MENU

Where the world comes to study the Bible

3. O Significado do Homem: Seu Dever e Seu Deleite (Gênesis 1:36-31, 2:4-25)

Related Media

Introdução

Nas últimas semanas, um caso assustador foi notícia dos jornais. Suas implicações são quase inacreditáveis. O processo judicial envolvia um senhor de idade que aparentemente estava um pouco senil, e que também fazia hemodiálise. A família decidiu que ele não tinha mais serventia, e que, se ainda estivesse lúcido, desejaria dar cabo da sua existência miserável. Não fosse pelo protesto dos enfermeiros, os quais tinham se afeiçoado ao homem, talvez hoje ele estivesse morto.

Vivemos numa época assustadora. Temos nas mãos recursos tecnológicos e biológicos impressionantes, mas nenhuma base sólida, ética ou moral, para determinar como eles devem ser utilizados. Não só temos usado esses recursos de forma conveniente e barata para matar uma criança ainda no ventre da mãe, como também há uma grande discussão sobre o registro de uma certidão de vida, declarando um bebê legalmente vivo, da mesma forma que existe o registro de uma certidão de óbito quando um bebê é declarado legalmente morto. A certidão só seria emitida após nascimento da criança, quando uma bateria de testes poderia ser feita. Qualquer bebê “inferior”, ou potencialmente não produtivo, seria simplesmente rejeitado e declarado “não vivo”, e então eliminado. Também sei que em alguns lugares do mundo o suicídio não é considerado crime, os que querem cometê-lo simplesmente são aconselhados — mas não convencidos de seus erros!

Nestes tempos em que o poder sobre a vida e a morte parece estar nas mãos dos homens como jamais esteve, nossa sociedade se encontra num vácuo moral, tomando decisões desse tipo. As antigas questões filosóficas sobre o significado da vida não são mais acadêmicas e intelectuais — são questões práticas que precisam ser respondidas.

Por tudo isso, nunca os versículos de Gênesis 1 e 2 foram tão importantes quanto agora. Neles encontramos o significado do homem. Assim, dei a esta mensagem o título de O Significado do Homem: Seu Dever e Seu Deleite. Para entender de forma correta a passagem, é preciso compreender os princípios eternos que devem determinar nossas decisões éticas e morais. Somado a isso, somos relembrados mais uma vez sobre o que realmente faz nossa vida valer a pena.

Embora já tenhamos tratado dos seis dias da criação de maneira geral, é importante entender a relação existente entre os três primeiros capítulos de Gênesis. O capítulo 1 resume a criação de forma cronológica (na verdade, aqui também precisamos incluir os versículos 1 a 3 do capítulo dois).

Deus criou os céus e a terra e toda a vida em seis dias, e no sétimo, descansou. O homem é descrito como a coroa da criação de Deus. A fim de manter o formato cronológico, apenas uma descrição geral da criação do homem é feita nos versículos 26 a 31.

O capítulo dois volta ao assunto da criação do homem com um relato mais pormenorizado. Longe de ser uma contradição, como muitos estudiosos sugerem, o capítulo dois complementa com mais detalhes o capítulo um. Enquanto no primeiro capítulo está escrito que Deus criou o homem, homem e mulher (1:26-27), no segundo, a descrição é mais ampla. No primeiro capítulo, todas as plantas são dadas ao homem como alimento (1:29-30), no capítulo dois ele é colocado num adorável jardim (2:8-17). No capítulo um está escrito que o homem deve dominar sobre todas as criaturas de Deus (1:26-28), no segundo, ele recebe a tarefa de dar nomes a essas criaturas (2:19-20). Contradições entre esses dois capítulos só podem ser coisas da imaginação, pois fica claro que o escritor do primeiro capítulo pretendia preencher os detalhes no segundo.

Além disso, o capítulo dois serve como introdução e preparação para o relato da queda. O capítulo dois dá o contexto da queda do homem descrita no capítulo três. O jardim e as duas árvores, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (2:9), são apresentados a nós. A mulher que estava para ser enganada também é apresentada no capítulo dois. Sem o capítulo dois, o capítulo um seria breve demais e o capítulo três chegaria sem nenhuma preparação.

Se o capítulo um está disposto de forma cronológica — numa sequência de sete dias, o capítulo dois não é cronológico, mas lógico. É claro que os acontecimentos do capítulo dois se encaixam na ordem do capítulo um, mas ele é disposto de forma diferente. Se no capítulo um a criação é vista através de uma lente grande-angular, o capítulo dois é visto através de uma teleobjetiva. No capítulo um, o homem se encontra no topo da pirâmide, como coroa da atividade criativa de Deus. No capítulo dois, ele está no centro das ações e do interesse de Deus.

A Dignidade do Homem (1:26-31)

Uma vez que o capítulo dois tem como fundamento os detalhes básicos dados em 1:26-31, vamos começar examinando estes versículos com mais cuidado. O homem, como já dissemos, é a coroa do plano criativo de Deus. Isso fica claro em vários pontos.

Primeiro, o homem é a última das criaturas de Deus. O curso todo da narrativa é uma preparação para a criação do homem. Segundo, só o homem é criado à imagem de Deus. Embora haja muita discussão sobre o que isso significa, várias coisas estão implícitas no próprio texto. O homem é criado à imagem e semelhança de Deus em sua sexualidade.

Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:27)

Isso não quer dizer que Deus seja homem ou mulher, mas que Ele é tanto unidade como diversidade. No casamento, o homem e a mulher se tornam um, e mesmo assim são distintos um do outro. A unidade na diversidade exibida na relação do homem com sua esposa reflete uma faceta da personalidade de Deus.

O homem também, de alguma forma, é como Deus naquilo que o distingue do mundo animal. O homem, diferente dos animais, é feito à imagem e semelhança de Deus. O que o distingue dos animais, portanto, deve ser uma parte do seu reflexo de Deus. Sua capacidade de raciocínio, de comunicação e de tomada de decisões morais faz parte dessa distinção.

Além disso, o homem reflete a Deus em seu domínio sobre a criação. Deus é o Regente Soberano do universo. Ele delegou uma pequena porção da Sua autoridade ao homem no domínio da criação. Neste sentido, também, o homem reflete a Deus.

Observe, ainda, que são o homem e a mulher que dominam: “... dominai sobre...” (Gênesis 1:26, cf. v. 28).

Dominai se refere a ambos, não só às pessoas do sexo masculino que Deus fez. Embora Adão tenha a função de liderança (como evidenciado pela sua prioridade na criação1, por sua esposa ter origem no seu ser2 e por ele ter dado o nome a ela3), a função de Eva deve ser a de auxiliadora do seu marido. Nesse sentido, ambos devem dominar sobre a criação de Deus.

Apenas mais uma observação. Parece haver pouca dúvida de que na provisão dada por Deus ao homem como alimento, só vegetais foram incluídos naquela época:

E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra, e todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez. (Gênesis 1:29-30)

Somente depois da queda, e talvez do dilúvio, a carne foi introduzida como alimento para o homem (cf. Gênesis 9:3-4). O derramamento de sangue só teria sentido depois da queda, como um retrato da redenção que viria pelo sangue de Cristo. Está escrito que no milênio:

O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o SENHOR. (Isaías 65:25)

Se compreendo bem as Escrituras, o Milênio será o retorno das coisas ao que eram antes da queda. Assim, no paraíso do Éden, Adão e Eva, e o reino animal, eram todos vegetarianos. Como, então, alguém pode falar em “sobrevivência do mais forte” antes da criação de todas as coisas e da queda do homem?

No entanto, o mais importante é o fato de a dignidade e o valor do ser humano não serem imputados ao homem por ele mesmo, esses valores são intrínsecos a ele por ter ele sido criado à imagem de Deus. O valor do homem está diretamente relacionado à sua origem. Não é à toa que hoje estejamos ouvindo propostas éticas e morais tão assustadoras.

Qualquer opinião a respeito da origem humana que não veja o homem como produto do planejamento e do desígnio divino, não pode atribuir a ele o valor que Deus lhe deu. Colocando de outra forma, nossa avaliação sobre o homem é diretamente proporcional à nossa opinião sobre Deus.

Amigo, não sou profeta, mas me arrisco a dizer que nós, que somos chamados pelo nome de Cristo, num futuro bem próximo teremos de nos levantar e ser contados. Aborto, eutanásia e bioética, para citar apenas algumas questões, vão exigir padrões éticos e morais. O sólido princípio sobre o qual as nossas decisões devem ser tomadas, em minha opinião, é o fato de todos os homens terem sido criados à imagem de Deus.

Sob essa luz, agora posso ver porque nosso Senhor conseguiu resumir todo o Antigo Testamento em apenas dois mandamentos:

Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mateus 22:37-40)

A atitude do futuro parece ser a de amar só o “próximo” que contribui para a sociedade, só aquele que pode ser considerado de algum interesse. Como isso é diferente do sistema de valores do nosso Deus, que disse:

O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes (Mateus 25:40).

Na minha opinião, é aqui onde nós cristãos seremos colocados à prova. Algumas pessoas estão realmente sugerindo que aqueles a quem nosso Senhor chamou de “pequeninos” são justamente os quais devem ser eliminados da sociedade. Queira Deus nos ajudar a ver que a dignidade do homem é aquela que é divinamente estabelecida.

O Dever do Homem (2:4-17)

Enquanto Gênesis um descreve a progressão do caos para o cosmos, ou da desordem para a ordem, o capítulo dois segue um padrão diferente. Talvez a linha literária que permeia toda a passagem seja a da atividade criativa de Deus em suprir as coisas que estão ausentes.

O versículo 4 serve como introdução dos versículos restantes4. O versículo 5 nos informa o que está faltando e é suprido nos versículos 6 e 7: faltam os arbustos, as plantas, a chuva e o homem. Essas ausências são supridas pela neblina (versículo 6) e pelos rios (versículos 10 e 14), pelo homem (versículo 7) e pelo jardim (versículos 8 e 9).

A ausência dos versículos 18 a 25 é simplesmente afirmada: “não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea” (cf. versículos 18, 20). Essa auxiliadora é providenciada de uma bela forma na última parte do capítulo dois.

Além disso, preciso enfatizar que aqui Moisés não tinha intenção de nos dar uma narrativa dos acontecimentos em ordem cronológica, mas numa sequência lógica5. A criação do homem e da mulher e o contexto onde estão inseridos descrevem melhor sua intenção. Eles vêm a ser o fator chave na queda ocorrida no capítulo três.

Embora ainda não tivesse chovido, Deus providenciou a água necessária à vida das plantas. “Mas uma neblina subia da terra e regava toda a superfície do solo” (Gênesis 2:6).

Existe alguma discussão sobre a palavra “neblina” (‘ed). Ela poderia significar névoa ou neblina, como alguns afirmam6. A Septuaginta usou a palavra grega pege, que significa “nascente”. Alguns acham que a palavra hebraica seja derivada de uma palavra suméria, referindo-se a águas subterrâneas7. Pode ser que essas nascentes afluíssem para o solo e a vegetação fosse aguada por irrigação ou por canais. Isso poderia explicar, em parte, o trabalho de Adão na manutenção do jardim.

Providenciada a água, Deus criou o jardim, o qual devia ser o lugar de habitação do homem e objeto do seu cuidado. O jardim era bem provido com muitas árvores, as quais proporcionavam beleza e alimento.

Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal. (Gênesis 2:9)

Especificamente, duas árvores são mencionadas: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Esta última como sendo a única coisa proibida ao homem.

E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gênesis 2:16-17)

É interessante notar que, aparentemente, só Adão foi informado por Deus de que o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não podia ser comido. Não se pode dizer com certeza como ele transmitiu a Eva o mandamento de Deus. Será que isso explicaria a avaliação incorreta dela em 3:2-3?

E foi nesse paraíso que o homem foi colocado8. Embora certamente ele se regozijasse nesse país das maravilhas, ele também tinha de cultivá-lo. Vamos dar uma olhada novamente no versículo 5:

Não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois ainda nenhuma erva do campo havia brotado; porque o SENHOR Deus não fizera chover sobre a terra, e também não havia homem para lavrar o solo. (Gênesis 2:5)

Ao ser colocado no jardim, Adão teve de trabalhar lá: “Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis 2:15).

Em 2:7, a descrição da criação de Adão é mais completa do que no capítulo um. Ele foi formado9 do pó da terra. Embora isso seja um fato humilhante, também fica claro que a origem do homem não é do mundo animal, nem que ele é criado da mesma forma que os animais. Em parte, a dignidade de Adão provém do fato de que seu fôlego de vida é soprado por Deus (versículo 7).

Aquele jardim não era um lugar imaginário. Cada parte da descrição daquele paraíso nos leva a pensar nele como um jardim de verdade, situado em alguma região geográfica específica. Existem pontos de referência definidos. Quatro rios são mencionados, dois deles conhecidos ainda hoje. Não deveríamos ficar surpresos com as mudanças que devem ter ocorrido, principalmente depois do evento cataclísmico do dilúvio, o que tornaria impossível sua localização exata.

Para mim, uma das coisas mais interessantes é que o paraíso do Éden foi um lugar um pouco diferente daquilo que imaginamos. Pra começar, foi um lugar de trabalho. Os homens modernos imaginam o paraíso como uma rede pendurada entre dois coqueiros numa ilha deserta, onde nunca terão de encarar o trabalho. Além disso, o céu é tido como o fim de todas as proibições. Muitas vezes, ele também é confundido com hedonismo. É autocentrado e orientado para o prazer. Embora o estado de Adão fosse de beleza e felicidade, não se pode pensar que tenha sido de prazer irrestrito. O fruto proibido também fazia parte do Paraíso. O céu não é a experiência de todos os desejos, e sim a satisfação de desejos benéficos e saudáveis.

A subserviência não é um conceito inédito no Novo Testamento. Trabalho significativo proporciona satisfação e objetivo na vida. Deus descreveu Israel como um jardim cultivado, uma vinha (Isaías 5:1-2 ss). Jesus falou de Si mesmo como a Videira e nós como os ramos. O Pai cuida da Sua vinha com ternura (João 15:1 e ss). Paulo descreveu o ministério como o trabalho de um lavrador (2 Timóteo 2:6).

Embora a igreja do Novo Testamento seja melhor descrita como um rebanho, ainda assim a imagem do jardim não é inapropriada. Há um trabalho a ser feito pelo filho de Deus. E esse trabalho não é penoso, não é um dever a ser cumprido com relutância. É uma fonte de alegria e satisfação. Hoje em dia, muita gente não tem senso real de sentido e propósito porque não faz o trabalho designado por Deus.

O Deleite do Homem (2:18-25)

Resta ainda uma ausência. Já existe água adequada, a bela e generosa provisão do jardim, e um homem para cultivá-lo. No entanto, ainda não há uma companhia apropriada para o homem. Essa necessidade se encontra nos versículos 18 a 25.

O jardim, com seus prazeres e delícias, e uma atividade significativa, não era suficiente se o homem não pudesse compartilhá-lo com alguém. Deus ia providenciar aquilo de que Adão mais precisava.

Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. (Gênesis 2:18)

A companheira de Adão devia ser uma criação muito especial, uma “auxiliadora idônea para ele” (versículo 18). Ela devia ser uma “auxiliadora”, não uma escrava, não uma inferior. A palavra hebraica ezer é muito interessante. Essa era uma palavra que Moisés obviamente gostava, pois Êxodo 18:4 diz que este foi o nome dado por ele a um de seus filhos.

E o outro, Eliézer (El = Deus), pois disse: o Deus de meu pai foi a minha ajuda e me livrou da espada de Faraó. (Êxodo 18:4)

Em Deuteronômio, Moisés ainda usa mais três vezes a palavra ezer (33:7, 26, 29), referindo-se a Deus como auxiliador do homem. O mesmo acontece nos Salmos (20:2, 33:20, 70:5, 89:19, 115:9, 121:1-2, 124:8, 146:5).

No Antigo Testamento, o sentido mais frequente em que a palavra é empregada não implica, absolutamente, em inferioridade. De modo consistente com seu uso, Deus está auxiliando o homem por meio da mulher. Que belo pensamento. Como isso é superior a algumas concepções humanas.

Por isso, Eva é também uma auxiliadora que “corresponde a” Adão. Certa tradução diz: “...Farei uma auxiliadora como ele”10.

Isso é justamente o oposto daquilo que consideramos a esposa perfeita — alguém que seja exatamente como nós. Em muitos casos, a incompatibilidade é designação de Deus. Como Dwight Hervey Small bem observou:

A incompatibilidade é um dos propósitos do casamento! Fardos e conflitos são designados por Deus como lições para o crescimento espiritual. Eles existem para que haja submissão aos santos e elevados propósitos11.

Assim como Eva foi feita para corresponder a Adão de forma física, ela também o completava social, intelectual, espiritual e emocionalmente.

Assim, quando aconselho àqueles que estão planejando se casar, não procuro descobrir o maior número possível de semelhanças entre eles. Pelo contrário, eu me preocupo em fazer com que cada um tenha uma visão precisa daquilo que o outro realmente é, e que eles estejam comprometidos com o fato de Deus estar unindo-os de forma permanente. O reconhecimento de que Deus fez o homem e a mulher propositadamente diferentes, e a determinação de atingir a unidade na diversidade, é essencial para um casamento saudável.

Antes de criar a contraparte de Adão, primeiramente Deus aguçou seu apetite. Os animais criados por Ele foram levados a Adão para que ele lhes desse nome. Dar nome aos animais refletia o domínio de Adão sobre eles, como intentado por Deus (cf. 1:28). Isso deve ter envolvido um estudo cuidadoso por parte de Adão para registrar as características peculiares de cada animal12.

Esse processo deve ter levado algum tempo. Adão deve ter observado que nenhuma daquelas criaturas poderia preencher o vazio da sua vida. Além disso, gostaria de usar um pouco de imaginação santa para supor que ele também observou que cada um deles tinha uma companheira, uma contraparte maravilhosamente concebida. Com certeza, ele notou que só ele não tinha ninguém.

E foi nesse instante, de profunda necessidade e desejo, que Deus colocou Adão em sono profundo13, e da sua costela e carne14 formou a mulher15. Então, Deus a deu de presente a ele.

Como é empolgante a resposta de Adão:

E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. (Gênesis 2:23)

Gosto da maneira como a RVS (Revised Standard Version) traduz a resposta inicial de Adão: “afinal...”16 (em português, a versão Almeida Revista e Atualizada - ARA)

Nessa expressão há uma mistura de alívio, êxtase e deliciosa surpresa. “Esta, afinal (pois Adão ainda não lhe tinha dado nome), é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (versículo 23a). O nome da companheira de Adão é mulher. A tradução em inglês capta bem o jogo de sons semelhantes. Em hebraico, a pronúncia para homem seria ‘ish; e para mulher, ‘ishshah. Embora os sons sejam semelhantes, a raiz das duas palavras é diferente. Apropriadamente, talvez ‘ish venha de uma raiz paralela árabe, transmitindo a ideia de “exercer o poder”, enquanto o termo ‘ishshah talvez seja derivado de um paralelo árabe, significando “ser suave”17.

O comentário divinamente inspirado do versículo 24 é muito importante:

Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne. (Gênesis 2:24)

De acordo com este texto, é imperativo que o homem deixe mãe e pai e se una à sua mulher. Qual é a relação deste mandamento de deixar e se unir com a criação da mulher? O versículo 24 começa com “por isso...”. Por isso, o quê? Só podemos entender a razão se explicarmos o mandamento. O homem deve deixar seus pais, não no sentido de evitar sua responsabilidade para com eles (cf. Marcos 7:10-13, Efésios 6:2-3), mas no sentido de ser dependente deles. Ele precisa parar de viver sob a sua liderança e começar a agir sozinho como cabeça de um novo lar18.

A mulher não recebe o mesmo mandamento porque simplesmente é transferida de uma liderança para outra. Antes ela estava sujeita ao pai, agora está unida ao marido. O homem, no entanto, tem uma transição mais difícil. Ele, como filho, era dependente dos pais e submisso a eles.

Quando um homem se casa, ele precisa passar pela transição radical de um filho dependente e submisso para um líder independente (dos pais), que age como cabeça do seu lar.

Como muitos observam, a relação de marido e mulher é permanente, enquanto a relação de pai e filho é temporária. Mesmo se os pais não estiverem dispostos a encerrar essa relação, o filho é responsável por fazê-lo. Deixar de agir assim é rejeitar o tipo de vínculo necessário que ele deve ter com sua esposa.

Agora, talvez estejamos em posição de ver a relação desse mandamento com o relato da criação. Por que ele é mencionado aqui em Gênesis? Antes de tudo, não existem pais dos quais Adão e Eva tenham nascido. A origem de Eva vem diretamente do seu marido, Adão. A união ou vínculo entre ele e sua esposa é a união que vem de uma só carne (a carne de Adão) e se torna uma só carne (na união física). Esse vínculo é maior do que aquele entre pai e filho. Uma mulher é, naturalmente, o produto dos seus pais, tal como o homem é dos seus. No entanto, a união original não envolvia pais e a esposa era parte da carne do seu marido. Portanto, este primeiro casamento é evidência da primazia da relação marido e mulher sobre a relação pai e filho.

O último versículo não é incidental. Ele nos diz muita coisa que precisamos saber. “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam” (Gênesis 2:25).

Sabemos, por exemplo, que o lado sexual dessa relação era uma parte da vida no paraíso. O sexo não teve origem com ou depois da queda. A procriação e a intimidade física foram intencionadas desde o princípio (cf. 1:28). Também vemos que o sexo podia ser apreciado ao máximo no plano divino. Desobediência a Deus não aumenta o prazer sexual; ela o diminui. Hoje, o mundo quer acreditar que inventou o sexo e que Deus apenas tenta impedi-lo. No entanto, sexo, sem Deus, não é o que poderia ou deveria ser.

Ignorância, se me perdoam dizer, é felicidade. Em nossa geração somos legais, ou se preferir, sofisticados, só quando sabemos (por experiência) tudo o que há para saber sobre sexo. Somos levados a crer que, “aqueles que não fizeram sexo antes do casamento são ingênuos demais”. Há muitas coisas que é melhor não saber. O sexo nunca foi tão apreciado como foi na doce ignorância.

A revelação posterior lança muita luz sobre este texto. Nosso Senhor, de forma significativa, cita os capítulos um e dois de Gênesis como se fossem um só relato (Mateus 19:4-5), um golpe fatal nos críticos do documento original.

A origem divina do casamento significa que ele não é mera invenção social (ou convenção), mas instituição divina para o homem. Quando Deus une um homem e uma mulher em casamento, a união é permanente: “O que Deus uniu, não o separe o homem” (Mateus 19:6).

O fato de Adão ter precedido sua esposa na criação e de Eva ser proveniente dele também estabelece as razões pelas quais o marido deve exercer a liderança no casamento (cf. 1 Coríntios 11:8-9, 1 Timóteo 2:13). O papel das mulheres na igreja não é apenas ideia de Paulo, restrita ao tempo e à cultura dos cristãos de Corinto. O papel bíblico da mulher é estabelecido no relato bíblico da criação (cf. também 1 Coríntios 14:34).

Conclusão

Tendo considerado a passagem por partes, vamos agora voltar nossa atenção para ela como um todo. Nenhuma outra passagem, em toda a Bíblia, define de forma tão sucinta as coisas realmente importantes da nossa existência. O significado da vida só pode ser compreendido quando relacionado ao Deus que criou o homem à Sua imagem e semelhança. Embora esta imagem tenha sido distorcida por causa da queda, aqueles que estão em Cristo são renovados à imagem dEle:

… e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade (Efésios 4:23-24).

… e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou (Colossenses 3:10).

Além disso, o sentido da vida não é apenas encontrado na dignidade dada por Deus ao homem ao criá-lo à Sua imagem, mas no trabalho dado a ele. Os homens, com frequência, vêm o trabalho como maldição. Embora tenha sido afetado pela queda (Gênesis 3:17-19), o trabalho foi dado antes dela, e é um canal de bênçãos e de realizações quando feito como se fosse para o Senhor (cf. Colossenses 3:22-24).

Finalmente, a instituição do casamento é dada por Deus para enriquecer profundamente a nossa vida. O trabalho que temos de fazer se torna muito mais rico e produtivo quando o dividimos com a contraparte que nos é dada por Deus. Eis, então, o que realmente importa na vida — reconhecer a nossa dignidade divinamente ordenada, o nosso dever e o nosso deleite. O nosso valor, o nosso trabalho e a nossa esposa são todos fontes de grande bênção quando são “no Senhor”.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 1 Timóteo 2:13

2 1 Coríntios 11:8,12

3 Gênesis 2:23

4 “Hoje é um fato bem conhecido que o livro de Gênesis foi dividido em 10 seções pelo próprio autor, para cada uma das quais ele dá o título de “história” (toledo‚th); cf. 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 27; 25:12, 19; 36:1, (9); 37:2. Só isso, mais o uso de um número redondo - dez, já seria suficiente para se dizer que, aqui, a expressão “descendentes de” também deve ser um cabeçalho. Em todos os outros exemplos de uso em outros livros pode-se observar a mesma coisa; cf. Nm. 3:1; Rt 4:18; 1 Cr. 1:29; onde é sempre um cabeçalho.” H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 110.

5 “O versículo 4b nos leva à época da criação, mais especificamente, ao período anterior ao início do terceiro dia, e chama nossa atenção para certos detalhes que, sendo detalhes, dificilmente teriam sido inseridos no capítulo um: o fato de que certos tipos de planta, isto é, as espécies que requerem maior cuidado e atenção por parte do homem, ainda não tinham brotado. Aparentemente, toda a obra do terceiro dia se encontra na mente do escritor.” Ibid., p.112.

“Insisto em dizer que o primeiro capítulo deve ser entendido de forma cronológica. O que é visto pela ordem de desenvolvimento e pela sequência de pensamento. Existe também uma ênfase cronológica – primeiro dia, segundo, e assim por diante. Isto não está no segundo capítulo de Gênesis. Ali, em vez de fazer uma exposição em ordem cronológica, o Senhor está expondo o assunto passo a passo em preparação para o relato da tentação.” E. J. Young, In The Beginning, (Carlisle, Pennsylvania, The Banner of Truth Trust, 1976), p. 70.

6 Esse parece ser o ponto de vista Leupold, I, pp. 113-114.

7 “O que deve entender por “ed”? Não neblina! A palavra aparentemente tem relação com uma palavra suméria. Ela parece se referir a águas subterrâneas, e o que temos aqui ou é água irrompendo de algum lugar abaixo do solo ou talvez o transbordamento de um rio. Não acho que dê para fazer uma afirmação categórica quanto a isso.” Young, pp. 67-68. Cf. Também Derek Kidner, Genesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), pp. 59-60.

8 “A palavra “Éden”, em hebraico, pode significar deleite ou prazer. Não estou certo de que aqui o significado seja esse. Existe uma palavra suméria que quer dizer estepe, planície, vasta planície, e foi a leste desta planície que Deus plantou o jardim. Sem ser categórico, em minha opinião, é isso o que “Éden” significa. Assim, o jardim é plantado.” Young, p. 71.

9 “O verbo aqui empregado está mais de acordo com o caráter “Yahweh” de Deus; yatsar significa “moldar” ou “formar”. É a palavra que descreve especificamente a atividade do oleiro (Jr. 18:2 e ss). A ideia é ressaltar o cuidado e a atenção pessoal dados pelo oleiro ao seu trabalho. Deus deixa sinais do Seu interesse no homem, Sua criatura, na maneira como o forma”. Leupold, p. 115.

10 Cf. Leupold, p. 129

11 Dwight Hervey Small, Design For Christian Marriage (Old Tappan, New Jersey: Fleming H. Revell, 1971), p. 58. Em outro lugar Small observa: “Como Elton Trueblood sugere, um casamento de sucesso não é aquele no qual duas pessoas, que combinam perfeitamente, encontram um ao outro e seguem em frente sempre felizes, por causa de sua afinidade inicial. É, em vez disso, um sistema por meio do qual pessoas que são pecaminosas e briguentas são então alcançadas por um sonho e um propósito maior do que eles mesmos, que trabalham ao longo dos anos, apesar de repetidos desapontamentos, para tornar o sonho realidade.” p. 28.

12 “Pois a expressão dar nomes, no uso hebraico da palavra ‘nome’, envolve uma designação expressiva da natureza ou caráter daquele que é nomeado. Esta não era uma fábula tosca, onde, segundo a concepção hebraica, exclamações acidentais ao avistar uma nova e estranha criatura eram guardadas para dar nomes no futuro.” Leupold, p. 131.

13Tardemah é, de fato, um “sono profundo”, não um estado de êxtase, como interpretaram os tradutores gregos; também não é um “transe hipnótico” (Skinner), pois não encontramos qualquer sinal de hipnose nas Escrituras. Um “transe” talvez seja possível. A raiz, no entanto, é a mesma do verbo usado em referência a Jonas, quando ele dormia profundamente durante a tempestade.” Ibid, p. 134.

14 “A palavra tsela traduzida por “costela”, realmente tem esse significado (contra V. Hofman), embora não seja necessário pensar apenas em osso puro; pois, sem dúvida, osso e carne foram usados por aquela de quem o homem disse: “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23). Ibid.

15 “A atividade de Deus ao moldar a costela tirada do homem é descrita como uma construção (wayyi ‘bhen). Antes de ser indicação da obra de um autor diferente, o verbo desenvolve a situação de forma mais apropriada. Não teria sido adequado o uso de yatsar para ‘formar’, pois é um verbo que se aplica no caso do barro, não da carne. “Construir” aplica-se à modelagem de uma estrutura importante; que envolve esforço na construção.” Ibid, p. 135.

16 Ou, como Leupold sugere “Agora, finalmente” (p. 136).

17 Leupold, pp. 136-137.

18 Creio que é preciso ter muito cuidado na aplicação do princípio de Bill Gothard “corrente de conselho”. Embora o sensato procurará conselho, e alguns possam vir de seus pais, dependência é um perigo real. O problema não é tanto com o princípio, mas com a aplicação.

Related Topics: Man (Anthropology)

4. A Queda do Homem (Gênesis 3:1-24))

Related Media

Introdução

Se a queda do homem tivesse ocorrido em nossos dias, seria difícil imaginar as consequências. Suponho que a União Americana pelas Liberdades Civis imediatamente entraria com uma ação — contra Deus, e em defesa de Eva e Adão, seu marido (a ordem dos dois não é acidental). O processo provavelmente seria constituído com base na alegação de despejo ilegal. “Afinal de contas”, diriam, “o suposto ato pecaminoso foi consumado na privacidade do jardim, por duas pessoas adultas”. Mas, acima de tudo, diriam que a punição era muito maior que o crime (se, de fato, houve algum). Estaria Deus realmente falando sério? Só por causa de uma mordida num “fruto proibido”, o homem e a mulher são despejados e sofrerão as consequências disso por toda a vida? Mais ainda, só por causa desse único ato, o mundo inteiro e a humanidade toda continuarão sofrendo esses males, até mesmo nós?

Aqueles que não levam a Bíblia a sério, ou literalmente, têm um pouco de dificuldade com esta passagem. Eles simplesmente tratam o terceiro capítulo de Gênesis como se fosse lenda. Para eles, este capítulo é apenas uma história simbólica que tenta explicar as coisas como elas são. Os detalhes da queda não apresentam nenhum problema, pois não são fatos reais, são pura ficção.

Os evangélicos talvez busquem conforto no fato de que isso aconteceu em algum lugar longínquo, há muito tempo. Já que a queda ocorreu há tantos anos, a nossa tendência é não pensar muito nas coisas que saltam aos olhos nesta passagem.

No entanto, muitas questões sérias surgem em relação ao relato da queda do homem. Por que, por exemplo, Adão tem de assumir a maior parte da responsabilidade, quando é Eva a personagem principal da narrativa? Colocando a questão em termos mais contemporâneos, por que Adão levou a culpa se foi Eva quem conversou com a serpente?

Além disso, precisamos pensar na gravidade das consequências do homem ter partilhado o fruto proibido à luz do que parece ser um fato tão insignificante. O que há de tão ruim nesse pecado para provocar uma resposta tão drástica de Deus?

A estrutura dos primeiros capítulos de Gênesis requer a descrição da queda do homem. Nos capítulos um e dois, lemos sobre a criação perfeita que Deus avaliou como sendo “boa” (cf. 1:10, 12, 18, 21). No capítulo quatro nos deparamos com ciúme e assassinato. Nos capítulos seguintes a raça humana vai de mal a pior. O que aconteceu? Gênesis três tem a resposta a essa pergunta.

Por isso, esse capítulo é importantíssimo, pois ele explica o mundo e a sociedade como os vemos atualmente. Ele nos fala sobre as estratégias de Satanás para seduzir os homens. Ele dá sentido às passagens do Novo Testamento que restringem as mulheres de assumir cargos de liderança na igreja. Ele nos desafia a pensar se ainda hoje “caímos”, ou não, à maneira de Adão e Eva.

Entretanto, este não é um capítulo que vamos nos arrepender de estudar. Ele descreve a entrada do pecado na raça humana e a gravidade das consequências da desobediência do homem. Contudo, além da pecaminosidade do homem e da pena que ela merece, há também a revelação da graça de Deus. Ele busca o pecador e providencia uma cobertura para o pecado. Ele promete um Salvador por meio do qual todo esse trágico incidente se transformará em triunfo e salvação.

O Pecado do Homem (3:1-7)

De repente, sem mais nem menos, no versículo um aparece a serpente. Só estávamos preparados para encontrar Adão, Eva e o jardim, pois já os tínhamos visto antes. Sabemos que a serpente é uma das criaturas de Deus, por isso, devemos pensar nessa criatura literalmente. No entanto, mesmo sendo uma cobra da verdade, a revelação posterior nos diz que o animal estava sendo usado por Satanás, o qual é descrito como dragão e serpente (cf. 2 Coríntios 11:3 e Apocalipse 12:9, 20:2).

Embora tenhamos o desejo de saber as respostas para as questões relacionadas à origem do mal, não era intenção de Moisés falar sobre isso neste ponto. O que Deus quer nos mostrar é que somos pecadores. Ir mais além só desvia a nossa atenção da nossa responsabilidade pelo pecado.

Observe, em especial, a abordagem de Satanás. Ele não chega como um ateu, ou como alguém que, logo de cara, desafie a fé que Eva tem em Deus1. Às vezes, ele pode se manifestar como uma Madalyn Murray O’Hair (ativista ateísta americana, mais conhecida pela ação judicial que levou a um marco decisivo da Suprema Corte que terminou com a leitura oficial da Bíblia nas escolas públicas americanas), mas, o mais provável é que seja como um “anjo de luz” (2 Coríntios 11:14). Com frequência, ele está atrás do púlpito, segurando uma Bíblia nas mãos.

A forma como Satanás faz as perguntas é significativa. A palavra “assim” (versículo um) é cheia de insinuação. O efeito é este: “Deus não disse isso mesmo, disse?” A palavra Deus (“Deus disse” — versículo um) também é interessante. Até aqui Moisés vinha usando a expressão “O Senhor Deus”, Yahweh Elohim: “Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito” (Gênesis 3:1). No entanto, quando Satanás se refere ao Senhor Deus ele o faz só como Deus. Essa omissão é indício da sua atitude rebelde diante do Deus todo-poderoso.

A abordagem inicial de Satanás é para enganar, não para negar; é para causar dúvida, não desobediência. Ele não chega até Eva como um inquiridor. Ele deliberadamente distorce o mandamento de Deus, mas de forma a sugerir: “Talvez eu esteja errado, por isso, corrija-me se me enganei”.

Ora, Eva nunca teria começado essa conversa. Era uma completa subversão da ordem de autoridade estabelecida por Deus. A ordem era: Adão, Eva, criatura. Adão e Eva deviam expressar o domínio de Deus sobre a Sua criação (1:26). Eva não teria hesitado em reprovar a conversa, não fosse a maneira pela qual Satanás a iniciou.

Se Satanás tivesse começado por desafiar o mandamento de Deus ou a fé que Eva tinha nEle, a escolha dela teria sido muito fácil. Mas o que ele fez foi distorcer o mandamento de Deus. Ele colocou a questão de forma a parecer estar mal informado e precisar de correção. Poucos de nós conseguem evitar a tentação de dizer aos outros que estão errados. E assim, por incrível que pareça, Eva começa a trilhar o caminho da desobediência supondo estar defendendo a Deus contra a serpente.

Reparou que Satanás não menciona nem a árvore da vida nem a árvore do conhecimento do bem e do mal? Que ataque sutil! Sua pergunta leva a árvore proibida ao centro do pensamento de Eva, mas sem qualquer menção a ela. Eva o faz. Com sua pergunta, Satanás não somente leva Eva ao diálogo, mas também tira seus olhos da generosa provisão de Deus e a faz pensar somente na Sua proibição. Satanás não quer que consideremos a graça de Deus, só que pensemos com rancor nas Suas proibições.

E é exatamente isso o que, imperceptivelmente, toma conta dos pensamentos de Eva. Ela mostra sua mudança de atitude em muitas “escorregadelas freudianas”. Embora Deus tenha dito: “de qualquer árvore do jardim comerás livremente” (2:16), ela diz: “do fruto das árvores do jardim podemos comer” (3:2). Ela omite “qualquer” e “livremente”, as duas palavras que ressaltam a generosidade de Deus.

Igualmente, ela tem uma impressão distorcida da severidade de Deus na proibição do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Ela repete Sua instrução com estas palavras: “dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais” (3:3). Só que Deus tinha dito: “mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (2:17).

Enquanto exagera a proibição a ponto de até mesmo tocar na árvore ser uma coisa ruim, inconscientemente Eva subestima o julgamento de Deus omitindo a palavra “certamente” e deixando de dizer que a morte viria no dia da transgressão. Em outras palavras, ela ressalta a severidade de Deus, mas subestima o fato de que o julgamento vai ser executado em breve e com certeza.

O primeiro ataque de Satanás à mulher foi o de um observador religioso, tentando criar dúvidas sobre a bondade de Deus e fixando a atenção dela na proibição, não no que era dado livremente. O segundo ataque é ousado e descarado. Agora, em lugar da dúvida e logro há negação, seguida de calúnia ao caráter de Deus: “Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis” (3:4).

As palavras de advertência de Deus não devem ser entendidas como promessa certa de punição, mas como simples ameaça de uma divindade egocêntrica.

Talvez fiquemos admirados diante da negação categórica de Satanás, mas, em minha opinião, é exatamente isso o que enfraquece a oposição de Eva. Como alguém pode estar errado estando tão seguro? Hoje, meu amigo, muitas pessoas são convencidas mais pelo tom categórico de um professor do que pela fidelidade doutrinária do seu ensino. Dogmatismo não é garantia de precisão doutrinária.

O golpe fatal de Satanás está registrado no versículo cinco: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (3:5).

Muitos têm tentado determinar exatamente o que Satanás está oferecendo no versículo cinco. Ele garante que “se vos abrirão os olhos”. Em outras palavras, Adão e Eva estão vivendo num estado de incompletude, de inadequação. Mas, quando comerem o fruto, eles vão entrar num novo e mais sublime nível de existência: eles vão ser “como Deus”.2

Da forma como vejo a declaração de Satanás, ela é deliberadamente vaga e evasiva. Isso deve ter estimulado a curiosidade de Eva. Conhecer “o bem e o mal” talvez seja conhecer tudo3. No entanto, como ela poderia compreender os detalhes específicos da oferta se ainda nem sabia o que era o “mal”?

Um amigo meu diz que as mulheres são, por natureza, mais curiosas que os homens. Não sei se isso é verdade, mas sei que também sou muito curioso. O mistério da possibilidade de conhecer mais e de viver nalgum plano superior de vida com certeza é um convite à especulação e à reflexão.

Encontrei no livro de Provérbios esta ilustração sobre a curiosidade humana:

“A loucura é mulher apaixonada, é ignorante, e não sabe cousa alguma. Assenta-se à porta de sua casa, nas alturas da cidade, toma uma cadeira, para dizer aos que passam e seguem direito o seu caminho: Quem é simples, volte-se para aqui. E aos faltos de senso diz: As águas roubadas são doces, e o pão comido às ocultas é agradável”. (Provérbios 9:13-17)

A mulher tola é naturalmente ignorante e não sabe de nada, mas atrai suas vítimas oferecendo-lhes uma experiência nova, e o fato de isso ser ilícito só aumenta o poder de atração (versículos 16 e 17). Foi esse o tipo de oferta feita por Satanás a Eva.

É neste ponto, creio eu, que ele deixa Eva com seus pensamentos. Sua semente destrutiva já foi plantada. Embora ainda não tenha comido do fruto, Eva já começou a cair. Ela conversou com Satanás e agora está nutrindo pensamentos blasfemos sobre o caráter de Deus. Ela está contemplando seriamente a desobediência. O pecado não é instantâneo, mas sequencial (Tiago 1:13-15), e Eva está a caminho dele.

Observe que a árvore da vida nem mesmo é mencionada ou considerada. As duas árvores estavam bem diante de Eva, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Aparentemente, não foi uma escolha entre uma e outra. Ela só viu o fruto proibido. Só ele pareceu ser “bom para comer e agradável aos olhos” (versículo 6); no entanto, em 2:9 é dito que todas as árvores tinham as mesmas características. Mas Eva tinha olhos só para o que era proibido. Essa árvore ofereceu algum atrativo misterioso de vida que atraiu a mulher.

Satanás mentiu descaradamente ao garantir a Eva que ela não morreria, mas deixou de mencionar as letras miúdas da promessa servida junto com o fruto proibido. Tendo estudado a tal árvore durante algum tempo (imagino eu), finalmente ela decide que os benefícios são bons demais e as consequências bem pouco razoáveis e, portanto, improváveis. Nesse instante ela pega o fruto e come.

Talvez algumas pessoas balancem a cabeça diante da atitude de Eva, mas o estranho mesmo é que Adão, aparentemente sem hesitação, sucumbe ao convite dela para também desobedecer. Moisés emprega quase seis versículos (Gênesis 3:1-6a) para descrever a sedução e a desobediência de Eva, mas apenas uma pequena parte de uma sentença para registrar a queda de Adão (Gênesis 3:6-b). Por que será? Embora eu não seja tão categórico quanto a isso como já fui, duas palavrinhas de Moisés poderiam nos dar a resposta: “com ela” (versículo 6, NT: quase todas as versões em português não trazem essas palavras):

Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido e ele comeu. (Gênesis 3:6)

Seria possível que Eva não estivesse sozinha com a serpente?4 Será que Moisés, com as palavras “com ela”, está dizendo que Adão presenciou tudo, mas não abriu a boca? Se ele estava lá, ouvindo cada palavra, e assentindo com seu silêncio, então não é de admirar que ele simplesmente tenha pego o fruto e comido quando Eva lhe ofereceu.

Isso deve ser mais ou menos como quando eu e minha esposa estamos na sala assistindo televisão. Quando a campainha toca, ela se levanta para atender, enquanto continuo vendo meu programa favorito. Posso ouvi-la deixando o vendedor de aspirador de pó entrar e interessar-se cada vez mais pelo seu blá-blá-blá de vendedor. Não quero parar de assistir ao meu programa, por isso, deixo a conversa continuar, até minha esposa fazer um carnê de prestações. Se ela entrasse na sala e me dissesse “assine aqui também, por favor”, não seria nenhuma surpresa se eu assinasse sem protestar. A culpa seria minha por permitir que ela tomasse uma decisão e eu resolvesse segui-la.

Mesmo se Adão não estivesse ali durante a conversa entre a serpente e sua esposa, ainda podemos imaginar o que pode ter acontecido. Eva, sozinha, teria comido o fruto e depois teria corrido para contar ao marido o que achou daquilo. Dá bem para imaginar que ele ia querer saber de duas coisas. Primeira, se ela se sentia melhor — ou seja, se o efeito do fruto era bom. Segunda, se tinha acontecido alguma coisa ruim. Afinal de contas, Deus tinha dito que eles morreriam naquele mesmo dia. Se ela tivesse achado o fruto agradável e ainda não estivesse sentindo alguma coisa estranha, com certeza ele seguiria seu exemplo. Que erro terrível!

Os versículos 7 e 8 são muito instrutivos, pois nos ensinam que o pecado tem consequências, e castigo também. Deus ainda não tinha prescrito nenhuma punição para o pecado de Adão e Eva, mas as consequências já estavam irremediavelmente presentes. As consequências mencionadas aqui são vergonha e separação.

A nudez antes partilhada sem culpa agora era fonte de vergonha para Adão e Eva. A doce inocência se fora para sempre. Lembre-se, não havia outra pessoa no jardim, só os dois. Mas eles estavam com vergonha de encarar um ao outro sem roupa. Eles não só não conseguiam se encarar como antes, como também estavam morrendo de medo de encarar a Deus. Quando Ele veio ter a doce comunhão com eles, eles se esconderam de medo.

Deus tinha dito que eles morreriam no dia em que comessem do fruto proibido. Algumas pessoas ficam confusas com essa promessa de julgamento. Embora o processo de morte física tenha começado naquele dia fatídico, eles não morreram fisicamente. Precisamos nos lembrar de que a morte espiritual é a separação de Deus.

Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. (2 Tessalonicenses 1:9)

É incrível, mas a morte espiritual de Adão e Eva ocorreu naquela mesma hora — ou seja, agora havia a separação de Deus. E essa separação não foi imposta por Ele, foi causada pelo próprio homem.

Preciso me desviar um pouco do assunto para dizer que a morte espiritual experimentada por Adão e sua esposa é a mesma de nossos dias. É a alienação de Deus. E é escolha do próprio homem. É o seu desejo. Inferno é Deus dar aos homens as duas coisas — o que eles querem e o que merecem (cf. Apocalipse 16:5-6).

Deus Busca, Investiga e Sentencia o Homem (3:8-21)

A separação ocasionada por Adão e Eva é a mesma que Deus busca restaurar. Ele busca o homem no jardim. Enquanto a pergunta de Satanás tinha intenção de causar a queda do homem, as perguntas de Deus buscam sua reconciliação e restauração.

Observe que não são feitas perguntas à serpente. Não há intenção de restauração para Satanás. Sua condenação está selada. Observe também que aqui existe uma ordem ou sequência. A queda do homem ocorre nesta ordem: serpente, Eva, Adão. Isso é exatamente o oposto da cadeia de comando dada por Deus. Embora Deus faça o questionamento por ordem de autoridade (Adão, Eva, cobra), Ele sentencia pela ordem da queda (cobra, Eva, Adão). A queda, em parte, foi consequência da reversão da ordem de Deus.

Adão é o primeiro a ser procurado por Deus com a pergunta: “Onde estás?” (versículo 9). Com relutância, ele admite seu medo e sua vergonha, provavelmente esperando que Deus não o pressione muito. No entanto, Deus vai fundo em Sua sondagem, buscando uma confissão do pecado: “Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore que te ordenei que não comesses?” (versículo 11).

Jogando pelo menos uma parte da responsabilidade sobre o Criador, Adão desembucha: “A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (verso 12).

Adão deixa implícito que tanto Eva quanto Deus devem dividir a responsabilidade pela queda. Sua própria participação é mencionada por último, com um mínimo de detalhes. E sempre será assim com quem é culpado. Sempre procuramos atenuar as circunstâncias.

Todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o seu espírito. (Provérbios 16:2)

A seguir, Eva é inquirida: “Que é isso que fizeste?” (verso 13)

A resposta dela é um pouco diferente (em essência) da resposta do marido: “A serpente me enganou e eu comi” (verso 13).

É óbvio que isso é verdade. A serpente realmente a enganou (1 Timóteo 2:14) e ela, de fato, comeu. A culpa de ambos — Adão e Eva, apesar da débil tentativa de justificação, ou pelo menos de diminuição, da responsabilidade humana, foi claramente estabelecida.

Creio que sempre deve ser assim. Antes de se aplicar a punição, a transgressão precisa ser comprovada e reconhecida. De outra forma, o castigo não terá efeito corretivo sobre o culpado. As penalidades, então, são prescritas por Deus, pela ordem dos acontecimentos da queda.

A Condenação da Serpente (versículos 14-15)

A serpente é a primeira a quem Deus Se dirige e estabelece o castigo. A criatura, como o instrumento de Satanás, é amaldiçoada e sujeita a uma existência de humilhação, rastejando-se no pó (versículo 14).

O versículo 15 é dirigido à serpente por detrás da serpente, Satanás, o dragão mortífero: “E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo...” (Apocalipse 12:9).

Em primeiro lugar, vai haver uma hostilidade pessoal entre Eva e a serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher” (versículo 15).

Essa inimizade é fácil de entender. No entanto, a oposição será ampliada: “entre a sua descendência e o seu descendente” (versículo 15).

Aqui, creio que Deus esteja se referindo à luta através dos séculos entre o povo de Deus e os seguidores do diabo (cf. João 8:44 e ss).

Finalmente, haverá o confronto pessoal entre o descendente de Eva5, o Messias, e Satanás. “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (versículo 15).

Nesse confronto, Satanás será ferido mortalmente, enquanto o Messias receberá um golpe terrível, mas não fatal.

Essa profecia é uma belíssima descrição da vinda do Salvador, que reverterá os eventos da queda. É sobre isso que Paulo escreve em retrospecto no capítulo cinco de Romanos:

Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir. Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. (Romanos 5:14-17)

Muito embora a profecia do versículo 15 seja meio velada, ela se torna cada vez mais evidente à luz da revelação subsequente. É um tanto surpreendente, então, saber que os judeus, de acordo com o Targum, considerem esta passagem como Messiânica.6

O Castigo da Mulher (versículo 16)

Já que Satanás atacou a raça humana por intermédio da mulher, nada mais justo do que Deus providenciar a salvação do homem, e sua destruição de Satanás, também por meio da mulher. Isso já foi dito a Satanás no versículo 15. Cada criança nascida da mulher deve ter sido um tormento para ele.

Embora a salvação viesse pelo nascimento de uma criança, este não seria um processo indolor. A sentença da mulher atinge o centro da sua existência. Trata-se do nascimento de seus filhos. No entanto, mesmo em meio às dores do parto ela poderia saber que o propósito de Deus para ela estava sendo cumprido e que o Messias, talvez, pudesse nascer por meio dela.

Além das dores do parto, o relacionamento entre a mulher e seu marido também foi prescrito. Antes, Adão devia exercer a liderança e Eva devia segui-lo. Mas não foi isso o que ocorreu na queda. Por isso, daquele momento em diante as mulheres deviam ser governadas pelos homens: “o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (versículo 16).

Muitas coisas podem ser ditas a respeito dessa maldição. Em primeiro lugar, isso é para todas as mulheres, não só para Eva. Assim como todas as mulheres devem ter dores de parto, elas também devem se sujeitar à autoridade dos maridos. Isso não implica, de forma alguma, em inferioridade da sua parte. Nem justifica a restrição ao direito de voto, à equivalência salarial, etc.

Para aqueles que não querem se submeter ao ensinamento bíblico a respeito do papel da mulher na igreja — que elas não devem exercer cargos de liderança ou ensinar aos homens, nem falar em público (1 Coríntios 14:33b-36; 1 Timóteo 2:9-15) — deixe-me dizer o seguinte: o papel da mulher na igreja e no casamento não é só ensinamento de Paulo, nem deve ser visto apenas em relação ao contexto imoral da igreja de Corinto. Essa doutrina é bíblica, com origem no terceiro capítulo de Gênesis. Por isso, Paulo escreve:

... conservem-se as mulheres caladas na igreja, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina (1 Coríntios 14:34).

Para homens e mulheres com intenção de desconsiderar a instrução de Deus, devo dizer que esta é exatamente a vontade de Satanás. Assim como ele levou Eva a pensar na restrição daquela única árvore, ele também quer que as mulheres atuais só pensem nas restrições impostas a elas — “livre-se de suas algemas”, diz ele, “realize-se como mulher”; “Deus está privando você das melhores coisas da vida”, ele sussurra. Tudo isso é mentira! Os mandamentos de Deus têm razão de ser, quer os compreendamos ou não.

Para os homens, vou logo dizendo que este versículo (e o ensinamento bíblico sobre o papel das mulheres) não é texto de prova da superioridade masculina ou de alguma espécie de ditadura no casamento. Devemos exercer a liderança com amor. Ela precisa ser praticada com sacrifício pessoal, procurando aquilo que é melhor para a nossa esposa (Efésios 5:25 e ss). Liderança bíblica é aquela pautada no exemplo de nosso Senhor (cf. Filipenses 2:1-8).

O Castigo do Homem (versículos 17 a 20)

Assim como o castigo de Eva está relacionado ao ponto central da sua vida, o mesmo acontece com Adão. Antes ele foi colocado no jardim, agora terá de obter o seu sustento do solo “pelo suor de sua fronte” (versículos 17 a 19).

Você vai notar que, embora a serpente tenha sido amaldiçoada, aqui só a terra é amaldiçoada, não Adão e Eva. Deus amaldiçoou Satanás porque não tinha intenção de reabilitá-lo ou de redimi-lo. Mas o propósito de Deus de salvar o homem já foi revelado (versículo 15).

Adão não só terá de lutar com o solo para obter seu sustento, mas, no fim, ele retornará ao pó. A morte espiritual já ocorreu (cf. versículos 7 e 8). E a morte física vai começar. Longe da vida dada por Deus, o homem simplesmente (embora lentamente) volta ao seu estado original — pó (cf. 2:7).

A reação de Adão ao castigo e à promessa de Deus é revelada no versículo 20: “E deu o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe de todos os seres humanos”.

Creio que essa atitude evidencia uma fé singela por parte de Adão. Ele reconheceu sua culpa e aceitou seu castigo, mas se concentrou na promessa de Deus de que por meio da descendência da mulher viria o Salvador. A salvação de Eva (e a nossa também!) viria pela sua submissão ao marido e pelo nascimento de filhos. O nome dado por Adão à mulher, Eva, que significa “viva” ou “vida”, mostra que a vida viria por meio dela.

Deus não é apenas um Deus de castigo, mas também de graciosa provisão. Por isso, Ele faz para Adão e sua esposa vestimentas de peles de animais para cobrir sua nudez. A profecia de redenção pelo derramamento de sangue implícita neste versículo, em minha opinião, não é nenhum exagero.

Uma Misericórdia Implacável (3:22-24)

De maneira estranha, a promessa feita por Satanás acaba se tornando realidade. Adão e Eva, em certo sentido, passam a ser como Deus no conhecimento do bem e do mal (versículo 22). No entanto, há uma grande diferença, e também uma certa similaridade. Tanto o homem como Deus conhecem o bem e o mal, mas de formas totalmente diferentes.

Talvez essa diferença possa ser mais bem explicada com uma ilustração. Um médico pode saber o que é câncer em virtude de seus estudos e da sua experiência como médico. Isto é, ele lê matérias sobre o assunto, ouve palestras e vê a doença em seus pacientes. Um paciente, também, pode saber o que é câncer, mas como vítima. Embora ambos saibam o que é, o paciente gostaria de nunca ter ouvido falar em câncer. Tal é o conhecimento que Adão e Eva passaram a ter.

Deus tinha prometido que a salvação viria com o nascimento do Messias, O qual destruiria Satanás. Talvez Adão e Eva ficassem tentados a alcançar a vida eterna comendo o fruto da árvore da vida. Antes, eles escolheram o conhecimento em lugar da vida. Agora, assim como os israelitas tentaram tardiamente tomar posse de Canaã (Números 14:39-45), o homem caído também poderia tentar alcançar a vida por meio da árvore no meio do jardim.

Ao que parece, se Adão e Eva comessem da árvore da vida eles viveriam para sempre (versículo 22). Essa é a razão pela qual Deus os lançou fora do jardim (versículo 23). No versículo 24, o “lançar fora” dos dois é chamado mais dramaticamente de “expulsão”. Fixados na entrada do jardim estão querubins e uma espada flamejante.

Alguns talvez tenham vontade de dizer: “Mas quanta crueldade e intolerância!” Num jargão jurídico atual, é provável que isso fosse chamado de “castigo cruel e desumano”. No entanto, pense por um instante antes de falar. O que teria acontecido se Deus não tivesse expulsado os dois do jardim e proibido seu retorno? Posso dar a resposta com uma só palavra — INFERNO. Inferno é dar aos homens tanto o que eles querem quanto o que merecem (Apocalipse 16:6), para sempre. Inferno é passar a eternidade em pecado, separado de Deus:

Estes sofrerão penalidade eterna de destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. (2 Tessalonicenses 1:9)

Deus foi misericordioso e gracioso colocando Adão e Eva para fora do jardim. Ele os preservou do castigo eterno. Sua salvação não viria num piscar de olhos, mas no tempo certo; não com facilidade, mas com dor — mas viria. Eles precisavam confiar nEle para alcançá-la.

Conclusão

Quando leio este capítulo, não posso deixar de pensar palavras do apóstolo Paulo: “Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus”. (Romanos 11:22)

Há pecado e há julgamento. Mas o capítulo é entrelaçado com a graça. Deus buscou os pecadores. Ele também os sentenciou, mas com a promessa de salvação futura. E Ele os preservou do inferno na terra; e lhes deu uma cobertura para o tempo e completa redenção no devido tempo. Que Salvador!

Antes de voltar nossa atenção para a aplicação deste capítulo à nossa própria vida, vamos considerar por um momento o que esta passagem significou para o povo dos dias de Moisés. Eles já tinham sido libertos do Egito e a Lei já tinha sido dada. Mas eles ainda não tinham entrado na terra prometida.

O propósito dos livros de Moisés (incluindo Gênesis) está no capítulo 31 de Deuteronômio:

Tendo Moisés acabado de escrever, integralmente, as palavras desta lei num livro, deu ordem aos levitas que levavam a Arca da Aliança do Senhor, dizendo: tomai este livro da lei e ponde-o ao lado da Arca da Aliança do Senhor, vosso Deus, para que ali esteja por testemunho contra ti. Porque conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o Senhor, quanto mais depois da minha morte? Ajuntai perante mim todos os anciãos das vossas tribos e vossos oficiais, para que eu fale aos seus ouvidos estas palavras, e contra eles, por testemunhas, tomarei os céus e a terra. Porque sei que, depois da minha morte, por certo, procedereis corruptamente e vos desviareis do caminho que vos tenho ordenado; então, este mal vos alcançará nos últimos dias, porque fareis mal perante o Senhor, provocando-o à ira com as obras das vossas mãos. (Deuteronômio 31:24-29)

Em muitos aspectos, o Éden foi um tipo da terra prometida, e Canaã um antítipo. Canaã, como o Paraíso, era um lugar de beleza e abundância, uma “terra que mana leite e mel” (cf. Deuteronômio 31:20). Israel teria bênção e prosperidade enquanto fosse obediente à Palavra de Deus (Deuteronômio 28:1-14). Se a lei de Deus fosse deixada de lado, eles teriam sofrimento, derrota e pobreza, e seriam expulsos da terra (28:15-68). Na verdade, Canaã era uma oportunidade para Israel experimentar, até certo ponto, as bênçãos do Éden. Lá, como no Éden, o povo de Deus tinha de tomar uma decisão: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal.” (Deuteronômio. 30:15).

Gênesis capítulo três está longe de ser apenas teoria ou simples história. O capítulo foi uma palavra de advertência. O que aconteceu no Éden aconteceria de novo em Canaã (cf. Deuteronômio 31:16 e ss). Eles seriam tentados a desobedecer, assim como foram Adão e Eva. Considerações importantes sobre este capítulo e suas implicações eram essenciais para o futuro de Israel.

O capítulo é também claramente profético, pois Israel desobedeceu e escolheu o caminho da morte, exatamente como o primeiro casal lá no jardim. Tal como Adão e Eva foram lançados fora do jardim, Israel foi levado da terra prometida. Contudo, há também esperança, pois Deus prometeu um Redentor, que nasceria da mulher (Gênesis 3:15). Deus castigaria Israel e o traria de volta à terra (Deuteronômio 30:1 e ss). Mesmo assim, Israel ainda não seria fiel ao seu Deus. Eles precisavam olhar para o Messias de Gênesis 3:15 para lhes dar restauração plena e permanente. A história de Israel, portanto, está resumida em Gênesis 3.

Há muitas aplicações para nós também. Não podemos ignorar as estratégias de Satanás (2 Coríntios 2:11). A maneira como ele tenta foi repetida no testemunho de nosso Senhor no deserto (Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-2). E ele continua a nos tentar da mesma forma ainda hoje.

Gênesis três é vital para os cristãos de nossos dias porque o capítulo sozinho explica as coisas como elas realmente são. Nosso mundo é uma mistura de beleza e de crueldade, de encanto e de horror. A beleza que ainda resta é evidência da bondade e da grandeza do Deus que criou todas as coisas (cf. Romanos 1:18 e ss). As coisas horríveis são evidência da pecaminosidade do homem (Romanos 8:18-25).

Pelo que sei, o presente estado da criação de Deus foi um dos elementos cruciais na mudança de Darwin da ortodoxia para a dúvida e negação. Ele não viu a ordem da criação e disse para si mesmo: “Nossa, isso deve ter ocorrido por acaso”. Pelo contrário, ele viu a crueldade e a fealdade e concluiu: “Como um Deus amoroso e todo-poderoso poderia ser responsável por isso?” A resposta, é claro, se encontra no texto de Gênesis capítulo três: o pecado do homem virou a criação de Deus de ponta-cabeça.

A única solução é Deus fazer alguma coisa para trazer redenção e restauração. Isso já foi realizado em Jesus Cristo. O castigo pelos pecados do homem foi suportado por Ele. As consequências do pecado de Adão não precisam nos destruir. A escolha que está diante de nós é esta: Queremos estar unidos com o primeiro Adão ou com o último? No primeiro, fomos feitos pecadores e estamos sujeitos à morte física e espiritual. No último, nós nos tornamos novas criaturas, com vida eterna (física e espiritual). Deus não colocou duas árvores diante de nós, mas dois homens: Adão e Cristo. Precisamos decidir com qual deles vamos nos identificar. Em um dos dois repousa o nosso futuro eterno.

Há também muito a aprender sobre o pecado. Em essência, pecado é desobediência. Observe que o primeiro pecado não parecia muito sério. Poderíamos pensar nele como uma coisa trivial. Sua gravidade, no entanto, pode ser vista em dois fatos importantes, os quais são muito claros no nosso texto.

Primeiro, o pecado é sério por causa das suas raízes. Comer o fruto proibido não foi a essência do pecado, só sua manifestação. Não foi a origem dele, só seu símbolo. Partilhar aquele fruto é semelhante a compartilhar os elementos, pão e vinho, da mesa do Senhor, ou seja, é um ato que expressa algo muito mais intenso e profundo. Assim, a raiz do pecado de Adão e Eva foi sua rebelião, incredulidade e ingratidão. Sua atitude foi uma escolha deliberada de desobedecer a uma instrução clara de Deus. Eles não quiseram aceitar com gratidão as coisas boas como provenientes de Deus, e Sua única proibição também como uma coisa boa. Pior ainda, eles viram Deus como alguém perverso, miserável e ameaçador, exatamente como Satanás O retratou.

Segundo, o pecado é sério por causa dos seus frutos. Adão e Eva não experimentaram um nível superior de existência, mas vergonha e culpa. O pecado não lhes deu mais prazer, mas estragou o que antes eles tinham sem sentir vergonha. Pior ainda, o pecado causou a queda de toda a raça humana. Os efeitos da queda são vistos no restante da Bíblia. Vemos as consequências desse pecado ainda hoje, na nossa vida e na nossa sociedade. A consequência do pecado é julgamento. Esse julgamento é tanto presente como futuro (cf. Romanos 1:26-27).

Eu lhe digo, meu amigo, Satanás sempre ressalta os prazeres do pecado enquanto mantém a nossa mente longe das suas consequências. O pecado nunca vale seu preço. Ele é como andar pela Feira Estadual do Texas: o trajeto é curto, mas o preço é alto — extremamente alto.

Mas, vamos deixar os pecados de Adão e Eva de lado. Não seria surpresa alguma saber que as tentações de hoje são as mesmas do jardim. Nem os pecados.

A Avenida Madison, em Nova York, tem sido a causa de um grande mal. Os anúncios nos fazem esquecer das muitas bênçãos que possuímos e nos levam a pensar só naquilo que não temos. Eles sugerem que a vida só pode ser bem vivida se tivermos determinadas coisas. Por exemplo, dizem que “Coca-Cola é vida”. Não, não é, ela simplesmente estraga seus dentes. E, assim, somos levados a não considerar o custo ou as consequências de satisfazer a nós mesmos com mais uma coisa que queremos. A gente “põe com cartão”.

Creio que um sorrisinho esteja se formando no seu rosto. Talvez você ache que estou indo longe demais. Mas pense no que o Apóstolo Paulo diz sobre o significado das verdades do Antigo Testamento para a nossa época:

Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, tendo sido todos batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. Todos eles comeram de um só manjar espiritual, e beberam da mesma fonte espiritual, porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo. Entretanto, Deus não se agradou da maioria deles, razão porque ficaram prostrados no deserto. Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. (1 Coríntios 10:1-6)

O que afastou Adão e Eva da bênção eterna foi seu desejo de ter prazer às custas de incredulidade e desobediência. Foi assim também, Paulo escreve, com Israel (1 Coríntios. 10:1-5). Hoje, nós enfrentamos as mesmas tentações, mas Deus nos dá meios suficientes para alcançarmos a vitória. Que meios são esses?

(1) Precisamos entender que as negativas (não faça, não pode) vêm das mãos de um Deus bondoso e amoroso.

Nenhum bem sonega aos que andam retamente. (Salmo 84:11)

(2) Precisamos perceber que as negativas são um teste para a nossa fé e obediência:

Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem. Nunca envelheceu a tua veste sobre ti, nem se inchou o teu pé nestes quarenta anos. Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus. (Deuteronômio 8:2-5)

Não fazer não significa que Deus esteja nos privando da bênção, mas que está nos preparando para ela:

Pela fé Moisés, quando já homem feito, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, preferindo ser maltratado junto com o povo de Deus, a usufruir prazeres transitórios do pecado; porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão. (Hebreus 11:24-26, cf. Deuteronômio 8:6 e ss).

(3) Quando somos privados das coisas que pensamos desejar, é preciso ter cuidado para não pensar naquilo que é negado e sim naquilo que nos é dado graciosamente, e por Quem. E, então, é preciso fazer o que sabemos ser a vontade de Deus.

Antes, como te ordenou o Senhor teu Deus, destrui-las-á totalmente: aos heteus, aos amorreus, Aos cananeus, aos ferezeus, aos heveus, e aos jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o Senhor vosso Deus. (Deuteronômio 20:17-18)

Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus. Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento. O que aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco. (Filipenses 4:6-9)

Quase todos os dias nos encontramos repetindo os pecados de Adão e Eva. Ficamos pensando naquilo que não podemos ter. Começamos a desconfiar da bondade de Deus e da Sua graça para conosco. Ficamos preocupados com coisas realmente sem importância. E, com frequência, cheios de incredulidade, acabamos fazendo as coisas do nosso jeito.

Muitas vezes, vejo alguns cristãos flertando com o pecado, sabendo que é errado e cientes das suas consequências, mas tendo a falsa impressão de que o prazer é maior que seu preço. Ledo engano! Foi exatamente esse o erro de Adão e Eva.

Que Deus nos capacite a louvá-lO pelas coisas que Ele nos nega, e a confiar nEle para as coisas realmente necessárias, as quais Ele promete suprir.

Tradução e Revisão Mariza Regina de Souza


1 Gosto da forma como Helmut Thielicke coloca isso:

“A abertura deste diálogo é profundamente piedosa e a serpente se apresenta como um animal muito sério e religioso. Ela não diz: “Sou um monstro ateu e agora vou tirar seu paraíso, sua inocência e sua lealdade e vou virar tudo de cabeça pra baixo”. Pelo contrário, ela diz: “Crianças, hoje vamos falar de religião, vamos discutir sobre assuntos atuais”. How the World Began (Philadelphia: Fortress Press, 1961), p. 124.

2 Alguns apontam que “Deus” (“como Deus”), no versículo 5, é o nome Elohim, o qual é plural. Eles dizem que deveríamos traduzi-lo por “serão como deuses”. Essa possibilidade, embora gramaticalmente permissível, não parece digna de consideração. A mesma palavra (Elohim) é encontrada na primeira parte do versículo 5, onde Deus é mencionado.

3 No que diz respeito ao conhecimento do bem e do mal, é preciso lembrar que o hebraico yd’ (conhecer) não significa simplesmente conhecimento intelectual, mas, num sentido mais amplo, “ter experiência”, “tornar-se íntimo de”, ou mesmo “ter habilidade”. “Conhecer, no mundo antigo, é também sempre ser capaz de” (Wellhausen). Em segundo lugar, “bem e mal” não se restringem apenas ao campo moral. “Falar nem bem nem mal” significa não dizer nada (Gn. 31:24, 29; 2 Sm. 13:22); fazer nem bem nem mal significa não fazer nada (Sf. 1:12); conhecer nem bem nem mal (dito de crianças ou idosos) significa não entender nada (ainda) ou (mais nada) (Dt. 1:39; 2 Sm. 19:35). “Bem e mal” é, portanto, uma maneira formal de se dizer o que queremos dizer com o nosso sem graça “tudo”; e aqui também é preciso entender seu significado em todos os sentidos”. Gehard Von Rad, Genesis (Philadelphia: Westminster Press, 1961), pp. 86-87.

4 “Ela partiu o fruto, deu a seu marido e ele também comeu. Alguém poderia perguntar: Onde estava Adão esse tempo todo? A Bíblia não nos diz. Presumo que ele estivesse lá, pois ela lhe deu o fruto: “seu marido estava com ela”. Nada mais podemos dizer pela simples razão de que a Bíblia não fala mais nada.”  E. J. Young, In the Beginning (Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1976), p. 102

5 A palavra descendente (zera) pode ser usada tanto coletiva quanto individualmente (cf. Gn. 4:25, 1 Sm. 1:11, 2 Sm. 7:12). Aqui em Gn. 3:15 é usada em ambos os sentidos, creio eu. Kidner afirma: “os últimos, como a descendência de Abraão, é coletivo (cf. Rm. 6:20) e, na batalha crucial, individual (cf. Gl. 3:16), já que Jesus, como o último Adão, resume toda a raça humana em Si mesmo”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 71.

6 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 170.

Related Topics: Hamartiology (Sin), Man (Anthropology)

5. Os Frutos da Queda (Gênesis 4:1-26)

Related Media

Introdução

Quando pecamos, muitas vezes o fazemos na vã esperança de alcançar o máximo de prazer com um mínimo de punição. No entanto, raramente funciona desse jeito.

Certa vez ouvi a história de um homem que, junto com a esposa, resolveu ir a um drive-in movie para assistir a um filme. Eles acharam que o preço do ingresso era alto demais e bolaram um plano para tapear a administração do cinema. Ao se aproximarem do local, o marido desceu do carro e se enfiou no porta-malas. O combinado era que sua esposa o deixaria sair quando estivessem dentro cinema.

Tudo correu como planejado, pelo menos até passarem pelo vendedor de entradas. Mas, quando a esposa se dirigiu à traseira do carro para deixar o marido sair, descobriu que ele estava com a chave do porta-malas. Em desespero, ela teve de chamar o gerente, a polícia e o esquadrão de resgate. Além de eles não verem o filme, o porta-malas teve de ser arrombado. Assim é o caminho do pecado. O trajeto é curto, mas o preço é alto demais.

À primeira vista, pegar o fruto proibido e comê-lo parecia uma coisa sem importância, um delito qualquer. No entanto, Gênesis capítulo três deixa claro que esta foi uma questão da maior gravidade. O homem preferiu acreditar em Satanás a crer em Deus. Adão e Eva concluíram que Deus era desnecessariamente cruel e rigoroso. Eles resolveram buscar o caminho da autorrealização em vez do caminho da sujeição.

A serpente tinha sugerido, na verdade, tinha tido a ousadia de afirmar, que a desobediência a Deus não lhes traria nenhum prejuízo, só um nível de existência mais elevado. No entanto, no capítulo quatro de Gênesis, logo vemos que as promessas de Satanás foram mentiras descaradas. Aqui, o verdadeiro salário do pecado começa a aparecer.

O Fruto da Queda na Vida de Caim (4:1-15)

A união sexual de Adão e Eva gerou a primeira criança, um filho a quem Eva deu o nome de Caim. Esse nome provavelmente deve ser entendido como um jogo de palavras. Ele soa semelhante à palavra hebraica Qanah, que significa “conseguir” ou “adquirir”. Em termos atuais, esse filho provavelmente seria chamado de “Adquirido”.1

A implicação é que o nome reflete a fé que Eva tinha em Deus, pois ela disse: “Adquiri (Qaniti, de Qanah) um varão com o auxílio do Senhor” (Gênesis 4:1).

Embora haja alguma discussão entre os estudiosos da Bíblia quanto ao significado preciso dessa afirmação2, o fato é que Eva reconheceu a ação de Deus ao lhe dar um filho. Creio que ela compreendeu, pela profecia de Gênesis 3:15, que alguém da sua descendência traria sua redenção. Talvez ela visse Caim como seu redentor. Se foi isso, ela estava fadada ao desapontamento.

Mesmo que ela tenha se enganado em ter esperanças de alcançar uma rápida vitória sobre a serpente com o nascimento do seu primogênito, ela estava certa em esperar a libertação de Deus por meio da sua descendência. Portanto, ela estava certa no geral, mas enganada no particular.

À época do nascimento do seu segundo filho, Abel, o otimismo de Eva parece ter-se desvanecido. O nome dele significava “vaidade”, “sopro” ou “vapor”. Talvez Eva já tivesse aprendido que as consequências do pecado não seriam rapidamente eliminadas. A vida envolveria luta e uma boa dose de esforço aparentemente inútil. Caim foi o símbolo da esperança de Eva; Abel, do seu desespero.

Abel foi pastor de ovelhas, Caim, lavrador. Em parte alguma Moisés dá a entender que uma dessas ocupações fosse inferior à outra. Nem este relato é algum tipo de precursor dos programas de televisão que ficam discutindo o eterno conflito entre grandes pecuaristas e pequenos agricultores.

O problema de Caim não estava no seu meio de subsistência, mas na sua própria pessoa:

“Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho, e da gordura deste. Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou”. (Gênesis 4:3-5a)

Os israelitas que primeiramente leram estas palavras de Moisés tiveram pouca dificuldade em compreender qual foi o problema com o sacrifício de Caim. Eles receberam este relato como parte do Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia. Como tal, eles entenderam que um homem não poderia se aproximar de Deus sem o derramamento de sangue sacrificial. Embora houvesse sacrifícios sem sangue3, um homem só poderia ter acesso a Deus por meio de sangue derramado. A oferta de Caim não atendeu aos requisitos da lei de Deus.

Alguns poderiam objetar: “Mas Caim ainda não tinha essa revelação!” Absolutamente certo. No entanto, todos nós precisamos admitir que ninguém sabe qual era a revelação que ele tinha. Qualquer especulação sobre o assunto é somente isso — pura conjectura.

Tendo dito isto, devo ressaltar que não era necessário Moisés ter nos contado esta história. Seus contemporâneos tinham base mais que suficiente para compreender a importância do sangue derramado, devido às meticulosas prescrições da Lei sobre sacrifício e adoração. E os cristãos da nossa época têm a vantagem de ver o assunto mais claramente à luz da cruz e da compreensão de que Jesus é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1:29).

Embora nós não saibamos qual a revelação dada por Deus a Adão ou a seus filhos, temos certeza de que eles sabiam o que deviam fazer. Isso fica claro nas palavras de Deus a Caim:

Então lhe disse o Senhor: Por que andas tão irado? e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo. (Gênesis 4:6-7)

A pergunta feita por Deus claramente implica que a raiva de Caim era infundada. Embora não conheçamos os detalhes envolvidos nesse “proceder bem”, Caim conhecia. Seu problema não era falta de instrução, era insurreição e rebelião contra Deus.

Caim, como muitas pessoas hoje em dia, queria se aproximar de Deus, mas queria fazer as coisas do jeito dele. Talvez isso funcione num carrinho de hambúrguer. Eles podem deixar que você faça do “seu jeito”, como diz o comercial, mas Deus não. Como diz um amigo, “você pode ir para o céu do jeito de Deus, ou pode ir para o inferno do jeito que quiser”.

Observe que Caim não era uma pessoa descrente. Ele acreditava em Deus, e queria Sua aprovação. Mas ele queria fazer as coisas nos seus termos, não nos termos de Deus. O inferno, como já disse, vai estar cheio de gente religiosa.

Caim não quis se aproximar de Deus por meio de sangue derramado. Ele preferiu oferecer a Deus o fruto do seu trabalho. Ele gostava do verde das plantas, e mãos vermelhas de sangue não eram a sua praia. Os homens de hoje não são muito diferentes dele. Há muita gente que, como os demônios (cf. Tiago 2:19), acredita em Deus e reconhece que Jesus é o Filho de Deus. Contudo, essas pessoas não querem se sujeitar a Ele como Senhor. Elas não aceitam Sua morte sacrificial e substitutiva na cruz como pagamento por seus pecados. Elas querem se aproximar de Deus nos seus próprios termos. A mensagem do Evangelho é bastante clara: ninguém pode ir a Deus, a não ser por meio daquilo que Jesus conquistou na cruz com a Sua morte.

Jesus lhe disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14:6)

E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos. (Atos 4:12)

Com efeito, quase todas as cousas, segundo a lei, se purificam com sangue, e sem derramamento de sangue, não há remissão. (Hebreus 9:22)

... mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo. (1 Pedro 1:19, cf. também Lucas 22:30; Atos 20:28; Romanos 3:25; 5:9; Efésios 1:7)

Como Deus foi gracioso buscando Caim e gentilmente confrontando-o com sua raiva pecaminosa! Como foi clara Sua mensagem de restauração e Sua advertência sobre o perigo que rodeava Caim! Mas o conselho de Deus foi rejeitado.

Certa vez, um amigo meu chamou minha atenção para a sabedoria da repreensão de Deus. Teria sido muito fácil para Ele corrigir Caim comparando-o com Abel. É assim que nós, pais, muitas vezes disciplinamos nossos filhos. No entanto, Deus não disse: “Por que você não me adora igual ao seu irmão?” Em vez disso, Ele mostrou a Caim o padrão que Ele havia estabelecido, não o exemplo de seu irmão. Mesmo assim, Caim fez a ligação. Sua oferta não foi aceita, a de Abel foi. Deus gentilmente o repreendeu e lhe disse que o jeito de receber Sua aprovação era submetendo-se ao padrão divino de acesso a Ele. Caim concluiu que a solução era eliminar a concorrência — e assassinar seu irmão.

Uma coisa precisa ficar clara. O problema não foi só o sacrifício. O problema maior encontrava-se na pessoa que procurou apresentar a oferta. Moisés nos diz:

Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. (Gênesis 4:4b-5a)

A fonte do problema estava em Caim, o sacrifício foi só o sintoma.

O versículo 7 é cheio de implicações:

Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo. (Gênesis 4:7)

A maneira de superar a depressão era Caim mudar de atitude. Ele se sentiria melhor quando procedesse melhor. Em certo sentido, Caim estava certo em zangar-se consigo mesmo. No que ele não estava certo era na sua animosidade contra o irmão e contra Deus.

Se ele preferia ignorar o leve cutucão de Deus, então que estivesse plenamente ciente dos perigos à sua frente. O pecado esperava por ele como um animal à espreita. Ele queria controlá-lo, mas Caim devia dominá-lo4. Caim tinha de enfrentar uma decisão e ser responsável por sua escolha. Ele não precisava sucumbir ao pecado, assim como nós também não precisamos, pois Deus sempre nos dá graça suficiente para resistir à tentação (1 Coríntios 10:13).

Quando os dois homens estavam em campo aberto (aparentemente, onde não havia testemunhas, cf. Deuteronômio 22:25-27), Caim matou o irmão. Deus, então, foi até ele para julgá-lo:

Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso sou eu tutor de meu irmão? (Gênesis 4:9)

A insolência de Caim é inacreditável. Ele não apenas mente quando nega saber o paradeiro do irmão, como também parece censurar a Deus pela pergunta. Talvez haja até mesmo um jogo sarcástico de palavras, dando a impressão de: “Sei lá. Será que tenho de pastorear o pastor?”5

Antes, o solo tinha sido amaldiçoado por causa de Adão e Eva (Gênesis 3:17). Agora é a terra que é manchada com o sangue de um homem, derramado por seu próprio irmão. Esse sangue agora clama a Deus por justiça (4:10). Deus, então, confronta Caim com seu pecado. O tempo para arrependimento já passou e agora a sentença é dada a Caim pelo Juiz da terra.

Não é o solo que é amaldiçoado de novo, mas Caim:

És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra. (Gênesis 4:11-12)

Caim tinha sido abençoado com um “gosto por plantas”. Ele tentou se aproximar de Deus com o fruto do seu trabalho. Agora Deus o amaldiçoa justamente na área da sua especialidade e do seu pecado. Nunca mais ele seria capaz de se sustentar pelo cultivo do solo. Enquanto Adão teve de obter seu sustento com o suor do seu rosto (3:19), Caim não ia poder nem sobreviver da agricultura. Para ele, a maldição do capítulo três foi intensificada. Para Adão, a agricultura foi difícil; para Caim, foi um desastre.

A reação de Caim à primeira repreensão de Deus foi sombria e silenciosa, seguida de pecado. Agora, após sua sentença ter sido pronunciada, ele não está mais calado, mas não há sinal de arrependimento, só de pesar.

Então, disse Caim ao Senhor: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará. (Gênesis 4:13-14)

Suas palavras soam familiares a qualquer pai. Às vezes, uma criança fica realmente triste por causa da sua desobediência. Em outras, no entanto, só fica triste por ter sido pega, lamentando amargamente o duro castigo que vai receber. A única coisa que Caim faz é repetir com amargor a sua sentença, expressando o medo de que os homens o tratem da mesma forma com que ele tratou seu irmão.

Deus lhe garante que, embora a vida humana valesse pouco para Caim, Ele (Deus) a valorizava muito. Ele não permitiria nem que o sangue de Caim fosse derramado6. Não podemos dizer com certeza qual a natureza exata do sinal designado para Caim. Talvez fosse uma marca visível, mas o mais provável é que tenha sido algum tipo de acontecimento confirmando que Deus não o deixaria ser morto.7

O versículo 15 tem duplo propósito. O primeiro é garantir a Caim que ele não sofreria uma morte violenta pelas mãos de um homem. O segundo é uma clara advertência a quem quer que pensasse em tirar sua vida. Observe que as palavras “assim, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes” (Gênesis 4:15) não são ditas a Caim, mas de Caim. Deus não disse: “qualquer que o matar”, mas “qualquer que matar a Caim”.

Em seguida, temos uma genealogia parcial da linhagem de Caim. Creio que Moisés a usou para mostrar sua impiedade (e a pecaminosidade do homem iniciada na Queda) em seus descendentes, e para servir de contraste com a genealogia de Adão por meio de Sete no capítulo cinco.

Caim habitou na terra de Node. Depois do nascimento de seu filho, Enoque, ele deu este nome a uma cidade que edificou. Parece que fundar essa cidade foi um ato de rebelião contra Deus, O qual tinha dito que ele seria fugitivo e errante (4:12).

Lameque manifesta o nível mais baixo atingido pela raça humana.

Lameque tomou para si duas esposas: o nome de uma era Ada, a outra se chamava Zilá.  Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado. O nome de seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Zilá, por sua vez, deu à luz a Tubalcaim, artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de ferro; a irmã de Tubalcaim foi Naamá. E disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me; vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete. (Gênesis 4:19-24).

Ele parece ser a primeira pessoa a se afastar do ideal divino para o casamento descrito no capítulo dois. Uma esposa não era suficiente para ele, por isso Lameque teve duas, Ada e Zilá.

Seria de esperar que Moisés só tivesse palavras de condenação para Lameque. Com certeza, nada de bom poderia vir de tal homem. No entanto, é de seus descendentes que vêm as grandes contribuições culturais e científicas. Um filho tornou-se o pai dos pastores nômades, outro foi o primeiro de uma linhagem de músicos, e o terceiro foi o primeiro dos grandes artífices de metal.

Precisamos fazer uma pausa para dizer que mesmo o homem no seu pior estado não é incapaz de produzir aquilo que é considerado benéfico à raça humana. É preciso dizer também que as contribuições humanas podem rápida e facilmente ser adaptadas para a ruína do próprio homem. A música pode atrair e levar os homens ao pecado. A habilidade dos artífices em metal pode ser usada para produzir utensílios de pecado (ídolos, por exemplo, cf. Êxodo 32:1 e ss).

Para ímpios, a linhagem de Caim foi origem de muitas coisas louváveis. Mas os verdadeiros frutos do pecado são revelados nas palavras de Lameque às suas esposas. Adão e Eva tinham pecado, mas o arrependimento e a fé estavam implícitos depois de receberem sua sentença. Caim matou Abel, seu irmão, e, embora não tenha se arrependido totalmente, ele não pôde justificar sua atitude.

Lameque nos leva ao ponto da história humana onde o pecado não é apenas cometido com descaramento, mas com prepotência. Ele se vangloria de seu assassinato para suas esposas. Mais do que isso, ele se gaba de seu pecado ter sido cometido contra um rapaz que simplesmente o feriu. Esse assassinato foi brutal, ousado e intempestivo. Pior ainda, Lameque demonstra desdém e desrespeito para com a Palavra de Deus: “se Sete vezes se tomará vingança de Caim; de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gênesis 4:24).

Deus tinha dito essas palavras para garantir a Caim que ele não seria morto pelas mãos de um homem. Ele também notificou aos homens a gravidade desse ato. Tais palavras foram pronunciadas para mostrar o fato de que Deus dá valor à vida humana. Lameque as torceu e distorceu para ostentar sua violenta e agressiva hostilidade contra o homem e contra Deus. Eis um homem que estava indo direto para o fundo do poço!

Um Vislumbre de Graça (4:25-26)

Em Romanos capítulo cinco, o apóstolo Paulo tem muito a dizer sobre a queda do homem no livro de Gênesis. Contudo, nesse mesmo capítulo, encontramos estas palavras de esperança: “mas onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Romanos 5:20).

O pecado certamente abundou na linhagem de Caim, mas o capítulo não termina sem um vislumbre da graça de Deus.

Tornou Adão a coabitar com sua mulher; e ela deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Sete; porque, disse ela, Deus me concedeu outro descendente em lugar de Abel, que Caim matou. A Sete nasceu-lhe também um filho, ao qual pôs o nome de Enos; daí se começou a invocar o nome do Senhor. (Gênesis 45-26)

Eva tinha esperança de que a salvação viesse por meio do seu primeiro filho, Caim, o que, com certeza, não viria dele, nem de seus descendentes. Nem poderia vir de Abel. No entanto, outro filho foi dado a ela, cujo nome, Sete, significa “designado”. Ele não foi só um substituto para Abel (versículo 25), ele foi o descendente por meio de quem nasceria o Salvador.

Sete também teve um filho, Enos. Começava a ficar claro que a libertação esperada por Adão e Eva não viria logo, mas, apesar de tudo, viria. E foi assim que naqueles dias os homens começaram “a invocar o nome do Senhor” (versículo 26). Entendo que este seja o início do culto coletivo.8 Em meio a uma geração perversa e deformada havia um remanescente fiel que confiava em Deus e esperava pela Sua salvação.

Conclusão

O Novo Testamento é, sem dúvida, o melhor comentário sobre este capítulo, além de nos informar sobre seus princípios e aplicações práticas.

Esta narrativa não é simplesmente um registro da história de dois homens que viveram há muito tempo, num lugar longínquo. Minha Bíblia me diz que esta é uma descrição de dois caminhos, o caminho de Abel e o caminho de Caim.

Ai deles! Porque prosseguiram pelo caminho de Caim, e, movidos de ganância, se precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Coré. (Judas 11)

Judas adverte seus leitores acerca dos falsos crentes (versículo 4). Eles não são salvos, mas se esforçam para se passar por crentes e perverter a verdadeira fé, afastando os homens de experimentar a graça de Deus. No versículo 11 tais homens são descritos como sendo como Caim. Eles são como ele no sentido de serem rebeldes que se escondem sob a bandeira da religião.

Gostaria só de dizer que o mundo de hoje está cheio de religião, e o inferno estará cheio de gente carola. No entanto, há uma diferença substancial entre quem é justo e quem é apenas religioso. Quem é realmente salvo, como Abel, se achega a Deus como pecador e sabe que só é salvo por causa do sangue derramado do perfeito Cordeiro de Deus, o Senhor Jesus Cristo. Todos os outros tentam ganhar a aprovação de Deus oferecendo o trabalho de suas mãos. O “caminho de Caim” é uma fila interminável de quem quer alcançar o céu “do seu próprio jeito” e não do jeito de Deus.

A ironia do caminho de Caim é que ele é claramente marcado. Embora quem o siga pareça oferecer a Deus boas obras, o seu coração é corrupto.

Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros; não segundo Caim, que era do Maligno e assassinou a seu irmão, e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas. (1 João. 3:11-12)

Os perversos não conseguem suportar quem é verdadeiramente justo. Eles proclamam amor fraternal, mas não o praticam. Não é de admirar, então, que os líderes religiosos da época de Jesus O tenham rejeitado e entregado à morte com o auxílio dos gentios. Foi isso o que João explicou no seu evangelho.

A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela... a saber, a verdadeira luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não O conheceu. Veio para o que era Seu e os Seus não O receberam. (João 1:4-5; 9-11)

Para aqueles que andam no caminho de Caim há pouca razão para esperança. Talvez existam ganhos ilusórios de cultura ou tecnologia, mas, no final das contas, eles vão ter a mesma sorte de Caim. Vão passar seus dias longe da presença de Deus e vão perceber, finalmente, que seus dias na terra foram cheios de tristeza e pesar.

Nós, porém, podemos nos regozijar, pois há um caminho melhor, o caminho de Abel.

Pela fé, Abel ofereceu a Deus, mais excelente sacrifício do que Caim; pelo qual obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela, também mesmo depois de morto, ainda fala. (Hebreus 11:4)

Para que dessa geração se peçam contas do sangue dos profetas, derramado desde a fundação do mundo; desde o sangue de Abel até ao de Zacarias, que foi assassinado entre o altar e a Casa de Deus. Sim, eu vos afirmo, contas serão pedidas a esta geração. (Lucas 11:50-51)

E a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala cousas superiores ao que fala o próprio Abel. (Hebreus 12:24)

O que fez a diferença entre Caim e Abel foi a fé. Abel não confiou em si mesmo, mas em Deus. Seu sacrifício foi um sacrifício melhor porque evidenciava sua fé e refletia que seu alvo era Deus. Sem dúvida ele também tinha alguma compreensão do valor do sangue derramado de uma vítima inocente.

Mas Abel foi mais do que um exemplo de crente primitivo, ele foi, de acordo com nosso Senhor, um profeta. Talvez também pelos lábios, mas com certeza pelas suas obras ele proclamou ao irmão o caminho de acesso a Deus. Ele também foi profeta quando predisse em sua morte o destino de muitos que viriam tempos depois para pregar a palavra de Deus aos não crentes.

Embora Deus tenha valorizado o sangue de Abel que foi derramado pela sua fé, esse sangue não deve ser comparado àquele mais excelente que foi derramado por Jesus Cristo. O sangue de Abel foi um testemunho de fé. O sangue de Cristo é o agente purificador pelo qual os homens são purgados de seus pecados e libertos do castigo da eterna separação de Deus. Você já depositou sua fé no sangue de Jesus como meio de Deus, o único meio, para purificá-lo de seus pecados? Por que não faz isso hoje mesmo?

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 Cf. H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker‑Book House, 1942), I, p. 189.

2 Literalmente, Eva replicou: “Consegui um filho, o Senhor”. Será que ela acreditava ter gerado o Salvador? Claro, isso é possível. Mas, o mais provável é que ela tenha reconhecido que Deus lhe deu a capacidade de dar à luz uma criança, uma criança por meio da qual sua libertação pudesse chegar rapidamente.

3 “A oferta aqui é minha, que nas relações humanas era um presente de admiração ou de lealdade e, como termo ritual, poderia descrever um animal ou, com mais freqüência, uma oferta de cereais (p. e.  I Sm. 2:17; Lv. 2:1)” Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 75

4 Estas palavras são quase idênticas às do versículo 16 do capítulo três: “Teu desejo será para o teu marido, e ele te governará”. Será que Deus está sugerindo que a mesma tentação (ou, pelo menos o mesmo tentador) que Adão e Eva não conseguiram resistir é agora enfrentada por Caim?

5 Gerhard VonRad, Genesis (Philadephia: The Westminster Press, 1972), p. 106.

6 A pena capital só foi instituída por Deus no capítulo nove. Parece que “uma sentença de vida” como errante e vagabundo seria maior punição para Caim do que condená-lo à morte.

7 VonRad sugere uma tatuagem ou algo semelhante (página 107). A mesma palavra para sinal é encontrada em 9:13 e 17:11.

8 “Já que esse invocar pelo uso do nome definitivamente implica em adoração pública, temos aqui o primeiro registro de um culto público regular. Pressupõe-se que o culto particular seja anterior. A grande importância da adoração pública, tanto no caso de necessidade pessoal, como em caso de confissão pública, é lindamente estabelecida por este breve registro.” Leupold, p. 228.

Related Topics: Hamartiology (Sin), Man (Anthropology), Suffering, Trials, Persecution

6. Enfrentando as Genealogias (Gênesis 5:1-32)

Related Media

Introdução

Meus pais tiveram o privilégio de passar um ano dando aulas em Taiwan. Enquanto estavam em Taipei, eles conheceram um jovem chinês que queria aprender a ler e falar o inglês com mais fluência. Meu pai concordou em encontrar-se com “Johnny” uma vez por semana. Ele lhe disse que não cobraria nada pelas aulas e que o texto para os estudos seria o evangelho de Mateus. Aliás, Johnny recebeu a salvação no capítulo 16.

Uma das fitas que minha família nos mandou de Taiwan na época do Natal continha uma gravação de Johnny lendo Mateus em inglês. Se der para imaginar, ele lia a genealogia de Mateus capítulo um. Que introdução à língua inglesa e à Bíblia!

As genealogias nunca foram os trechos mais lidos da Palavra de Deus. Ray Stedman conta a história de um velho ministro escocês que ia ler o primeiro capítulo do evangelho de Mateus para sua igreja:

Ele começou: “Abraão gerou a Isaque, e Isaque gerou a Jacó, e Jacó gerou a Judá”. O velho senhor deu olhada no texto, viu a lista que se seguia e disse: “e eles continuaram gerando um ao outro página abaixo, até a metade da página seguinte”1.

Se formos honestos, é isso o que a maioria de nós faz com as genealogias da Bíblia — a gente passa por cima delas. Em meu ensino no livro de Gênesis, devo admitir que pensei seriamente em fazer a mesma coisa, ou seja, pular o capítulo cinco. Leupold, em um dos clássicos comentários de Gênesis, dá esta palavra de alerta aos pregadores: “Nem todo mundo se arrisca a usar este capítulo para pregar”2.

E podem acreditar, nem todo mundo mesmo. No entanto, existe um versículo da Escritura que não nos deixará passar por Gênesis cinco sem um estudo sério dessa genealogia: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a educação na justiça” (2 Timóteo 3:16).

Assim sendo, precisamos lidar com este capítulo de Gênesis de forma a discernir seu proveito e benefício para nós. Em todos os meus anos de pregação da Bíblia, aprendi que a inadequação não está no texto da Escritura que é pregado, mas no professor que o expõe.

Entendendo as Genealogias

O quinto capítulo de Gênesis é apenas uma das muitas genealogias contidas na Escritura. Aprender com este capítulo irá nos encorajar e nos ensinar a estudar as outras inúmeras genealogias da Bíblia. De modo inverso, as outras genealogias lançarão uma luz considerável sobre a nossa abordagem deste texto em particular. Portanto, vamos prestar atenção ao propósito geral das genealogias antes de voltar ao nosso texto.

As genealogias dos capítulos 5 e 11 de Gênesis não são, de forma alguma, as únicas dos tempos antigos. Os egípcios tinham listas dos seus reis, assim como os sumérios. Os hititas mantinham catálogos das oferendas reais, sem dúvida de valor histórico e cronológico3. As antigas genealogias do Oriente Próximo são muito elucidativas para determinar a correta interpretação dos registros bíblicos.

Em primeiro lugar, aprendemos que o propósito das genealogias não era o de serem usadas como cronologia4. À primeira vista, quem lê Gênesis capítulo cinco pensa que é preciso apenas somar os números ali contidos para estabelecer a idade da civilização na terra. Ussher, por exemplo, chegou à data de 4.004 aC para os acontecimentos do capítulo um de Gênesis.

A indicação de nomes individuais não implica, necessariamente, numa sequência contínua. Muitas vezes, alguns nomes eram omitidos e os registros genealógicos eram seletivos5.

A expressão “A gerou B” nem sempre implica em descendência direta6. Mateus 1:8 diz que “Jorão gerou Uzias”, no entanto, no Antigo Testamento (2 Reis 8:25; 11:2; 14:1,21) vemos que Jorão foi pai de Acazias, pai de Joás, pai de Amazias, pai de Uzias. Portanto, “gerou” pode significar “gerou uma linhagem que culminou em”7. Como Kitchen afirma, “termos como ‘filho’ e ‘pai’ podem significar não só ‘filho (neto)’ e ‘pai (avô)’, mas também ‘descendente’ ou ‘ancestral’, respectivamente”8.

A disposição das genealogias num padrão claro e organizado também sugere algo diferente de um indicador cronológico. A genealogia de Cristo em Mateus, por exemplo (Mateus 1:1-17), está disposta em três séries de 14 gerações cada. Essa genealogia é conhecida como seletiva.

Nas genealogias do antigo Oriente Próximo, em geral, os números eram de importância secundária9. O propósito principal era estabelecer a identidade familiar de alguém, sua linhagem. Em parte alguma de Gênesis 5, ou da Bíblia, ou de qualquer outro lugar, os números foram indicados para estabelecer algum tipo de cronologia. Às vezes, os números de uma narrativa diferem dos números de outra10. Embora haja muitas explicações para isto, uma delas é que esses números foram fornecidos apenas como um indicador. Números exatos não servem ao propósito da genealogia. Ainda que não ousemos dizer que esses números não são literais, estamos simplesmente apontando a forma como eles eram usados no antigo Oriente Próximo11.

Vamos, então, analisar cuidadosamente as palavras do grande erudito, Dr. B. B. Warfield, quando diz:

Essas genealogias devem ser consideradas dignas de valor somente para o propósito ao qual foram registradas; elas não podem ser adaptadas para uso em outros fins para os quais não foram destinadas, e para os quais não são adequadas. Em especial, fica claro que o objetivo genealógico dessas genealogias não requeria um registro completo de todas as gerações pelas quais passava o descendente das pessoas a quem foram atribuídas; só uma indicação adequada da linhagem particular de onde procedia o descendente em questão. Portanto, um exame melhor das genealogias da Escritura mostra que elas são aplicadas livremente para toda sorte de propósitos e não se pode afirmar com segurança que contenham um registro completo de todas as séries de gerações, embora quase sempre seja óbvio que muitas delas foram omitidas. Não há uma razão inerente à natureza das genealogias bíblicas pela qual uma genealogia de dez ligações registradas, tais como as dos capítulos 5 e 11 de Gênesis, não possa representar um descendente real de cem, mil ou dez mil ligações. O ponto estabelecido pelo registro não é que estas sejam todas as ligações diretas ocorridas entre o início e o fim dos nomes, mas que é uma linhagem onde se pode traçar a ascendência ou descendência de uma pessoa12.

O Significado de Gênesis 5

Se não podemos descobrir a idade da terra pela genealogia do capítulo cinco de Gênesis, o que vamos ganhar com seu estudo? Quanto mais penso nesta passagem, mais fica claro que ela precisa ser interpretada à luz do seu contexto. Uma parte significativa desse contexto é a genealogia de Caim no capítulo quatro. Portanto, o significado e a aplicação da genealogia do capítulo cinco podem ser obtidos por comparação e contraposição com o capítulo quatro.

Geralmente se diz que no capítulo quatro Moisés nos dá a genealogia de Caim, enquanto no capítulo cinco ele descreve a linhagem piedosa de Sete. Em certo sentido, isso é verdade. O capítulo quatro com certeza descreve uma descendência ímpia, enquanto o capítulo cinco registra a história da linhagem de onde viria o Salvador.

Tecnicamente, no entanto, o capítulo cinco não é o registro da linhagem de Sete, mas o de Adão.

Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão centro e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete. (Gênesis 5:1-3)

Tenho tentado decifrar a aparente repetição desses versículos iniciais. Por que Moisés nos diria aquilo que já sabemos? Observe que os versículos não estão ligados à genealogia do capítulo quatro, mas à do capítulo cinco. A genealogia de Caim termina num beco sem saída. Ela começa com o ímpio Caim, termina com o perverso Lameque e é levada pela “enxurrada” do dilúvio.

Moisés começa o capítulo cinco com a terminologia dos capítulos um e dois (por exemplo, ‘criou’, ‘à semelhança de Deus’, ‘homem e mulher’, ‘os abençoou’) para indicar ao leitor que os propósitos e planos de Deus para o homem, iniciados nos primeiros capítulos, devem ser cumpridos por meio da descendência de Adão, mas não pela linhagem de Caim, e sim pela de Sete. O capítulo cinco inteiro é uma descrição da linhagem estreita pela qual virá o Messias.

O contraste espiritual entre as duas linhagens é óbvio. E pode ser facilmente ilustrado pelos dois “Lameques” dos capítulos quatro e cinco. O Lameque (filho de Metusael, 4:18) da linhagem de Caim foi quem deu início à poligamia (4:19). Pior ainda, ele foi um assassino que se gabou do seu crime (4:23) e fez pouco das palavras de Deus ditas a Caim (4:24).

O Lameque do capítulo cinco (filho de Matusalém e pai de Noé) foi um homem piedoso. O nome de seu filho revela sua compreensão da queda do homem e da maldição de Deus sobre o solo (cf. 5:29). Isso também indica que ele acreditava que Deus libertaria o homem da maldição por meio do descendente de Eva. Creio que Lameque entendeu ainda que isso aconteceria especificamente por intermédio do filho dado por Deus a ele.

Na história dos descendentes de Caim nenhum número é empregado, enquanto na linhagem de Sete há um padrão numérico definido. Os números no capítulo cinco especificamente fornecem: 1) a idade do indivíduo quando do nascimento do filho mencionado; 2) os anos vividos após o nascimento desse filho;13 e 3) a idade do homem na época da sua morte. Basicamente, a vida da pessoa cai em uma das duas partes, A. F. e D. F.: antes ou depois do nascimento do filho. Esta não é uma divisão sem importância.

A duração da vida dos homens no capítulo cinco é extraordinariamente longa, mas qualquer tentativa de explicar esse fato de alguma forma que não seja entendendo esses números literalmente é simplesmente inútil. Sem dúvida, as condições eram muito diferentes antes do dilúvio.

Moisés, com certeza, pretendia nos impressionar com a longevidade daqueles homens. Esta é, obviamente, uma das razões pelas quais a idade deles foi incluída de forma tão evidente. Uma vida longa tornaria mais fácil a povoação da terra. Minha esposa e eu, em 17 anos de casados (NT: à época em que este estudo foi escrito), tivemos seis filhos. Imagine o que poderia ser feito em 900 anos!

Além do mais, Moisés, com isso, estaria mostrando que o homem originalmente foi planejado para viver muitos anos, mesmo depois da queda. Certamente a promessa de um reino milenar, onde o homem viveria até uma idade bem avançada (cf. Isaías. 65:20), é apoiada por este capítulo. Longevidade não era uma coisa nova, era simplesmente algo recuperado.

O principal contraste entre as linhagens de Caim e Sete é a ênfase de cada uma delas. À linhagem de Caim é creditado o que se pode chamar de “progresso secular” e grandes realizações. Caim edificou a primeira cidade (4:17). As contribuições tecnológicas e culturais vieram de seus descendentes. Trabalhadores em metal, pecuaristas e músicos vieram da sua linhagem.

Agora, o que é enfatizado na linhagem de Sete? Nenhuma menção é feita a grandes contribuições ou realizações. Duas coisas, no entanto, distinguem os homens do capítulo cinco. Em primeiro lugar, eles foram homens de fé (cf. Enoque, 5:18, 21-24; Lameque, 5:28-31). Esses homens olharam para o passado e compreenderam o fato de que o pecado foi a raiz de seus problemas e pesares. E olharam para o futuro na expectativa da redenção que Deus ia providenciar por meio da sua descendência.

Isso nos leva à sua segunda contribuição — eles geraram descendentes piedosos por meio dos quais os planos e propósitos divinos teriam continuidade. Ora, não está escrito que cada de um de seus filhos fosse temente a Deus. Contudo, sabemos que eles foram e que por meio deles e de seus filhos a linhagem continuou até culminar em Noé. Embora o resto da humanidade devesse ser destruído no dilúvio, em Noé, a raça humana (mais ainda, o descendente de Eva) seria preservada. A esperança dos homens, portanto, estava na preservação de uma descendência temente a Deus.

Mas que lição isso seria para os israelitas! Quando chegassem à terra de Canaã, eles encontrariam um povo completamente diferente dos egípcios. Os egípcios os desprezavam e não davam a mínima para casamentos mistos; os cananeus, no entanto, tentariam se casar com eles (cf. Gênesis 46:34; Deuteronômio 7:1 e ss; Números 25:1 e ss). Casar-se com os cananeus seria abandonar o Deus de Israel. Misturar-se com eles significava poluir a linhagem temente a Deus por meio da qual viria o Messias.

Deus tinha prometido abençoar a fé e obediência dos israelitas. Ele lhes daria chuva, boa colheita e gado (Deuteronômio 28). No entanto, com casamentos mistos, Israel talvez depositasse sua confiança não no Deus vivo, mas na tecnologia dos cananeus. Cavalos e carruagens deviam ser os últimos avanços tecnológicos na guerra, mas Deus tinha proibido Israel de acumular esse tipo de armamento. Eles deviam confiar somente nEle (cf. Êxodo 15:4; Deuteronômio 17:14 e ss; Josué 11:6). Fazer aliança com as nações pagãs podia ser o jeito do mundo, mas não o de Deus (2 Reis 18, 19).

Talvez fiquemos surpresos com tanta ênfase na morte na genealogia do capítulo cinco, já que isso não é mencionado no capítulo quatro. Não teria sido mais apropriado ressaltar a morte em conexão com a linhagem ímpia de Caim?

A primeira coisa que precisamos entender é o significado da morte no contexto do livro de Gênesis. Deus tinha dito a Adão que certamente eles morreriam no dia em que comessem do fruto proibido (2:17). Satanás descaradamente negou isso e garantiu a Eva que não seria assim (3:4). O capítulo cinco é um amargo lembrete de que o salário do pecado é a morte e que Deus cumpre a Sua Palavra, para julgar e para salvar.

Mas por que não ressaltar a relação entre a pecaminosidade e a morte? Por que não dar ênfase à morte no capítulo quatro? Deixe-me sugerir uma explicação. No capítulo quatro, a morte não parecia muito popular. Creio que Caim encontrou consolo no fato de ter gerado um filho e de ter dado o nome dele à cidade que edificou. Além disso, sua descendência foi responsável por grandes contribuições tecnológicas e culturais14. Esses “monumentos” de Caim talvez tenham lhe dado algum tipo de conforto.

No entanto, a triste realidade era completamente diferente. Como está escrito no livro de Provérbios: “A memória do justo é abençoada, mas o nome dos perversos cai em podridão” (Provérbios 10:7).

A maior tragédia não foi a morte dos homens do capítulo quatro, pois ela também ocorreu no capítulo cinco. A tragédia foi a descendência de Caim não ter sobrevivido ao julgamento de Deus. Contudo, Noé, o descendente de Sete, sobreviveu. Todos os homens morrerão um dia, mas alguns serão levados ao tormento eterno enquanto o povo da fé passará a eternidade na presença de Deus (cf. João 5:28-29; Apocalipse 20). A aparência externa mostra o que os filhos deste mundo “têm feito”, mas a realidade final é totalmente diferente.

A morte chegou à descendência piedosa de Sete. Isto é repetido oito vezes no capítulo cinco. Mas Enoque é um tipo daqueles que verdadeiramente caminham com Deus. A morte não irá tragá-los. Eles serão conduzidos à eterna presença de Deus, em cuja companhia viverão para sempre. A morte pode ser vista com naturalidade pelos verdadeiros crentes, pois seu aguilhão foi removido pela obra de Deus na morte de Jesus Cristo, o “descendente da mulher” (Gênesis 3:15).

Aplicação

Não posso deixar estes versículos sem mostrar sua relevância para nós hoje. A coisa mais importante do mundo, segundo Moisés, o que determina o destino dos homens, não é sua contribuição à cultura ou à civilização (por mais importante que seja). Quer você tenha ou não granjeado sua reputação por si mesmo, isso é de pouca consequência eterna. O fator decisivo para cada homem mencionado nestes capítulos é somente um: será que seu nome estava no livro de Deus?

Moisés começou o capítulo cinco com estas palavras: “Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez” (Gênesis 5:1).

E, no último livro da Bíblia, encontramos as seguintes palavras:

Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então se abriram os livros. Ainda outro livro, o livro da vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lado de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo. (Apocalipse 20:12-15)

O que determinou o destino dos homens da Antiguidade foi se seu nome estava no livro da geração de Caim ou no livro da geração de Sete. E o que determinou o nome daqueles que são listados no capítulo cinco foi seu reconhecimento de pecado pessoal e sua fé em Deus para prover a salvação prometida por Ele.

E hoje em dia, meu amigo, ainda é assim. A pergunta que fica é: em que genealogia você será encontrado? Ainda está em Adão ou já está em Cristo (Romanos 5)? Se você reconhece que é pecador, que merece o castigo eterno de Deus e confia na justiça do Senhor Jesus e na Sua morte substitutiva, você está em Cristo. Seu nome está no livro da vida. Se não, você está em Adão. Embora suas obras possam impressionar os homens, elas não satisfarão o padrão de Deus para a vida eterna. Em qual livro seu nome será encontrado?

Em segundo lugar, este capítulo nos lembra que o valor de um homem, aos olhos de Deus, deve ser manifestado em seus filhos. Essa é a razão pela qual os presbíteros devem ser avaliados, em parte, por seu desempenho como pais (cf. 1 Timóteo 3; Tito 1).

Como isso deve mudar nossos valores e nossas prioridades! Caim edificou para seu filho, mas Sete edificou seu filho. Caim sacrificou seus filhos ao sucesso. Sete encontrou sucesso nos seus filhos. Como é frequente a nossa necessidade de sermos relembrados das palavras do salmista:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele dá enquanto dormem. Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os inimigos à porta. (Salmo 127)

O salmista está relembrando a quem é viciado em trabalho que lutar pelo sucesso quase sempre sacrifica o que é de maior valor. Ele nos diz que os filhos, o grande presente de Deus aos homens, não são dados durante a labuta, mas durante o sono, não por se levantar cedo e deitar tarde, mas por descansar na fidelidade de Deus.

Que comentário excelente de Gênesis cinco encontra-se nas difíceis palavras de Paulo na primeira carta a Timóteo:

A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade de homem; esteja, porém, em silêncio. Porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. Mas ela será preservada pelo nascimento de filhos se eles continuarem em fé e amor, e em santidade com domínio próprio. (1 Timóteo 2:11-15, versículo 15 tradução do Autor)15

As mulheres que não concordam com o ensinamento de Paulo talvez protestem: “Mas como posso encontrar satisfação com todas essas proibições, e como posso contribuir de forma significativa para a igreja?” Paulo diz que, de fato, “o trabalho mais importante de todos para a mulher temente a Deus é criar filhos tementes a Deus”.

E, a fim de não aplicarmos isso somente às mulheres, deixe-me sugerir que o mesmo vale para os homens, embora esta não seja a intenção original de Paulo neste versículo. Pais, vocês estão sacrificando seus filhos pelo sucesso no mundo dos negócios ou no ministério cristão? Não há chamado mais importante do que criar filhos tementes a Deus. Se falharmos neste ponto, teremos falhado no nosso maior chamado.

Sei que há quem não tenha, ou não possa, ter filhos. Por isso, eu lhes digo que não estamos na mesma época dos antigos israelitas. A linhagem piedosa foi preservada e o Messias já veio pela descendência da mulher. No entanto, é vital para o propósito de Deus que os remanescentes fieis continuem a realizar a Sua obra para o homem e por intermédio do homem. Nós, então, precisamos continuar a gerar filhos espirituais e nutri-los com as verdades da Palavra de Deus. Vamos levar a sério esta tarefa.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 Ray Stedman, The Beginnings (Waco: Word Books, 1978), p. 47

2 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 248.

3 K. A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (Chicago: Inter‑Varsity Press, 1966 ), pp. 35-36.

4 “No entanto, em uma análise mais cuidadosa dos dados sobre os quais estes cálculos são feitos, não encontramos dados suficientes para fornecer uma base satisfatória à composição de um método cronológico definitivo. Esses dados consistem, em sua grande maioria e apenas em pontos específicos, de registros genealógicos; e nada pode ser claro do que a extrema precariedade de se tentar encontrar inferências cronológicas em registros genealógicos”. A Antigüidade e Unidade da Raça Humana, B. B. Warfield, Biblical and Theological Studies (Philadelphia: The Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1968), p. 240.

5 “Essal mistura da genealogia contínua e seletiva não é, de forma nenhuma, incomum. Além do óbvio exemplo de Mateus 1:1-17, a lista do Rei Abydos, no Egito, tranquilamente omite três grupos inteiros de reis (da Nona para a Undécima Dinastia, da Décima Terceira para a Décima Sétima, e os faraós Amarna) em três pontos distintos, no que seria, de outra forma, uma série contínua; outras fontes nos ajudar a saber disso”. Kitchen, p. 38.

6 Ibid.

7 Ibid., pp. 38,39.

8 Ibid., p. 39.

9 Cf. J. N. Oswalt “Cronologia do Velho Testamento”, The International Standard Bible Encyclopedia, edição revista (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1979), I, p. 674.

10 Em Gênesis 5 há consideráveis variações entre o Texto Massorético (o texto Hebraico do Antigo Testamento), a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) e o Pentateuco Samaritano. Para comparar estes números deve-se consultar o gráfico contido no artigo sobre a cronologia do Antigo Testamento da ISBE, I, p. 676.

11 “A mesma observação se aplica a uma segunda classe de dados: declarações cronológicas aleatórias como, por exemplo, a afirmação de Gênesis 15:13 sobre o período de permanência no Egito, ou de 1 Reis 6:1 sobre o lapso de tempo entre o êxodo e a construção do templo de Salomão. Embora não haja justificativa para se desprezar tais afirmações, também não é necessário presumir-se que sejam cômputos cronológicos precisos. Especialmente na sociedade pré-monárquica, longos registros cronológicos são altamente improváveis devido à sua falta de importância. Em vez disso, é de se esperar que as aproximações sejam feitas de várias formas; e o uso de números redondos, em especial, sugere algum grau de aproximação. É a importância desses números para o escritores bíblicos que o intérprete precisa entender antes de tentar construir uma cronologia absoluta sobre eles”. ISBE, p. 674.

12 Warfield, pp. 240-241.

13 Isso não quer dizer que os homens do capítulo cinco não tenham tido outros filhos e filhas. Eles podem ou não ter tido fé em Deus, e podem ou não ter nascido antes do filho indicado como tendo nascido em determinada época da vida de seu pai.

14 Não desejo ser conhecido por dizer, como alguns parecem querer*, que pessoas tementes a Deus devem abandonar todos os esforços para melhorar sua qualidade de vida, enriquecendo-a com contribuições morais, sociais, culturais e tecnológicas. Entendo que essas coisas fazem parte do mandamento de Deus para o homem “dominar a terra” (Gênesis 1:28, etc). O ponto aqui é que a fonte de consolo e conforto dos antigos não foram essas realizações, mas a promessa da salvação de Deus e a Sua fidelidade no seu cumprimento. *Cf. W. H. Griffith Thomas, Genesis, A Devotional Commentary (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1946), p. 63.

*Cf. W. H. Griffith Thomas, Genesis, A Devotional Commentary (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1946), p. 63.

15 O verso 15 é tradução minha, pois reflete melhor o grego. A palavra “mulher” fornecida pela NASV aqui é literalmente “ela” (singular). O “elas” da NASV é plural e, por isso, deve se referir ao “filhas” anterior, que também está no plural.

7. Os Filhos de Deus e as Filhas dos Homens (Gênesis 6:1-8)

Related Media

Introdução

As tentativas de se produzir uma raça superior não tiveram início com Adolf Hitler, nem terminaram com ele. Nossa geração parece ter fixação por super humanos. Super Homem, Homem Biônico, Mulher Biônica, Hulk, e muitos outros personagens da televisão versam sobre o mesmo tema. E o domínio dessa super-raça não deve ser entendido apenas no campo da ficção. É quase assustador saber que os geneticistas vêm tentando criar humanos superiores enquanto o aborto pode se tornar um meio de eliminar sistematicamente os indesejáveis. Outro dia, li no jornal um artigo que falava sobre uma organização que disponibiliza o esperma de ganhadores do Prêmio Nobel para determinadas mulheres.

Contudo, é bem mais difícil determinar as últimas consequências dessas tentativas do que encontrar sua origem. Seu início está registrado no sexto capítulo do livro de Gênesis. Devo dizer, no entanto, antes de começar o estudo, que há mais discordância por centímetro quadrado neste texto do que em qualquer outro lugar da Bíblia. Em geral, as maiores dificuldades com esta passagem vêm dos teólogos conservadores. Isso se deve ao fato da narrativa ser classificada como lenda por aqueles que não tomam a Bíblia ao pé da letra ou não a levam a sério. Os eruditos conservadores precisam explicar este episódio de acordo com aquilo que Moisés afirmou ser, um acontecimento histórico. Embora o texto suscite grandes diferenças de interpretação, isso não tem muita importância, pois não irá afetar o fundamento da salvação eterna de ninguém. Em geral, as pessoas de quem mais discordo são justamente meus irmãos em Cristo.

Quem, afinal, são os “Filhos de Deus”?

A interpretação dos versículos 1 a 8 depende da definição de três termos-chave: “os filhos de Deus” (2 e 4), “as filhas dos homens” (2 e 4), e os “nefilins” (4). Existem três interpretações principais destes termos que tentarei descrever, começando por aquela que, a meu ver, é a menos provável, e terminando com a que me parece mais satisfatória.

Posição 1: A União dos Ímpios Descendentes de Caim com os Piedosos Descendentes de Sete

Segundo quem defende este ponto de vista, “os filhos de Deus” são os homens piedosos da linhagem de Sete. As “filhas dos homens”, as filhas dos ímpios cainitas. E os “nefilins”, os homens ímpios e violentos resultantes dessa união pecaminosa.

O principal fundamento para essa interpretação é o contexto dos capítulos 4 e 5. O capítulo quatro descreve a ímpia geração de Caim, enquanto no capítulo cinco vemos a piedosa linhagem de Sete. Em Israel, a separação era uma parte vital da responsabilidade religiosa daqueles que verdadeiramente adoravam a Deus. O acontecimento do capítulo seis foi uma transgressão dessa separação que ameaçou a descendência piedosa da qual devia nascer o Messias. Essa transgressão foi a causa do dilúvio que viria a seguir. O mundo ímpio foi destruído e o justo Noé e sua família, por meio de quem seria cumprida a promessa de Gênesis 3:15, foram preservados.

Embora esta interpretação tenha a característica louvável de explicar a passagem sem criar problemas doutrinários ou teológicos, o que ela oferece em termos de ortodoxia é feito às expensas de uma prática exegética aceitável.

Em primeiro lugar, as definições dadas por essa interpretação não emergem do texto ou mesmo se adaptam a ele. Em lugar algum os descendentes de Sete são chamados de “os filhos de Deus”.

O contraste entre a linhagem piedosa de Sete e a linhagem ímpia de Caim talvez seja enfatizado demais. Não tenho absoluta certeza de que a linhagem de Sete, como um todo, tenha sido piedosa. Enquanto todos os descendentes da linhagem de Caim parecem ter sido ímpios, só um punhado dos descendentes de Sete são chamados de piedosos. O ponto que Moisés deseja ressaltar no capítulo cinco é que Deus preservou um remanescente justo pelo qual Suas promessas a Adão e Eva seriam cumpridas. Tem-se a distinta impressão de que bem poucas pessoas temiam a Deus naqueles dias (cf. 6:5-7, 12). Aparentemente, só Noé e sua família podiam ser chamados de justos na época do dilúvio. Teria Deus deixado de salvar algum justo?

Além disso, “as filhas dos homens” dificilmente poderiam se limitar somente às filhas dos cainitas. No versículo um Moisés escreveu: “como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gênesis 6:1).

É difícil concluir que os “homens” aqui não sejam os homens em geral ou a raça humana. Segue-se que a referência às suas “filhas” seria igualmente geral. Deduzir que as “filhas dos homens” no versículo dois seja algo diferente, um grupo mais restrito, é ignorar o contexto da passagem.

Por estas e outras razões1, devo concluir que esta posição é exegeticamente inaceitável. Embora cumpra os requisitos da ortodoxia, ela não se submete às leis da interpretação.

Posição 2: A Interpretação dos Déspotas

Reconhecendo as deficiências da primeira posição, alguns eruditos procuraram definir a expressão “os filhos de Deus” comparando-a com as línguas do antigo Oriente Próximo. É interessante saber que alguns governantes eram identificados como filho de um deus em particular. No Egito, por exemplo, o rei era chamado de filho de Rá2.

No Antigo Testamento, a palavra hebraica para Deus, Elohim, é usada para homens em posição de autoridade:

Então, o seu senhor o levará aos juízes que agirão em nome de Deus. (Êxodo 21:6, seguido do comentário à margem da NASV)

Deus assiste em Sua própria congregação; Ele julga em meio aos governantes (literalmente, os deuses, Salmo 82:1, cf. também 82:6)

Esta interpretação, como a dos anjos caídos, tem suas raízes na antiguidade3. De acordo com esta proposta, os “filhos de Deus” são nobres, aristocratas e reis.

Esses déspotas ambiciosos cobiçavam poder e riqueza e queriam se tornar “homens de renome”, ou seja, célebres (cf. 11:4)! Seu pecado não era o “casamento misto entre dois grupos, ou entre dois mundos (anjos e homens), ou entre duas comunidades religiosas (descendentes de Sete e de Caim), ou ainda entre duas classes sociais (plebe e realeza) — seu pecado era a poligamia”. Era o mesmo tipo de pecado de Lameque, o descendente de Caim, o pecado da poligamia, mais especificamente visto na forma de um harém, instituição característica da corte de um antigo déspota oriental. Nessa transgressão, os “filhos de Deus”, com frequência, violavam o dever sagrado de seu ofício como guardiães das ordenanças gerais de Deus para a conduta humana4.

No contexto de Gênesis 4 e 5, encontramos algumas evidências que poderiam ser interpretadas como suporte ao ponto de vista sobre os déspotas. Caim edificou uma cidade e em seguida deu a ela o nome de seu filho Enoque (versículo 4:17). As dinastias seriam mais facilmente estabelecidas num ambiente urbano. Sabemos, ainda, que Lameque teve duas mulheres (versículo 4:19). Embora isso esteja bem longe de ser um harém, poderia ser visto como um passo nessa direção. Esta posição também define “as filhas dos homens” como mulheres e não só como as filhas da linhagem de Caim.

Apesar desses fatores, esta interpretação provavelmente nunca teria sido concebida não fossem os “problemas” criados pela posição sobre os anjos caídos. Embora os reis pagãos fossem considerados como filhos de alguma divindade, nenhum rei israelita foi assim designado. É bem verdade que os nobres e algumas autoridades foram, ocasionalmente, chamados de “deuses”, mas não de “filhos de Deus”. Essa interpretação prefere ignorar a definição precisa fornecida pelas próprias Escrituras.

Além disso, toda a idéia de homens famintos de poder, procurando estabelecer uma dinastia com a formação de um harém, parece forçada nessa passagem. Quem teria tirado essa idéia do próprio texto, a menos que impusesse isso a ele? E mais, a definição dos nefilins como sendo meros homens violentos e tirânicos também parece inadequada. Por que tais homens seriam mencionados com tanta deferência se fossem como quaisquer outros daquela época? (cf. 6:11, 12). Embora a interpretação dos déspotas seja menos violenta ao texto do que a dos descendentes de Sete e Caim, ainda assim ela me parece inapropriada.

Posição 3: A Interpretação dos Anjos Caídos

De acordo com esta posição, os “filhos de Deus” dos versículos 2 e 4 são anjos caídos, os quais assumiram uma forma semelhante à dos homens. Esses anjos se casaram com mulheres da raça humana (descendentes de Caim ou de Sete) e a descendência resultante foram os nefilins. Os nefilins eram gigantes de superioridade física, os quais, por isso, se estabeleceram como homens de renome pelas suas proezas físicas e poderio militar. Essa raça de criaturas meio humanas foi varrida pelo dilúvio, junto com a humanidade em geral, pecadores confessos (versículos 6:11, 12).

Minha pressuposição básica na abordagem do nosso texto é que devemos deixar a Bíblia definir seus próprios termos. Se as definições bíblicas não forem encontradas, então devemos examinar a linguagem e a cultura dos povos contemporâneos. No entanto, a Bíblia define para nós o termo “os filhos de Deus”.

Um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles. (Jó 1:6)

Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles apresentar-se perante o SENHOR. (Jó 2:1)

Quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? (Jó 38:7, cf. Salmo 89:6, Daniel 3:25)

Os eruditos que rejeitam esta posição prontamente reconhecem o fato de que o termo exato é claramente definido na Escritura5. A razão pela qual rejeitam a interpretação dos anjos caídos é por acharem que esse ponto de vista é uma afronta à razão e à Escritura.

A principal passagem problemática citada é a do evangelho de Mateus, onde nosso Senhor disse: “Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus. Porque, na ressurreição, nem casam, nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos no céu” (Mateus 22:29-30).

Eles dizem que nosso Senhor falou que anjos não têm sexo, mas isso é mesmo verdade? Jesus estava comparando homens no céu com anjos no céu. Não está escrito que, no céu, homens ou anjos sejam assexuados, e sim que no céu não haverá casamento. Não há anjos femininos com quem os anjos possam gerar descendência. Nunca foi dito aos anjos “crescei e multiplicai-vos”, como foi dito ao homem.

Quando encontramos anjos descritos no livro de Gênesis, fica claro que eles podem assumir a forma humana, e que seu sexo é masculino. O escritor aos Hebreus menciona o fato de eles poderem ser hospedados sem o conhecimento das pessoas (Hebreus 13:2). Com certeza, eles devem ser bem convincentes como homens. Os homossexuais de Sodoma eram muito bons para julgar a sexualidade. Eles foram atraídos pela “masculinidade” dos anjos que foram lá para destruir a cidade (cf. Gênesis 19:1 e ss, especialmente o versículo 5).

No Novo Testamento, duas passagens parecem se referir ao incidente de Gênesis 6, e dão base à interpretação dos anjos:

Ora, se Deus não poupou a anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno os entregou a abismos de trevas, reservando-os para o juízo. (2 Pedro 2:4)

E a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do Grande Dia. (Judas 6)

Estes versículos podem indicar que alguns anjos que caíram com Satanás não ficaram contentes com seu “próprio domicílio” e, por isso, começaram a viver entre os homens (e mulheres) como homens. O julgamento de Deus foi colocá-los em algemas6 para que não pudessem mais servir aos propósitos de Satanás na terra como fazem os anjos caídos que ainda estão soltos executando suas ordens.

Os nefilins são claramente indicados como resultado da união entre os anjos caídos e as mulheres. Embora os estudos dessa palavra apresentem diversas sugestões para o significado do termo, sua definição bíblica vem de apenas um outro exemplo na Escritura, Números 13:33:

Também vimos ali gigantes (nefilins, os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos.

Portanto, entendo que os nefilins sejam uma raça de super-humanos, produto dessa invasão angélica à terra7.

Esta interpretação não só está em conformidade com o uso bíblico da expressão “filhos de Deus”, como também é a que mais se encaixa no contexto da passagem. Os efeitos da queda são vistos na descendência ímpia de Caim (capítulo 4). Embora ele e seus descendentes estivessem “sob o domínio de Satanás”, Satanás conhecia muito bem as palavras de Deus de Gênesis 3:15, que da descendência da mulher Deus traria o Messias que iria destruí-lo. Não sabemos se toda a linhagem de Sete foi temente a Deus. Na verdade, podemos supor exatamente o contrário. Só Noé e sua família direta parecem justos na época do dilúvio.

Gênesis seis descreve uma tentativa desesperada de Satanás para atacar o remanescente piedoso mencionado no capítulo cinco. Enquanto um descendente justo é preservado, a promessa de Deus paira sobre a cabeça de Satanás, como uma ameaça da sua destruição iminente.

As filhas dos homens não foram violentadas ou seduzidas. Elas simplesmente escolheram o marido da mesma forma que os anjos as selecionaram — pela atração física. Ora, se naquela época, você fosse uma mulher desimpedida, a quem escolheria? A um homem atraente e musculoso, famoso por sua força e por seus feitos, ou a alguém que comparado a ele tivesse a aparência de um fracote de meia tigela?

Aquelas mulheres tinham esperança de ser a mãe do Salvador. Quem seria o pai mais provável dessa criança? Não seria um “valente de renome”, que também podia se gabar de imortalidade? Alguns descendentes piedosos de Sete viveram quase 1000 anos, mas os nefilins não morreriam se fossem anjos. E assim começou uma nova raça.

Será que Deus Muda de Ideia?

Enquanto os versículos 1 a 4 ressaltam a invasão dos anjos no início de uma nova super-raça, os versículos 5 a 7 servem para informar que a humanidade em geral merecia a intervenção destrutiva de Deus na história — o dilúvio.  No entanto, é aqui que encontramos um problema muito sério, pois quase parece que Deus muda de ideia, como se a criação do homem fosse um erro colossal da Sua parte. Vamos tratar, então, da questão: “Será que Deus muda de ideia?” Vários fatores precisam ser considerados.

Primeiro, Deus é imutável, Ele não muda em Sua pessoa, em Sua perfeição, em Seus propósitos e em Suas promessas.

Deus não é homem para que minta, e nem filho de homem para que se arrependa. Porventura tendo ele prometido não o fará, ou tendo ele falado, não o cumprirá? (Números 23:19)

Também a glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa. (1 Samuel. 15:29, cf. também Salmos 33:11, 102:26-28, Hebreus 1:11-12, Malaquias 3:6, Romanos 11:29, Hebreus 13:8 e Tiago 1:17).

Segundo, há passagens nas quais “parece” que Deus muda de ideia.

Disse mais o Senhor a Moisés: Tenho visto este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação... Então, se arrependeu o Senhor do mal que dissera havia de fazer ao povo. (Êxodo 32:9-10, 14)

Viu Deus o que fizerem, como se converteram do seu mal caminho e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez. (Jonas 3:10)

Então o Senhor se arrependeu disso. Não acontecerá, disse o Senhor... E o Senhor se arrependeu disso. Também não acontecerá, disse o Senhor Deus. (Amós 7:3, 6)

Terceiro, nos casos onde Deus “parece” mudar de ideia, uma ou mais das seguintes considerações pode ser aplicada:

a) A expressão “Deus se arrependeu” é um antropomorfismo, ou seja, uma descrição de Deus que assemelha Suas ações às ações do homem. De outra forma, como o homem poderia entender o pensamento de Deus? O “mudar de ideia” de Deus pode ser apenas a maneira de ver da perspectiva do homem. Em ambos os textos, de Gênesis 22 (cf. versículos 2, 11-12) e de Êxodo 32, o que Deus propôs foi uma prova. Nos dois casos, Seu propósito eterno não mudou.

b) Nos casos em que tanto julgamento quanto bênção são prometidos, pode haver uma condição implícita ou explícita. A mensagem pregada por Jonas aos ninivitas é um deles:

Começou Jonas a percorrer a cidade de caminho dum dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Os ninivitas creram em Deus e proclamaram um jejum, e vestiram-se de pano de saco, desde o maior até o menor. Chegou esta notícia ao rei de Nínive: ele levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais. cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre a cinza. E fez-se proclamar e divulgar em Nínive: Por mandato do rei e seus grandes, nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem, os levem ao pasto, nem bebam água; mas, sejam cobertos de pano de saco, tanto os homens como os animais, e clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos? (Jonas 3:4-9)

O que era desejado pelos ninivitas, para Jonas era um fato. Eles clamaram por misericórdia e perdão, no caso de Deus poder ouvir e perdoar. Quando eles se arrependeram e Deus demonstrou compaixão, Jonas ficou louco de raiva:

Com isso, desgostou-se Jonas extremamente e ficou irado. E orou ao Senhor e disse: Não foi isso o que eu disse, estando ainda na minha terra? Por isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus clemente, e misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que se arrepende do mal. (Jonas 4:1-2)

Jonas sabia que Deus era amoroso e clemente. A mensagem pregada por ele indicava uma exceção. Se os ninivitas se arrependessem, Deus os perdoaria. Foi sobre isso que Jeremias escreveu, dizendo:

No momento em que eu falar acerca de uma nação de ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mal perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria. (Jeremias 18:7-10)

c) Embora o decreto de Deus não possa ser alterado, precisamos admitir que Ele é livre para agir como quiser. E, embora Seu roteiro possa mudar, Seus propósitos não mudam, “porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11:29).

Deus prometeu levar Seu povo à terra de Canaã. Devido à sua incredulidade, a primeira geração não tomou posse da terra, mas a segunda sim. Quando Jesus veio, Ele Se ofereceu a Israel como o Messias. A rejeição de Israel tornou possível oferecer o evangelho aos gentios. Apesar disso, quando os propósitos de Deus para os gentios forem cumpridos, Deus derramará Sua graça e salvação novamente sobre os judeus. O roteiro de Deus pode mudar, mas não Seus propósitos (cf. Romanos 9-11).

d) Ainda que a vontade de Deus (Seu decreto) não possa mudar e não mude, Ele é livre para mudar Suas emoções. Gênesis 6:6-7 descreve a reação de Deus ao pecado humano. Pesar é a resposta de amor ao pecado. Deus não é estóico; Ele é uma pessoa que Se regozija na salvação do homem e em sua obediência, e que Se aflige diante da incredulidade e da desobediência. Embora o propósito de Deus para a raça humana não mude, Sua atitude muda. Com certeza, um Deus Santo deve Se sentir diferente com relação ao pecado e com relação à obediência. Esse é o ponto dos versículos seis e sete. Deus é afligido pelo pecado do homem e suas consequências. No entanto, Ele cumprirá Seus propósitos independentemente disso. Embora tal circunstância tenha sido decretada desde a eternidade pretérita, Deus jamais poderia se regojizar nela, só lamentar a maldade e a obstinação do homem.

Uma ilustração semelhante é a reação emocional de nosso Senhor no Jardim do Getsêmani (cf. Mateus 26:36 e ss). Desde a eternidade pretérita Ele tinha Se proposto a ir à cruz para comprar a salvação do homem. No entanto, quando o momento da Sua agonia se aproximou, Ele teve medo. Seu propósito não mudou, mas Suas emoções, sim.

O Significado desta Passagem para o Israel Antigo

Para os antigos israelitas esta passagem ensinou diversas lições valiosas. Primeiro, ela lhes deu uma explicação adequada para o dilúvio. Podemos entender que aquela super-raça tinha de ser eliminada. O dilúvio não foi apenas uma forma de Deus julgar os homens pecaminosos, mas também de cumprir Sua promessa de trazer salvação pelo descendente da mulher. Se o relacionamento entre anjos e homens não tivesse sido interrompido, o remanescente piedoso teria deixado de existir (humanamente falando). Segundo, a passagem ilustrou o que Deus tinha dito à serpente, Adão e Eva: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente” (Gênesis 3:15a).

Israel não ousou esquecer que havia uma intensa batalha sendo travada, não só entre os descendentes de Caim e Sete, mas entre Satanás e o descendente da mulher. Embora nós estejamos acostumados a tal ênfase no Novo Testamento, os antigos tinham poucas referências diretas a Satanás ou a seus assistentes demoníacos (cf. Gênesis 3, Deuteronômio 32:17, 1 Crônicas 21:1, Jó 1 e 2, Salmo 106:37, Daniel 10:13, Zacarias 3:1-2). Esta passagem seria uma vívida lembrança da exatidão da Palavra de Deus.

Terceiro, a passagem ressaltou a importância de Israel manter sua pureza racial e espiritual. O remanescente crente em Deus tinha de ser preservado. Quando os homens deixaram de perceber a importância disso, Deus teve de julgá-los com rigor. Quando a nação entrasse na terra de Canaã, poucas lições seriam mais importantes do que a necessidade de separação.

O Significado de Gênesis 6 para os Cristãos Atuais

Muito embora o Novo Testamento tenha muito mais a dizer sobre as atividades de Satanás e seus demônios, poucos de nós parecem levar a sério a nossa luta espiritual. Nós realmente acreditamos que a igreja consegue operar somente com o esforço e a sabedoria humana, ou com uma ajudazinha de Deus. Muitas vezes tentamos viver a vida espiritual no poder da carne. Dizemos às pessoas para fazer uma nova dedicação da sua vida e redobrar seus esforços, mas deixamos de lhes dizer que a nossa única força é aquela que Deus nos dá.

Hoje, a batalha travada entre os filhos de Satanás e os filhos de Deus (no sentido do Novo Testamento — João 1:12, Romanos 8:14, 19) é muito mais intensa do que foi nos tempos antigos. O destino de Satanás está selado e seus dias estão contados (cf. Mateus 8:29). Vamos, pois, nos revestir da armadura espiritual de Deus para a luta espiritual de que somos parte (Efésios 6:10-20).

Em segundo lugar, precisamos entender que Satanás ainda hoje nos ataca com os mesmos instrumentos. Não conheço nenhum caso de seres angélicos caídos invadindo a terra em forma humana para promover a causa de Satanás em nossos dias. No entanto, Satanás continua trabalhando sutilmente por intermédio dos homens.

Porque os tais são falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, transformando-se em apóstolos de Cristo. E não é de se admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz. Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se transformem em ministros de justiça; e o fim deles será conforme as suas obras. (2 Coríntios 11:13-15)

Assim como Satanás procurou corromper os homens manifestando-se (ou melhor, seus anjos) na forma de seres humanos superiores, hoje ele usa os “anjos de luz”. Nossa tendência é supor que, na maioria das vezes, ele use os réprobos. Às vezes, até parece que esperamos encontrá-lo num patético endemoninhado ou num pobre-coitado desesperado. É fácil atribuir a Satanás esse tipo de coisa. No entanto, seu melhor trabalho e, em minha opinião, o mais comum, é quando usa pregadores aparentemente piedosos, devotos e religiosos que estão atrás do púlpito, ou se assentam no Conselho da igreja, falando de salvação em termos de comunidade e não de almas, e pelas obras ao invés da fé. Satanás continua promovendo sua causa usando homens que não são o que parecem ser.

Por fim, observe que o melhor trabalho de Satanás está justamente nas áreas onde homens e mulheres depositam a esperança da sua salvação. Quando os homens-anjos pediram as filhas dos homens em casamento, eles deviam parecer pais dos mais promissores. Se tais criaturas fossem imortais, sua descendência também não seria? Seria esta a forma de Deus reverter os efeitos da queda e da maldição? Assim deve ter parecido àquelas mulheres.

E é exatamente isso o que Satanás faz ainda hoje. Ah, mas não pense que ele esteja se autopromovendo através do ateísmo ou de outros “ismos”, pois o lugar onde ele faz mais sucesso é justamente na religião. Ele usa sua expressão mais piedosa e emprega terminologia religiosa. Ele não procura acabar com a religião, mas retira dela seu elemento crucial, a fé no sangue derramado de Jesus Cristo como substituto para o pecado dos homens. Ele está sempre pronto a se juntar a qualquer causa religiosa, desde que esse ingrediente seja omitido ou distorcido, ou fique perdido num labirinto de legalismo e libertinagem. Cuidado, meu amigo, Satanás está no mundo da religião. Que melhor maneira de desviar a alma dos santos e de cegar a mente dos homens (2 Coríntios 4:4)?

Onde está sua esperança de imortalidade? Está na sua descendência? Isso não funcionou para Caim. Está no seu trabalho? Você quer construir um império ou erigir um monumento dedicado ao seu nome? Você não será o último. Tudo isso sucumbiu no dilúvio do julgamento de Deus. Só a fé no Deus da Bíblia e, mais especificamente, no Filho enviado por Ele, lhe dará imortalidade e o libertará da maldição. O único jeito para isso acontecer é você se tornar um filho de Deus por intermédio do Filho de Deus.

Jesus lhe disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 4:6)

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 O problema mais sério desse ponto de vista se encontra  no versículo 4. Sob todos os aspectos, os gigantes (nephilim) e os homens poderosos (gibborim) são os descendentes dos casamentos entre os “filhos de Deus” e as “filhas dos homens”. Como diz Kline:

“De forma alguma fica clara a razão pela qual a descendência de casamentos mistos deva ser nephilim-gibborim, no entanto, estes devem ser entendidos dentro do alcance da interpretação provável... Mas sua (a do autor bíblico) referência ao ato conjugal e à gestação encontra justificativa apenas se ele estiver descrevendo a origem dos nephilim-gibborim. A menos que a dificuldade resultante dessa conclusão seja superada, a interpretação do casamento misto nesta passagem deve ser definitivamente descartada”.

Para resumir o problema: “Por que é declarado o tipo de descendência mencionada no versículo quatro se aqueles foram apenas casamentos mistos?” Manfred E. Kober, The Sons of God of Genesis 6: Demons, Degenerates, or Despots? p. 15. Kober cita aqui Meredith G. Kline, “Divine Kingship and Genesis 6:1-4”, Westminster Theological Journal, XXIV, Nov. 1961- May 1962, p. 190.

2 “No Egito o rei era chamado de o filho de Ra (o deus-sol). O rei Sumero-Akkadian era considerado descendente da deusa e um dos deuses, e essa identificação com a divindade remonta aos primórdios, de acordo com Engell. Em uma inscrição há uma referência a ele como “o rei, o filho de seu deus”. O rei Hitita era chamado “filho do deus-tempo”, e o título de sua mãe era Tawannannas (mãe do deus). Na região semítica noroeste o rei era diretamente chamado de filho de deus e o deus era chamado de pai do rei. O texto Ras Shamra (Ugarítico) Krt se refere a deus como o pai do rei e o rei Krt como Krt bn il, o filho de el ou o filho de deus. Assim, com base no uso semítico, o termo be ne ha elohim, os “filhos de deus” ou “filhos dos deuses”, muito provavelmente se refere aos governantes da dinastia de Gênesis 6.” An Exegetical Study of Genesis 6:1-4, Journal of the Evangelical Theological Society, XIII, inverno 1970, pp. 47-48, como citado por Kober, p. 19.

3 Em excelente artigo apresentando sobre esta posição, Kline escreve que, nos tempos antigos, surgiu entre os judeus a opinião de que os “filhos de Deus” de Gênesis 6 seriam aristocratas, príncipes, e nobres, em contraste com as socialmente inferiores “filhas dos homens”. Dessa interpretação, por exemplo, chegou-se à expressão no Targum Aramaico (o Targum de Onkelos traduz o termo como “filhos dos nobres”) e na tradução grega de Symmachus (que interpreta “os filhos de reis ou lordes”) e é seguida por muitas autoridades judaicas até o presente”. Kober, pp; 16-17, referindo-se a Kline, p. 194.

4 Kober, p. 16, citando Birney, p. 49 e Kline, p. 196.

5 Por exemplo, W. H. Griffith Thomas, que sustenta a posição dos descendentes de Caim e de Sete, diz:

“O versículo 2 fala da união de duas linhagem pelo casamento misto. Alguns escritores consideram a frase “filhos de Deus” como se referindo aos anjos, o que é apoiado por outras passagens —  cf. Jó 1:6; Salmo 28:1, Daniel. 3:25 — e, de fato, em qualquer lugar da Escritura, a frase invariavelmente quer dizer anjos”. Genesis: A Devotional Commentary (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1946), p. 65.

6 Será que não é este o cativeiro temido pelos demônios em Marcos 5:10 e Lucas 8:31?

7 Será que o fato de os nefilins serem mencionados depois do dilúvio significa que essa prática continuou mesmo depois dele? Alguns pensam que sim, enfatizando a frase “e também depois” (Gênesis 6:4). Se foi assim, precisamos dizer que isso não ameaçou a promessa de Deus naquela época. Só seria um reforço à  importância de não se casar com alguém dos cananeus, entre os quais se encontravam os nefilins.

Pessoalmente, não acho que a super-raça tenha aparecido após o dilúvio. A expressão nefilim, da forma como a entendo, não é sinônima desta, uma super-raça, mas a descrição dela. Refere-se simplesmente à grande estrutura física deles, exatamente como as outras expressões (“homens poderosos”, “homens de renome”) se referem à sua reputação e ao seu poderio militar. Não acho que precisamos encontrar criaturas super-humanas em Números 13:33, só gigantes. A palavra nefilim, portanto, é definida por Moisés em Números como se referindo a uma grande estatura física. Nenhum nome técnico é dado à super-raça, somente descrições que podem ser usadas em qualquer outro lugar para outras criaturas que não sejam anjos.

Related Topics: Angelology

8. O Dilúvio (Gênesis 6:9 — 8:22)

Related Media

Introdução

O mundo conhece muito pouco sobre a Bíblia, mas são poucas as pessoas que desconhecem a história da arca de Noé. Ela é tema de piadas, de pinturas, de filmes sobre sua busca e até mesmo de representações em cerâmica. O conhecimento a respeito do dilúvio é quase universal, mesmo fora do relato bíblico do livro de Gênesis.

No entanto, devido a certas indicações na narrativa de Gênesis e também porque em todos os continentes e entre quase todos os povos são encontradas histórias sobre uma grande inundação, parece que devemos concluir que o dilúvio de Gênesis se não abrangeu toda a terra, no mínimo engolfou toda a raça humana. Todos os relatos se referem a um dilúvio destrutivo ocorrido nos primórdios de cada uma dessas histórias tribais. Em cada caso, um ou mais alguns indivíduos foram salvos e foram encarregados de repovoar a terra. Até agora, os antropólogos já reuniram cerca de 250 a 300 dessas histórias.1

Essa familiaridade com a história é o maior obstáculo ao nosso aproveitamento do estudo do livro de Gênesis. Quando abordamos o texto já estamos com a cabeça-feita, achando que nada ou quase nada irá mudar o nosso pensamento ou a nossa atitude.

Suponhamos, por exemplo, que o tema da história seja juízo e destruição, o que, de certa forma, é verdade. Hollywood faria um estardalhaço em cima disso. Veríamos tudo quanto é tipo de ato pecaminoso representado na tela. Quando o enredo já tivesse esgotado as cenas de luxúria, o foco seria voltado para a destruição e violência. Famílias seriam separadas por correntes tempestuosas. Bebês seriam arrancados de suas mães. Prédios rachariam e desmoronariam na inundação.

Embora essa pareça ser a força propulsora da narrativa, não existem palavras para descrever o processo real que resultou em agonia, sofrimento e morte. Nenhuma cena se passa diante dos nossos olhos de tal devastação. O julgamento, com certeza, é um dos temas do que aconteceu, mas, graças a Deus, há um tema muito maior, o da graça salvadora de Deus. Embora não nos atrevamos a ignorar as advertências do texto, também não podemos perder de vista o seu encorajamento.

Enquanto algumas pessoas atentam para o pecado e a devastação do dilúvio, outras se preocupam com o que causou a inundação, não com o seu significado. Estou certo de que há muita coisa interessante nesse acontecimento para as mentes científicas, no entanto, gostaria de chamar sua atenção para o fato de que muito do que é proposto em nome da ciência é apenas teoria e especulação. Não desejo de forma alguma desacreditar ou desencorajar as pesquisas sobre isso. Só quero dizer que não ousamos construir nossa vida sobre elas e ressaltar que esse tipo de abordagem não é o foco principal da narrativa do dilúvio em Gênesis.

Uma análise detalhada desse fenômeno não é o propósito desta lição, e sim uma visão ampla do significado e da mensagem do dilúvio para as pessoas de todas as épocas. Tendo isso em mente, vamos voltar nossa atenção para o texto.

Preparação (6:9 - 7:5)

De modo geral, este trecho trata dos preparativos necessários para o dilúvio. As razões são dadas nos versículos 9 a 12. A revelação é feita a Noé nos versículos 13 a 21. A ordem para entrar na arca está em Gênesis 7:1-4. Gênesis 6:22 e 7:5 registram a obediência de Noé às instruções divinas.

Os versículos 9 a 12 do capítulo 6 e os versículos finais do capítulo 8 são os mais importantes desta passagem, pois ressaltam as razões para o dilúvio e o propósito de Deus para a história. Por isso, vamos dedicar a maior parte do nosso estudo a estes versículos, bem como às passagens do Novo Testamento que tratam deste assunto.

Enquanto o dilúvio foi proposto para destruir a raça humana, a arca foi designada para salvar Noé e sua família, e garantir o cumprimento do propósito divino para a criação e da promessa de salvação de Gênesis 3:15. A chave para o entendimento desta história está na compreensão do contraste entre Noé e sua geração.

Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus (Gênesis 6:9).

Que epitáfio! Noé era um homem justo. Seu caráter é descrito por apenas duas palavras: justo e íntegro. A palavra justo (do hebraico saddiq)

... é comumente usada em referência aos homens. Significa que eles se ajustam a um padrão. Uma vez que Noé se ajustava ao padrão divino, ele recebeu a aprovação de Deus. No entanto, o termo é basicamente forense. Por isso, embora haja aprovação divina, esta não implica em perfeição da parte de Noé. Implica simplesmente em que as coisas que Deus busca num homem estavam presentes na vida dele.2

Sem qualquer pretensão a ser perfeito, Noé foi um homem que deu crédito à Palavra de Deus. Ele satisfez a expectativa divina para o homem, enquanto o resto da humanidade era vil.

A segunda expressão usada para Noé é “íntegro” (versículo 9). A palavra hebraica é tamim. “Uma vez que a raiz hebraica envolve a idéia de ‘completo’, é justo concluir que somente aquela vida era completa em todos os sentidos, bem estruturada e com todas as qualidades essenciais”.

Abandonando essas duas expressões técnicas, Moisés resumiu a vida de Noé escrevendo: “Noé andava com Deus” (Gênesis 6:9).

Com isso ele deu ênfase ao relacionamento entre Noé e Deus, a intimidade entre eles. Isso também reflete a continuidade daquela convivência. Era um caminhar diário, confiante.

Sem dúvida, esse relacionamento tinha como base a revelação acerca da criação do homem e da sua queda. Mais especificamente, devia incluir a promessa de redenção de Gênesis 3:15. E, com toda probabilidade, alguma outra revelação não registrada por Moisés.

Para mim, a justiça de Noé era baseada mais em sua fé em Deus do que no temor das consequências da desobediência. Pelo que sei, ele não fazia ideia do julgamento divino que ia ser infligido à terra até Deus lhe revelar pessoalmente (versículo 13 e ss). Esta revelação do derramamento da ira divina foi resultado do relacionamento direto de Noé com Deus. Se os homens tivessem sido avisados do dilúvio que estava por vir, eles poderiam muito bem ter obedecido a Deus simplesmente por medo da punição. O relacionamento entre Noé e Deus não era motivado por tal temor, mas pela fé. Fé, não medo, é o motivo bíblico para um relacionamento com Deus (embora deva haver um certo temor respeitoso).

Vamos ser bem claros quanto à justiça de Noé. Era uma justiça que veio pela fé.

Pela fé, Noé, divinamente instruído a cerca de acontecimentos que ainda não se viam e sendo temente a Deus, aparelhou uma arca para a salvação de sua casa; pela qual condenou o mundo e se tornou herdeiro da justiça que vem pela fé. (Hebreus 11:70)

Não foram as obras de Noé que o preservaram do julgamento, mas a graça. “Mas Noé achou graça diante do Senhor” (Gênesis 6:8). Salvação é pela graça, mediante a fé, não por obras, mas para boas obras (Efésios 2:8-10).

Em contraste com a justiça de Noé estava a corrupção do homem: “A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência. Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida, porque todo o ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra”. (Gênesis 6:11-12)

Somente Noé era justo em seus dias. “Disse o Senhor a Noé: Entra na arca, tu e tua casa, porque reconheço que tens sido justo diante de mim no meio desta geração” (Gênesis 7:1).

O que isso nos diz acerca da família de Noé eu não sei, mas não dá para acreditar que todos os que entraram na arca não acreditassem em Deus, pelo menos após o dilúvio! Não havia outros justos para serem introduzidos na arca, pois ninguém mais andava com Deus. Todos os justos relacionados no capítulo cinco morreram antes da ocorrência do dilúvio.

Por sua própria natureza, os homens eram depravados e corruptos. O que Deus determinou destruir já tinha se autodestruído3. O relacionamento entre o homem e seu semelhante podia ser resumido com apenas uma palavra: “violência”.

Gostaria que percebessem que em parte alguma Moisés especifica os pecados daquela geração. Isso poderia despertar nossa curiosidade ou luxúria. Mais ainda, não acredito que as pessoas daquela época foram destruídas por terem se tornado uma sociedade totalmente decadente. O pecador que bate na mulher, ou pratica a homossexualidade, ou vive com uma garrafa pelos becos, não é, necessariamente, a pessoa mais vil aos olhos de Deus. Desconfio que muitas pessoas mortas no dilúvio foram pessoas religiosas. Imagino que a sociedade daqueles dias não era muito diferente, em questão de caráter, de muitas outras, a não ser por uma notável exceção: aparentemente elas não tinham qualquer tipo de restrição. A questão é que, homens educados, bem barbeados, gentis com senhoras idosas, etc, mas fraudam o imposto de renda ou se aproveitam dos outros, são tão pecadores quanto aqueles cujos pecados são socialmente inadmissíveis.

A principal manifestação do pecado do homem é sua rebelião contra Deus e seu espírito independente. Ele supõe que, embora Deus exista, Ele não se importa com o que as pessoas façam ou em que creiam. E, caso Se importe, não é muito. Pior ainda é a conclusão de que isso não é, de forma alguma, da conta de Deus.

Observe como Deus condena esse tipo de atitude:

Então, me respondeu: A iniqüidade da casa de Israel e de Judá é excessivamente grande, a terra se encheu de sangue, e a cidade, de injustiça; e eles ainda dizem: O SENHOR abandonou a terra, o SENHOR não nos vê. Também quanto a mim, os meus olhos não pouparão, nem me compadecerei; porém sobre a cabeça deles farei recair as suas obras. (Ezequiel 9:9-10)

As inclinações perversas do homem pairam sobre as chamas do inferno por causa da sugestão ou crença de que, embora Deus exista, Ele não se preocupa com o pecado, nem intervém na história humana para tratar dele. Esse tipo de pensamento é fatal.

Deus não escondeu de Noé Seus intentos. Ele lhe revelou Sua decisão de destruir a civilização perversa daquela época e de preservá-lo, bem como ao descendente por meio de quem a promessa de salvação seria cumprida. Noé recebeu a revelação de que essa destruição viria por meio de um dilúvio, e que ele e sua família seriam salvos por meio de uma arca.4

Mesmo não sendo necessário para nós o registro de todas as instruções para a construção da arca, é preciso observar que os detalhes fornecidos são específicos, até no que se refere à coleta de alimento. A arca era um barco incrível, 135 metros de comprimento, 22,5 metros de largura e 13,5 metros de altura (6:15). Ela serviria para salvar tanto o homem quanto os animais.

A Preservação do Homem e dos Animais (7:6 - 8:19)

A arca, agora completa, tendo sido construída ao longo de muitos anos de acordo com o plano divino, é ocupada ao mando de Deus (7:1) pelo homem e pelos animais. Antes do início do dilúvio, Deus fecha a porta. Imagino que se não fosse assim, Noé a teria aberto para quem depois quisesse entrar. No entanto, o dia de salvação tinha de chegar ao fim.

A fonte de água parece sobrenatural. Talvez nunca tivesse chovido (cf. 2:6). Agora a chuva era torrencial. Além disso, as “fontes do grande abismo” (7:11) foram abertas. A água, vinda de cima e de baixo, irrompe durante quarenta dias (7:12). As águas prevalecem durante 150 dias (7:24) sobre a terra, e, em seguida, diminuem ao longo de alguns meses. Cinco meses após o início do dilúvio, a arca pousa sobre o monte Ararate (8:4, cf. 7:11). Leva um tempo considerável para que elas retrocedam e o solo fique seco o suficiente para se andar sobre ele. Noé e sua família passaram pouco mais de um ano dentro da arca. Ao mando do Senhor, alegremente (tenho certeza) eles desembarcam.

A Promessa (8:20-22)

A primeira coisa que Noé faz ao colocar os pés em terra firme é oferecer sacrifícios a Deus. Esta é mais uma evidência da sua fé e, com certeza, expressão da sua gratidão pela salvação proporcionada por Deus.

Em resposta ao sacrifício de Noé, Deus faz uma promessa solene. Gostaria que entendessem, no entanto, que este é um compromisso firmado na mente de Deus — é uma promessa que Ele faz a Si mesmo. A manifestação dessa decisão é dada a Noé no capítulo 9. Isto é o que Deus propôs Consigo mesmo:

E o Senhor aspirou o suave cheiro e disse Consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz. Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite. (Gênesis 8:21-22)

A resolução de Deus é que Ele nunca mais irá amaldiçoar a terra ou destruir todas as coisas viventes como tinha feito. Por que Ele assumiria um compromisso assim? Com certeza Ele não estava triste pelo que havia feito. O pecado tinha de ser julgado, não tinha?

O problema com o dilúvio é que seus efeitos foram apenas temporários. O problema não estava na criação, mas no pecado. Não estava nos homens, mas no homem. Apagar o passado e começar tudo de novo não adianta, pois o que é preciso é um novo homem para a criação. Esta é a ardente expectativa da criação.

Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. (Romanos 8:20-21)

Portanto, Deus decidiu lidar de forma diferente com o pecado no futuro. Embora o pecado tenha sofrido um revés temporário no dilúvio, ele sofrerá um golpe fatal com a vinda do Messias. É nessa época que os homens se tornarão novas criaturas (2 Coríntios 5:17). Depois de cuidar dos homens, Deus providenciará também um novo céu e uma nova terra (2 Pedro 3:13).

Em resposta à oferta sacrificial feita por Noé como expressão da sua fé, Deus renova Sua promessa de salvação final e definitiva. Até o dia quando essa salvação for consumada, Deus garante ao homem que medidas como o dilúvio não serão tomadas novamente.

O Significado do Dilúvio para as Pessoas de Todas as Épocas

Em primeiro lugar, o dilúvio é um lembrete da graça ímpar de Deus. Enquanto os incrédulos acharam julgamento, Noé achou graça (Gênesis 6:8).

Até certo ponto, todas as pessoas daquela época experimentaram a graça de Deus. Somente 120 anos após sua revelação foi que o juízo de Deus realmente caiu sobre os homens. Esse período foi uma época de graça na qual o evangelho foi proclamado.

A diferença entre Noé e quem morreu no dilúvio foi sua reação à graça de Deus. Aqueles que pereceram interpretaram a graça de Deus como indiferença divina. Eles concluíram que Deus não Se importava nem Se incomodava com o pecado dos homens.

Noé, por outro lado, entendeu a graça exatamente como ela é — uma oportunidade para ter relacionamento íntimo com Deus e, ao mesmo tempo, evitar o desprazer e o juízo divino. Os anos de Noé foram gastos andando com Deus, construindo a arca e proclamando a Sua Palavra.

A graça de Deus é claramente vista nesta promessa: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite” (Gênesis 8:22).

Eis a ironia da nossa época. Como nos dias de Noé, o pecador perdido vê a vida como ela é e pergunta: “Como é que Deus pode realmente existir e não fazer nada para endireitar as coisas — para dar um jeito nelas?” Ele conclui que Deus ou está morto, ou não Se importa, ou não consegue lidar com o mundo do jeito que ele é, fazendo pouco da advertência de 2 Pedro 3:8-9:

Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia. Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada, pelo contrário, Ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.

Como Noé, o crente reconhece que a vida como ela se encontra é reflexo do controle soberano de um Deus gracioso sobre todas as coisas:

Pois, Nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio Dele e para Ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. (Colossenses 1:16-17)

A continuidade das coisas como elas são — dia e noite, verão e inverno, tempo de flores e tempo de frutos — faz o cristão dobrar os joelhos diante de Deus em louvor e submissão pelo Seu cuidado providencial. Os não-crentes, no entanto, distorcem essa promessa como desculpa para pecar:

Tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa de sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação”. (2 Pedro 3:3-4)

Eles não reconhecem que esse tempo é concedido aos homens para arrependimento e reconciliação com Deus. No entanto, assim como o período da graça terminou nos dias de Noé, assim será para os homens hoje:

Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. (2 Pedro 3:10)

Nosso Senhor ensinou que os dias que precederão a Sua vinda para julgar a terra serão exatamente como os dias que antecederam o dilúvio:

Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem”. (Mateus 24:37-39)

Esses dias não são descritos em termos de sensualidade ou decadência, mas de normalidade — de coisas comuns. Os homens dos últimos tempos estarão fazendo aquilo que sempre fizeram. Não há nada de errado em comer e beber, casar-se ou comprar e vender. Errado é fazer essas coisas sem Deus, supondo que podemos pecar como quisermos sem pagar o preço por isso. O tempo da graça chegará ao fim. Que saibamos reagir corretamente à graça de Deus.

Em segundo lugar, o dilúvio nos ensina sobre a ira de Deus. Aprendemos que, embora seja tardia, ela não falha. O juízo deve, finalmente, recair sobre aqueles que rejeitam a graça de Deus.

Fique bem claro, no entanto, que embora a ira e o juízo sejam uma certeza, eles não dão prazer ao coração de Deus. Em lugar algum desta passagem há a uma cena detalhada de angústia e sofrimento. Até os olhos de Noé foram poupados de ver o tormento sofrido por quem morreu no dilúvio. A arca não tinha vigias nem janelas por onde se pudesse olhar para a destruição feita por Deus. A única abertura era aquela no topo da arca permitindo a entrada de luz.

Deus não se deleita no juízo, nem o prolonga sem necessidade; no entanto, ele é certo para quem resiste à Sua graça. Não se engane, meu amigo, haverá uma época em que a oferta de salvação será retirada.

Há algum tempo, visitei uma senhora que estava morrendo de câncer. Não foi possível compartilhar o evangelho com ela em minha primeira visita, pois ela tinha de ser levada para terapia. Quando bati à sua porta pela segunda vez, seu marido atendeu e, pela abertura, pude vê-la, obviamente enfraquecida pela doença. Quando ele lhe perguntou se ela queria conversar comigo, ela balançou a cabeça dizendo que não. Não a vi de novo até a sua morte.

Muitas pessoas parecem pensar que podem esperar até estar com o pé na cova para serem salvas. Normalmente não acontece desse jeito. Deus silenciosamente fecha a porta da salvação. Quando vivemos em pecado e rebelião contra Deus, não podemos nos dar ao luxo de tomar a decisão no leito de morte. Às vezes acontece, concordo, mas é raro.

Além disso, muitas vezes o juízo de Deus permite que as coisas tomem seu próprio rumo. A história do dilúvio parece até uma reversão às condições do segundo dia da criação (Gênesis 1:6-7).

No livro de Colossenses está escrito que nosso Senhor Jesus Cristo é o Criador e Sustentador do universo (Colossenses 1:16-17). Quem rejeita a Deus vive como se Ele realmente não existisse. Na Grande Tribulação, Deus vai dar aos homens sete anos para descobrirem como é viver sem Ele. A mão de Deus que controla e restringe será retirada e o caos reinará. O juízo de Deus com frequência dá aos homens o que eles querem e o que merecem — as consequências naturais das suas ações.

Por fim, vamos considerar a questão da salvação de Deus. No caso de Noé, precisamos observar que o caminho de Deus para a salvação era restritivo. Deus providenciou somente um meio de salvação (uma arca) e somente uma porta. Os homens não poderiam ser salvos do jeito que quisessem, só do jeito de Deus. Tal é a salvação oferecida por Deus aos homens hoje.

Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14:6)

A salvação da arca também tinha fins educativos. Ela nos dá uma imagem da salvação que foi cumprida em Cristo. Para aqueles da época de Moisés, ela foi um “tipo” de Cristo. A diferença entre quem foi salvo e quem morreu no dilúvio foi a diferença entre estar dentro ou fora da arca.

Todos passaram pelo dilúvio, tanto quem foi salvo como quem morreu. Mas os sobreviventes foram aqueles que estavam dentro da arca, a qual os abrigou dos efeitos do desprazer divino de Deus pelo pecado. Tanto quem estava dentro da arca quanto quem estava fora dela sabia da sua existência e foi informado da advertência de Deus sobre o julgamento vindouro. Alguns escolheram ignorar esses fatos, embora Noé os tenha alertado.

O mesmo acontece ainda hoje. Deus disse que é preciso haver punição para o pecado — a morte. Quem, pela fé, está em Cristo, recebe a ira de Deus em Cristo. Na cruz do Calvário a ira de Deus foi derramada sobre Seu Filho sem pecado, Jesus Cristo. Quem nEle crê experimenta a salvação de Deus em Cristo. Quem se recusa a crer nEle por um ato da vontade deve sofrer a ira de Deus fora de Cristo, a nossa arca. Saber acerca de Cristo não salva uma pessoa, assim como saber acerca da arca não salvou ninguém na época de Noé. Só estando na arca, estando em Cristo, é que salva!

O caminho de Deus para a salvação não foi glamoroso. Creio que muitos teriam entrado no Queen Mary se ele tivesse sido construído por Noé, mas não na arca. A arca era pouco chamativa aos olhos, mas era suficiente para a tarefa de salvar os homens do dilúvio.

Muitas pessoas não querem ser salvas se isso não for feito de forma glamorosa, atraente e aceitável. Eu não gostaria de passar um ano preso com animais barulhentos e fedorentos mais do que você, mas esse era o jeito de Deus.

Nosso Senhor Jesus, quando veio oferecer salvação aos homens, não veio como Alguém que tinha um grande magnetismo ou atração pessoal. Como Isaías falou a Seu respeito, 700 anos antes da Sua vinda:

Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. (Isaías 53:2)

Muitos aceitariam a salvação se seu apelo fosse carnal. Mas a salvação de Deus não é assim.

Alguns cristãos falham exatamente neste ponto. Eles acham que o caminho de Deus é glorioso do começo ao fim. Só milagres e maravilhas. Sem sofrimento, sem dor, sem agonia, sem dor de cabeça. Preciso lhes dizer que nem sempre o caminho de Deus é tão glorioso quanto desejamos, mas só ele é o caminho da libertação, da paz e da alegria.

E a salvação proporcionada por Deus é aquela recebida pela fé na Sua Palavra revelada. Noé provavelmente nunca tinha visto uma chuva, ou mesmo ouvido o estrondo de um trovão. No entanto, Deus disse que viria um dilúvio e que ele tinha de construir uma arca. Noé creu em Deus e agiu em conformidade com a sua fé.

A fé que Noé tinha não era uma fé acadêmica — conceitual, mas uma fé ativa — uma fé prática. Ele passou 120 anos construindo aquela arca, comprometido com o Deus que ele conhecia. A nossa fé, também, precisa ser ativa.

Está escrito que Noé foi um pregador. Não creio que ele falasse com frequência por detrás de um púlpito, mas por detrás de uma tábua e de um martelo. Foi seu modo de vida que condenou os homens da sua época e os advertiu sobre o julgamento por vir. Sua vida inteira foi direcionada pela certeza de que o julgamento de Deus estava chegando.

Quem é cristão como nós sabe que nosso Senhor virá outra vez para julgar o mundo. Fico me perguntando o quanto isso tem afetado o nosso dia a dia. Será que seus vizinhos e os meus podem dizer que estamos vivendo à luz daquele dia quando haverá julgamento e salvação? Sinceramente espero que sim.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


1 Howard F. Vos, Gênesis e Arqueologia (Chicago: Moody Press, 1963), p. 32, Vos, nas páginas seguintes dá um excelente resumo dos mais significativos relatos da antiguidade e propõe sua relação com o relato de Gênesis.

2 H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, pp. 264-265.

Leitch define mais adiante o conceito de justiça:

“No uso geral, representa qualquer conformidade com um padrão caso esse padrão tenha a ver com o caráter interno de uma pessoa, ou com o padrão objetivo de uma norma estabelecida. Thayer sugere a definição ‘o estado daquele que é como deve ser’. Num sentido mais amplo, isso se refere àquele que é reto e virtuoso, demonstrando em sua vida integridade, pureza e honestidade de sentimentos e ações”. A. H. Leitch, “Justiça”. The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), V. p. 104.

3 “O hebraico para corrupto (corrompido) (ou “destruído”) também deixa claro que aquilo que Deus decidiu ‘destruir’ (13), na prática, já se autodestruiu”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 87.

4 Curiosamente, a palavra usada para arca (te,,ba) neste relato é encontrada outra vez só em Êxodo capítulo 2, a “arca” onde o bebê Moisés foi colocado por sua mãe para salvar a criança dos Egípcios.

9. A Aliança de Deus com Noé — Um Novo Começo (Gênesis 8:20 - 9:17))

Related Media

Introdução

Vivemos numa época em que as pessoas não querem mais assumir compromissos a longo prazo. O contrato matrimonial com frequência é evitado e os votos carecem da firmeza e do compromisso de antigamente. As garantias têm pouca duração. Os contratos muitas vezes são vagos ou cheios de lacunas e letras miúdas.

Estranhamente, os cristãos parecem pensar que cláusulas contratuais bem definidas não sejam muito espirituais, especialmente entre crentes. Dizem que “se deve cumprir o que se promete”. E deve-se mesmo.

É interessante observar que o imutável, infinito e todo poderoso Deus do universo tenha escolhido Se relacionar com os homens por meio de alianças. A aliança com Noé, no capítulo 9 de Gênesis, é a primeira aliança bíblica da Bíblia. Embora a palavra “aliança” apareça em Gênesis 6:18, ela se refere à aliança do capítulo 9.

A aliança com Noé, por uma série de razões, é muito importante para nós. Enquanto estou preparando esta mensagem, está chovendo lá fora, e um pouco forte também. Se esta aliança ainda não estivesse em vigor, isso seria motivo de grande preocupação para você e para mim. A nossa tranquilidade é resultado direto da aliança feita por Deus com Noé séculos atrás.

A aliança com Noé, além do fato de ainda estar em vigor, também nos dá um padrão para as outras alianças bíblicas. Conforme viermos a entender esta aliança, iremos apreciar muito mais o significado das demais e, especialmente, o da nova aliança instituída por nosso Senhor Jesus Cristo.

Por fim, a aliança com Noé estabelece as bases para a existência do governo humano. Particularmente, ela trata da questão da pena de morte. E é aqui que nossas considerações sobre este tema tão debatido devem começar.

O Compromisso Divino (8:20-22)

Você irá perceber que os últimos versículos do capítulo oito de Gênesis já foram discutidos em minha última mensagem. Embora esses versículos não façam parte da aliança com Noé, certamente são uma introdução a ela. Por isso, devemos começar nosso estudo por eles.

Tecnicamente, Gênesis 8:20-22 não é uma promessa de Deus a Noé. Antes é um propósito assentado no coração de Deus.

E o Senhor aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz. (Gênesis 8:21)

Essas palavras não foram ditas a Noé, elas são intentos reafirmados na mente de Deus. Os teólogos do pacto dão muita ênfase a dois ou três pactos teológicos: o pacto das obras, o pacto da graça e o pacto da redenção1. Todos eles, embora sejam “bíblicos” em essência, são mais implícitos do que explícitos. Os teólogos do pacto geralmente tendem a enfatizar os pactos implícitos às expensas dos pactos claramente bíblicos, como o pacto de Deus com Noé. Por outro lado, os teólogos dispensacionalistas muitas vezes dão muita importância aos pactos bíblicos e menosprezam os pactos teológicos.

Nos capítulos 8 e 9 de Gênesis, ambos os elementos são encontrados. O propósito eterno de Deus para salvar os homens foi estabelecido muito antes dos dias de Noé (cf. Efésios 1:4, 3:11; 2 Tessalonicenses 2:13; 2 Timóteo 1:9, etc). O que encontramos em Gênesis 8:20-22 não é a origem desse propósito, mas sua confirmação na história. Assim como Deus está reafirmando Seu propósito aqui, é sempre bom que os homens também ratifiquem seus compromissos (cf. Filipenses 3:8-16).

A aliança de Deus Consigo mesmo foi motivada pelo sacrifício oferecido por Noé (Gênesis 8:20). A resolução de Deus foi não destruir a terra novamente por um dilúvio (cf. 9:11). Entendo que as palavras “não tornarei a amaldiçoar a terra...” (versículo 21) são análogas à expressão “nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz” (versículo 21).2

O que propiciou a resolução de Deus foi a natureza do homem: “porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade” (verso 21).

O justo Noé (6:9) logo seria encontrado nu em estado de embriaguez (9:21). Não importa o quanto o passado da terra seja lavado por um dilúvio, o problema sempre vai existir enquanto houver um só homem no mundo. O problema está dentro do homem — é a sua natureza pecaminosa. Sua predisposição ao pecado não é aprendida, é inata — ele é “mau desde a sua mocidade”. Por isso, uma restauração completa precisa começar com um novo homem. Isso é o que Deus propôs realizar historicamente.

Esse propósito é parcialmente expresso no versículo 22: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”.

Um Novo Começo (9:1-7)

Ray Stedman chama estes versículos (e os versículos 8-17) de “As Regras do Jogo”3, e acho que ele realmente captou o significado desta seção. Um novo começo, com um novo conjunto de regras, é evidente pela similaridade destes versículos com Gênesis capítulo um.

Tanto aqui (Gênesis 9:1) como lá (Gênesis 1:28) Deus abençoou Suas criaturas e lhes disse para serem fecundas e se multiplicarem. Tanto aqui (Gênesis 9:3) como lá (Gênesis 1:29-30) Deus prescreveu o alimento que o homem poderia comer.

Contudo, existem algumas diferenças que indicam que o novo começo ia ser diferente do antigo. Deus avaliou a criação original como sendo “boa” (cf. 1:21, 31). O mundo dos dias de Noé não recebeu tal aprovação, pois o homem que o dominava era pecador (8:21).

Adão foi encarregado de dominar a terra e governar o reino animal (1:28). Noé não recebeu tal mandato. Em vez disso, Deus colocou medo do homem nos animais, pelo qual o homem poderia exercer certo controle sobre eles (a razão pela qual meu cachorro me obedece — quando obedece — é porque tem medo de mim).

Enquanto Adão e seus contemporâneos parecem ter sido vegetarianos (Gênesis 1:29-30, cf. 9:3), Noé e seus descendentes poderiam comer carne (9:3-4). Havia, no entanto, uma condição. Eles não poderiam comer o sangue dos animais, pois a vida do animal estava no seu sangue. Isso ia ensinar ao homem não só que Deus dá valor à vida, mas também que ela Lhe pertence. Deus permite aos homens tirar a vida dos animais para sobreviver, no entanto, eles não podem comer o sangue.

Algumas pessoas podem estranhar o fato de se poder comer carne depois do dilúvio, mas não antes (ou assim parece). Talvez as condições da terra tenham mudado tanto que agora a vida necessitasse da ingestão de proteínas. No entanto, o mais provável é que era preciso o homem perceber que, por causa do seu pecado, ele só poderia viver pela morte de outrem. O homem vive pela morte dos animais.

Mas, o mais importante é que o homem aprendeu a respeitar a vida. Depois da queda, os homens eram obviamente homens de violência (cf. Gênesis 6:11), os quais, como Caim (Gênesis 4:8) e Lameque (Gênesis 4:23-24), não tinham qualquer respeito pela vida humana. Isso é declarado com mais ênfase nos versículos 5 e 6 do capítulo 9:

Certamente requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; de todo animal o requererei, como também da mão do homem, sim, da mão do próximo de cada um requererei a vida do homem. Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem.

A vida do homem é preciosa e pertence a Deus. Ela foi dada por Deus e só Ele pode tomá-la. Os animais que derramassem o sangue de um homem deviam ser mortos (versículo 5, cf. Êxodo 21:28-29). Os homens que, deliberadamente, tirassem a vida de outro homem deviam morrer “pelo homem” (versículo 6, cf. Números 35:33).4

Nestes versículos, além do assassinato, o mandamento de Deus proíbe também o suicídio. A vida pertence a Deus — não só a vida dos animais e de outras pessoas, mas também a nossa própria vida. Precisamos entender que o suicídio é tomar a nossa vida em nossas próprias mãos quando Deus disse que ela Lhe pertence. Nas palavras de Jó: “o Senhor o deu e o Senhor o tomou” (Jó 1:21).

Esta passagem também parece lançar luz sobre a controvertida questão do aborto. O homem não pode derramar o sangue de outro homem. A vida do homem está no sangue (Gênesis 9:4, Levítico 17:11). Deixando de lado muitas outras considerações, não deveríamos concluir que, se um feto tem sangue, ele tem vida? Não deveríamos também reconhecer que derramar esse sangue, destruir esse feto, é violar o mandamento de Deus e ficar sujeito à pena de morte?5

O homem é criado à imagem de Deus (Gênesis 1:27, 9:6). Em vista disso, o assassinato é muito mais do que um ato de hostilidade contra o homem — é uma afronta contra Deus. Atacar o homem é atacar a Deus, à imagem de Quem ele foi criado.

Dissemos que matar é pecado porque a vida pertence a Deus. Mostramos também que o assassinato deve ser rigorosamente tratado, pois a vítima é uma pessoa criada à imagem divina. Uma outra razão para a aplicação da pena de morte nesta passagem é: o homem deve derramar o sangue do assassino porque ele também é parte da imagem divina. “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (versículo 6).

Deus não tirou a vida de Caim quando este matou seu irmão, Abel. Creio que Ele tenha permitido a Caim viver para podermos ver as consequências de se deixar um assassino à solta. Lameque matou um rapaz, provavelmente só por causa de um insulto, e se gabou disso (Gênesis 4:23-24). Os homens que morreram no dilúvio eram homens violentos (6:11). Deus de fato puniu o pecado, mas protelou sua execução até os dias do dilúvio para podermos aprender o alto preço de se deixar um assassino à solta.

Agora que toda a raça humana tinha perecido devido ao seu pecado, Deus podia requerer da sociedade a vida do assassino. Aplicando a pena de morte, o homem agiria no interesse de Deus — ele refletiria a imagem moral de Deus, ou seja, Sua indignação e Sua sentença sobre o assassino.

O homem (e com isso entendo que Moisés estivesse se referindo à sociedade e suas agências governamentais) devia executar o assassino a fim de refletir a pureza moral de seu Criador. Os atos governamentais em nome de Deus punem o malfeitor e respeitam aqueles que fazem o bem:

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por Ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. (Romanos 13:1-4)

A “espada” mencionada por Paulo no versículo quatro é a espada usada pelo executor no cumprimento da pena de morte. O próprio Senhor deu testemunho de que a tarefa de executar os transgressores da lei foi dada ao Governo:

Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso quem me entregou a ti maior pecado tem. (João 19:10-11)

Creio que o mandamento relativo à pena capital seja o alicerce para qualquer sociedade de homens pecaminosos. O reino animal é controlado, em grande parte, pelo medo que os animais sentem do homem (9:2). As tendências pecaminosas do homem também são mantidas sob controle pelo medo que ele tem das consequências. Qualquer sociedade que perca o respeito pela vida não pode durar muito tempo. Por esta razão, Deus instituiu a pena capital como uma restrição graciosa da tendência pecaminosa do homem para a violência. E, por isso, a humanidade pode viver em relativa paz e segurança até o Messias de Deus acabar de vez com o pecado.

E assim tem início uma nova época. Não uma época de otimismo ingênuo, mas de vida debaixo de leis muito claras. E, como veremos nos próximos versículos, uma época com esperança para o futuro.

A Aliança com Noé (9:8-17)

A aliança de Deus com Noé e seus descendentes revela muitas das características das alianças subsequentes feitas por Deus com o homem. Por isso, vamos destacar as mais relevantes.

(1) A aliança com Noé foi iniciada e ditada por Deus. A soberania de Deus é claramente vista nesta aliança. Embora algumas alianças do passado tenham sido resultado de negociações, esta não. Deus deu início a ela como expressão externa do Seu propósito revelado em Gênesis 3:20-22. Ele ditou os termos para Noé, e não houve discussão.

Um amigo meu tinha um carro que estava “no fim da picada”. Com meu apoio, ele foi a uma feira de carros usados em busca de algo mais confiável. Ele encontrou um veículo que parecia promissor, mas decidiu pensar um pouco mais no assunto. Quando entrou no carro velho para ir embora, não conseguiu dar a partida. Como dá para imaginar, meu amigo não estava em condições de barganhar. Ele comprou o outro carro sem negociar o preço. A situação de Noé era exatamente a mesma. E devo acrescentar: será que nós ousaríamos questionar os termos de Deus? Acho que não!

(2) A aliança com Noé foi feita com ele e todas as gerações subsequentes: “Disse Deus: Este é o sinal da minha aliança que faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes que estão convosco, para perpétuas gerações” (9:12).

Esta aliança permanecerá em vigor até a época em que nosso Senhor retornar à terra para purificá-la pelo fogo (2 Pedro 3:10).

(3) Esta é uma aliança universal. Enquanto algumas alianças envolvem apenas um pequeno grupo de pessoas, esta aliança em particular abrange “toda carne”, isto é, todos os seres viventes, incluindo o homem e os animais:

Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: assim as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca, como todos os animais da terra. (Gênesis 9:9-10)

(4) A aliança com Noé é uma aliança incondicional. Algumas alianças eram condicionais, onde as partes deveriam cumprir determinadas condições. Esse foi o caso da aliança Mosaica. Se Israel guardasse os mandamentos de Deus, eles receberiam Suas bênçãos e teriam prosperidade. Se não, seriam expulsos da terra (Deuteronômio 28). As bênçãos da aliança com Noé não eram condicionais. Deus daria regularidade de estações e não destruiria novamente a terra por um dilúvio simplesmente porque disse que seria assim. Embora a raça humana tenha recebido certos mandamentos nos versículos 1 a 7, estes não devem ser vistos como condições da aliança. Tecnicamente, eles não fazem parte dela.

(5) Esta aliança foi uma promessa de Deus de nunca mais destruir a terra por um dilúvio: “então, me lembrarei da minha aliança firmada entre mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (Gênesis 9:15).

Deus irá destruir a terra pelo fogo (2 Pedro 3:10), mas só após a salvação ser comprada pelo Messias e os eleitos serem levados, do mesmo modo que Noé foi protegido da ira de Deus.

(6) O sinal da aliança com Noé é o arco-íris:

Porei nas nuvens o meu arco; será para sinal da aliança entre mim e a terra. Sucederá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, e nelas aparecer o meu arco, então, me lembrarei da minha aliança firmada entre mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne. (Gênesis 9:13-15)

Toda aliança tem seu sinal correspondente. O sinal da aliança Abraâmica é a circuncisão (Gênesis 17:15-27); o da Mosaica, a observância do sábado (Êxodo 20:8-11; 31:12-17).

O arco-íris é um “sinal” bastante apropriado. Ele é constituído pelo reflexo dos raios solares nas partículas de água das nuvens. A mesma água que destruiu a terra forma o arco-íris. O arco-íris, também, aparece no fim de uma tempestade. Por isso, este sinal declara ao homem que a tempestade da ira de Deus (num dilúvio) já passou.

O mais interessante é que o arco-íris não foi planejado para o homem (pelo menos não neste texto), mas para Deus. Ele disse que o arco-íris O faria Se lembrar da Sua aliança com o homem. Que conforto saber que a fidelidade de Deus é a nossa garantia!

Conclusões e Aplicações

Para os antigos israelitas que primeiro receberam esta revelação de Deus, a aliança com Noé explicou o motivo de várias regras da lei Mosaica. As leis referentes à pena de morte, por exemplo, têm origem e explicação no capítulo 9 de Gênesis. A questão específica do sangue ganha ainda mais significado à luz deste capítulo.

Os antigos profetas também fizeram alusão à aliança de Deus com Noé. Isaías relembrou à nação, Israel, a fidelidade de Deus em manter esta aliança:

Porque isto é para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti. (Isaías 54:9-10)

Na época dos escritos de Isaías parecia haver poucos motivos de esperança para eles como nação. Isaías relembrou-lhes que sua esperança era tão segura quanto a Palavra de Deus. A promessa da redenção por vir deveria ser vista à luz da fidelidade de Deus em manter Sua aliança com Noé e seus descendentes.

A linguagem de Gênesis capítulo nove foi empregada por Oseias para garantir ao povo de Deus a sua restauração:

Naquele dia, farei a favor dela aliança com as bestas-feras do campo, e com as aves do céu, e com os répteis da terra; e tirarei desta o arco, e a espada, e a guerra, e farei o meu povo repousar em segurança. (Oséias 2:18)

Jeremias também falou das bênçãos futuras de Deus ao relembrar ao povo Sua fidelidade em manter a aliança com Noé:

Assim diz o Senhor, que dá o sol para a luz do dia e as leis fixas à luz e às estrelas para a luz da noite, que agita o mar e faz bramir as suas ondas; Senhor dos Exércitos é o seu nome. Se falharem estas leis fixas diante de mim, diz o Senhor, deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de mim para sempre. Assim diz o Senhor: Se puderem ser medidos os céus lá em cima e sondados os fundamentos da terra cá embaixo, também eu rejeitarei a descendência de Israel, por tudo quanto fizeram, diz o Senhor. (Jeremias 31:35-37, cf. também 33:20-26, Salmo 89:30-37).

Os Israelitas podiam ansiar pela salvação que Deus lhes traria. E nós podemos olhar para o que Ele já fez por intermédio do Messias, o Senhor Jesus Cristo. Embora Israel ainda aguarde o pleno cumprimento da aliança de Deus no milênio, eles podem fazê-lo na confiança de que Deus mantém Seus compromissos. E nós também, como cristãos, podemos ter plena certeza da fidelidade de Deus.

A aliança com Noé, de diversas formas, prefigurava a nova aliança. Consequentemente, a nova aliança cumpriu muitas das coisas antecipadas pela aliança com Noé. O derramamento de sangue adquiriu novo significado na aliança com Noé. O derramamento do sangue de Cristo no Calvário subitamente trouxe à baila o capítulo 9 de Gênesis.

Tendo em vista que todas as alianças bíblicas têm seu ápice na nova aliança, que as deixa obscurecidas, vamos gastar alguns momentos para comparar as características da nova aliança com a aliança de Deus com Noé.

A nova aliança é prometida em Jeremias 31:30-34:

Cada um, porém, será morto pela sua iniqüidade; de todo homem que comer uvas verdes os dentes se embotarão. Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas escreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece o Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior deles, diz o Senhor. Pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.

Nosso Senhor instituiu esta aliança pela Sua morte na cruz do Calvário. O sinal da aliança é a ceia do Senhor:

Enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai. (Mateus 26:26-29)

O escritor aos Hebreus salientou que a nova aliança substituiu a antiga (Mosaica) e é infinitamente superior a ela.

A nova aliança, assim como a aliança de Deus com Noé, foi iniciada por Deus e executada por Ele. Enquanto toda carne se beneficia da graça comum prometida por Deus na aliança com Noé, somente quem está “em Cristo” é beneficiado pelas bênçãos da nova aliança. É a nova aliança “no Seu sangue” que é experimentada por quem confia no sangue derramado de Cristo, o Cordeiro de Deus, para receber o perdão dos pecados e o dom da vida eterna. Nosso Senhor disse a Seus seguidores:

Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. (João 6:53-55)

Com isto Ele quis dizer que não se deve somente reconhecer a divindade de Cristo e Sua morte pelo pecador, mas que isso precisa se tornar a parte mais importante da vida, crendo que somente em Cristo há salvação.

A única condição para participar das bênçãos da nova aliança é expressando uma fé pessoal em Cristo ao recebê-lo:

Mas a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no Seu nome. (João 1:12)

E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida. (1 João 5:11-12)

Como na aliança com Noé, quem está debaixo da nova Aliança não precisa temer a futura explosão da ira de Deus. Embora a aliança com Noé garantisse a toda carne que Deus não iria destruir novamente a vida por um dilúvio, a nova aliança garante ao homem que ele não sofrerá o derramamento da ira divina por outros meios, tais como o fogo (2 Pedro 3:10).

... e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala cousas superiores ao que fala o próprio Abel. (Hebreus 12:24)

Como as alianças são reconfortantes! Elas permitem ao homem saber exatamente onde ele está com Deus. Não tente fazer seu próprio acordo com Ele, meu amigo. Você pode enfrentar a eterna ira de Deus por confiar em si mesmo, ou pode receber o perdão divino e a vida eterna pela fé em Cristo. Os termos que Deus estabelece para a paz são muito claros. Você já se rendeu a Ele? Que Deus o ajude a fazê-lo.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 A teologia das Igrejas Reformadas, no que se refere às alianças, tem seu protótipo na teologia patrística, sistematizada por Agostinho de Hipona. Ela representa a totalidade das Escrituras como sendo coberta por duas alianças: 1) o pacto das obras e 2) o pacto da graça. As partes da primeira aliança eram Deus e Adão. A promessa da aliança era a Vida. A condição era a perfeita obediência de Adão. E o castigo para o fracasso era a morte. Para salvar o homem do castigo da sua desobediência, uma segunda aliança, feita desde a eternidade, entrou em vigor, chamada de aliança da graça. Ao longo do Antigo Testamento houve sucessivas proclamações dessa aliança”. A Teologia dos Pactos, Baker’s Dictionary of Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1960). p. 144.

2 Alguns poderiam esperar alguma referência à maldição sobre o solo referida em Gênesis 3:17 e 5:29. No entanto, tanto teologicamente quando na prática, sabemos que ela não foi removida. Qualquer jardineiro sabe disso por experiência própria.

A palavra para “maldição” em Gênesis é Qalal, embora em 3:17 e 5:29 a palavra seja Arur. É muito interessante que, em Gênesis 12:3, ambas sejam empregadas. A maldição do solo em Gênesis 8:21 é o dilúvio que destruiu toda coisa vivente, não a maldição de Gênesis 3:17.

3 Ray Stedman, The Beginnings (Waco: Word Books, 1978), pp. 116-130.

4 Outro trecho da Escritura deixa claro que somente o assassinato deliberado e premeditado está em foco. Deus estipulou as cidades de refúgio para aqueles que acidentalmente matassem uma outra pessoa (cf. Deuteronômio 19:1 e ss).

5 A morte de um feto, como em outros exemplos, pode ter circunstâncias atenuantes e, por isso, nem todos os abortos podem ser chamados de assassinato, assim como todas as mortes não podem ser assim definidas. Creio, no entanto, que, em geral, a destruição deliberada da vida de um feto seja assassinato.

Related Topics: Dispensational / Covenantal Theology

10. A Nudez de Noé e a Maldição de Canaã (Gênesis 9:18 – 10:32)

Related Media

Introdução

A ordem de Deus para destruição dos cananeus tem incomodado tanto crentes como não crentes:

Porém, das cidades destas nações que o Senhor, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o Senhor, teu Deus, destrui-las-á totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o Senhor, vosso Deus. (Deuteronômio 20:16-18)

Embora seja provável que a matança dos cananeus irá sempre nos causar uma certa apreensão, Gênesis capítulo 9 aumenta muito o nosso entendimento do problema.

Precisamos compreender que assimilar essa ordem foi muito mais difícil para os antigos israelitas do que é para nós hoje. Se Deus não tivesse endurecido o coração dos cananeus para não fazerem alianças com Israel (cf. Josué 11:20), Israel provavelmente não teria tentado obedecer com tanto rigor ao mandamento do Senhor para destruí-los.

Talvez seja um pouco complicado para nós avaliar a situação enfrentada por Israel antes de tomar posse da terra dos cananeus. Havia pouco ou nenhum contato com aqueles povos pagãos. Eles devem ter achado muito difícil entender as razões para tratar seus inimigos, os cananeus, sem nenhuma misericórdia. Gênesis capítulo 9 coloca as coisas em perspectiva. Ele explica a origem das nações com as quais Israel, de algum modo, precisava se relacionar ao longo da história. Em particular, esta narrativa explica a depravação moral dos cananeus que tornou necessário o seu extermínio.

Gênesis 9 é crucial também por outras razões. É uma passagem que tem sido muito empregada para justificar a escravidão e, em particular, o domínio violento e pecaminoso sobre os povos negros ao longo dos séculos. Segundo dizem, a maldição de Cam está simplesmente sendo cumprida na medida em que os negros vivem em servidão a outras raças, especialmente aos brancos. Como vamos ver, uma análise cuidadosa do nosso texto não dá nenhuma base a essa interpretação.

A Maldição de Canaã (9:18-29)

Os versículos que estamos considerando devem ser entendidos no contexto da seção onde se encontram. Gênesis 9:18 inicia uma nova divisão que vai até o capítulo 11, versículo 10. Moisés fala do repovoamento da terra pelos filhos de Noé. Gênesis 9:20-27 explica a tríplice divisão da raça humana pela dimensão espiritual de cada seguimento. Enquanto os cananeus estão sujeitos à maldição de Deus, Sem será a linhagem pela qual virá o Messias e Jafé encontrará bênção na união com a linhagem de Sem (e seu descendente final, o Messias).

Cronologicamente, o capítulo 10 deveria vir após a confusão de Babel (11:1-9). Os versículos do capítulo 11 explicam a razão para a dispersão das nações. O capítulo 10 descreve os resultados dessa dispersão. No entanto, o capítulo 10 vem primeiro para permitir que a ênfase recaia sobre o estreitamento da linhagem piedosa até Abrão.

Depois do dilúvio, Noé começou a lavrar a terra, plantando uma vinha. O resultado do seu trabalho foi o fruto da videira, vinho. Embora a primeira menção ao vinho não seja sem uma conotação negativa, não devemos concluir que, devido a esse excesso, a Bíblia sempre ou quase sempre condene seu uso (cf. Deuteronômio 24:24-26, 1 Timóteo 5:23).

Muitos ficam incomodados diante da deplorável situação de Noé, o homem que antes do dilúvio fora descrito como “justo e íntegro entre seus contemporâneos” (6:9). Alguns sugerem que a fermentação talvez só tenha ocorrido após o dilúvio e que Noé estava simplesmente colhendo os frutos da sua criatividade.

Embora não devamos procurar desculpas para Noé, precisamos reconhecer que Moisés não ressalta sua culpa, e sim o pecado de Cam. Alguns sugerem vários tipos de males que poderiam ter ocorrido na tenda de Noé. Ainda que a linguagem empregada possa dar margem a certos pecados sexuais (cf. Levítico 18), pessoalmente não encontro nenhuma razão para presumir alguma atitude errada por parte de Noé, além da indiscrição da sua bebedeira e sua consequente nudez. Talvez a melhor descrição para o seu comportamento e seu estado seja a palavra “impróprio”.

Fico impressionado com a maneira pela qual Moisés se refere a este incidente, com um mínimo de detalhes e quase nenhuma explicação. Ter escrito qualquer coisa a mais teria sido perpetuar o pecado de Cam. Hollywood teria nos levado para dentro da tenda de Noé numa grande tela em Tecnicolor. Moisés nos deixa do lado de fora junto com Sem e Jafé.

Parece que Cam e seus irmãos foram avisados sobre o estado de Noé, a fim dos três ficarem fora da tenda: “Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos” (Gênesis 9:22).

Enquanto Sem e Jafé se recusaram a entrar, Cam não teve tantas reservas. Qualquer que tenha sido a falta de Noé, ele estava na privacidade da sua própria tenda (9:21). E era assim que Sem e Jafé queriam. No entanto, Cam entrou, violando o princípio da privacidade, e, além de não ajudar seu pai, divertiu-se às suas custas.

Cam não fez nada para preservar a dignidade de seu pai. Ele não cuidou para que Noé fosse devidamente coberto. Em vez disso, ele saiu da tenda e descreveu claramente a seus irmãos o desatino que tinha tomado conta de seu pai. Parece-me também que ele pode ter dito a Sem e Jafé para entrarem na tenda e verem por si mesmos.1

As medidas tomadas por Sem e Jafé para não ver a nudez do pai parecem meio radicais numa sociedade sexualmente permissiva. Por outro lado, nossas televisões têm nos tornado insensíveis à nudez ou à falta de educação. Existe propaganda para tudo quanto é coisa, mesmo para produtos que já foram considerados extremamente pessoais.

Colocando “a” roupa, aquela com que Noé deveria se vestir, em seus próprios ombros, eles entraram de costas na tenda. Sem olhar para o pai, eles o cobriram e saíram de lá.

Na manhã seguinte, quando acordou da bebedeira, Noé tomou conhecimento do acontecido. Não sabemos como ele soube disso. Talvez ele estivesse consciente o suficiente para se lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Uma coisa é certa — Sem e Jafé não disseram nada a ele, nem a ninguém. Desconfio que a estória já estivesse na boca do povo na manhã seguinte e, com toda probabilidade, por causa de Cam. Se ele não hesitou em contar aos irmãos, por que não contaria a todo mundo?

Sem levar em conta a fonte de informação de Noé, sua reação teve grandes implicações. Canaã, o filho mais novo de Cam, foi amaldiçoado. Ele ia ser o menor dos servos2 de seus irmãos. Embora alguns entendam que “irmãos” no versículo 25 se refira a seus companheiros, creio que seja especificamente a seus irmãos terrenos, os outros filhos de Cam. Nesse sentido, a maldição de Canaã ganha intensidade nesses três versículos. No versículo 25, ele será servo dos seus irmãos; nos versículos 26 e 27, servo dos irmãos de seu pai, Sem e Jafé.

Visto desta forma, é impossível divisar qualquer aplicação deste texto à sujeição dos povos negros. Cam não foi amaldiçoado nesta passagem, e sim Canaã. Canaã não foi o pai dos povos negros, mas dos cananeus que viveram na Palestina e eram uma ameaça para os israelitas.

No versículo 26, não é Sem quem é bendito, mas seu Deus: “Bendito seja o Senhor, Deus de Sem, e Canaã lhe seja servo” (Gênesis 9:26).

Com isso a linhagem piedosa seria preservada por meio de Sem. Da sua descendência viria o Messias. A bênção não vem de Sem, mas por intermédio dele. A bênção emana do seu relacionamento com Yahweh, o Deus da aliança de Israel. E a servidão de Canaã é uma das evidências dessa bênção.

O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença. O Senhor determinará que a bênção esteja no teu celeiro em tudo que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o Senhor, teu Deus. O Senhor te constituirá para si em povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do Senhor, teu Deus, e andares nos seus caminhos. (Deuteronômio 28:7-9)

Assim como a bênção de Sem consistia no seu relacionamento com Yahweh, Jafé seria abençoado no seu relacionamento com Sem.

Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo. (Gênesis 9:27)

Acredita-se que o nome “Jafé” signifique “engrandecer” ou “alargar”3. Por meio de um jogo de palavras, Noé abençoa Jafé usando o seu próprio nome4. A bênção de Jafé deve ser encontrada no seu relacionamento com Sem e não independentemente. Essa promessa é declarada mais especificamente no capítulo 12, versículo 3: “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra”.

Deus prometeu abençoar Abrão, e nele, as outras nações. Quem abençoasse Abrão receberia as bênçãos de Deus, enquanto quem o amaldiçoasse seria amaldiçoado. Além disso, Canaã seria subjugado todas as vezes que Jafé estivesse unido a Sem.

Existe uma clara correspondência entre as atividades de Cam, Sem e Jafé e as bênçãos e maldições que os seguiram. Sem e Jafé glorificaram a Deus quando agiram em conjunto para preservar a honra de seu pai. Cam desonrou tanto ao pai quanto a Deus por se divertir com a humilhação de Noé. Assim, Cam foi amaldiçoado e Sem e Jafé foram abençoados pela cooperação mútua.

A questão que se levanta na maldição de Canaã é: por que Deus amaldiçoou Canaã pelo pecado de Cam? E mais, por que Deus amaldiçoou os Cananeus, uma nação, pelo pecado de um único homem?

A explicação que melhor parece responder a essas perguntas é que as palavras de Noé não foram só de bênção e maldição, mas também de profecia. Embora seja verdade que os pecados dos pais visitem os filhos, isso é somente “até a terceira e quarta geração” (Êxodo 20:5). Se esse princípio tivesse sido aplicado, todos os filhos de Cam deveriam ter sido amaldiçoados.

Pela revelação profética, Noé previu que as falhas morais demonstradas por Cam seriam manifestadas em sua totalidade em Canaã e em sua descendência. Levando isso em consideração, a maldição de Deus recai sobre os cananeus por causa da pecaminosidade prevista por Noé5. A ênfase, então, está no fato de que os cananeus seriam amaldiçoados por causa do seu próprio pecado, não devido ao pecado de Cam. Creio que isso explique porque Canaã é amaldiçoado e não Cam, ou o restante de seus filhos.

As palavras de Noé, portanto, contêm uma profecia. Canaã irá refletir mais amplamente as falhas morais de seu pai, Cam. E os cananeus irão manifestar essas mesmas tendências em sua sociedade. Devido à pecaminosidade dos cananeus prevista por Noé, a maldição de Deus é proferida. O caráter daqueles três indivíduos e o destino de cada um deles será refletido corporativamente nas nações que deles emergirem.

A Tábua das Nações (10:1-32)

Muito trabalho já foi gasto neste capítulo, por isso vamos nos restringir aos pontos principais. Como já mencionamos, a confusão de Babel precede cronologicamente este capítulo.

A ordem empregada para tratar dos três filhos de Noé reflete a ênfase e o objetivo de Moisés. Jafé é abordado primeiro porque é o menos importante no tema que está sendo desenvolvido. Cam é o seguinte devido ao papel importante desempenhado pelos cananeus na história de Israel. Sem é mencionado por último porque ele é o personagem principal do capítulo. Ele é aquele por intermédio de quem virá o “descendente da mulher”. A linhagem piedosa será preservada por meio de Sem.

A tábua das nações mostra uma seletividade que também é útil para o objetivo da narrativa. Somente as nações que são descritas irão desempenhar um papel chave no desenvolvimento nacional de Israel na terra de Canaã.

Em geral, a identidade dos descendentes dos três filhos de Noé é bem conhecida. De Jafé vêm os indo-europeus, dos quais os mais conhecidos seriam os gregos. Até mesmo a história secular helênica vê Iapetos como seu antepassado6. Leupold nos diz:

... os descendentes de Jafé são vistos dispersos por uma área bem definida desde a Espanha até a Media e quase em linha direta de leste a oeste.7

A maioria de nós seria da linhagem de Jafé.

Cam foi o antepassado daqueles que construíram grandes cidades e impérios, incluindo a Babilônia, a Assíria, Nínive e o Egito. Pute, provavelmente, foi o pai dos povos negros. De Canaã vieram as nações normalmente conhecidas como os cananeus:

Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e a Hete, e aos jebuseus, aos amorreus, aos girgaseus, aos heveus, aos arqueus, aos sineus, aos arvadeus, aos zemareus, e os hamateus; e depois se espalharam as famílias dos cananeus. (Gênesis 10:15-18, cf. Deuteronômio 20:17)

O território deles era aquele diretamente ligado a Israel:

E o limite dos cananeus foi desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza, indo para Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa. (Gênesis 10:19)

Sem é o antepassado dos semitas. Precisamos ter cuidado para não confundir essa designação com os povos que falam as línguas semíticas. Estas línguas incluem tanto os povos descendentes de Sem quanto os de Cam8. Ross menciona os descendentes de Sem como “... as famílias que se estendem da Ásia Menor até as montanhas ao norte da região do Tigre, a Ur na Suméria, ao Golfo Pérsico e finalmente ao Norte da Índia”.9

O descendente mais proeminente de Sem é Éber, pai de Pelegue (10:25), antepassado de Abrão (cf. 11:14-26).

Cassuto sintetiza muito bem o objetivo do capítulo 10:

(a) mostrar que a providência divina é refletida na distribuição das nações sobre a face da terra não menos que em outros atos da criação e da administração do mundo; (b) determinar o relacionamento entre o povo de Israel e os outros povos; c) ensinar a unidade da humanidade pós-diluviana, a qual, como a raça humana antediluviana, era inteiramente descendente de um único par de seres humanos.10

Conclusão

Os capítulos 9 e 10 de Gênesis foram vitais à nação de Israel por terem precedido a ocupação da terra prometida de Canaã. A maldição de Canaã explicou a origem da depravação moral dos cananeus da sua época. Mais do que qualquer outro povo, sua depravação sexual é comprovada pelas descobertas arqueológicas. Albright escreveu:

A comparação de objetos de culto e textos mitológicos dos cananeus com os dos egípcios e mesopotâmios leva a uma única conclusão: a religião dos cananeus era totalmente voltada para o sexo e suas manifestações. Em nenhum outro país têm sido encontradas tantas estatuetas de deusas da fertilidade nuas, algumas claramente obscenas. Em nenhum outro lugar a adoração de serpentes aparece com tanta força. As duas deusas, Astarte (Astarote) e Anate, são chamadas de “as grandes deusas que concebem, mas não dão à luz”.11

Além de explicar a razão para o extermínio dos cananeus, Gênesis 10 ajuda também a identificá-los:

Aqui os cananeus são especificados, pois Moisés sabia que Israel teria muitas ligações com aqueles povos (cf. 15:16), e os israelitas precisavam saber claramente quais eram cananeus e quais não eram, pois tinham o dever de expulsá-los da terra de Canaã (Deuteronômio 20:17 e paralelos).12

Infelizmente, precisamos reconhecer que Israel deixou de aplicar totalmente o ensino desta passagem. Eles não destruíram por completo os cananeus e até se casaram com eles, para seu próprio prejuízo.

Há uma grande lição para nós nesta porção da Escritura:

Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles; porquanto está escrito: O POVO ASSENTOU-SE PARA COMER E BEBER E LEVANTOU-SE PARA DIVERTIR-SE. E não pratiquemos imoralidade, como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia, vinte e três mil. Não ponhamos o Senhor à prova, como alguns deles já fizeram e pereceram pelas mordeduras das serpentes. Nem murmureis, como alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador. Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia. (1 Coríntios 10:6-12)

Tenho pensado muito nesta passagem porque, de certa forma, ela não parecia ter grande impacto sobre a minha vida. De repente, me ocorreu que a questão é justamente a história da nudez de Noé para as pessoas da nossa época.

É muito difícil para nós ficar impressionado com o fato de Noé estar estendido nu e bêbado em sua tenda. Afinal, alguns poderiam dizer: “Será que o pecado dele prejudicou alguém? Ele não estava nu na privacidade da sua tenda?” Ficamos mais surpresos com as medidas “extremas” tomadas por Sem e Jafé do que com a nudez de Noé, é ou não é?

Devido a isso, os eruditos têm tentado encontrar algum pecado mais chocante que tenha ocorrido dentro da tenda. Alguns sugerem que Cam presenciou a intimidade sexual de seu pai com sua mãe. Outros pensam que ele teve relações homossexuais com o pai semiconsciente. Mas nada disso é exigido pelo texto.

O grande problema dos nossos dias é que quase não há mais identificação com o tipo de atitude ou ação dos dois filhos piedosos de Noé, Sem e Jafé. Nós não ficamos envergonhados, nem chocados com o que aconteceu com Noé em sua tenda. E a razão disso é o que torna esta passagem realmente chocante: fazemos parte de uma sociedade que não se envergonha, nem se escandaliza diante da indecência moral e sexual. Praticamente todo tipo de intimidade sexual é retratado nos filmes e nas telas da TV.

Mesmo condutas anormais e pervertidas têm se tornado rotineiras para nós. Sem o mínimo senso de decência, as coisas mais íntimas e particulares são anunciadas diante de nós e de nossos filhos.

Você percebe qual é o problema? Nós não nos preocupamos com a nudez de Noé porque descemos tanto no caminho da decadência que nem vacilamos diante do que aconteceu nesta passagem. Ora, meu amigo, se a condenação de Deus recaiu sobre os atos de Cam e de quem andou em seus caminhos, o que isso diz para você e para mim? Deus nos perdoe por não ficarmos mais chocados e envergonhados. Deus nos guarde dos pecados dos cananeus. Deus nos ensine o valor da pureza moral e a sermos implacáveis com o pecado. Que não deixemos o pecado habitar entre nós, como este texto ensinou a Israel.

Mas existe ainda um outro nível de aplicação. A maioria de nós tende a pensar em santidade em termos dos pecados que cometemos ou evitamos. Esta história nos diz que um dos testes do caráter cristão é a nossa reação aos pecados dos outros. Cam, aparentemente, se divertiu com o pecado de Noé, em vez de ficar horrorizado com o que viu. E não é exatamente é isso o que acontece na nossa sala de estar diante do aparelho de TV? Nós não achamos o pecado repugnante, mas engraçado.

Qual deve ser a nossa reação diante dos pecadores hoje em dia? Será que devemos acabar com eles como fez Israel com os cananeus? O Novo Testamento nos dá instruções muito claras quanto a isso:

E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as. Porque o que eles fazem em oculto, o só referir é vergonha. (Efésios 5:11-12)

Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. (Gálatas 6:1)

Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados. (1 Pedro 4:8)

Salvai-os, arrebatando-os do fogo; quanto a outros, sede também compassivos em temor, detestando até a roupa contaminada pela carne. (Judas 23)

Ao contrário de Cam, devemos aplicar o princípio da privacidade reiterado por Paulo em Efésios 5:12. Alguns pecados não devem ser esquadrinhados. Não devemos explorá-los, nem compartilhar o que sabemos com outras pessoas. Este princípio, creio, foi seguido por Moisés pelo modo como ele registrou, de forma breve e sucinta, o pecado de Noé e suas consequências. As consequências são bem salientadas, mas não as circunstâncias. Vamos aprender com isso.

Observe que nesta passagem em Efésios aprendemos a reprovar as obras infrutíferas das trevas (4:11). Mas isso não deve ser feito explorando o pecado ou vivendo nas trevas, mas vivendo como luzes, brilhando num mundo de escuridão.

... até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para o outro e levados ao redor por todo o vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. (Efésios 4:13-14)

O pecado é reprovado pela retidão, não por fazer fofoca de atos pecaminosos.

Gálatas 6:1 nos ensina a restaurar aquele que caiu em pecado. Nessa passagem Paulo ressalta a atitude de quem deve se encarregar dessa obrigação. A pessoa precisa ser dotada de espírito de brandura, e também extremamente consciente da sua própria fraqueza na mesma área.

Pedro nos ensinou que a melhor maneira de lidar com o pecado é quando ele é conhecido pelo menor número de pessoas. O amor não cobre multidão de pecados da forma como vimos em Watergate. Aquilo foi acobertar, não cobrir. Eles tentaram manter os atos ilegais longe do escrutínio público. A cobertura sobre a qual Pedro escreveu é o esforço para falar o mínimo possível sobre o pecado, de modo que os culpados encontrem perdão e reconciliação enquanto os outros não são tentados ou prejudicados pelo conhecimento desse pecado.

Finalmente, Judas nos fala sobre o ódio que devemos sentir pelo pecado e sobre o desejo de santidade de permanecer puros para a glória de Deus. Não podemos odiar o pecador, mas o pecado, sim. Não devemos nos afastar daquele que caiu, mas arrancá-lo do fogo.

Para concluir, vejo nestes três homens — Sem, Cam e Jafé, um retrato dos homens ao longo da história do relacionamento de Deus com eles. No capítulo 12 de Gênesis, vemos a linhagem pela qual virá o Salvador estreitando-se na descendência de Abraão. Os homens serão abençoados ou amaldiçoados de acordo com sua atitude para com ele (Gênesis 12:1-3).

No Calvário vemos representada a epítome do pecado do homem. Sem estava presente nos líderes religiosos judaicos que queriam o Messias morto e fora do caminho. Jafé estava presente nos romanos que se uniram aos judeus para crucificar o Senhor da glória. E Cam estava presente em Simão Cirineu, que servilmente carregou a cruz de Jesus (cf. Lucas 23:26).

Temos uma escolha a fazer, pois podemos experimentar as bênçãos de Jafé ou a maldição de Canaã. A descendência justa finalmente culminou na vinda do Messias, o descendente da mulher (Gênesis 3:15), o descendente de Sem (Gênesis 9:26) e de Abraão (12:2-3). Em Cristo, pela fé e submissão a Ele como meio de Deus para dar perdão e justificação aos pecadores podemos experimentar a bênção de Jafé. Desprezando e rejeitando a Cristo — permanecendo em nossos pecados, ficamos sujeitos à maldição de Canaã por toda a eternidade.

Queira Deus ajudá-lo a encontrar salvação e bênção em Jesus Cristo.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 Alguns acusam Cam de praticar um ato homossexual com Noé, enquanto este estava no torpor da bebedeira. Nosso texto diz que Cam “viu a nudez de seu pai” (versículo 22). Embora a expressão “descobrir a nudez de outrem” possa ser um eufemismo para relações sexuais (cf. Levítico 18:6 e ss), esta não é a linguagem empregada no nosso texto. Além do mais, há nesta passagem, um contraste entre Cam, que viu a nudez de Noé, e sem e Jafé, que não viram (Gênesis 9:23). A descrição de como eles viraram o rosto para não ver a condição de Noé é uma implicação muito forte de que ver ou não ver era o xis da questão. A sugestão de que Cam viu Noé e sua mãe no meio de uma relação sexual tem o mesmo ponto fraco.

2 A expressão “servo dos servos” (versículo 25) é similar às expressões “Senhor dos senhores” e “Rei dos reis”. É uma maneira enfática de expressar soberania ou servidão extrema.

3 “Tanto os antigos quanto os modernos eruditos consideram essa palavra com sentido de “engrandecer”, com base no seu uso aramaico... e essa parece ser a interpretação correta.” U. Cassuto, Comentário do Livro de Gênesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, pp. 168-169.

4 Sem significa “nome” e é provável que também seja um jogo de palavras.

5 Esta é a conclusão de Leupold, que escreve: “Mas, e quanto à justiça no desenrolar desta história? Do nosso ponto de vista, a maioria dos problemas já foi resolvida. Nós interpretamos “maldito é Canaã”, e não “seja Canaã” (A. V.); e “ele será servo dos servos”, e não no sentido opcional “talvez seja”. O traço perverso revelado por Cam nesta história, foi, sem dúvida, visto por Noé como algo mais marcante em Canaã, filho de Cam. A raça toda de Canaã irá demonstrar esse traço muito mais que qualquer outra raça na terra. Predizer não implica em qualquer injustiça. O filho não é punido pela iniquidade do pai. Sua própria depravação moral miserável, que ele mesmo desenvolve e mantém, é predita.” H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 350.

6 “O primeiro ancestral desses povos foi Helena, uma descendente de Prometeu, cujo pai foi o titã Iapetos (Jafé).” Allen Ross, A Tábua das Nações (dissertação de doutorado não publicada: Seminário Teológico de Dallas), 1976, p. 365, citando Neiman, “Data e circunstâncias da maldição de Canaã”, p. 126.

7 Leupold, Gênesis, I, p. 362.

8 Para uma análise mais detalhada, cf. Ross, pp. 371 e seguintes.

9 Ross, p. 375

10 Cassuto, II, p. 175

11 William F. Albright, “Recentes Descobertas nas Terras da Bíblia”, Young´s Analytical Concordance to the Bible, 20ª ed., p. 29, como citado por Louis B. Hamada, Implicações proféticas da maldição de Noé sobre Canaã (tese não publicada: Seminário Teológico de Dallas, 1978), p. 24.

12 Leupold, Gênesis, I, p. 372.

11. A União dos Incrédulos (11:1-9)

Related Media

Introdução

Recentemente, posar para a câmera da Playboy custou o emprego a uma aeromoça de 26 anos. Conforme noticiado pelo Dallas Morning News1, a tragédia não foi sua liberação, mas suas razões para se expor. Ela ficou sabendo que precisava de uma cirurgia no pulmão e que o resultado poderia não ser bom. Por isso resolveu posar, para o mundo poder se lembrar dela.

Admiro a honestidade dessa jovem, mas fico preocupado com sua decisão. Embora a maioria das pessoas não seja tão franca quanto a seus motivos, o mundo está repleto de gente que deseja desesperadamente ser lembrada. Todos nós temos uma certa tendência para erguer monumentos a nós mesmos.

Os homens precisam encarar aquilo que é conhecido como a “crise da meia-idade”. Alcançamos essa fase quando começamos a perceber que a maioria das coisas que tínhamos a intenção de fazer ainda não foi feita. E não podemos mais negar o fato de que a melhor parte da vida já passou. Muitas vezes, no meio dessa crise, os homens começam febrilmente a erguer monumentos pelos quais querem ser lembrados.

Esta é a razão pela qual a história da Torre de Babel, encontrada em Gênesis capítulo 11, é tão importante para nós. Ela revela a causa principal para se erguer monumentos. Melhor ainda, ela nos dá a cura para isso e nos ensina a enfrentar o futuro com paz no coração.

A tentação de se referir a este incidente na planície de Sinear como “a Torre de Babel” é muito grande. Embora tudo o que saibamos sobre ele nos leve a pensar na torre, este não foi o principal problema, só um sintoma. Cassuto, em seu comentário sobre Gênesis, se recusou a intitular a seção da maneira tradicional, pois percebeu qual era o verdadeiro vilão da história2. Uma vez apreciada a sabedoria de Cassuto, vamos ao centro da história e à sua aplicação para nós hoje.

Condições Anteriores à Confusão de Línguas (11:1)             

O versículo um destaca uma particularidade da raça humana que, em si mesma, não é uma coisa ruim: “Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar” (Gênesis 11:1). É preciso reconhecer que, sendo a raça humana proveniente de um ancestral comum, a saber, Noé, todos os homens falavam uma língua comum3. Moisés começa o relato da confusão de línguas chamando nossa atenção para esse fato.

Ora, não havia nada de errado numa linguagem comum. Isso não era ruim, e nem foi essa a causa do mal. Ela otimizava a comunicação; facilitava a vida da comunidade e era base para a união. Potencialmente, uma linguagem comum poderia ter atraído homens e mulheres para, juntos, adorar e servir a Deus. Na prática, ela foi deturpada para promover desobediência e incredulidade. O dom da linguagem dado por Deus, como outros dons da Sua graça, foi mal usado. O homem pecaminoso nada pode fazer, exceto fazer mau uso dos dons da graça de Deus.

Nossa atenção, portanto, é atraída para o fato de um conhecimento comum, não porque não saibamos disso, mas porque isso deu ocasião ao mal que veio a seguir. E isso também foi o que Deus mudou a fim de frustrar os planos mal intencionados dos homens.

As Intenções do Homem (11:2-4)

O homem havia migrado para a planície fértil na terra de Sinear e lá se assentado. “Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinear, e habitaram ali” (Gênesis 11:2).

Parece que a descendência de Noé resolveu trocar suas tendas por casas na cidade4. “Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo” (Gênesis 9:27).

Leupold observa que a palavra “partiram” em Gênesis 11:2 significava, literalmente, “mudar de lugar”5. Até aqui, a vida urbana não tem sido apresentada sob uma luz muito favorável. Caim edificou uma cidade e deu a ela o nome de seu filho Enoque (Gênesis 4:17). Deus tinha dito que ele seria fugitivo e errante (4:12). Ninrode, descendente de Cam, também parece ter sido um fundador de impérios (10:9-12). De fato, é possível que ele tenha sido o líder do movimento de assentamento em Sinear e da construção da cidade e da torre6.

Estabelecer-se no vale de Sinear foi um ato de desobediência. Deus tinha ordenado aos homens que se espalhassem e enchessem a terra, não que se ajuntassem em cidades:

Abençoou Deus a Noé e a seus filhos e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra... Mas sede fecundos e multiplicai-vos; povoai a terra e multiplicai-vos nela. (Gênesis 9:1, 7)

Nos versículos 3 e 4, as intenções humanas são especificadas:

E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa. Disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. (Gênesis 11:3-4)

O versículo 3 nos diz o quanto o homem queria edificar uma cidade e construir uma torre. Para um judeu palestino, particularmente alguém recém-chegado do Egito, seria de esperar que qualquer projeto de construção empregasse pedra e cimento. Mas ali não havia abundância desses materiais, por isso, foi necessário substituir as pedras por tijolos queimados e o cimento por betume7.

Aqueles homens não deram início à construção sem antes calcular todos os custos. Eles previram os obstáculos e estavam decididos a superá-los. Sua determinação de construir uma cidade apesar das dificuldades nos mostra o tamanho do seu esforço. Alguns veem no versículo 4 uma forte conotação religiosa, como se, construindo a torre, eles estivessem tentando chegar a Deus.

Disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. (Gênesis 11:4)

Não creio que esse argumento possa ser confirmado. É difícil acreditar que Moisés deixasse uma questão como essa para simples inferência. A expressão “chegue aos céus” é específica, não espiritual. Ela implica simplesmente em grande altura. Essa é a conotação em outras passagens:

Para onde subiremos? Nossos irmãos fizeram com que se derretesse o nosso coração, dizendo: Maior e mais alto do que nós é este povo: as cidades são grandes e fortificadas até aos céus. Também vimos ali os filhos dos enaquins. (Deuteronômio 1:28, cf. 9:1; Salmo 107:26)

A torre não recebe muito destaque. Ela é considerada como parte da cidade. Embora as zigurates mesopotâmicas de épocas posteriores tenham sido distintamente religiosas8, não há nenhuma indicação desse tipo no nosso texto. A declaração: “e tornemos célebres o nosso nome” (versículo 4) explica melhor a finalidade da construção da cidade e da torre imponente.

O que deu origem às ações dos homens parece ter sido arrogância, rebelião e orgulho9.

Como quase sempre acontece, não revelamos os nossos verdadeiros motivos até o último minuto. Creio que isso seja verdade nesta passagem. A última afirmação do povo da antiga Babel é a chave para o texto: “...para que não sejamos espalhados por toda a terra” (versículo 4).

Aquelas pessoas não podiam conceber bênção e segurança como resultado da dispersão, mesmo que Deus a tenha ordenado. Eles se sentiam mais seguros vivendo perto uns dos outros. O futuro seria mais brilhante se pudessem deixar para a posteridade um monumento à sua criatividade e ao seu talento10.

Embora rebelião, orgulho e incredulidade sejam evidentes nesta história, o problema mesmo era o medo. Richardson coloca o dedo na ferida quando escreve:

A aversão pelo anonimato ou leva o homem a grandes feitos heróicos ou a longas horas de trabalho maçante; ou os induz a espetáculos de vexame ou de inescrupulosa autopromoção. Nas piores formas, essa aversão tenta lhes granjear a honra e a glória que pertencem somente ao nome de Deus11.

Aqueles homens da antiguidade deviam conhecer os mandamentos de Deus e da Sua aliança. Caso contrário, por que teriam receio de serem espalhados? No entanto, tudo o que eles tinham era uma promessa de Deus. Suas esperanças estavam em palavras abstratas, não em algo concreto, por isso, eles depositaram sua fé em tijolos e piche.

Os versículos seguintes registram a reação de Deus à desobediência do homem:

Então, desceu o Senhor para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: Eis que o povo é um e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro. Destarte, o Senhor os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade. (Gênesis 11:5-8)

Como Cassuto observou12, esta passagem é um exemplo de talento literário. As intenções do homem são refreadas pela intervenção divina.

Os versículos 5 e 6 têm incomodado muita gente, pois pode parecer que diminuem a soberania de Deus. Tem-se a impressão de que Ele deixa a situação quase sair de controle antes mesmo de ter ciência dela. É como se um dos anjos O tivesse informado sobre o incidente em Babel e Ele tivesse descido às pressas para investigar o assunto. Qualquer concepção desse tipo carece do ponto de vista do escritor.

Esses versículos são uma sátira muito bem feita à tolice das atitudes humanas. Aqueles homens tinham começado a edificar uma cidade com uma grande torre por acharem que isso lhes daria renome. Moisés está sugerindo que os pensamentos e esforços do homem, por mais altos que sejam, são insignificantes para Deus. Mesmo que o topo da torre parecesse, do ponto de vista da terra, penetrar as nuvens, para o Deus infinito, todo poderoso, aquilo era apenas um pontinho indistinto na terra. É como se Deus tivesse de Se inclinar para vê-lo13. Se Ele tivesse de “descer” à terra para examinar aquela cidade, seria devido à sua total insignificância, não devido à inabilidade divina de acompanhar Sua criação.

Se o versículo 5 descreve a investigação de Deus, o versículo 6 nos fala da Sua avaliação da situação.

E o Senhor disse: Eis que o povo é um e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. (Gênesis 11:6)

O mal não residia no fato de todos falarem uma só língua. Isso só dava oportunidade ao homem pecaminoso de se expressar com maior facilidade. Todavia, esse fato realmente indicou um meio para o homem planejar a reversão da ordem de Deus.

O término da cidade, de forma alguma, seria uma ameaça à autoridade de Deus. Obviamente, seria uma violação ao Seu mandamento para o homem se dispersar e encher a terra. O versículo 6 explica o impacto que a construção da cidade teria nos homens se seus planos fossem bem-sucedidos. Eles poderiam concluir que, como conseguiram edificar a cidade apesar dos obstáculos, poderiam fazer qualquer coisa que tivessem em mente. Um pouco dessa mentalidade foi visto quando o homem pôs os pés na Lua pela primeira vez. Lembro-me de que disseram algo mais ou menos assim: “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”. Quando a criatividade humana foi empregada com êxito para superar as diversas barreiras para alcançar a superfície da Lua, o homem sentiu que nenhum problema estava além do seu alcance.

Nos dias dos descendentes de Noé, em Babel, os homens depositaram sua confiança em tijolos e argamassa, e na obra das suas mãos. Na nossa época somos apenas um pouco mais sofisticados. Confiamos em transistores, circuitos integrados e tecnologia. Sentimos que, se conseguimos colocar um homem na Lua, nada pode nos impedir de resolver qualquer problema.

É essa atitude arrogante de autoconfiança e independência de Deus que Ele sabia ser inevitável se os homens fossem bem-sucedidos. Por isso, Ele Se propôs a frustrar os planos humanos: “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro” (Gênesis 11:7).

O que vemos aqui é mais uma medida preventiva do que uma punição. A mecânica da confusão de línguas só pode ser imaginada, mas o resultado é evidente. O projeto foi abruptamente interrompido, um monumento ao pecado do homem.

Condições Após a Confusão de Línguas

Aquilo que o homem mais temia veio a acontecer.

Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra e dali o Senhor os dispersou por toda a superfície dela. (Gênesis 11:9)

A ironia dessa história é que aquilo que os homens mais queriam teria causado sua destruição, e aquilo que eles mais temiam acabou sendo ser uma parte da sua libertação.

Num momento determinado da história, o nome babilônico de Babel (Bab-ili) teve o significado de “o portão Deus”14. Com um jogo de palavras, Deus mudou-o para “confusão” (Balal)15.

Conclusão

Nesta breve narrativa, encontramos alguns princípios que são essenciais para os verdadeiros crentes de qualquer época.

(1) Os planos do homem nunca poderão frustrar os propósitos de Deus. Deus ordenou à raça humana que “enchesse a terra” (Gênesis 9:1). Os homens preferiram se enclausurar a se dispersar em cumprimento a essa ordem. Apesar do grande esforço feito pelo homem, os propósitos de Deus prevaleceram. Meu amigo, pessoas de todas as épocas têm aprendido que não se pode resistir à vontade de Deus. Você pode ser destruído, mas Deus nunca Se afastará dos Seus propósitos. Essa foi a conclusão a que Saulo chegou:

E caindo todos em terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura cousa é recalcitrares contra os aguilhões. (Atos 26:14)

Um amigo meu costumava dizer: “Essa parede está ficando mais macia ou é a minha cabeça que está ficando cada vez mais ensanguentada?”

Homem nenhum pode frustrar a vontade de Deus. Passar a vida resistindo à vontade revelada do Senhor Deus só pode acabar em frustração e fracasso. Ninguém pode ser bem-sucedido resistindo a Deus.

(2) A união não é a melhor coisa, e sim a pureza e obediência à Palavra de Deus. Ecumenismo é o lema religioso da nossa época, mas essa é uma união feita às custas da verdade. Alguns consideram a união como um alvo digno de qualquer sacrifício. Deus não. Na verdade, os antigos israelitas logo iriam aprender que os cananeus, diferentemente dos egípcios (cf. Gênesis 46:33-34), estavam ansiosos para se unir ao povo escolhido de Deus (cf. Gênesis 34: 8-10, Números 25:1 e ss). Paz e união nunca devem ser alcançadas às custas da pureza. O povo de Deus deve ser santo, assim como Ele é santo (Levítico 11:44 e ss, 1 Pedro 1:16).

A verdadeira união só pode ocorrer em Cristo (João 17:21, cf. Efésios 2:4-22). Essa união deve ser diligentemente preservada (Efésios 4:3). No entanto, a união em Cristo resulta em separação daqueles que O rejeitam (Mateus 10:34-36). Precisamos nos separar de quem nega a verdade (2 João 7-11, Judas 3). Não pode existir união verdadeira com quem nega o nosso Deus.

(3) A falta de comunicação criada em Gênesis 11 só pode ser transposta por Cristo. Os profetas do Antigo Testamento reconheceram o efeito progressivo de Babel e falaram do dia em que ele seria revertido:

Então, darei lábios puros aos povos, para que todos invoquem o nome do Senhor e o sirvam de comum acordo. Dalém dos rios da Etiópia, os meus adoradores, que constituem a filha da minha dispersão, me trarão sacrifícios. Naquele dia, não te envergonharás de nenhuma de tuas obras, com que te rebelaste contra mim; então, tirarei do meio de ti os que exultam na sua soberba, e tu nunca mais te ensoberbecerás no meu santo monte. (Sofonias 3:9-11)16

O fenômeno de línguas em Atos capítulo dois indica “os primeiros frutos” da renovação que ainda será plenamente realizada.

Francamente, fico muito preocupado com a ignorância de cristãos da nossa época quanto à falta de comunicação em nossos relacionamentos. O colapso nas comunicações tem suas raízes em Gênesis capítulo 11. Muitas esposas sofrem em silêncio por seus maridos não conseguirem entender o que elas tentam lhes dizer, e por eles serem incapazes de revelar seus sentimentos mais íntimos. Embora Cristo seja a resposta para esse dilema, a maioria de nós não consegue compreender o fato de que isso é uma ameaça aos nossos relacionamentos.

(4) Relacionamentos superficiais e atividades artificiais inevitavelmente farão a vida perder sentido. Alguém já disse que a definição de “casca” é: “algumas migalhas de pão com um pouco de massa para mantê-las unidas”. O que mantém a vida de vocês unida? Como é triste saber que os antigos babilônios acharam que sua segurança estava numa cidade e depositaram sua esperança em tijolos queimados e betume.

O que mais me assusta é muitas vezes a igreja cair na mesma armadilha que o mundo. Criamos uma porção de programações com o intuito de manter as pessoas ocupadas e lhes dar a falsa sensação de envolvimento e atividade. Embora essas programações não sejam contrárias à vida cristã, muitas vezes elas se transformam no substituto de uma fé viva, devoção e poder. Em muitas igrejas, Deus poderia ter morrido há 50 anos e ninguém teria percebido.

Ao estudar a torre de Babel, é impossível não pensar em nossos projetos de construção de igreja. Como é comum darmos início a um projeto de construção ou reforma da igreja achando que isso será motivo de ânimo para as pessoas, e que um belo edifício, de alguma forma, atrairá novos membros!

Que Deus nos ajude a evitar a artificialidade de Babel. Esse é o tipo de religião dissimulada, sem vida e sem valor.

(5) A Palavra de Deus, não as obras das nossas mãos, é a única coisa digna da nossa fé. Os homens de Babel começaram a ver o trabalho como solução, não como maldição. Eles acreditaram que a obra das suas mãos poderia lhes garantir alguma espécie de imortalidade além-túmulo. Desconfio que essa seja a força motora por trás do viciado em trabalho. Ele (ou ela) não consegue nem descansar por não estar seguro de ter construído um monumento grande o suficiente.

E não é sobre isso que o salmista escreveu?

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem. Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os inimigos à porta. (Salmo 127:1-5)

Já reparou na referência do versículo dois ao “pão que penosamente granjeastes”? Com certeza, isso é um reflexo da maldição de Gênesis capítulo três: “No suor do rosto comerás o teu pão...” (Gênesis 3:19a)

O salmista sabia que o trabalho nunca poderia dar ao homem o descanso e a paz pelos quais labutou, e sim a confiança somente no que Deus providenciasse. A bênção viria pelos filhos que Deus lhe desse no descanso e intimidade do seu lar (Salmo 127:3-5). Não era isso o que as pessoas de Babel precisavam entender?

O esforço humano nunca é gratificante, nem recompensador. Somente o trabalho feito para o Senhor, e na Sua força, produz satisfação permanente.

A mulher samaritana, no capítulo quatro de João, buscava água para saciar sua sede. Jesus lhe ofereceu a água que a satisfaria para sempre:

Afirmou-lhe Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. (João 4:13-14)

O “alimento” que era muito mais precioso que simples comida era fazer a vontade do Pai:

Nesse ínterim, os discípulos lhe rogavam, dizendo: Mestre, come! Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. Diziam, então, os discípulos uns aos outros: Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer? Disse-lhes Jesus: A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra. (João 4:31-34)

Você já encontrou a satisfação e o descanso proporcionados por Deus em Jesus Cristo? Somente isso pode satisfazer os anseios do homem.

Esse é o “descanso” que Lameque, o pai de Noé, esperava na descendência de seu filho:

Pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o Senhor amaldiçoou. (Gênesis 5:29)

Deus oferece salvação aos homens na morte sacrificial de Jesus Cristo na cruz do Calvário. Ele garante que, quem crer em Jesus Cristo — quem confiar nEle para receber o perdão de seus pecados e a vida eterna — será salvo. Isso é suficiente. Esse é o fundamento da esperança além-túmulo.

(6) Muitas coisas feitas pelo homem na terra são um monumento à sua própria insegurança. Mais do que nunca esta passagem me impressiona pela grande insegurança demonstrada pelo homem. Muitas vezes sinto que a fonte das suas atitudes pecaminosas é sua rebelião obstinada ou sua constante agressividade contra Deus. O homem se rebela mesmo contra Deus, mas o motivo de grande parte da sua desobediência tem como base a sua insegurança.

Por trás da fachada de realizações, conquistas, bravatas e autoconfiança está o fantasma assustador de deixar esta vida sem nenhuma certeza do que vem a seguir. Esta, na minha opinião, foi a verdadeira razão para a construção da cidade de Babel e sua torre. As pessoas daquela época estavam dispostas a fazer quase qualquer sacrifício para ter alguma esperança de imortalidade. Essa esperança estava no prestígio que poderiam conquistar por si mesmos.

Você já parou para pensar no papel que a insegurança pode desempenhar nas coisas às quais você dedica tempo e energia? Cristãos que não entendem profundamente a graça de Deus e Seu soberano controle são atormentados pela insegurança de achar que o trabalho de Deus e Sua vontade estão condicionados à sua própria fidelidade, não à fidelidade divina. Nossa insegurança pode ser a razão para muitas das nossas atividades cristãs. Se fizermos mais pelo Senhor, nós nos sentiremos mais seguros e teremos certeza das Suas bênçãos. Esse tipo de ativismo não é muito diferente daquele demonstrado pelos que viveram na planície de Sinear.

Nós, pregadores, também precisamos aprender uma lição importante com esta história. Queremos ver os resultados do nosso trabalho. Talvez fiquemos inseguros com aquilo que Deus nos chama a fazer. Devido à nossa própria insegurança, podemos exigir mais das outras pessoas e incitá-las a se envolver mais no trabalho de Deus. Esses motivos sempre são razões erradas para o serviço cristão. Servir deve ter como fundamento a gratidão, não a culpa ou o medo.

Como Paulo escreveu: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos...” (Romanos 12:1a).

Os problemas que discutimos são complexos, mas a solução é simples. Devemos fazer aquilo que os filhos de Noé deveriam ter feito, simplesmente confiar e obedecer. Este é o jeito de ter bênção em Jesus.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 “People,” The Dallas Morning News, p. 3a, April 23, 1980.

2 Sou grato a U. Cassuto, que colocou a torre de Babel na perspectiva apropriada quando escreveu:

“A torre é apenas um detalhe neste episódio — parte de uma cidade gigantesca que os homens tentaram construir para alcançar seu objetivo. Não é sem razão, portanto, que o final da história se refira somente à suspensão da construção da cidade, mas não à construção da torre (v. 8: e cessaram de edificar a cidade). Assim sendo, não coloco no cabeçalho dessa narrativa o título usual de “A Torre de Babel” ou “A Construção da Torre de Babel”; ao invés disso, uso a expressão costumeira empregada na literatura judaica: “A História da Geração da Divisão”, que retrata melhor a intenção e o conteúdo do texto”. U. Cassuto, Comentário no Livro de Gênesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, p. 226.

3 “Literalmente, o texto diz ‘as mesmas palavras’, ou seja, as palavras eram comuns a todos, indicando que todos as compartilhavam, apoiando a tradução ‘um vocabulário’. A sintaxe (linguagem) e o vocabulário eram simples, totalmente compreensíveis a todo mundo. A comunicação era rápida, e ideias e planos eram difundidos de imediato”. Harold G. Stigers, Comentário em Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 131.

4 Havia também um elemento nômade natural, pois eles estavam sempre indo de um lugar para outro. As condições da vida agrícola sem dúvida precisavam de muita movimentação. Em suas jornadas, finalmente eles chegaram à terra de Sinear, a planície onde tempos depois foi estabelecida a Babilônia (cap. 10:10). A fertilidade dessa planície era especial, e não ficamos surpresos ao ler que “ali eles habitaram”. W. H. Griffith Thomas, Genesis: A Devotional Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1946), p. 108.

5 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p 384.

6 “Mais uma vez, como este evento, com toda probabilidade, ocorreu durante a vida de Ninrode, o primeiro indivíduo de quem se tem registro por ter almejado o domínio sobre as outras pessoas, e, conforme é declarado a seu respeito: ‘o início de seu reino foi Babel’, nada mais natural do que supor que ele tenha sido o líder deste ousado empreendimento, o qual pode muito bem ter sido um plano seu para alcançar o governo do mundo”. (George Bush, Notes on Genesis (Minneapolis: James and Clock Publishing Co., 1976, Reprint), p. 183.

7 “Aqui Moisés introduz uma nota explicativa antes de nos deixar saber o resto do propósito daqueles homens, ao discorrer sobre a natureza única dos materiais empregados — única para a Palestina rochosa, com suas incontáveis pedras; pois os construtores se propuseram a usar tijolos queimados em lugar de pedra e betume como argamassa. Muitas ruínas de construções semelhantes mostram como o autor foi preciso em sua afirmação, já que nas construções principais eram usados tijolos secos ao forno, não ao sol, cimentados com betume. Essas estruturas permanecem sólidas até hoje. Para um não babilônio, essa forma de construção devia parecer tão estranha quanto digna de nota”. Leupold, Genesis, I, pp. 385-386.

8 “Essas zigurates, mais de 30 das quais ainda sabe-se existir, eram formadas por pequenas plataformas sucessivas, ou andares, feitas de tijolo queimado ou seco ao sol, em cujo topo era construído um templo”.  Howard F. Vos, Genesis and Archaeology (Chicago: Moody Press, 1963), p. 46.

9 “Em Gênesis 9:1 Deus disse especificamente a Noé e seus filhos: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, e povoai (literalmente ‘enchei’) a terra’. Em clara desobediência a Deus, seus descendentes ficaram preocupados por terem de se espalhar pela terra e, com orgulho, tentaram construir uma cidade e uma torre como ponto de encontro e para simbolizar ou celebrar sua grandeza. Isso Deus não podia deixar passar em branco. Gênesis não diz que eles pretendiam entrar no céu pela torre ou que tivessem a intenção usá-la com propósito de adoração. Os hebreus simplesmente a chamam de poderosa (‘torre’), a qual poderia ser usada tanto para defesa quanto para inúmeros outros fins, e não há indicação de que os construtores planejassem erigir um templo sobre ela, a fim de que a estrutura pudesse servir como “ligação entre o céu e a terra”, como eram as zigurates. Além disso, a narrativa de Gênesis implica em que tais torres ainda não tinham sido construídas e que esta seria algo único na experiência do homem”. (Ibid., pp. 46-47)

10 A história primeva alcança seu clímax inútil quando o homem, consciente de suas novas habilidades, se prepara para glorificar e fortalecer a si mesmo com o esforço coletivo. Os elementos da história são características atemporais do espírito do mundo. O projeto é realmente imponente; os homens o descrevem uns aos outros com excitação, como se ele fosse sua última façanha — exatamente como os homens modernos se vangloriam dos seus projetos espaciais. Ao mesmo tempo, eles traem sua insegurança quando se unem para preservar sua identidade e controlar sua fortuna”. Derek Kidner, Genesis, An Introduction and Commentary (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 109.

11 Alan Richardson, Genesis 1-11, Introduction and Commentary (London: SCM Press Ltd., 1953), p. 128, como citado por Allen Ross, The Table of Nations in Genesis (Dissertação de Doutorado não publicada, Dallas Theological Seminary, 1976), pp. 292-293.

12 “Nesta breve narrativa temos um exemplo perfeito da arte literária bíblica. O texto compreende dois parágrafos, quase de igual tamanho, que constituem um paralelismo antitético um ao outro na forma e no conteúdo. O primeiro começa com uma referência à situação que existia  no início (v. 1) e, a partir daí, descreve o que os homens passaram a fazer (versísulos 2-4). O segundo relata o que o Senhor fez (versos 5-8), e conclui com uma referência à situação que passou a existir no final do episódio (v. 9)”. Cassuto, Genesis, II, pp. 231-232.

13 “Como já expliquei na introdução, aqui temos uma alusão irônica: eles imaginavam que o topo da sua torre chegaria aos céus, no entanto, do ponto de vista de Deus, sua gigantesca estrutura era apenas uma obra de pigmeus, uma empreitada terrestre, não celeste, e, se Aquele que habita nos céus, quisesse dar um close naquilo, teria de descer do céu até a terra”. Ibid., pp. 244-245.

“Yahweh precisou se aproximar, não porque fosse míope, mas porque habita nas maiores alturas, e a obra deles era incrivelmente minúscula. O movimento de Deus, então, precisa ser entendido como uma extraordinária sátira aos feitos do homem”. Esta é uma citação de Proksch feita por Gerhard Von Rad, Genesis (Philadelphia: Westminster Press, 1972), p. 149.

14 Ross, p. 299.

15 “Babel (Babilônia) chamava a si mesma de Bab-ili, ‘portão de Deus’ (o que talvez seja uma reinterpretação lisonjeira do seu significado original); mas, por meio de um jogo de palavras, a Escritura se sobrepõe com um título mais verdadeiro ba,,lal (‘Ele confundiu’)”. Kidner, Genesis, p. 110.

16 Ross entende que “lábio puro” do versículo 9 se refira a uma linguagem comum: “Dito no singular, “lábio puro” pode significar que a barreira da linguagem será quebrada para se tornar uma língua universal. A segunda ideia na expressão significa que sua fala será purificada”. Ross, p. 258. fn. 1. Infelizmente a versão NASB coloca a expressão no plural ‘lábios puros’ (em português, a ARA também).

Related Topics: Faith

12. O Chamado de Abrão (Gênesis 11:31 - 19:9)

Related Media

Introdução

O capítulo 12 inicia uma nova divisão no livro de Gênesis. Os primeiros onze capítulos costumam ser chamados de “história primitiva”. Os últimos capítulos são conhecidos como “a história dos patriarcas”. Enquanto o efeito do pecado do homem se tornou cada vez mais abrangente, o cumprimento da promessa de Deus de Gênesis 3:15 se tornou cada vez mais seletivo. O Redentor devia vir do descendente da mulher (Gênesis 3:15), depois dos descendentes de Sete, de Noé e então de Abraão (Gênesis 12:2-3).

Teologicamente, Gênesis capítulo 12 é uma das passagens-chave do Antigo Testamento, pois contém aquilo que é chamado de a Aliança Abraâmica. Esta aliança é a linha que une todo o Antigo Testamento. Ela é crucial para o entendimento correto das profecias da Bíblia.

Em Gênesis capítulo doze não só chegamos a uma nova divisão e a uma importante aliança teológica, mas, acima de tudo, a um grande e piedoso homem — Abraão. Quase um quarto do livro de Gênesis é dedicado à vida deste homem. Mais de 40 referências são feitas a ele no Antigo Testamento. É interessante observar também que o Islã considera Abrão o segundo homem mais importante depois de Maomé, sendo que o Alcorão se refere a ele 188 vezes1.

O Novo Testamento também não diminui a importância da vida e do caráter de Abraão. Há cerca de 75 referências a ele no Novo Testamento. Paulo o escolheu como o melhor exemplo de um homem que é justificado diante de Deus pela fé e não pelas obras (Romanos 4). Tiago se refere a ele como um homem que demonstrou sua fé diante dos homens por suas obras (Tiago 2:21-23). O escritor aos Hebreus o cita como exemplo de alguém que andou pela fé, dedicando mais espaço a ele do que a qualquer outro indivíduo no capítulo onze (Hebreus 11:8-19). Em Gálatas, capítulo 3, Paulo escreve que os cristãos são “filhos de Abraão” pela fé, e por isso, herdeiros legítimos das bênçãos prometidas a ele (Gálatas 3:7-9).

Ao voltar nossa atenção para o capítulo 12 de Gênesis, vamos fazê-lo com o objetivo de ver Abraão como um exemplo de quem anda pela fé. Em especial, quero ressaltar o processo empregado por Deus para fortalecer sua fé e fazê-lo o homem temente que ele se tornou. Muitos dos erros mais comuns nos círculos cristãos a respeito da natureza de uma vida de fé podem ser corrigidos com o estudo da vida de Abraão.

As Circunstâncias Envolvidas no Chamado de Abrão (Josué 24:2-3, Atos 7:2-5)

Moisés não nos dá todas as informações necessárias para compreendermos totalmente a importância do chamado de Abrão, mas isso está registrado na Bíblia para nós. Estêvão esclarece a época em que Abrão recebeu o primeiro chamado de Deus. Não foi em Harã, como uma leitura casual de Gênesis pode nos levar a crer, mas em Ur. Quando Estêvão estava diante de seus incrédulos irmãos judeus, ele recontou a história do povo escolhido de Deus, começando pelo chamado de Abraão:

Estêvão respondeu: Varões, irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu à Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei.  (Atos 7:2-3)

Apesar de nem todos os estudiosos da Bíblia concordarem com a localização de Ur2, a maioria aceita a Ur da Mesopotâmia meridional, onde costumava ser a costa do Golfo Pérsico. O sítio da grande cidade foi descoberto em 1854, e desde aquela época tem sido escavado, revelando muitas coisas sobre os tempos de Abrão3. Embora o verdadeiro período de sua vida em Ur possa ser matéria de discussão, podemos dizer com certeza que a ostentação da cidade como uma civilização altamente desenvolvida era justificada. Existem amplas evidências de grandes fortunas, artesanato elaborado e ciência e tecnologia avançadas4. Tudo isso nos diz alguma coisa sobre a cidade que Abrão recebeu ordens para deixar. Nas palavras de Vos,

Independentemente de quando Abraão saiu de Ur, ele deu as costas a uma grande metrópole, iniciando sua jornada de fé para uma terra sobre a qual pouco ou nada sabia e que, provavelmente, tinha muito pouco a lhe oferecer do ponto de vista material5.

Se a cidade onde Abrão vivia era grande, o lar que ele deixou pra trás parece não ter sido muito piedoso. Poderíamos presumir que Terá fosse um homem temente a Deus, que educou seu filho, Abrão, para crer no único Deus, diferente das pessoas da sua época; mas as coisas não foram bem assim. No final da sua vida, Josué, em suas palavras de despedida, nos dá uma compreensão melhor do caráter de Terá:

Então, disse Josué a todo o povo: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Antigamente, vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates e serviram a outros deuses. (Josué 24:2)

Portanto, até onde podemos dizer, Terá era idólatra, tal como as outras pessoas da sua geração. Não é de admirar que Deus tenha mandado Abrão deixar a casa de seu pai (Gênesis 12:1)!

A idade de Abrão também não era um fator favorável para deixar Ur e ir para um lugar desconhecido. Moisés nos diz que ele tinha 75 anos quando entrou em Canaã. Pense nisso. Abrão já devia estar no seguro social há mais de dez anos. Para ele, a “crise da meia idade” era coisa do passado. Em vez de pensar numa nova terra e numa nova vida, a maioria de nós estaria pensando em termos de uma cadeira de balanço e uma casa de repouso.

Não somos propensos a nos impressionar com a idade de Abrão devido à longa vida dos homens dos tempos antigos, mas Gênesis capítulo onze nos informa que a longevidade do homem tinha sido muito maior no passado do que era na época de Abrão. Ele morreu com 175 anos (25:7-8), pouco mais do que Sem (11:10-11) ou Arfaxede (11:12-13). Um dos propósitos da genealogia do capítulo onze é informar que os homens estavam vivendo menos e tendo filhos mais jovens. Abrão não era, em linguagem coloquial, algum “franguinho” quando deixou Harã e foi para Canaã.

Tudo isto nos leva a pensar nas objeções e empecilhos que deviam estar em sua cabeça quando ele recebeu o chamado de Deus. Ele partiu de Harã não porque fosse a coisa mais fácil a fazer, mas porque esse era o intento de Deus. Com isso, não desejo glorificar a fé de Abrão, pois, como veremos, no começo ela era muito fraca. Nos estágios iniciais da sua vida, a maioria dos obstáculos foram superados pela iniciativa de Deus. E é isso o que veremos.

A Ordem de Deus

O chamado de Abrão está registrado em Gênesis 12:1: “Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei”.

Uma interpretação melhor da primeira sentença deste chamado se encontra nas versões King James e Nova Versão Internacional6, onde se lê: “O Senhor dissera a Abrão...”

A diferença é importante. Sem ela somos levados a pensar que o chamado de Abrão veio em Harã, não em Ur. Mas nós sabemos, pelas palavras de Estêvão, que seu chamado ocorreu em Ur (Atos 7:2). O passado mais que perfeito (dissera ou tinha dito) é tanto gramaticalmente correto quanto exegeticamente necessário. Ele nos diz que os versículos 27 a 32 do capítulo 11 são parentéticos7, e não estão estritamente em ordem cronológica.

O chamado de Abrão ocorreu juntamente com uma aparição de Deus8. Embora Moisés só mencione essa aparição quando Abrão já estava em Canaã (12:7), Estêvão nos diz que Deus apareceu a ele ainda em Ur (Atos 7:2). Mesmo com todas as objeções que poderiam ser levantadas por Abrão, essa aparição não devia ser incomum. Deus também apareceu a Moisés na época do seu chamado (Êxodo 3:2, etc).

Em certo sentido, a ordem de Deus a Abrão foi muito específica. Ele recebeu instruções detalhadas do que precisava deixar pra trás. Ele precisava deixar sua terra, seus parentes e a casa de seu pai. Deus ia formar uma nova nação, não só dar um jeito em alguma já existente. Quase nada da cultura, religião ou filosofia do povo de Ur faria parte daquilo que Deus planejava fazer com Seu povo, Israel.

Por outro lado, a ordem de Deus também foi deliberadamente vaga. Enquanto o que precisava ser deixado pra trás ficou muito claro, o que estava por vir era dolorosamente desprovido de detalhes: “... para a terra que eu te mostrarei”.

Abrão não sabia nem mesmo onde se estabeleceria. Como o escritor de Hebreus coloca: “...e partiu sem saber para onde ia” (Hebreus 11:8).

A fé à qual somos chamados não é em algum plano, mas em uma pessoa. Mais importante do que onde ele estava, Deus estava interessado em quem ele era, e em Quem confiava. Deus não Se preocupa tanto com geografia quanto com santidade.

A relação entre a ordem de Deus a Abrão no versículo um e o incidente em Babel no capítulo onze não deve passar em branco. Em Babel, os homens preferiram desprezar a ordem de Deus para se dispersar e povoar a terra. Eles se esforçaram para encontrar segurança e renome juntando-se e tentando construir uma grande cidade (11:3-4). Eles buscaram bênção no fruto do seu próprio labor em vez de buscarem na promessa de Deus.

A ordem de Deus a Abrão, na verdade, é uma reversão daquilo que o homem tentou fazer em Babel. Abrão estava seguro e confortável em Ur, uma grande cidade. Deus o chamou para deixar aquela cidade e trocar sua casa por uma tenda. Deus lhe prometeu um grande nome (aquilo que as pessoas de Babel procuravam, 11:4) em consequência de sair de lá, deixar a segurança da sua parentela e confiar somente nEle. Como são diferentes os caminhos do homem dos caminhos de Deus!

A Aliança com Abrão (12:2-3)

Tecnicamente, a aliança com Abrão não se encontra no capítulo 12, mas nos capítulos 15 (versículo 18) e 17 (versículos 2, 4, 7, 9, 10, 11, 13, 14, 19, 21), onde a palavra aliança aparece. É lá que os detalhes específicos são enunciados. Aqui, no capítulo doze, são apresentadas apenas suas características gerais.

Há três promessas principais contidas nos versículos 2 e 3: uma terra, uma descendência e uma bênção. A terra, como já dissemos, está implícita no versículo 1. Na época do chamado de Abrão, ele não sabia onde ficava essa terra. Em Siquém, Deus prometeu-lhe dar “esta terra” (12:7). Até o capítulo 15 não havia uma descrição detalhada da terra que ele recebeu:

Naquele mesmo dia, fez o Senhor aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates... (Gênesis 15:18)

A terra não pertenceu a Abrão em vida, conforme Deus tinha dito (15:13-16). Quando Sara morreu, ele teve de comprar um pedaço de terra para sua sepultura (23:3 e ss). Agora, aqueles que primeiramente leram o livro de Gênesis estavam prestes a tomar posse do lugar prometido a Abrão. Como deve ter sido emocionante para as pessoas dos dias de Moisés ler a promessa e perceber que o tempo de possuir a terra tinha chegado.

A segunda promessa da aliança Abraâmica era que uma grande nação viria de Abrão. Já mencionamos a importância do Salmo 127 com relação aos esforços do homem em Babel. Bênçãos verdadeiras não vêm do trabalho árduo e das horas penosas de labor, mas do fruto da intimidade, ou seja, dos filhos. A bênção de Abraão seria vista mais amplamente em seus descendentes. Eis o fundamento para o “grande nome” que Deus lhe daria.

Essa promessa exigia fé da parte de Abrão, pois era óbvio que ele já era idoso e Sarai, sua esposa, não podia de ter filhos (11:30). Ainda se passariam muitos anos até Abrão entender totalmente que o herdeiro prometido por Deus viria de sua união com Sarai.

A última promessa era a da bênção — bênção para ele e bênção por meio dele. Muitas das bênçãos de Abrão viriam na forma da sua descendência, mas havia também a bênção que viria na forma do Messias, O qual traria salvação para o povo de Deus. A respeito dessa esperança, nosso Senhor, o Messias, disse: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8:56).

Além disso, Abrão estava destinado a se tornar bênção para pessoas de todas as nações. A bênção viria por meio dele de várias formas. Quem reconhecesse a mão de Deus sobre ele e seus descendentes seria abençoado pelo contato com eles. Faraó, por exemplo, foi abençoado por exaltar José. Pessoas de todas as nações seriam abençoadas pelas Escrituras que, em grande parte, vieram pela instrumentalidade do povo judeu. Finalmente, o mundo todo seria abençoado pela vinda do Messias, O qual veio salvar pessoas de todas as nações, não só os judeus:

Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão (Gálatas 3:7-9).

A Complacência de Abrão (Gênesis 11:31-32, 12:4-9)

Fico muito preocupado com a exaltação de heróis, principalmente de heróis cristãos. Os gigantes da fé parecem ser personagens excelentes, sem nenhuma falha evidente, como máquinas de disciplina e fé infalível. Não encontro esse tipo de gente na Bíblia. Os heróis da Bíblia são homens “sujeitos a paixões” (Tiago 5:17) e com pés de barro. Este é o meu tipo de herói. Posso me identificar com homens e mulheres assim. E, o mais importante, posso encontrar esperança para uma pessoa como eu. Não é de admirar que homens como Pedro, e não Paulo, sejam nossos heróis, pois podemos nos ver neles. 

Abrão era um homem como você e eu. O relato de Moisés de seus primeiros passos na fé deixa claro que ele deixou muito a desejar e que muita coisa poderia ser desenvolvida nele. Deus o chamou em Ur, mas ele não deixou a casa de seu pai ou sua parentela. Depois, ele saiu de Ur e foi para Harã, mas, ao que me parece, foi só porque seu pai pagão decidiu sair de lá. Talvez fatores políticos ou econômicos tenham influenciado na mudança, sem qualquer conotação espiritual.

Os primeiros passos de Abrão não foram decididos ou piedosos, foram mais uma reação passiva a forças externas. Deus providencialmente levou Terá a arrancar suas raízes de Ur e se mudar para Canaã (11:31). Por algum motivo, ele e sua família fizeram uma parada perto de lá e acabaram ficando em Harã. E, já que Abrão não queria, ou não podia, deixar a casa de seu pai, Deus levou seu pai à morte (11:32). Assim, Abrão obedeceu a Deus pela fé e entrou em Canaã, mas só depois de algumas medidas consideráveis terem sido tomadas por Deus.

Não estou dizendo que Abrão não obedeceu a Deus pela fé, mas foi uma fé muito fraca, e muito tardia. Contudo, será que essa afirmação contradiz as palavras da Escritura? Seria inconsistente com as palavras do escritor aos Hebreus?

Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber aonde ia. (Hebreus 11:8)

Pelo menos duas coisas precisam ser ditas em resposta a essa questão. Primeiro, a ênfase de Hebreus 11 está na fé. O escritor queria ressaltar os aspectos positivos da jornada cristã, não suas falhas. Portanto, as falhas não são mencionadas. Segundo, coerente com esta abordagem, o autor não diz quando Abrão obedeceu. Ele simplesmente escreveu: “...Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir”. É preciso lembrar que Abrão realmente foi para Canaã, assim como Moisés foi para o Egito, mas não sem uma considerável pressão da parte de Deus.

Não devemos achar que isso seja desanimador, e sim compatível com a nossa própria relutância em arriscar o nosso futuro com uma fé ativa, agressiva e inquestionável. Abraão foi um homem de grande fé — após anos de provações dadas por Deus. Contudo, na época do seu chamado, ele era um homem cuja fé era muito pequena; verdadeira, mas pequena. E, se formos honestos conosco mesmos, é exatamente assim com a maioria de nós. Em nossos melhores momentos, nossa fé é vibrante e cheia de fervor, mas nos momentos de provação, é fraca e cheia de falhas.

Uma vez em Canaã, a rota tomada por Abrão é digna de nota. Em primeiro lugar, é preciso dizer que era uma rota esperada se ele fosse naquela direção. Uma olhada no mapa do mundo antigo do tempo dos patriarcas indica que ele viajou por estradas bem movimentadas da sua época9. A rota tomada por ele era muito utilizada pelos comerciantes daqueles dias.

Creio ser esta uma observação importante, pois muitos cristãos parecem sentir que o jeito de Deus é meio bizarro ou incomum. As pessoas não esperam que Deus as guie de forma normal e previsível. A lição a ser aprendida é esta: muitas vezes a maneira como Deus quer que façamos as coisas é a mesma que, de qualquer forma, teríamos escolhido usando o bom senso. Só quando Ele quer nos afastar do esperado é que devemos buscar orientação espetacular ou incomum10.

Cassuto sugere que os lugares mencionados (Siquém, Betel e o Neguebe) são muito importantes. Ele acredita que a terra foi, então, dividida em três regiões: a primeira estendendo-se da extremidade norte até Siquém, a segunda, de Siquém a Betel, e a terceira, de Betel ao limite sul.

Jacó, depois de retornar de Padã-Harã, primeiro foi a Siquém (33:18). Depois, foi instruído a subir a Betel (35:1, cf. versículo 6). Tanto em Siquém quanto em Betel ele edificou altares, como Abrão, seu avô (33:20, 25:7).

Quando Israel entrou em Canaã, para tomar posse da terra sob a liderança de Josué, essas mesmas cidades-chave foram capturadas.

Assim Josué os enviou, e eles se foram à emboscada, colocando-se entre Betel e Ai, ao ocidente de Ai; porém Josué passou aquela noite no meio do povo. (Josué 8:9)

Então, Josué edificou um altar ao Senhor, Deus de Israel, no monte Ebal. (Josué 8:30)

Cassuto conclui que a jornada errante de Abrão delineou o território que iria pertencer a Israel, e os lugares onde ele parou prognosticaram a conquista da terra11. Em um comentário adicional, ele acrescenta que esses lugares também foram centros religiosos da adoração dos cananeus12. Na verdade, ao erigir os altares e proclamar o nome do Senhor, Abrão profetizou o tempo em que a verdadeira adoração iria sobrepujar a religião pagã dos cananeus. Muito embora o exato significado da expressão “invocou o nome do Senhor” não seja conhecido, com certeza é uma descrição de adoração. É difícil acreditar que o ato público de adoração feito por Abrão não tenha sido visto ou observado com especial interesse pelos cananeus. Pessoalmente, creio que Abrão desempenhou um certo tipo de papel missionário. Como tal, esse teria sido um ato decorrente da fé.

Conclusão: Características de uma Vida de Fé

Desses primeiros estágios do crescimento de Abrão na graça de Deus, podemos encontrar muitos princípios que representam a jornada da fé em todas as gerações, e com certeza na nossa também.

(1) A fé de Abrão começou pela iniciativa de Deus. A soberania de Deus na salvação é belamente ilustrada no chamado de Abrão. Abrão veio de um lar pagão. Pelo nosso conhecimento, ele não tinha nenhuma qualidade espiritual que levasse Deus a ele. Deus, em Sua graça eletiva, escolheu Abrão para segui-lO enquanto ele ainda andava em seus próprios caminhos. Abrão, como Paulo, e os verdadeiros crentes de todas as épocas, reconheceu que foi Deus Quem o buscou e o salvou, com base na Sua graça.

(2) A obra soberana de Deus continuou ao longo da vida espiritual de Abrão. Deus não é soberano somente na salvação, mas também no processo de santificação. Se a vida espiritual de Abrão dependesse somente da sua própria fidelidade, sua história logo teria chegado ao fim. Após chamar Abrão, foi Deus quem, pela Sua providência, o levou a deixar sua casa e sua terra natal e entrar em Canaã. Graças a Deus porque nossa vida espiritual, no final das contas, depende da Sua fidelidade e não da nossa!

(3) A jornada cristã é uma peregrinação. Abraão viveu como peregrino, esperando a cidade de Deus:

Pela fé, peregrinou na terra da promessa como em terra alheia, habitando em tendas com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11:9-10)

Nosso lar permanente não se encontra neste mundo, mas naquele por vir, na presença de nosso Senhor (cf. João 14:1-3). Esta é a mensagem do Novo Testamento (cf. Efésios 2:19, I Pedro 1:17, 2:11).

A tenda, portanto, é o símbolo do peregrino. Ele não investe naquilo que não vai durar. Não ousa ficar muito ligado ao que não pode levar consigo. Nesta vida não podemos esperar ter plenamente aquilo que se encontra no futuro, só um pequeno vislumbre. A vida cristã não é conhecer exatamente o que o futuro reserva, mas conhecer Aquele que é dono do futuro.

(4) A jornada cristã tem suas raízes na confiabilidade da Palavra de Deus. Quando paramos para pensar, vemos que Abrão não tinha qualquer prova concreta, tangível, de uma vida de bênçãos à sua frente, fora de Ur e longe da sua família. Tudo o que ele precisava era confiar em Deus, O qual Se revelara a ele.

No final das contas, isso é tudo que qualquer um precisa. Existem, é claro, evidências para uma fé racional, mas no fundo, no fundo, precisamos simplesmente acreditar no que Deus nos diz em Sua Palavra. Se Sua “Palavra não é verdadeira e confiável, então, nós, somos os mais infelizes de todos os homens”.

Mas seria isso suficiente? Que mais poderíamos querer além da Palavra de Deus? Outro dia ouvi um pregador colocar isso de forma muito clara. Ele citou o tão batido: “Deus disse. Eu acredito. É assim”. Ele disse que poderia até ser mais conciso: “Deus disse, é assim, acredite ou não”. Gosto disso. A Palavra de Deus é suficiente para a fé do homem.

Deus disse que todos os homens são pecadores, merecem o castigo eterno e estão destinados a ele. Deus enviou Seu filho Jesus Cristo, Aquele esperado por Abrão no futuro, para morrer na cruz e sofrer o castigo pelo pecado humano. Somente Ele pode dar ao homem a justificação necessária para a vida eterna. Deus disse. Você crê?

(5) A jornada cristã é simplesmente fazer aquilo que Deus nos diz para fazer e crer que Ele nos guia enquanto fazemos. Deus disse a Abrão para partir sem saber para onde o caminho da obediência o levaria, mas crendo que Ele iria guiá-lo por onde ele fosse. Não espere que Deus indique cada curva da estrada com uma sinalização clara. Faça aquilo que Ele lhe diz para fazer da forma mais sensata possível. A fé não é desenvolvida quando se vive utilizando algum tipo de mapa, mas quando se utiliza a Palavra de Deus como bússola, a qual nos aponta a direção certa, mas nos desafia a andar pela fé e não pela vista.

Enquanto Abrão ia de um lugar para o outro, a vontade de Deus deve ter parecido como um enigma. No entanto, quando nos recordamos disso, podemos ver que Deus o esteve guiando o tempo todo. Nenhuma parada ao longo da jornada foi irrelevante ou sem propósito. E conosco será da mesma forma quando olharmos para o nosso passado.

(6) A jornada cristã é um processo de crescimento na graça de Deus. Muitas vezes, quando lemos a história de Abraão, um homem de fé, achamos que ele sempre foi assim. Espero que nosso estudo do período inicial de sua vida nos mostre o contrário. Há quanto tempo, meu amigo, você é cristão? Um ano? Cinco? Vinte anos? Percebe que provavelmente se passaram muitos anos desde o chamado de Abrão até ele terminar em Canaã? Sabia que só depois de vinte e cinco anos em Canaã ele teve seu filho, Isaque? Consegue imaginar que, após deixar Harã e seguir para Canaã, Deus trabalhou na vida de Abrão durante cem anos? A fé cristã cresce. Cresce com o tempo e com as provações. Foi assim na vida de Abrão13. E é assim com todos os crentes.

Que Deus nos ajude a crescer na graça enquanto andamos no caminho que Ele ordenou, e continuamos a estudar o crescimento da fé de Abrão ao longo de muitos anos.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


1 S. Schultz, “Abraão”, The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), I, p. 26.

2 Cyrus Gordon sugere que a verdadeira Ur de Gênesis 11:31 deve ser encontrada ao norte da Mesopotâmia, provavelmente a nordeste de Harã. Seu ponto de vista é discutido, mas rejeitado por Howard F. Vos, Genesis and Archaeology (Chicago: Moody Press, 1963), pp. 63-64. E é sustentado por Harold G. Stiflers, A Commentary on Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), pp. 133-134.

3 Cf. Vos, Genesis and Archaeology, pp. 58-64.

4  “A cidade de Ur, no baixo Eufrates, foi um grande centro populacional, e gerou enorme quantidade de informações das tumbas reais que foram escavadas sob a direção de Sir Leonard Wooley, e patrocinadas pelo Museu Britânico e pelo Museu da Universidade da Pensilvânia. Embora não haja evidência direta disponível sobre a moradia de Abraão, é significativo que a cidade de Ur indique uma longa história anterior à sua época, com um elaborado sistema de escrita, instalações educacionais, cálculos matemáticos, registros religiosos, de negócios e de arte. Isso aponta para o fato de que Ur possa ter sido uma das maiores e mais abastadas cidades na região do Tigre-Eufrates quando Abraão emigrou para o norte em direção a Harã”. Schultz, “Abraão”, ZPEB, I, p. 22.

5 Vos, p. 63.

6 NT: em inglês, pois em português, tanto a NVI como a ARA, ARC e a Fiel não traduzem dessa forma.

7 Embora possa parecer, por uma leitura superficial de Gênesis (11:31-12:1), que Deus tenha chamado Abrão enquanto ele estava em Harã, contrariando, dessa forma o relato de Estêvão de que Deus o chamou na Mesopotâmia, antes dele viver em Harã, os dois relatos podem ser harmonizados observando-se que Gênesis 11:27-32 é uma narrativa parentética da geração de Terá, introduzida por um waw disjuntivo, e que Gênesis 12:1, introduzido por um waw consecutivo, continua a narrativa principal interrompida em Gênesis 11:26”. Bruce Waltke, Unpublished Class Notes, Dallas Theological Seminary, pp. 14-15.

8 Cassuto, o grande erudito judeu, discorda. Ele diz em seu comentário de Gênesis 12:7:

“Fora da Terra, Abraão só pôde ouvir a voz divina (v. 1); mas aqui, na terra destinada a ser dedicada especialmente ao serviço do Senhor, a ele foi concedido também o privilégio de uma visão divina". U. Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis (Jerusalem: The Magnes Press, 1964), II, p. 328. Precisamos lembrar que Cassuto, um judeu, não considerava o Novo Testamento como autoritativo. Portanto, ele parece rejeitar, sem maiores rodeios, as palavras de Estêvão.

9 Harã, por exemplo, em assírio (harranu) significava “estrada principal”. Waltke, anotações de aula, p. 14.

10 Cassuto, Gênesis, II, p. 304.

11 “Agora podemos entender porque a Torá destacou, nos mínimos detalhes, as jornadas de Abrão para entrar na terra de Canaã, primeiramente a Siquém, e depois a Ai-Betel. Aqui a Escritura tinha o propósito de nos apresentar, por meio da conquista simbólica de Abrão, uma espécie de previsão daquilo que mais tarde aconteceria a seus descendentes”. Cassuto, Genesis, II, pp. 305-306.

12 Ibid, p. 306.

13 “… O início da história de Abrão é, em parte, a respeito de seu gradual desligamento da sua terra, da sua parentela e da sua casa, um processo que só foi concluído no fim do capítulo 13”. Derek Kidner, Gênesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 113.

“A vida de Abrão é um crescimento na fé desenvolvido sob o demorado cumprimento das promessas divinas. Foi-lhe prometido um descendente e, quando esse descendente demorou a chegar, ele precisou, de alguma forma, ver o significado daquela demora e aprender a ter fé em Deus. Quando lhe foi prometida uma terra, e esta não lhe foi dada, ele precisou olhar para além da promessa, para Aquele que a fez, a fim de poder compreender. Quando lhe foi ordenado sacrificar Isaque, ele precisou obedecer com um coração cheio de amor, para de alguma forma ver a relação entre a ordem e a promessa da descendência de uma nação, deixando o resultado por conta de Deus e encontrando nEle toda suficiência. Por meio de todas as suas experiências ele precisou ver em Deus a origem de tudo o que iria enfrentar”. Stagers, Genesis, p. 135.

Pages