte à luz do evangelho de Jesus Cristo.
Joe Bayly, já falecido, escreveu o livro A Visão de Dentro do Carro Fúnebre, uma leitura excelente sobre o cristão e a morte. Quando foi reeditado, o livro recebeu um novo título; creio que é A Última Coisa Sobre a Qual Falamos. Gosto mais do primeiro, pois acho que todos nós deveríamos ver a vida da perspectiva de um carro funerário. Homens e mulheres quando estão perto da hora da morte geralmente têm prioridades muito diferentes. Vi um filme no qual Malcolm Muggeridge estava num cemitério, diante do túmulo da sua família. Se não me engano, suas palavras foram mais ou menos estas: “Estou aqui, onde minha família está enterrada, sabendo que logo me juntarei a eles. Devo dizer que, quando olho para o passado, percebo que as coisas que eu mais temia na minha juventude tiveram um papel muito importante e útil na minha vida. Por outro lado, aquilo que eu considerava mais necessário, acabou sendo de pouco valor ou utilidade para mim”.
Muitas pessoas na terceira idade fazem um retrospecto da sua vida e veem as coisas de modo diferente. Davi está naquele grupo menor, de quem está na terceira idade e vê as coisas não somente em termos do passado, mas também em termos do seu futuro eterno.1 O salmo dos sete primeiros versos de 2 Samuel 23 é uma espécie de “visão de dentro do carro fúnebre”.2 Considera-se que este seja o registro das suas últimas palavras (verso 1). Ao se aproximar da hora da morte, Davi se recorda da sua vida pregressa e anseia pelo seu futuro eterno.
O salmo no início de 2 Samuel 23 pode parecer sem ligação ou relação com o restante do capítulo, o qual nomeia e exalta os valentes que contribuíram de forma significativa para o sucesso de Davi. Na verdade, creio que as duas seções estejam estreitamente ligadas, conforme veremos em breve. Por enquanto, deixem-me simplesmente dizer que o capítulo todo fala de grandiosidade. Nos versos 1 a 7, vemos como se faz um grande rei. Nos versos 8 a 39, dois grupos de valentes são mencionados, os “três” e os “trinta”. Pela descrição da sua conduta heróica, podemos ver como esses homens se tornaram grandes aos olhos de Deus.
Estamos nos aproximando da conclusão de 2 Samuel (que na Bíblia hebraica é apenas “Samuel”, pois 1 e 2 Samuel formavam um único livro). Na verdade, os capítulos 21 a 24 são uma unidade, um epílogo que o autor usa como conclusão. Vamos aprender como são feitos os grandes homens de Deus. Vamos ouvir e entender o que o autor vem tentando nos ensinar ao longo do livro.
São estas as últimas palavras de Davi: Palavra de Davi, filho de Jessé, palavra do homem que foi exaltado, do ungido do Deus de Jacó, do mavioso salmista de Israel. O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua. Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel a mim me falou: Aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo bem definida e segura. Não me fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?4 Porém os filhos de Belial serão todos lançados fora como os espinhos, pois não podem ser tocados com as mãos, mas qualquer, para os tocar, se armará de ferro e da haste de uma lança; e a fogo serão totalmente queimados no seu lugar.
Como indicado no verso 1, as palavras deste salmo são as últimas de Davi, não no sentido de que ele tenha falado e morrido em seguida5, sem dizer mais nada, mas talvez no sentido de que foram suas últimas palavras registradas na forma de salmo. Pessoalmente, estou inclinado a seguir a pontuação da NASB, a qual abre aspas no verso 2, não no verso 1. Se compreendo os tradutores (e, mais importante, o texto), o autor de 2 Samuel usa o verso 1 como introdução. Não é Davi que se refere a ele mesmo em termos tão elevados (“homem que foi exaltado”, “mavioso salmista de Israel”), mas o escritor. Davi foi tudo o que o verso 1 afirma sobre ele, mas não é ele quem nos relembra desse fato, pelo menos da forma como leio o texto.
De origem humilde como o filho mais novo de Jessé, homem sem grande importância em Israel, Davi é exaltado por Deus. Ele é o “ungido”, o rei, o qual é a descendência de Jacó ou Israel. De certa forma, ser descendente de Jacó não era nada do que se gabar, mas a observação liga Davi à aliança abraâmica (Gênesis 12:1-3, etc) e à promessa de que o Messias (o ungido) viria por intermédio de Judá, filho de Jacó (Gênesis 49:8-10).
As palavras de Davi, então, têm início no verso 2. Ele começa ressaltando o fato de que suas palavras não são meramente suas, mas que transmitem a própria palavra de Deus, ditas a ele e por meio dele. Davi as atribui ao Espírito Santo, o qual fala por intermédio dele. Isso é coerente com o que o Novo Testamento diz sobre ele e outros autores do Antigo Testamento:
Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam. A eles foi revelado que, não para si mesmos, mas para vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho, coisas essas que anjos anelam perscrutar. (1 Pedro 1:10-12)
Sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo. (2 Pedro 1:20-21)
Irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam Jesus. (Atos 1:16)
E, por isso, suas palavras seguintes são as próprias palavras de Deus, não de uma forma diferente do restante das Escrituras inspiradas, mas de uma forma que vê essas palavras, como todas as demais das Escrituras, como palavra de Deus. Deus disse a Davi como deve ser o governo de um rei. O rei de Deus é alguém que deve governar com retidão. Esse governo é resultado de um temor justo e saudável de Deus (verso 3). Os reis pagãos pensam principalmente em termos de ser superior aos outros; o rei de Deus pensa em ser submisso a Deus. Isso fica muito claro no derradeiro rei, nosso Senhor Jesus Cristo:
Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo, porque não procuro a minha própria vontade, e sim a daquele que me enviou. (João 5:30)
Então, Jesus foi com eles. E, já perto da casa, o centurião enviou-lhe amigos para lhe dizer: Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa. Por isso, eu mesmo não me julguei digno de ir ter contigo; porém manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado. Porque também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados às minhas ordens, e digo a este: vai, e ele vai; e a outro: vem, e ele vem; e ao meu servo: faze isto, e ele o faz. Ouvidas estas palavras, admirou-se Jesus dele e, voltando-se para o povo que o acompanhava, disse: Afirmo-vos que nem mesmo em Israel achei fé como esta. (Lucas 7:6-9, ênfase do autor)
Colocando em termos bíblicos, o rei de Deus é chamado de filho de Deus (ver 2 Samuel 7:14; Salmo 2:7), não no sentido de ser Seu descendente, mas no sentido de estar sujeito ao Pai.
O fruto de um reino justo é a bênção do povo. O governo de um rei perverso é tristeza para o reino:
Como leão que ruge e urso que ataca, assim é o perverso que domina sobre um povo pobre. (Provérbios 28:15)
Quando se multiplicam os justos, o povo se alegra, quando, porém, domina o perverso, o povo suspira. (Provérbios 29:2)
Por isso, vemos a ênfase das Escrituras na necessidade de os reis reinarem com justiça:
Nos lábios do rei se acham decisões autorizadas; no julgar não transgrida, pois, a sua boca. Peso e balança justos pertencem ao SENHOR; obra sua são todos os pesos da bolsa. A prática da impiedade é abominável para os reis, porque com justiça se estabelece o trono. Os lábios justos são o contentamento do rei, e ele ama o que fala coisas retas. (Provérbios 16:10-13)
Assentando-se o rei no trono do juízo, com os seus olhos dissipa todo mal. (Provérbios 20:8)
O rei sábio joeira os perversos e faz passar sobre eles a roda. O espírito do homem é a lâmpada do SENHOR, a qual esquadrinha todo o mais íntimo do corpo. Amor e fidelidade preservam o rei, e com benignidade sustém ele o seu trono. (Provérbios 20:26-28)
Davi descreve essa mesma verdade de forma poética (também). Ele compara o governo de um rei justo com a luz trazida pelo sol numa manhã sem nuvens (v. 4a). Ele também o compara ao calor do sol que faz brotar da terra a erva depois da chuva (v. 4b). A liderança justa inspira e permite a produtividade; a perversa a reprime e anula. Não temos visto esse tipo de coisa nos povos oprimidos pelo comunismo nos últimos tempos?
No verso 5, o assunto volta-se para Davi e sua casa (dinastia). A Versão King James e a Nova Versão King James vertem a primeira linha de forma oposta à das demais versões (em português, a versão João Ferreira de Almeida Corrigida e Revisada, Fiel, e a versão Almeida Revista e Corrigida):
Ainda que a minha casa não seja tal para com Deus, contudo estabeleceu comigo uma aliança eterna, que em tudo será bem ordenado e guardado, pois toda a minha salvação e todo o meu prazer está nele, apesar de que ainda não o faz brotar. (ACR, Fiel)
Ainda que a minha casa não seja tal para com Deus, contudo estabeleceu comigo um concerto eterno, que em tudo será ordenado e guardado. Pois toda a minha salvação e todo o meu prazer estão nele, apesar de que ainda não o faz brotar. (ARC)
Compare com a tradução das versões ARA, NVI e Bíblia de Jerusalém:
Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo bem definida e segura. Não me fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança? (ARA)
A minha dinastia está de bem com Deus. Ele fez uma aliança eterna comigo, firmada e garantida em todos os aspectos. Certamente me fará prosperar em tudo e me concederá tudo quanto eu desejo. (NVI)
Sim, a minha casa é estável na presença de Deus: ele fez comigo eterna aliança, em tudo ordenada e bem segura; não faz ele germinar toda a minha salvação e todo o meu prazer? (Bíblia de Jerusalém)
Os tradutores tiveram de fazer uma escolha. Aqueles que traduziram as versões King James, tanto a nova como a velha (em português, as versões Almeida Corrigida e Almeida Corrigida, Fiel), preferiram passar a primeira linha de forma negativa; os outros preferiram a forma positiva. De um jeito ou de outro, o sentido das palavras de Davi é claro. No primeiro caso, Davi estaria ressaltando sua indignidade, juntamente com a de sua casa, em contraste com a graça de Deus em fazer aliança com ele e seus descendentes: “Nem eu, nem meus descendentes merecemos isso, mas Deus fez uma aliança eterna comigo, uma aliança que garante um reino perpétuo de justiça”. No segundo, Davi estaria ressaltando a graça de Deus para com ele e por meio dele: “Não é que Deus realmente tornou justo o meu reinado, e o dos meus descendentes, com base na aliança feita comigo?”
O resultado final é a confiança de Davi ao falar de um reino de justiça para sua casa. Essa confiança não é devido aos seus méritos ou à sua própria justiça, mas à graça de Deus, assegurada pela aliança feita com ele (2 Samuel 7:14). Com base nessa aliança, Davi tem a certeza de um reino de justiça, assinado, selado e entregue6 na aliança de Deus cumprida (total e definitivamente) na pessoa do Messias, o Senhor Jesus Cristo7. Esta é a derradeira salvação e também o último desejo de Davi realizados por Deus, o autor e consumador de toda salvação. A canção de Davi é centrada em Deus, de quem, por meio de quem e para quem são todas as coisas.
Observe como o salmo que estamos estudando tem influência sobre este salmo de Salomão:
[Salmo de Salomão] Concede ao rei, ó Deus, os teus juízos e a tua justiça, ao filho do rei. Julgue ele com justiça o teu povo e os teus aflitos, com equidade. Os montes trarão paz ao povo, também as colinas a trarão, com justiça. Julgue ele os aflitos do povo, salve os filhos dos necessitados e esmague ao opressor. Ele permanecerá enquanto existir o sol e enquanto durar a lua, através das gerações. Seja ele como chuva que desce sobre a campina ceifada, como aguaceiros que regam a terra. Floresça em seus dias o justo, e haja abundância de paz até que cesse de haver lua. (Salmo 72:1-7)
Repare como, tempos depois, outros escritores do Antigo Testamento buscaram as palavras desse salmo de Davi para falar do seu cumprimento em Cristo:
Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo. Repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do SENHOR. Deleitar-se-á no temor do SENHOR; não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com justiça os pobres e decidirá com eqüidade a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso. A justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade, o cinto dos seus rins. (Isaías 11:1-5)
Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que cometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o SENHOR dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria. (Malaquias 4:1-2)
Davi não é nenhum universalista, achando que as bênçãos sobre as quais escreve são para toda a humanidade. A salvação sobre a qual ele escreve é seu desejo, seu prazer. Nem todos os homens encontram esperança em Deus e creem na Sua salvação. Consequentemente, no final da sua canção de salvação, Davi volta-se para o destino dos perversos, para aqueles que rejeitam a salvação de Deus no Messias, Seu ungido. As imagens dos versos 6 e 7 seguem de perto as do verso 4 só para mostrar o contraste. Quando o justo Rei de Israel (Jesus) vier para governar a terra, Seu reino fará o justo florescer, como a chuva e o sol fazem a grama brotar e crescer. Mas os perversos não são comparados à grama; são comparados aos espinhos. Espinhos não são úteis, não são colhidos, nem guardados para uso futuro. Espinhos são tratados ao alcance da mão. Quem lida com eles não os toca, para não se machucar. A pessoa usa uma lâmina de metal para cortá-los e queimá-los onde estão.
Talvez aqui seja um bom lugar para refletir sobre isso. A mensagem da Bíblia não é promessa de salvação e vida eterna para todos os homens. É oferta de salvação para todos. No entanto, sem a intervenção divina, os perversos invariavelmente rejeitarão essa oferta. E, por isso, estão condenados à destruição pelo fogo. Para colocar de forma bíblica e direta, os perversos são condenados ao inferno:
Vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos. Os restantes dos mortos não reviveram até que se completassem os mil anos. Esta é a primeira ressurreição… Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo. (Apocalipse 20:4-5; 11-15)
As boas novas do evangelho, oferecendo salvação a todos os homens, não podem ser proclamadas de verdade sem a correspondente advertência do julgamento eterno do qual os homens devem ser salvos. O cântico de salvação de Davi anseia pelo tempo do advento do Grande Rei, o “Filho de Davi”, o Senhor Jesus Cristo, cuja vinda significa salvação para os justos (em Cristo) e julgamento para os ímpios (sem Cristo). Em última análise, a “salvação” de Davi não é militar, nem física, é espiritual.
Antes de seguir adiante, permitam-me sugerir algumas implicações e aplicações sobre o que acabamos de ler. Primeiro, a justiça deve ser refletida naqueles a quem Deus designou como líderes. A justiça tem sua raiz na obra de Cristo, não nas nossas, mas é refletida na nossa preocupação com os pobres e necessitados e na nossa reação aos ímpios. Muitas vezes os pais tratam os filhos de forma positiva, mas ignoram seus pecados ou deixam de lidar com eles. A Bíblia requer de nós que detestemos o mal e nos apeguemos ao bem (Romanos 12:9). A justiça é refletida de forma positiva ou negativa. Ignorar uma dimensão ou outra é deixar de exercer a justiça da forma requerida por Deus de Seus líderes.
São estes os nomes dos valentes de Davi: Josebe-Bassebete, filho de Taquemoni, o principal de três; este brandiu a sua lança contra oitocentos e os feriu de uma vez. Depois dele, Eleazar, filho de Dodô, filho de Aoí, entre os três valentes que estavam com Davi, quando desafiaram os filisteus ali reunidos para a peleja. Quando já se haviam retirado os filhos de Israel, ele se levantou e feriu os filisteus, até lhe cansar a mão e ficar pegada à espada; naquele dia, o SENHOR efetuou grande livramento; e o povo voltou para onde Eleazar estava somente para tomar os despojos. Depois dele, Sama, filho de Agé, o hararita, quando os filisteus se ajuntaram em Leí, onde havia um pedaço de terra cheio de lentilhas; e o povo fugia de diante dos filisteus. Pôs-se Sama no meio daquele terreno, e o defendeu, e feriu os filisteus; e o SENHOR efetuou grande livramento.
O primeiro dos “três” valentes é Josebe-Bassebete, chefe dos capitães. Dele é dito que matou 800 homens de uma só vez. O relato paralelo de Crônicas é um pouco diferente:
Eis a lista dos valentes de Davi: Jasobeão, hacmonita, o principal dos trinta, o qual, brandindo a sua lança contra trezentos, de uma vez os feriu. (1 Crônicas 11:11)
A diferença de nome nos dois textos não é surpreendente nem grande. Os números diferem consideravelmente8. No texto de 2 Samuel, lemos que esse guerreiro matou 800 homens de uma só vez; no texto de Crônicas, que apenas 300 foram mortos. É difícil dizer qual dos textos pode ter sofrido erro de copista, mas, de uma forma ou de outra, quem enfrenta algumas centenas de inimigos e mata todos eles em um só dia é realmente um grande guerreiro.
O herói seguinte entre os três maiores é Eleazar, filho de Dodô, o aoíta. Crônicas também descreve seu heroísmo:
Depois dele, Eleazar, filho de Dodô, o aoíta; ele estava entre os três valentes. Este se achou com Davi em Pas-Damim, quando se ajuntaram ali os filisteus à peleja, onde havia um pedaço de terra cheio de cevada; e o povo fugiu de diante dos filisteus. Puseram-se no meio daquele terreno, e o defenderam, e feriram os filisteus; e o SENHOR efetuou grande livramento. (1 Crônicas 11:12-14)
Eleazar e Davi lutavam contra os filisteus. Aparentemente, os inimigos prevaleciam sobre Israel, pelo menos aos olhos de muitos soldados israelitas que estavam fugindo. Eleazar parecia defender um campo de cevada, o qual os filisteus talvez tivessem intenção de saquear ou destruir (compare com Juízes 6:2-6, 11). Pelo plural de 1 Crônicas 11:14, acho que Eleazar não lutava sozinho, mas ao lado de Davi, embora quase todo mundo tivesse fugido. Os filisteus caíram diante de Eleazar e ele continuou a lutar até sua mão ficar com cãibra, grudada na espada. A batalha foi vencida, em parte devido à sua coragem e perseverança, mas, em última análise, graças a Deus, que lhe deu a vitória. Quando o povo voltou ao campo, tudo o que restava a fazer era tirar os despojos dos mortos — isto é, limpar o que foi deixado por Eleazar.
O terceiro dos “três” grandes é Sama, filho de Agé. Nessa ocasião, os filisteus mais uma vez lutavam contra os israelitas. Eles se reuniram para a batalha num terreno onde havia uma plantação de lentilhas. Novamente, parece que eles queriam privar os israelitas de suas colheitas. Conquistar o terreno era obter os suprimentos de que precisavam, despojando-os de Israel. O povo fugiu dos filisteus, mas Sama continuou lá. O Senhor lhe deu a vitória e ele defendeu o campo, ferindo uma porção de filisteus.
Também três dos trinta cabeças desceram e, no tempo da sega, foram ter com Davi, à caverna de Adulão; e uma tropa de filisteus se acampara no vale dos Refains. Davi estava na fortaleza, e a guarnição dos filisteus, em Belém. Suspirou Davi e disse: Quem me dera beber água do poço que está junto à porta de Belém! Então, aqueles três valentes romperam pelo acampamento dos filisteus, e tiraram água do poço junto à porta de Belém, e tomaram-na, e a levaram a Davi; ele não a quis beber, porém a derramou como libação ao SENHOR. E disse: Longe de mim, ó SENHOR, fazer tal coisa; beberia eu o sangue dos homens que lá foram com perigo de sua vida? De maneira que não a quis beber. São estas as coisas que fizeram os três valentes. Também Abisai, irmão de Joabe, filho de Zeruia, era cabeça de trinta; e alçou a sua lança contra trezentos e os feriu. E tinha nome entre os primeiros três. Era ele mais nobre do que os trinta e era o primeiro deles; contudo, aos primeiros três não chegou. Também Benaia, filho de Joiada, era homem valente de Cabzeel e grande em obras; feriu ele dois heróis de Moabe. Desceu numa cova e nela matou um leão no tempo da neve. Matou também um egípcio, homem de grande estatura; o egípcio trazia uma lança, mas Benaia o atacou com um cajado, arrancou-lhe da mão a lança e com ela o matou. Estas coisas fez Benaia, filho de Joiada, pelo que teve nome entre os primeiros três valentes. Era mais nobre do que os trinta, porém aos três primeiros não chegou, e Davi o pôs sobre a sua guarda. Entre os trinta figuravam: Asael, irmão de Joabe; Elanã, filho de Dodô, de Belém; Sama, harodita; Elica, harodita; Heles, paltita; Ira, filho de Iques, tecoíta; Abiezer, anatotita; Mebunai, husatita; Zalmom, aoíta; Maarai, netofatita; Helebe, filho de Baaná, netofatita; Itai, filho de Ribai, de Gibeá, dos filhos de Benjamim; Benaia, piratonita; Hidai, do ribeiro de Gaás; Abi-Albom, arbatita; Azmavete, barumita; Eliaba, saalbonita; os filhos de Jasém; Jônatas; Sama, hararita; Aião, filho de Sarar, ararita; Elifelete, filho de Aasbai, filho de um maacatita; Eliã, filho de Aitofel, gilonita; Hezrai, carmelita; Paarai, arbita; Igal, filho de Natã, de Zobá; Bani, gadita; Zeleque, amonita; Naarai, beerotita, o que trazia as armas de Joabe, filho de Zeruia; Ira, itrita; Garebe, itrita; Urias, heteu; ao todo, trinta e sete.
O incidente descrito nestes versos talvez tenha ocorrido antes de Davi ter se tornado rei, enquanto ainda fugia de Saul. A “caverna de Adulão” é mencionada pela primeira vez em 1 Samuel 22:1. Foi para lá que Davi se dirigiu quando fugiu de Gate. Foi ali que uma porção de seus parentes se uniu a ele, junto com outros que também tinham caído no desfavor de Saul. Em algum momento, enquanto estavam em guerra com os filisteus, Davi e seus homens se refugiaram na caverna. Os filisteus tinham tomado posse de Belém, cidade natal de Davi, e montado uma guarnição lá. Provavelmente, quando os homens de Davi ficaram sem água e ele ficou com sede, ele expressou aquilo que era apenas um desejo: se ao menos pudesse beber a água do poço junto à porta de Belém. Sem dúvida, ele bebera daquele poço muitas vezes em sua juventude e cultivou um gosto particular por aquela água.
Alguns de seus homens não puderam deixar de ouvir o que ele disse. Ele não lhes deu ordem para buscar água daquele poço. Ele sequer teve a intenção de que suas palavras induzissem alguém a tentar pegá-la. No entanto, para aqueles três bravos, o desejo de Davi era uma ordem. Eles deixaram a segurança da caverna, marcharam cerca de 20 km ou mais até Belém, atravessaram as linhas inimigas, pegaram a água para Davi e voltaram para entregá-la a ele.
Quando presenteado com aquela água, Davi fez o que, a princípio, parece bastante incomum9 — ele se recusou a bebê-la, e em vez disso derramou-a no chão. Não foi porque ele desdenhou dos esforços daqueles homens corajosos, nem porque não quis bebê-la. Creio que sua atitude demonstrou que a coragem daqueles homens foi tão nobre que ele não poderia fazer outra coisa. Ele jamais teve a intenção de colocar suas vidas em risco simplesmente para satisfazer seus próprios desejos10. O sacrifício feito por eles era do tipo devido somente a Deus. Derramar essa água como libação ao Senhor era uma das maiores expressões de apreço e respeito por eles. A água era símbolo do sangue quase derramado por aqueles homens, ao servi-lo. O melhor uso para ela era oferecê-la a Deus, por isso, ele a derramou como libação ao Senhor.
Abisai e seus irmãos, Joabe e Asael, eram parentes de Davi. Eles eram filhos de Zeruia, irmã de Davi (verso 18, ver 1 Crônicas 2:16). Abisai deve ter sido um mistério para Davi, como mostra uma recapitulação do seu papel na vida dele. Por um lado, Abisai foi um grande guerreiro e líder militar. Ele foi o único a se apresentar como voluntário para acompanhar Davi ao acampamento de Saul naquela que parecia, literalmente, ser uma missão suicida (1 Samuel 26:6-12). Ele comandou uma das tropas de Davi na campanha contra os sírios e amonitas (2 Samuel 10:9-14). Ele liderou um terço do exército contra os rebeldes de Absalão (2 Samuel 18:2). Ele recebeu o comando das tropas para subjugar a rebelião de Seba (2 Samuel 20:6). Sob sua liderança, o exército israelita conseguiu dar cabo de 18.000 edomitas no Vale do Sal (cf. 1 Crônicas 18:12).
Por outro lado, ele era um espinho na carne de Davi. Quando desceram ao acampamento de Saul, ele estava ansioso para matar o rei ungido de Deus (1 Samuel 26:6-8). Ele e Joabe, seu irmão, foram responsáveis pelo assassinato de Abner, em retaliação à morte de Asael, morto por Abner em batalha (ver 2 Samuel 3:26-30). Ele e Joabe também queriam executar Simei por atormentar Davi quando este fugia de Absalão, embora o próprio Davi estivesse disposto a perdoá-lo (2 Samuel 16:5-14). Quando Davi voltou a Jerusalém e Simei foi ao seu encontro mostrando arrependimento, Abisai ainda não estava satisfeito. Ele queria que Davi o deixasse matar Simei, porque ele tinha amaldiçoado o rei (2 Samuel 19:16-23).
Apesar de todos os defeitos de Abisai, ele era um homem valente, cuja coragem e habilidade na guerra não podiam ser negadas. Ele recebeu lugar de destaque no “hall da fama” militar de Israel porque foi um homem valoroso. O texto nos diz que certa vez ele brandiu a espada contra 300 homens do exército inimigo e matou a todos. Dentre os trinta, ele foi o primeiro, mas não teve lugar no grupo de elite dos “três grandes” (acima).
Devo confessar que Benaia é o meu favorito dentre os valentes de Davi. Ele é realmente especial. Ele era filho de um homem valente, grande em obras (verso 20). Benaia matou dois filhos de Ariel11, de Moabe. Isso, em si, talvez não pareça muita coisa, mas há mais, muito mais. Ele entrou numa cova no tempo da neve para matar um leão e matou mesmo! Essa “cova”, na verdade, talvez fosse uma cisterna12 e os guerreiros israelitas não pudessem tirar água porque um leão caíra lá dentro e não conseguia sair. Quem ia querer discutir direitos sobre a água com um leão? Sendo a água de extrema importância para um exército, Benaia pode ter se oferecido para entrar na cisterna e tirar o leão de lá, de um jeito ou de outro. Apesar de todos os obstáculos e dificuldades, ele foi bem sucedido.
Mas há ainda um outro incidente que o autor registra para mostrar o quanto esse herói era formidável. Um egípcio do tamanho de Golias se opôs a ele no campo de batalha. O problema foi que Benaia encontrou esse cara impressionante quando não portava nenhuma arma. O egípcio tinha uma espada como a de Golias e estava ansioso para lutar contra ele. Benaia o “pôs abaixo”, com apenas um cajado na mão. Ele usou o cajado para dominá-lo. Tomando a espada da sua mão, Benaia acabou com ele com a sua própria arma, não muito diferente da forma como Davi matou Golias (1 Samuel 17:50-51).
O mais surpreendente sobre Benaia é que ele era filho de um sacerdote:
O terceiro capitão do exército e o designado para o terceiro mês era Benaia, chefe, filho do sacerdote Joiada; também em seu turno havia vinte e quatro mil. (1 Crônicas 27:5)
A última coisa que poderíamos esperar era ver um sacerdote enfrentando homens ferozes como leões e leões de verdade. Eis um sacerdote disposto a sujar as mãos e colocar em prática a sua fé. Talvez Davi o tenha encarregado da guarda real, comandando os quereteus e peleteus, em recompensa por seu serviço leal (2 Samuel 8:18; 20:23).
O autor conclui o hall da fama de combatentes relacionando pelo menos 30 homens que foram valentes de guerra. Ele informa que, ao todo, eram trinta e sete, mesmo a contagem real sendo menor. Parte do problema talvez seja devido a não sabermos quantos eram os “filhos de Jasém” (verso 32). Alguns também (como Urias) tinham morrido e foram substituídos. Se esse grupo era uma espécie de guarda de honra da qual faziam parte os trinta soldados mais corajosos e heróicos, provavelmente o posto era preenchido quando alguém morria.
Com certeza, a menção de Urias nos interessa. Ele não era um simples recruta, mas um dos guerreiros de elite que lutavam por Davi e por Israel. Parece bastante improvável que Davi não o conhecesse muito bem; e, mesmo assim, ele tomou a esposa de Urias, enganou-o e usou sua lealdade e habilidade como guerreiro como os meios pelos quais o mataria.
Não temos nenhum detalhe sobre os atos heróicos dos homens relacionados nos versos 24 a 39, mas Bergen13 aponta alguns fatos interessantes sobre eles como grupo. Talvez todos, exceto doze, fossem de Judá. Três, pelo menos, vieram de Benjamim. Dois de Efraim. Um talvez fosse de Dã e outro de Gade. Três das cidades de origem não são mencionadas em nenhum outro lugar e duas são o nome de mais de um lugar. Três deles eram gentios (inclusive Urias). Mais uma vez encontramos os gentios participando da salvação do povo de Deus. Parece-me que alguns nomes relacionados aqui são daqueles que se juntaram a Davi logo no início da sua vida pública, antes de ele se tornar rei e enquanto fugia de Saul.
Conforme chegamos ao final do capítulo, percebemos que ele é parte do epílogo que serve como conclusão para 1 e 2 Samuel. O autor veio intensificando a narrativa até este ponto e as coisas escritas aqui são parte importante do que ele (por inspiração do Espírito Santo) está tentando transmitir a seus leitores. Quais lições os antigos israelitas e os cristãos contemporâneos deveriam e devem aprender? Deixem-me sugerir algumas.
1) O autor está nos lembrando do princípio da pluralidade. Bergen ressalta que aquilo que Deus fez por intermédio de Davi, Ele também fez por intermédio de outras pessoas:
“Homem de Guerra, Yahweh treinou, fortaleceu e deu a vitória no campo de batalha ao Seu ungido, Davi, mas não fez isso só com ele. Outros soldados da aliança, como Eleazar, também puderam experimentar tal bênção divina”.14
Há uma tendência de se presumir que Deus Se restrinja somente a uma pessoa, por intermédio da qual Ele faz muitas coisas. No Novo Testamento, essa mentalidade “restritiva” é totalmente refutada. A igreja é o corpo de Cristo, composto pelos judeus e gentios que estão “em Cristo” pela fé. Cada membro do corpo tem uma função única, a qual é desempenha por meio do seu dom ou dons espirituais. Ninguém deve achar que seja independente do resto do corpo (1 Coríntios 12:21-22) ou não seja importante (1 Coríntios 12:14-19). A igreja não é governada pelo “pastor”, mas pela pluralidade dos presbíteros (bispos ou anciãos, 1 Timóteo 3, Tito 1).
Embora muitos estejam dispostos a aceitar o princípio da pluralidade a partir do Novo Testamento, alguns ainda são propensos a pensar no Antigo Testamento como “espetáculos de um homem só”. Eu discordo. Deus dividiu a responsabilidade de liderar Israel entre profetas, sacerdotes e reis. Ele não concentrou todo poder em único ofício ou em um único homem. Na verdade, foi por isso que Saul se meteu numa grande encrenca quando usurpou o papel de Samuel, recusando-se a esperar por ele e indo em frente com a oferta de sacrifícios (1 Samuel 13). Essa também foi a impressão equivocada de Elias, achando que “estava só”, quando a verdade era bem diferente (1 Reis 19). Deus opera por meio de diversas pessoas para alcançar Seus objetivos. Ele não Se restringe a apenas uma, nem mesmo a apenas algumas.
2) A coragem, como a covardia, é contagiosa. Por que, quando lemos a respeito de Saul, não encontramos nenhuma menção a tais “valentes”? Da forma como leio a narrativa de sua liderança em Israel, ele confiava em mercenários (1 Samuel 14:52). Não parece haver grupos como os “Três” e os “Trinta” de Davi. Por que não? Acho que faltava a Saul a coragem de Davi e a capacidade de atrair e inspirar “homens valentes”. O pai de Saul é descrito como esse tipo de homem (1 Samuel 9:1), mas não vejo a mesma coisa ser dita do próprio Saul. Quando Golias zombou do povo de Israel e de seu Deus, não vemos Saul saindo para silenciá-lo, nem encontramos qualquer um de seus seguidores disposto a fazê-lo. Quando Saul se acovardou diante das ameaças, seus homens fizeram o mesmo (ver 1 Samuel 17:11, 24). Seus homens pareciam mais propensos a desertar do que a aguentar o tranco (ver 1 Samuel 13:5-7).
Davi era um homem corajoso. Quando um leão ou um urso ameaçava o rebanho de seu pai, ele se recusava a permitir qualquer perda. Quando Golias blasfemou o nome de Deus, Davi lutou contra ele e o matou. Davi sempre provou ser um homem corajoso. Será que é tão estranho que ele tenha atraído homens como ele? O homem que enfrentou Golias estava rodeado de homens corajosos, os quais de bom grado enfrentariam os descendentes do gigante (ver 2 Samuel 21:15-22). Coragem inspira coragem, e Davi era um homem de coragem. Não é à toa que encontramos tantos heróis entre as pessoas mais próximas a ele.
Hoje em dia é a mesma coisa. Muitas vezes o povo de Deus fica intimidado por causa de líderes covardes, os quais não estão dispostos a confiar em Deus e se amedrontam ao menor sinal de oposição ou adversidade. O que a igreja de hoje precisa, como sempre, é de “homens e mulheres valentes”, por meio dos quais Deus fará grandes coisas, e por meio dos quais Deus inspirará outras pessoas a fazer o mesmo.
3) O texto também tem muito a dizer sobre as qualidades dos grandes homens ou mulheres de Deus. Deixem-me fazer um apanhado de algumas características dos “valentes” presentes no texto.
Heróis não ficam famosos só pela “contagem de corpos”. É bem verdade que em nosso texto uma das formas de medir a força de uma pessoa é pela quantidade de mortos deixados por ela. Há muitas outras formas de se avaliar alguém, como tentarei mostrar, mas primeiro gostaria de ressaltar que a “contagem de corpos”, como método avaliação de êxito, não é muito aplicável aos cristãos atuais. Os israelitas da época de Davi estavam sempre em guerra com seus inimigos e seu sucesso era medido pelo número de mortos. Hoje, estamos engajados numa “luta espiritual”, onde não é necessário que nossos adversários sejam mortos. Às vezes, fico me perguntando se alguns cristãos já se deram conta disso.
Heróis surgem em tempos de crise. Os homens homenageados neste texto não buscavam a fama. Eles simplesmente se recusaram a ceder quando as coisas ficaram pretas. Os dias difíceis nos desafiam a fazer o que for preciso para sermos contados entre os “valentes” da história.
Heróis surgem quando os outros se amedrontam e falham. Note que em diversos casos os valentes de Davi (e de Deus) permaneceram firmes enquanto os outros fugiram de medo. Quando o coração de algumas pessoas começa a fraquejar, o coração dos homens e mulheres valentes se fortalece com fé e coragem. Heróis não têm medo de ficar sozinhos, como Davi ficou diante de Golias, e como seus seguidores também ficaram.
Heróis estão preparados e predispostos ao heroísmo devido ao seu modo de vida. Já disse anteriormente que heróis surgem em tempos de crise. É verdade, mas há uma preparação que se dá antes disso. Quem aguenta firme em tempos de crise é quem aprendeu a crer e obedecer em tempos normais. O heroísmo existe antes da crise, mas só se manifesta quando ela surge.
Heróis não se assustam quando as chances parecem contra eles. Em outras palavras, heróis estão dispostos a viver perigosamente e confiar em Deus quando assumem certos riscos. Jônatas era um “valente”, por isso não é de admirar que ele fosse tão afeiçoado a Davi. Quando Saul e seus homens ficaram com medo, assustados com o grande número de filisteus contra eles, Jônatas saiu em perseguição do inimigo com estas palavras: “Disse, pois, Jônatas ao seu escudeiro: Vem, passemos à guarnição destes incircuncisos; porventura, o SENHOR nos ajudará nisto, porque para o SENHOR nenhum impedimento há de livrar com muitos ou com poucos” (1 Samuel 14:6). Os valentes de Davi não se impressionavam com as estatísticas, mas permaneciam firmes, crendo que Deus lhes daria a vitória.
Heróis estão dispostos a morrer, se for necessário. Os heróis da Bíblia eram homens que confiavam em Deus. Aqueles homens (e mulheres) não tinham medo de morrer, pois sua fé estava em Deus e no reino celestial (ver Hebreus 11). Quem tem medo da morte não é alguém que esteja disposto a viver perigosamente e assumir riscos.
Heróis trabalham e se esforçam muito, mas no final das contas esperam em Deus pela vitória. Em cada um desses casos de heroísmo, os próprios homens são honrados. Eles aguentaram firme enquanto outros fugiram. Eles tomaram a iniciativa quando foi preciso. E, por sua coragem e habilidade, são louvados. Por outro lado, não foi só devido à sua habilidade ou coragem que a batalha foi vencida. As vitórias conquistadas por eles eram humanamente impossíveis. O autor deixa bem claro que, em última análise, é Deus quem dá a vitória.
Heróis levam seus deveres e responsabilidades a sério. Como soldados, esses homens eram obrigados a defender seu território e lutar, e eles lutaram. Mesmo quando os outros fugiram, eles aguentaram firme. Há um sentimento muito forte de compromisso com o dever nesses “valentes”.
Heróis vão muito além do chamado do dever, por fé, lealdade e amor. A melhor ilustração desse ponto é a atitude dos três homens de Davi, os quais foram buscar água de um poço em Belém. Davi não lhes deu ordem para trazê-la para ele. Se tivesse dado, e eles tivessem obedecido, teria sido por dever. No entanto, ele apenas expressou um desejo, e para eles, seu desejo era uma ordem. Eles arriscaram a vida, abriram caminho até o poço e voltaram, tudo por lealdade e amor a Davi. Verdadeiros heróis procuram fazer aquilo que agrada a seus superiores; eles não são forçados só pelo dever, mas também pelo desejo de agradar a quem servem.
Heróis surgem onde o heroísmo é demonstrado, valorizado e recompensado. Por que o autor nos conta sobre os “Três” e sobre os “Trinta”? Acredito que, em parte, seja porque o heroísmo era apreciado e esses homens eram considerados dignos de honra e louvor. Davi demonstrou coragem na sua vida pessoal, e ele a valorizou e recompensou em quem estava ao seu redor. Não é à toa que os heróis tenham surgido em tal ambiente, ou que não tenham surgido em outra época (como a de Saul).
Heróis são aqueles que têm a coragem de se identificar com o ungido de Deus. Devo lembrar que esses “valentes” eram os “valentes” de Davi. Esses são os homens que andavam com ele e o apoiavam não só quando as coisas iam bem e era popular ficar ao seu lado, mas quando as coisas engrossavam e andar com ele colocava-os em perigo. Na carta aos Hebreus, parece-me que uma das maneiras de os santos provarem seu heroísmo era identificando-se com Cristo e Sua igreja quando isso era perigoso (ver Hebreus 10:32-34; 13:1-3).
Estes são dias em que o heroísmo pode muito bem ser necessário. Já não é mais popular (ou seguro) ser conhecido como cristão. Não há, na minha opinião, uma “maioria moral” para aplaudir os crentes por sua fé e obediência à Palavra de Deus. Não é raro encontrar crentes professos fraquejando quando as coisas ficam difíceis. Talvez tenhamos de assumir uma posição pessoal, no trabalho, na escola e até mesmo na nossa família.
Davi foi um herói, um “valente”, como o foram os homens relacionados em nosso texto. No entanto, devemos nos lembrar do maior “herói” de todos — nosso Senhor Jesus Cristo:
Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma. (Hebreus 12:1-3)
Servos, sede submissos, com todo o temor ao vosso senhor, não somente se for bom e cordato, mas também ao perverso; porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus. Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus. Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos, o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca; pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente, carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados. Porque estáveis desgarrados como ovelhas; agora, porém, vos convertestes ao Pastor e Bispo da vossa alma. (1 Pedro 2:18-25)
É Ele a fonte da nossa coragem e da nossa fé:
Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito: De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei. Assim, afirmemos confiantemente: O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me poderá fazer o homem? (Hebreus 13:5-6)
Não tenho muita certeza se o heroísmo é tão perceptível em nossos dias, não porque haja poucos heróis, mas porque verdadeiros atos heróicos não chamam tanta atenção quanto uma grande pilha de corpos chamava na época de Davi. É possível que os membros mais excelentes do corpo de nosso Senhor (a igreja) sejam as pessoas menos visíveis, enquanto as que estão sempre no centro das atenções talvez não sejam tão importantes quanto pensamos (ou pior, quanto “elas” pensam) (1 Coríntios 12:21-25). Da maneira como entendo a Bíblia, haverá um dia quando todos os cristãos irão comparecer diante do trono de Deus e todos os nossos pensamentos e obras serão julgados. Que alegria e privilégio será poder ouvi-lO dizer: “Muito bem, servo bom e fiel”.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 “Há, no entanto, um elemento mais prosaico, mas não menos importante nas ‘últimas palavras’ de David. E é o fato de que estas palavras, em parte, representam a preparação para a sua própria morte. Eis onde a vida de David se relaciona com a nossa. Sem dúvida, ele se coloca no fluxo da história redentora que leva ao advento do Senhor Jesus Cristo. Seu papel no desenrolar dos propósitos de Deus foi único. Mas isso não apagou o fato de que ele era como todos os demais filhos de Deus, no que diz respeito a viver e morrer. De qualquer forma, seu desempenho como rei ungido do Senhor e mavioso salmista de Israel o torna modelo e exemplo para cada um dos filhos de Deus de como se deve se preparar para a morte... ‘Quando sentirmos a aproximação da morte,’ diz Matthew Henry, ‘devemos nos esforçar tanto para honrar a Deus quanto para edificar aqueles que estão ao nosso redor com as nossas últimas palavras. ‘Que aqueles que há muito tempo sentem a bondade de Deus e o deleite da sabedoria… deixem registrada essa experiência e deem testemunho da veracidade da promessa...’ É em face da morte que uma fé viva (contínua) em Jesus Cristo brilha mais...mais intensamente nas profundezas do crente.” Gordon J. Keddie, Triumph of the King: The Message of 2 Samuel (Durham, England: Evangelical Press, 1990), pp. 230-231.
2 “Matthew Henry descreve isso com muita propriedade como sendo ‘a última vontade e o testamento do rei Davi. R. P. Gordon chama de “o legado eterno de Davi para Israel” e observa que ele transmite “tanto a força da esperança dinástica quanto a idealização do início do reino davídico em termos messiânicos’. Peter Ackroyd observa que isso nos faz lembrar ‘das últimas palavras da bênção pronunciada por Jacó a seus filhos, como representantes das tribos de Israel (Gênesis 49), e… das palavras de Moisés (Deuteronômio 33)’.” Gordon J. Keddie, p. 230.
3 Keddie faz um resumo conciso da mensagem do salmo de Davi nos versos 2 a 7: “O pensamento do poema de Davi começa com as provas das bênçãos de Deus ao longo de sua vida, até o limiar da eternidade (23:1-4), continua com a afirmação das promessas de bênçãos futuras em termos da aliança eterna de Deus (23:5) e conclui com a implícita responsabilidade de preparar o encontro com o Senhor, o qual guarda a misericórdia em mil gerações, perdoa a ‘iniqüidade, a transgressão e o pecado’, ainda que não inocente o culpado (Êxodo 34:7)”. Keddie, p. 231.
4 “Este verso (5) não é o mais fácil de traduzir e é possível que a última frase possa se referir, não a ‘cada desejo’ de Davi, mas ao beneplácito de Deus”. (Keddie, p. 234-235)
5 As últimas palavras de Davi a Salomão estão registradas em 1 Reis 2:2-9.
6 “A grosso modo, em tudo bem definida e segura podemos ter uma frase legal comparável à expressão em inglês ‘assinado e selado’”. O verbo traduzido por definida… tem conotação legal em poucas passagens (Jó 13:28; 23:4; Salmo 50:21). Robert P. Gordon, I & II Samuel: A Commentary (Grand Rapids: Regency Reference Library, 1996), p. 311.
7 “O Targum de Jônatas interpreta esta seção como profecia sobre a vinda do Messias. Jesus também parece ter entendido a passagem como messiânica; Sua comparação de Si mesmo com a ‘luz’ (João 8:12, 9:5, cf. v. 4) e sua parábola profética comparando os perversos ao joio a ser queimado (Mateus 13:30, 40, cf. v. 7) sugerem que Ele estava usando imagens tiradas desta passagem”. Robert D. Bergen, The New American Commentary: An Exegetical and Theological Exposition of Holy Scripture, NIV Text: 1, 2 Samuel (Broadman and Holman Publishers, 1996), p. 464.
8 “Os três receberam maior honra que os demais e foram relacionados em ordem de precedência. O nome do primeiro tem uma forma variante em 1 Crônicas 11:11, e é diferente também na LXX; o restante do verso 8 também apresenta alguns problemas (cf. RSV, mg., NIV, mg.)” Joyce G. Baldwin, 1 & 2 Samuel: An Introduction and Commentary (Downers Grove, Illinois: Inter-Varsity Press, 1988), p. 292.
“1 Crônicas 11:11 afirma que Jasobeão, o taquemonita, aparentemente o nome de Crônicas para Josebe Bassebete, o hacmonita, matou 300 homens. Presumindo que os dois nomes se referem à mesma pessoa, a existência de um erro de copista fica evidente. Contudo, a esta altura é impossível determinar se Samuel ou Crônicas mantém o número exato. Bergen, p. 469, fn. 47.
9 “Sabendo o que envolveu a obtenção do líquido, Davi fez algo que, inicialmente, parece absurdo ou insultante: ele ‘se recusou a bebê-lo’. O presente de água adquirido com tanto perigo representou algo tão precioso que Davi considerou-se indigno de bebê-lo”. Bergen, p. 470.
10 Lembramos que nem sempre foi assim, como podemos ver pela atitude de Davi com relação a Bate-Seba e seu marido, Urias.
11 Gordon escreve: “ariels é uma transliteração desesperada da palavra hebraica que pode ser uma tradução aproximada para ‘campeões’ (NEB; cf. NVI ‘melhores’). Compare com o tratamento de MT ‘er’ellam (Is. 33:7) nas versões modernas. Em Ezequiel 43:15 a palavra parece significar ‘lareira’ (cf. Is. 29:2, e possivelmente também em 1.12 da Pedra Moabita). AV, relacionando o elemento ‘ari ao termo hebraico para ‘leão’, traduz por ‘dois homens leoninos’ (‘dois leões em pele de homem’, numa edição anterior!)” Gordon, p. 313.
Pessoalmente, prefiro ver uma espécie de jogo de palavras aqui, pois a palavra hebraica para “leão” é bem parecida com a palavra transliterada “Ariel”. Assim, os tradutores da Versão King James e da Nova Versão King James traduzem ‘Ariel’ como “leonino”. Quem enfrenta dois oponentes leoninos também enfrentará um leão.
12 “Uma exibição única de coragem de sua parte — uma que Davi pudesse, de alguma forma, descrever (cf. 1 Samuel 17:34-36 — envolvia ‘entrar numa cisterna [NVI, ‘cova’] no tempo da neve’; aparentemente a fera tinha caído sem querer dentro de um tanque subterrâneo usado para coletar e guardar água para beber”. Bergen, p. 471.
13 Bergen, p. 472.
14 Bergen, p. 469.
Davi Faz o Censo
Nos primeiros anos da nossa igreja, nós não tínhamos escritório. A razão era porque o prédio da igreja ainda não tinha sido construído (no início, nós nos reuníamos em uma escola primária e depois no Hotel North Dallas). Por esta e outras razões, meu gabinete ficava num conjunto de salas comerciais. Minha sala era pequena, e uma jovem, dona de uma prestadora de serviços de secretaria, ficava numa saleta do lado de fora, onde ganhava a vida datilografando e tirando cópias para quem alugava os escritórios das proximidades. Certo dia, quando eu passava pela sua mesa, ela me parou e disse que um dos outros locatários tinha conversado com ela sobre os seus preços. Ele a convenceu de que, por ter um “ministério cristão”, deveria receber um desconto. Assim, uma vez que dava desconto ao ministério dele, ela achava justo fazer o mesmo com a nossa igreja.
Não me senti muito bem com essa oferta e disse-lhe que gostaria de pensar no assunto e conversar com o conselho da nossa igreja. Nós discutimos e concluímos que ela não tinha nenhuma obrigação ou responsabilidade de beneficiar-nos, reduzindo seu lucro. Por isso, voltei a falar com ela e disse-lhe que iríamos pagar o preço normal, pois não achávamos que ela devesse sacrificar seus ganhos em nosso benefício quando nem mesmo era membro da igreja.
Em nosso texto, Davi tem uma oportunidade de ouro para aquilo que eu chamaria de um “ministério de ocasião”. Deus lhe disse pelo profeta (ou “vidente”) Gade para levantar um altar na eira de Araúna. Para tanto, Davi tinha de comprar essa propriedade. Quando ele foi conversar com Araúna e lhe dizer que precisava do local para erigir um altar e oferecer sacrifícios a Deus, Araúna quis lhe dar a propriedade, os bois que estava utilizando e os trilhos puxados por eles. Em outras palavras, ele se propôs a dar a Davi tudo o que era necessário para oferecer um sacrifício a Deus de graça. Que negócio! Qualquer um poderia pensar que Davi ficaria encantado com a oferta. Ele poderia adorar a Deus sem nenhuma despesa, às custas de Araúna. Mas ele a recusou. Vamos tentar aprender porque e quais as implicações disso para nós.
É evidente que 2 Samuel 24 é o capítulo final de 1 e 2 Samuel (você deve se lembrar de que, originalmente, ambos formavam apenas um livro no Antigo Testamento hebraico). Aqui, o autor está se aproximando do fim. Ele faz suas últimas considerações enquanto atingimos o clímax do livro. Há muitas lições a serem aprendidas nesta passagem; portanto, vamos prestar atenção e esperar que o Espírito de Deus as torne claras para nós, assim como trabalhe em nós e por meio de nós conforme a Sua vontade.
Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá. Disse, pois, o rei a Joabe, comandante do seu exército: Percorre todas as tribos de Israel, de Dã até Berseba, e levanta o censo do povo, para que eu saiba o seu número. Então, disse Joabe ao rei: Ora, multiplique o SENHOR, teu Deus, a este povo cem vezes mais, e o rei, meu senhor, o veja; mas por que tem prazer nisto o rei, meu senhor? Porém a palavra do rei prevaleceu contra Joabe e contra os chefes do exército; saiu, pois, Joabe com os chefes do exército da presença do rei, a levantar o censo do povo de Israel. Tendo eles passado o Jordão, acamparam-se em Aroer, à direita da cidade que está no meio do vale de Gade, e foram a Jazer. Daqui foram a Gileade e chegaram até Cades, na terra dos heteus; seguiram a Dã-Jaã e viraram-se para Sidom; chegaram à fortaleza de Tiro e a todas as cidades dos heveus e dos cananeus, donde saíram para o Neguebe de Judá, a Berseba. Assim, percorreram toda a terra e, ao cabo de nove meses e vinte dias, chegaram a Jerusalém. Deu Joabe ao rei o recenseamento do povo: havia em Israel oitocentos mil homens de guerra, que puxavam da espada; e em Judá eram quinhentos mil.
Por alguma razão não indicada, Deus estava furioso com Israel. O texto literalmente diz que a ira de Deus estava acesa. Deus estava “pegando fogo” por causa do pecado de Israel. A expressão “acendeu-se a ira de Deus” é empregada muitas vezes no Antigo Testamento3. Em todos os casos, foi um pecado muito grave que inflamou a justa ira de Deus. Mais uma vez, Deus está irado com Israel e está determinado a disciplinar esse povo de dura cerviz. Para isso, Ele usa o pecado de Davi. De alguma forma, esse pecado induz tanto à culpa quanto ao castigo do povo. Ao voltar nossa atenção para Davi e seu pecado, não vamos nos esquecer de que o incidente ocorre por causa do pecado de Israel.
Divinamente incitado4, Davi decide contar os soldados de Israel e Judá. Essa contagem não é, necessariamente, errada. Moisés fez o censo dos soldados israelitas ao se preparar para a batalha (Números 1:1-4). Ele também fez a contagem dos coatitas (Números 4:2) e gersonitas para o serviço sacerdotal. Saul contou os israelitas para defender o povo de Jabes-Gileade na luta contra os amonitas (1 Samuel 11:8). Davi contou os homens leais a ele para se defender do ataque de seu filho, Absalão (2 Samuel 18:1)5. Em nenhum desses casos o censo foi errado.
É preciso ressaltar que o censo exigido por Davi nesta passagem não parece uma mera enumeração dos guerreiros israelitas, uma simples contagem de cabeças. O censo levou quase dez meses para ser concluído e, de alguma forma, exigiu a participação dos próprios comandantes militares. Minha interpretação é que, quando os soldados foram contados, eles também foram classificados. Em outras palavras, a contagem dos soldados implicou na sua organização e classificação, a fim de que estivessem prontos para lutar.
No livro de Êxodo vemos uma palavra de advertência sobre recenseamento:
“Quando fizeres recenseamento dos filhos de Israel, cada um deles dará ao SENHOR o resgate de si próprio, quando os contares; para que não haja entre eles praga nenhuma, quando os arrolares. Todo aquele que passar ao arrolamento dará isto: metade de um siclo, segundo o siclo do santuário (este siclo é de vinte geras); a metade de um siclo é a oferta ao SENHOR. Qualquer que entrar no arrolamento, de vinte anos para cima, dará a oferta ao SENHOR. O rico não dará mais de meio siclo, nem o pobre, menos, quando derem a oferta ao SENHOR, para fazerdes expiação pela vossa alma. Tomarás o dinheiro das expiações dos filhos de Israel e o darás ao serviço da tenda da congregação; e será para memória aos filhos de Israel diante do SENHOR, para fazerdes expiação pela vossa alma”. (Êxodo 30:12-16)
Esse texto deixa claro que o recenseamento militar não era uma coisa muito espiritual. Era um mal que precisava ser expiado e, se não fosse, a nação seria assolada por alguma praga.
Tenho me esforçado para entendê-lo, principalmente para compreender o que há de tão errado com a contagem dos israelitas. Parece não haver nenhuma razão clara para isso. Então, pensei que, se não há nenhuma razão explícita para o desagrado de Deus em relação à atitude de Davi, também não há nenhuma explicação sobre os motivos de Davi. Praticamente em todos os casos em que houve a contagem de algum grupo, a razão era óbvia. Quando os soldados eram recenseados, era em preparação para a guerra. Mas nenhuma guerra é mencionada neste texto ou nos textos próximos. Parece que o único motivo de Davi era satisfazer a sua própria curiosidade e encher-se de orgulho. Ele aparenta estar interessado demais no seu poder, na sua habilidade de lutar. Ele parece ter perdido o senso de dependência de Deus. Talvez ele estivesse muito parecido com o rei Nabucodonosor em Daniel 4, super impressionado consigo mesmo, com seu poder e posição.
Há uma “sensação” nesse texto que me faz lembrar da queda de Adão e Eva em Gênesis 3. O censo de Israel parece ter produzido em Davi um “conhecimento” que ele não podia ter, o conhecimento do seu poder e da sua potência militar (compare com Deuteronômio 17:14-20). Ele queria “ver” a sua força e o seu poder e, embora isso fosse proibido, era o desejo do seu coração.
Mesmo ficando confusos a respeito da “pecaminosidade” da atitude de Davi, não parece que isso era algo difícil de ser reconhecido por aqueles que conduziam as suas forças armadas. Joabe (verso 3 e também 1 Crônicas 21:6) e os chefes do exército (verso 4) se opuseram ao recenseamento dos soldados. No fim, o próprio Davi acabou tomando consciência do seu erro (verso 10), mesmo sem o profeta Gade ter de confrontá-lo ou censurá-lo (como fizera Natã no caso de Bate-Seba e Urias — 2 Samuel 12). O levantamento do censo era errado e, naquele dia, ninguém parecia ter algum problema em reconhecê-lo.
Joabe protestou o quanto pôde, sem colocar em risco sua segurança e sua posição. Todavia, Davi prevaleceu sobre ele e os outros comandantes, insistindo para que o censo fosse levantado. Com relutância e meio a contragosto (ver 1 Crônicas 21:6), Joabe foi fazer sua abominável tarefa. Foi realmente uma grande empreitada. Eles atravessaram o Jordão, seguiram para o norte, depois para oeste e então para o sul, viajando por toda a nação em sentido anti-horário. Quando a missão foi concluída, os números foram apresentados a Davi. Havia 800.000 valentes em Israel e 500.000 combatentes experientes em Judá (verso 9)6.
Sentiu Davi bater-lhe o coração, depois de haver recenseado o povo, e disse ao SENHOR: Muito pequei no que fiz; porém, agora, ó SENHOR, peço-te que perdoes a iniquidade do teu servo; porque procedi mui loucamente. Ao levantar-se Davi pela manhã, veio a palavra do SENHOR ao profeta Gade, vidente de Davi, dizendo: Vai e dize a Davi: Assim diz o SENHOR: Três coisas te ofereço; escolhe uma delas, para que ta faça. Veio, pois, Gade a Davi e lho fez saber, dizendo: Queres que sete anos de fome te venham à tua terra? Ou que, por três meses, fujas diante de teus inimigos, e eles te persigam? Ou que, por três dias, haja peste na tua terra? Delibera, agora, e vê que resposta hei de dar ao que me enviou. Então, disse Davi a Gade: Estou em grande angústia; porém caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias; mas, nas mãos dos homens, não caia eu.
Mesmo sem ter sido repreendido, Davi reconhece ter errado ao fazer o recenseamento dos combatentes da nação. Sentindo o coração bater, ele se arrepende. Ele confessa a enormidade do seu pecado e reconhece a loucura das suas ações (verso 10). Esse sentimento de culpa e a confissão parecem ter ocorrido durante a noite, pois, quando ele acorda, o profeta Gade7 vai ter com ele com uma palavra do Senhor. Não há debate nem discussão sobre se Davi pecou ou não. Isso é certo. A única coisa que precisa ser decidida é qual castigo ele prefere. Ele recebe três opções, todas mencionadas em Deuteronômio 28 como castigo para as falhas de Israel em guardar a aliança com Deus8.
O que difere nas opções de Davi é a extensão da pena: três anos de fome9, três meses de fuga dos inimigos ou três dias de peste enviada por Deus. Davi escolhe a terceira opção, não porque o tempo de sofrimento seja menor, mas porque a penalidade é administrada diretamente por Deus. Davi prefere sofrer na mão do Senhor a sofrer na mão dos homens.
Mas, por quê? Por que Davi prefere sofrer na mão de um Deus santo e justo a sofrer na mão dos homens? Creio que seja porque ele sabe que não vai sofrer a ira de Deus como um descrente, mas como um filho. A ira é um pensamento aterrorizante:
Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se? (Apocalipse 6:15-17)
Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo. (Apocalipse 20:12-15)
Davi não precisa temer a ira de Deus que recai sobre os ímpios. A disciplina que ele vai experimentar não deve e não vai ser fácil, mas é a disciplina de um pai amoroso, disciplina que tem o propósito de aproximá-lo de Deus:
É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos. Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai espiritual e, então, viveremos? Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça. Por isso, restabelecei as mãos descaídas e os joelhos trôpegos; e fazei caminhos retos para os pés, para que não se extravie o que é manco; antes, seja curado. (Hebreus 12:7-13)
Por mais paradoxal que possa parecer, o Deus que é santo e justo é também misericordioso e bondoso:
E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração! (Êxodo 34:6-7)
É sobre esse tipo de bondade que Davi se lança em nosso texto. Ele sabe que é culpado diante de Deus e merece sofrer em Suas mãos. Mas ele também sabe que a mão de Deus é mais bondosa que a mão dos homens. Pense nisso por um instante. Davi não apenas crê em Deus para a sua salvação e para o livramento dos seus inimigos, mas também para ser corrigido por Ele. Não existe área em nossa vida na qual devamos confiar nos homens e não em Deus.
Então, enviou o SENHOR a peste a Israel, desde a manhã até ao tempo que determinou; e, de Dã até Berseba, morreram setenta mil homens do povo. Estendendo, pois, o Anjo do SENHOR a mão sobre Jerusalém, para a destruir, arrependeu-se o SENHOR do mal e disse ao Anjo que fazia a destruição entre o povo: Basta, retira a mão. O Anjo estava junto à eira de Araúna, o jebuseu. Vendo Davi ao Anjo que feria o povo, falou ao SENHOR e disse: Eu é que pequei, eu é que procedi perversamente; porém estas ovelhas que fizeram? Seja, pois, a tua mão contra mim e contra a casa de meu pai.
O Senhor estava furioso com Israel e a peste lançada sobre Seu povo era totalmente merecida, não só devido ao pecado de Davi, mas também devido ao pecado de Israel. Que ironia Davi querer saber quantos guerreiros israelitas estavam à sua disposição e, em consequência disso, os números baixarem para apenas 70.000 homens. A praga desce sobre cada parte da nação. O anjo destruidor do Senhor parece quase refazer os passos daqueles que fizeram o recenseamento. Agora, ele se aproxima de Jerusalém, pronto para lançar a calamidade sobre ela também. Davi é capaz de ver o anjo do Senhor, com a espada erguida, prestes a destruir muitas pessoas na cidade. Já fomos informados, no entanto, de que Deus não quer causar mais calamidade. A fé depositada por Davi no julgamento de Deus era bem fundada. Deus derramou a Sua ira sobre o povo, mas agora Ele tem compaixão deles. O anjo do Senhor está parado junto à eira de Araúna, o jebuseu10, quando recebe a ordem para parar.
Davi ainda não conhece o propósito de Deus, por isso, faz uma petição a Ele na tentativa de acabar com a praga. Ele pede que o furor de Deus seja satisfeito com o derramamento da Sua ira sobre ele e a casa de seu pai (não muito diferente do que tinha ocorrido com a casa de Saul no capítulo 21). Mas Deus tem um plano melhor, o qual Ele dirá a Davi pelo profeta Gade nos últimos versos deste livro maravilhoso.
Naquele mesmo dia, veio Gade ter com Davi e lhe disse: Sobe, levanta ao SENHOR um altar na eira de Araúna, o jebuseu. Davi subiu segundo a palavra de Gade, como o SENHOR lhe havia ordenado. Olhou Araúna do alto e, vendo que vinham para ele o rei e os seus homens, saiu e se inclinou diante do rei, com o rosto em terra. E perguntou: Por que vem o rei, meu senhor, ao seu servo? Respondeu Davi: Para comprar de ti esta eira, a fim de edificar nela um altar ao SENHOR, para que cesse a praga de sobre o povo. Então, disse Araúna a Davi: Tome e ofereça o rei, meu senhor, o que bem lhe parecer; eis aí os bois para o holocausto, e os trilhos, e a apeiragem dos bois para a lenha. Tudo isto, ó rei, Araúna oferece ao rei; e ajuntou: Que o SENHOR, teu Deus, te seja propício. Porém o rei disse a Araúna: Não, mas eu to comprarei pelo devido preço, porque não oferecerei ao SENHOR, meu Deus, holocaustos que não me custem nada. Assim, Davi comprou a eira e pelos bois pagou cinquenta siclos de prata. Edificou ali Davi ao SENHOR um altar e apresentou holocaustos e ofertas pacíficas. Assim, o SENHOR se tornou favorável para com a terra, e a praga cessou de sobre Israel.
Gade vai ter com Davi com outra solução — sacrifício. Davi devia erigir um altar ao Senhor bem ali na eira de Araúna. Na mesma hora, ao que parece, Davi vai ao lugar onde o anjo do Senhor recebeu a ordem de parar. Araúna e seus quatro filhos estão na eira, debulhando trigo. Ele olha para o alto e vê o anjo do Senhor e Davi e seus servos indo em sua direção (1 Crônicas 21:20-21). Deve ter sido um momento terrível para Araúna (chamado de Ornã em 1 Crônicas).
Ao fazer um retrato mental do nosso texto, lembro-me de um colega de quarto da faculdade. Ele tinha um Ford 1953 que, literalmente, estava caindo aos pedaços. Na mesma época, um outro amigo tinha uma concessionária de carros novos, mas que também vendia carros usados. Jerry, o meu amigo, dirigiu seu Ford 53 até Auburn, Washington, para ver um Chevrolet 1959. Ele ficou interessado, mas não queria dar na vista. Após o vendedor cotar seu “melhor preço” (o qual incluía o Ford 53 como parte da transação), Jerry disse que ia pensar no assunto e voltaria depois. Ele entrou no Ford e deu a partida; nada. Com toda calma, ele saiu do carro, foi até o vendedor e lhe disse: — Fico com ele. — Não era hora pra barganhar. Jerry não tinha saída.
Araúna também não estava em posição de fazer um grande negócio. Ali estava o anjo do Senhor, ainda à vista, e Davi chegando com uma porção de servos. Araúna era um estrangeiro que teve a sorte de continuar vivo, sem falar em ter uma propriedade tão perto de Davi e da cidade de Jerusalém. Ele era dono de um excelente pedaço de terra e Davi acabara de saber que devia possuí-la. Davi pediu que ele desse seu preço. Araúna achou que era uma boa hora para lhe fazer uma oferta irrecusável. Ele queria doar não somente a terra, mas também os bois, os trilhos e a apeiragem dos bois, a fim de que Davi pudesse oferecer o sacrifício ao Senhor.
Para mim, a oferta teria sido tentadora. Ali estava a oportunidade de ter um ministério de “ocasião” — um ministério excelente com ótimo custo-benefício (zero). Araúna deve ter ficado em choque com a resposta de Davi. Davi não quis aceitar a generosa doação de um excelente pedaço de terra. Se ele tivesse aceitado, o sacrifício não teria lhe custado um tostão. Mas como se pode oferecer “sacrifício” sem fazer algum sacrifício? Davi comprou a terra (não tenho certeza se ele também comprou os bois e os trilhos) pelo preço integral, e em seguida ofereceu o sacrifício. Quando o sacrifício foi feito, o Senhor ouviu as súplicas do Seu povo e cessou a praga.
Este capítulo é parte da conclusão dos livros de 1 e 2 Samuel. Podemos dizer que é a conclusão da conclusão. Em certo sentido, o livro termina no capítulo 20. Os capítulos 21 a 24 servem como epílogo do livro, esclarecendo os pontos mais importantes que o autor deseja que compreendamos. A melhor maneira de entender esse epílogo e sua mensagem talvez seja com um gráfico, como mostrado a seguir.
A parte central do epílogo é composta pelos dois salmos de Davi, sendo que o primeiro evoca seus livramentos das mãos de Saul e seus inimigos e depois seu governo como rei, enquanto o segundo rememora seu reinado diante da proximidade do momento da sua partida (22:1-51; 23:1-7). O tema dos dois cânticos é “Deus é a minha salvação”. A despeito dos grandes perigos e de todas as adversidades que lhe sobrevieram, Deus o livrou da morte e cumpriu a promessa de que ele seria rei de Israel. Além disso, Davi vê Deus como seu futuro libertador, quando Ele enviar o grande rei, o Messias, para realizar sua plena e derradeira salvação.
O segundo e quinto segmentos do epílogo têm a ver com os “valentes” de Davi. No capítulo 21, de 15 a 22, Davi já perdeu o vigor e um descendente de Golias quase o domina na batalha. Abisai sai em seu socorro e mata o gigante Isbi-Benobe. Mais três gigantes são mencionados e, em cada caso, um dos valentes de Davi mata o “Golias” (na verdade, descendente de Golias). No capítulo 23, de 8 a 39, dois grupos distintos de valentes são relacionados: os “três” e os “trinta”. Esses homens confiaram em Deus e foram providenciais nas vitórias impressionantes sobre os inimigos de Israel, apesar das chances incríveis contra eles. Foi por meio deles que Deus muitas vezes deu a vitória a Davi e a Israel.
O primeiro e o último segmentos do epílogo têm a ver com os pecados dos dois primeiros reis de Israel. No capítulo 21, de 1 a 14, o pecado cometido por Saul ao tentar aniquilar os gibeonitas foi expiado, pois aqueles eram protegidos por uma aliança feita com os israelitas. Sete dos “filhos” de Saul foram executados pelos gibeonitas e só então a fome foi removida em resposta às súplicas do povo de Deus. No capítulo 24, de 1 a 25 (nosso texto), vemos o pecado de Davi, que também levou a nação a estar sob a disciplina divina. Só depois da aquisição da eira de Araúna, da construção do altar e da oferta de sacrifícios, Deus cessou a praga lançada sobre Israel devido aos seus pecados e ao pecado de Davi.
Esses três pares de parágrafos servem como a conclusão do livro e ressaltam algumas lições muito importantes que o autor deseja deixar conosco. Permitam-me resumi-las.
Primeiro, mais uma vez somos relembrados da fidelidade de Deus como Salvador do Seu povo. O livro de 1 Samuel começou com o sofrimento de Ana, que não podia ter filhos. Deus a salvou da esterilidade e lhe deu não apenas Samuel, mas também outros cinco filhos. O cântico de Ana é um “cântico de salvação” (1 Samuel 2). Começando por Moisés e Arão, e durante todo o período dos juízes, Deus salvou o Seu povo quando eles clamaram a Ele (1 Samuel 12:6-11). Depois Deus salvou Israel por intermédio de Saul e Davi, quando eles conduziram a nação na guerra contra os inimigos, principalmente contra os filisteus. Deus serviu como Salvador de Davi muitas e muitas vezes durante a sua vida, e Davi espera o “filho de Davi” como seu derradeiro Salvador. Samuel tem muito a nos dizer sobre a fidelidade de Deus como Salvador do Seu povo, mesmo quando esse povo falha. Não é de admirar que Davi resuma sua vida louvando a Deus como sua fortaleza e salvação.
Segundo, vemos que Deus, embora seja um Salvador fiel, frequentemente usa homens de fé e coragem. Davi foi preparado para reinar em Israel quando pastoreava o pequeno rebanho de ovelhas de seu pai. Nessa época, ele aprendeu a confiar em Deus e a agir com coragem para salvar seu rebanho dos ursos e leões. Sua carreira militar teve início com o confronto com Golias no campo de batalha, quando Davi estava em incrível desvantagem. Enquanto Saul não inspirava tal coragem em seus homens, a coragem de Davi inspirou muitos outros soldados a lutar com fé e ousadia, mesmo quando todas as chances estavam contra eles. Esses homens tornaram possível que Davi pudesse parar de lutar quando suas forças começaram a falhar. Mesmo sendo Deus um Salvador fiel, muitas vezes Ele livrou Israel por meio de homens de fé e coragem, os quais confiaram nEle ao lutar contra Seus inimigos. A soberania de Deus na salvação dos homens não os impediu de ter fé e iniciativa; ela os inspirou.
Terceiro, vemos que, embora o homem seja pecaminoso, seu pecado nunca impede Deus de realizar a Sua obra salvífica. Se Davi é o melhor exemplo oferecido pela história a nós, é óbvio que ele não é o Salvador da humanidade. A salvação prometida por Deus através da sua descendência teria de vir por intermédio de alguém maior do que ele. Davi pecou, não há dúvida quanto a isso. Seus pecados podem ter sido uma exceção, mas com certeza o desqualificaram para ser o Messias de Israel. O mais incrível em 1 e 2 Samuel é que, embora Davi tenha pecado e muitos tenham sofrido por causa disso, Deus soberanamente escolheu derramar grandes bênçãos por meio de seus erros. Duas das maiores bênçãos de Israel ocorreram em consequência dos maiores pecados de Davi. Seu pecado com Bate-Seba resultou na linhagem messiânica por meio dela e no casamento que gerou o próximo rei de Israel — Salomão. O pecado referente ao recenseamento dos guerreiros israelitas resultou na aquisição da eira de Araúna, local onde devia ser construído o templo por Salomão. A salvação dos gentios, em parte, foi devido à rejeição de Jesus Cristo como Messias pelos judeus (ver Romanos 11). O nosso pecado, embora ofenda um Deus justo, não O impede de agir. Deus pode até usar o nosso pecado para realizar Seus propósitos e cumprir Suas promessas. E não é só isso, Ele até mesmo utiliza Satanás para alcançar Seus objetivos (1 Crônicas 21:1 e ss).
Quarto, vemos por esse epílogo que nenhum rei humano jamais seria capaz de cumprir a promessa de salvação feita por Deus. Era preciso vir alguém maior do que Davi. Em 1 Samuel 8, Israel rejeitou a Deus como seu rei ao exigir um rei para “salvá-los” de seus inimigos. Mas Deus nunca realmente abdicou do Seu lugar como rei de Israel, como Salvador de Israel. Através da linhagem de Davi, um dia Ele iria providenciar um rei para o Seu povo, O qual os salvaria dos seus pecados. Ele seria mais do que Davi, mais do que um homem, e seria alguém sem pecado. Ele seria o Senhor Jesus Cristo, O qual viria como “O Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1:29). Ele viveria uma vida sem pecado e teria uma morte sacrificial em lugar do pecador. Ele seria “livrado da morte” por Deus Pai ao ser ressuscitado dentre os mortos. Ele voltaria como Rei de Israel, triunfante sobre os Seus inimigos. Samuel simplesmente aguça o nosso apetite quanto ao futuro “Rei”, que viria para salvar o Seu povo dos seus pecados.
Ao deixarmos o livro de Samuel, nossos olhos estão fixos na pessoa de Jesus Cristo, que haveria de vir como o “Filho de Davi” para salvar o Seu povo, e que Se “assentaria no trono de seu pai, Davi”. Do mesmo modo, nossos olhos estão fixos em um lugar, um local plano no topo de uma montanha perto de Jerusalém. Quando vejo o anjo do Senhor parado ali, com o braço erguido, prestes a atingir Jerusalém com sua espada, não posso deixar de me lembrar de Abraão, o qual também levantou a mão, pronto para cravar a faca em seu amado filho, Isaque. Aconteceu exatamente no mesmo lugar, o monte Moriá. E, nas duas vezes, Deus impediu a mão de tirar a vida, pois Ele tinha um sacrifício muito melhor, Um que tiraria o pecado do mundo.
Sim, o templo foi construído exatamente no mesmo lugar, no monte Moriá. E foi lá que foram oferecidos os sacrifícios que fizeram parar o julgamento da mão de Deus. Mas o melhor de tudo estava num monte não muito longe dali, o monte Calvário, onde a mão de Deus desceu sobre o Seu próprio Filho amado e, devido a esse sacrifício, os homens não precisam sofrer a ira eterna de Deus por causa dos seus pecados. É pela morte sacrificial de Jesus na cruz, e Sua ressurreição dentre os mortos — salvo pelo Pai — que a salvação eterna é oferecida a nós. Você já tomou posse desse presente? Já teve um encontro com Deus como seu Salvador, seu Libertador, sua Fortaleza? Se não, eu lhe digo para aceitá-lo agora mesmo.
Nosso texto tem muitas outras lições a nos ensinar, mas só vou mencionar mais algumas para sua reflexão. É bom tomarmos cuidado para não nos orgulhar daquilo que Deus realizada em nós e por meio de nós. Parece que uma parte do problema de Davi nesta passagem é a questão do orgulho, orgulho pelo que ele tinha feito, não pelo que Ele (Deus) tinha feito. Não vamos tentar medir o nosso sucesso ou a nossa santidade em termos quantitativos. Aos olhos de Deus, o sucesso raramente é visto dessa forma. Precisamos saber também que podemos ser tentados (pelo orgulho) a cair naquelas áreas onde mais nos sentimos seguros.
Não vamos descansar nas glórias passadas, rememorando aquilo que fizemos, mas sigamos em frente para aquilo que Deus ainda tem a realizar em nós e por meio de nós, para Sua glória e louvor (ver Filipenses 3).
Finalmente, vamos aprender com Davi que não existe adoração sem sacrifício. É claro que, em última análise, a nossa adoração é fundamentada no sacrifício de nosso Senhor Jesus Cristo. Contudo, há um sentido também em que o nosso culto deve ser prestado por meio do nosso sacrifício pessoal.
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porque assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função, assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria. (Romanos 8:1-12)
Não vos deixeis envolver por doutrinas várias e estranhas, porquanto o que vale é estar o coração confirmado com graça e não com alimentos, pois nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam. Possuímos um altar do qual não têm direito de comer os que ministram no tabernáculo. Pois aqueles animais cujo sangue é trazido para dentro do Santo dos Santos, pelo sumo sacerdote, como oblação pelo pecado, têm o corpo queimado fora do acampamento. Por isso, foi que também Jesus, para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta. Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério. Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir. Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com tais sacrifícios, Deus se compraz. Obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar contas, para que façam isto com alegria e não gemendo; porque isto não aproveita a vós outros. (Hebreus 13:9-17)
Praticamente em todas as igrejas evangélicas que conheço (sem mencionar as demais), há uma minoria de crentes fiéis que trabalha e se doa com sacrifício, a qual sustenta os muitos que pouco ou nada fazem. Há quem nunca dê aula, nunca ajude ou nunca faça alguma coisa. Estes são os cristãos “oportunistas”, que procuram o máximo benefício pelo menor custo. Eu lhe digo que a sua adoração vale muito pouco se você não sacrifica seu tempo, sua energia e seu dinheiro.
Não digo isso para você se sentir culpado, embora deva se sentir assim e se arrepender se for um crente preguiçoso e negligente. Digo-o para o seu próprio bem. Se você não está fazendo nenhum sacrifício, sua adoração praticamente não vale nada. Se quer prestar um culto que valha a pena, não é frequentando uma igreja com uma equipe profissional de líderes e de louvor, é tomando a cruz que Deus lhe deu e se sacrificando a Seu serviço. Não estou zangado quando digo isso, mas tenho pena daqueles cuja adoração não lhes custa nada. Deixe-me terminar com as palavras da boca dAquele que é padrão para todos os sacrifícios:
Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Marcos 10:45)
Cingido esteja o vosso corpo, e acesas, as vossas candeias. Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que, quando vier e bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aqueles servos a quem o senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em verdade vos afirmo que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-se, os servirá. Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira, bem-aventurados serão eles, se assim os achar. Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a que hora havia de vir o ladrão, [vigiaria e] não deixaria arrombar a sua casa. Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá. Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim. Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. (Lucas 12:35-44)
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 NT: O título dado pelo autor — Neiman Marcus Militar, Christianity Kmart? — é praticamente intraduzível para o português, uma vez que Neiman Marcus é uma luxuosa loja de departamentos norte-americana e kmart se refere a uma grande cadeia de lojas de descontos. O sentido geral do título é que a oferta feita por Araúna a Davi seria um “negócio de ocasião, uma oferta irrecusável”, contrastando o alto nível daquilo que é oferecido com uma oferta atraente.
2 O leitor deve verificar o texto paralelo de 2 Crônicas 21. Há uma porção de diferenças entre os dois textos. Elas até poderiam ser chamadas de contradições. Existe solução e explicação para cada uma delas, mas não vou me preocupar com isso nesta lição.
3 Essa expressão é usada com muita frequência na Bíblia e, quando aparece, é para descrever a ira de Deus devido a algum pecado muito grave. Veja, por exemplo, Êxodo 4:14, Números 12:9, Deuteronômio 29:27, Josué 7:1, Juízes 2:14, 20, 10:7, 2 Samuel 6:7, 2 Crônicas 25:15.
4 Poderíamos entrar numa longa discussão neste ponto, o que tentarei evitar. Aparentemente, poderíamos pensar que Deus fez Davi pecar fazendo o censo dos israelitas. Sabemos que Deus não tenta ninguém (Tiago 1:13-17), embora, com certeza, Ele nos prove (Deuteronômio 8:2). No entanto, o autor do texto quer que saibamos que Deus está por trás do pecado de Davi, no sentido de que isso realmente iria acontecer (como no caso da traição de Judas a nosso Senhor). Assim como Deus disse a Moisés que Ele iria endurecer o coração de faraó (Êxodo 4:21), a fim de poder usar sua rebelião para glorificar a Si mesmo (ver Romanos 9:14-18), Moisés também disse que faraó endureceu o seu próprio coração (Êxodo 8:32). O recenseamento feito por Davi fazia parte do propósito de Deus. Isso ia realmente acontecer, mas Deus não o forçou a pecar. Ele deu a Davi a oportunidade e a liberdade de fazer a escolha pecaminosa que Ele iria utilizar em Seu próprio intento (comparece com Gênesis 50:20).
5 Ver também 1 Reis 20:15, 26-27; 2 Reis 3:6; 2 Crônicas 25:5.
6 Como apontado praticamente por todos os estudiosos, esses números não batem exatamente com os números informados em 1 Crônicas 21. Existem várias explicações, mas, no final das contas, devemos confiar em Deus e esperar até a eternidade (com toda probabilidade) por uma solução satisfatória. Uma coisa em que tanto Samuel quanto Crônicas concordam é que, após o levantamento do censo, havia menos guerreiros do que antes, devido ao derramamento do juízo de Deus.
7 Repare que Gade também é chamado de “vidente”, o nome anterior para profeta (ver 1 Samuel 9:9).
8 Para a fome, ver Deuteronômio 28:48, 32:24; para fugir dos inimigos, ver Levítico 26:17, 36. As pragas eram consequência da quebra da aliança com Deus (Deuteronômio 28:21, cf. 1 Reis 8:31), mas estavam especialmente relacionadas a levantar o censo sem fazer expiação (Êxodo 30:12-16).
9 O texto hebraico de 2 Samuel 24:13 diz “sete anos de fome”, mas a tradução grega do texto (a Septuaginta) e o texto paralelo de 1 Crônicas 21:12 dizem “três anos de fome”. Sou mais propenso a aceitar a opção “três anos”, principalmente porque parece haver uma certa ênfase no número três: três anos de fome, três meses de derrota nas mãos do inimigo, três dias de peste enviada por Deus.
10 É fácil dizer que Araúna não era judeu, mas gentio. Há quem pense que, na verdade, ele era um antigo rei dos jebuseus, o qual, graciosamente, foi deixado com vida. É bem possível que isso tenha ocorrido por ele ter tido fé no Deus de Israel. Já que ele era estrangeiro, poderia vender sua propriedade, pois não era sua “herança”.