MENU

Where the world comes to study the Bible

10. A Nudez de Noé e a Maldição de Canaã (Gênesis 9:18 – 10:32)

Related Media

Introdução

A ordem de Deus para destruição dos cananeus tem incomodado tanto crentes como não crentes:

Porém, das cidades destas nações que o Senhor, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o Senhor, teu Deus, destrui-las-á totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o Senhor, vosso Deus. (Deuteronômio 20:16-18)

Embora seja provável que a matança dos cananeus irá sempre nos causar uma certa apreensão, Gênesis capítulo 9 aumenta muito o nosso entendimento do problema.

Precisamos compreender que assimilar essa ordem foi muito mais difícil para os antigos israelitas do que é para nós hoje. Se Deus não tivesse endurecido o coração dos cananeus para não fazerem alianças com Israel (cf. Josué 11:20), Israel provavelmente não teria tentado obedecer com tanto rigor ao mandamento do Senhor para destruí-los.

Talvez seja um pouco complicado para nós avaliar a situação enfrentada por Israel antes de tomar posse da terra dos cananeus. Havia pouco ou nenhum contato com aqueles povos pagãos. Eles devem ter achado muito difícil entender as razões para tratar seus inimigos, os cananeus, sem nenhuma misericórdia. Gênesis capítulo 9 coloca as coisas em perspectiva. Ele explica a origem das nações com as quais Israel, de algum modo, precisava se relacionar ao longo da história. Em particular, esta narrativa explica a depravação moral dos cananeus que tornou necessário o seu extermínio.

Gênesis 9 é crucial também por outras razões. É uma passagem que tem sido muito empregada para justificar a escravidão e, em particular, o domínio violento e pecaminoso sobre os povos negros ao longo dos séculos. Segundo dizem, a maldição de Cam está simplesmente sendo cumprida na medida em que os negros vivem em servidão a outras raças, especialmente aos brancos. Como vamos ver, uma análise cuidadosa do nosso texto não dá nenhuma base a essa interpretação.

A Maldição de Canaã (9:18-29)

Os versículos que estamos considerando devem ser entendidos no contexto da seção onde se encontram. Gênesis 9:18 inicia uma nova divisão que vai até o capítulo 11, versículo 10. Moisés fala do repovoamento da terra pelos filhos de Noé. Gênesis 9:20-27 explica a tríplice divisão da raça humana pela dimensão espiritual de cada seguimento. Enquanto os cananeus estão sujeitos à maldição de Deus, Sem será a linhagem pela qual virá o Messias e Jafé encontrará bênção na união com a linhagem de Sem (e seu descendente final, o Messias).

Cronologicamente, o capítulo 10 deveria vir após a confusão de Babel (11:1-9). Os versículos do capítulo 11 explicam a razão para a dispersão das nações. O capítulo 10 descreve os resultados dessa dispersão. No entanto, o capítulo 10 vem primeiro para permitir que a ênfase recaia sobre o estreitamento da linhagem piedosa até Abrão.

Depois do dilúvio, Noé começou a lavrar a terra, plantando uma vinha. O resultado do seu trabalho foi o fruto da videira, vinho. Embora a primeira menção ao vinho não seja sem uma conotação negativa, não devemos concluir que, devido a esse excesso, a Bíblia sempre ou quase sempre condene seu uso (cf. Deuteronômio 24:24-26, 1 Timóteo 5:23).

Muitos ficam incomodados diante da deplorável situação de Noé, o homem que antes do dilúvio fora descrito como “justo e íntegro entre seus contemporâneos” (6:9). Alguns sugerem que a fermentação talvez só tenha ocorrido após o dilúvio e que Noé estava simplesmente colhendo os frutos da sua criatividade.

Embora não devamos procurar desculpas para Noé, precisamos reconhecer que Moisés não ressalta sua culpa, e sim o pecado de Cam. Alguns sugerem vários tipos de males que poderiam ter ocorrido na tenda de Noé. Ainda que a linguagem empregada possa dar margem a certos pecados sexuais (cf. Levítico 18), pessoalmente não encontro nenhuma razão para presumir alguma atitude errada por parte de Noé, além da indiscrição da sua bebedeira e sua consequente nudez. Talvez a melhor descrição para o seu comportamento e seu estado seja a palavra “impróprio”.

Fico impressionado com a maneira pela qual Moisés se refere a este incidente, com um mínimo de detalhes e quase nenhuma explicação. Ter escrito qualquer coisa a mais teria sido perpetuar o pecado de Cam. Hollywood teria nos levado para dentro da tenda de Noé numa grande tela em Tecnicolor. Moisés nos deixa do lado de fora junto com Sem e Jafé.

Parece que Cam e seus irmãos foram avisados sobre o estado de Noé, a fim dos três ficarem fora da tenda: “Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos” (Gênesis 9:22).

Enquanto Sem e Jafé se recusaram a entrar, Cam não teve tantas reservas. Qualquer que tenha sido a falta de Noé, ele estava na privacidade da sua própria tenda (9:21). E era assim que Sem e Jafé queriam. No entanto, Cam entrou, violando o princípio da privacidade, e, além de não ajudar seu pai, divertiu-se às suas custas.

Cam não fez nada para preservar a dignidade de seu pai. Ele não cuidou para que Noé fosse devidamente coberto. Em vez disso, ele saiu da tenda e descreveu claramente a seus irmãos o desatino que tinha tomado conta de seu pai. Parece-me também que ele pode ter dito a Sem e Jafé para entrarem na tenda e verem por si mesmos.1

As medidas tomadas por Sem e Jafé para não ver a nudez do pai parecem meio radicais numa sociedade sexualmente permissiva. Por outro lado, nossas televisões têm nos tornado insensíveis à nudez ou à falta de educação. Existe propaganda para tudo quanto é coisa, mesmo para produtos que já foram considerados extremamente pessoais.

Colocando “a” roupa, aquela com que Noé deveria se vestir, em seus próprios ombros, eles entraram de costas na tenda. Sem olhar para o pai, eles o cobriram e saíram de lá.

Na manhã seguinte, quando acordou da bebedeira, Noé tomou conhecimento do acontecido. Não sabemos como ele soube disso. Talvez ele estivesse consciente o suficiente para se lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Uma coisa é certa — Sem e Jafé não disseram nada a ele, nem a ninguém. Desconfio que a estória já estivesse na boca do povo na manhã seguinte e, com toda probabilidade, por causa de Cam. Se ele não hesitou em contar aos irmãos, por que não contaria a todo mundo?

Sem levar em conta a fonte de informação de Noé, sua reação teve grandes implicações. Canaã, o filho mais novo de Cam, foi amaldiçoado. Ele ia ser o menor dos servos2 de seus irmãos. Embora alguns entendam que “irmãos” no versículo 25 se refira a seus companheiros, creio que seja especificamente a seus irmãos terrenos, os outros filhos de Cam. Nesse sentido, a maldição de Canaã ganha intensidade nesses três versículos. No versículo 25, ele será servo dos seus irmãos; nos versículos 26 e 27, servo dos irmãos de seu pai, Sem e Jafé.

Visto desta forma, é impossível divisar qualquer aplicação deste texto à sujeição dos povos negros. Cam não foi amaldiçoado nesta passagem, e sim Canaã. Canaã não foi o pai dos povos negros, mas dos cananeus que viveram na Palestina e eram uma ameaça para os israelitas.

No versículo 26, não é Sem quem é bendito, mas seu Deus: “Bendito seja o Senhor, Deus de Sem, e Canaã lhe seja servo” (Gênesis 9:26).

Com isso a linhagem piedosa seria preservada por meio de Sem. Da sua descendência viria o Messias. A bênção não vem de Sem, mas por intermédio dele. A bênção emana do seu relacionamento com Yahweh, o Deus da aliança de Israel. E a servidão de Canaã é uma das evidências dessa bênção.

O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença. O Senhor determinará que a bênção esteja no teu celeiro em tudo que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o Senhor, teu Deus. O Senhor te constituirá para si em povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do Senhor, teu Deus, e andares nos seus caminhos. (Deuteronômio 28:7-9)

Assim como a bênção de Sem consistia no seu relacionamento com Yahweh, Jafé seria abençoado no seu relacionamento com Sem.

Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo. (Gênesis 9:27)

Acredita-se que o nome “Jafé” signifique “engrandecer” ou “alargar”3. Por meio de um jogo de palavras, Noé abençoa Jafé usando o seu próprio nome4. A bênção de Jafé deve ser encontrada no seu relacionamento com Sem e não independentemente. Essa promessa é declarada mais especificamente no capítulo 12, versículo 3: “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra”.

Deus prometeu abençoar Abrão, e nele, as outras nações. Quem abençoasse Abrão receberia as bênçãos de Deus, enquanto quem o amaldiçoasse seria amaldiçoado. Além disso, Canaã seria subjugado todas as vezes que Jafé estivesse unido a Sem.

Existe uma clara correspondência entre as atividades de Cam, Sem e Jafé e as bênçãos e maldições que os seguiram. Sem e Jafé glorificaram a Deus quando agiram em conjunto para preservar a honra de seu pai. Cam desonrou tanto ao pai quanto a Deus por se divertir com a humilhação de Noé. Assim, Cam foi amaldiçoado e Sem e Jafé foram abençoados pela cooperação mútua.

A questão que se levanta na maldição de Canaã é: por que Deus amaldiçoou Canaã pelo pecado de Cam? E mais, por que Deus amaldiçoou os Cananeus, uma nação, pelo pecado de um único homem?

A explicação que melhor parece responder a essas perguntas é que as palavras de Noé não foram só de bênção e maldição, mas também de profecia. Embora seja verdade que os pecados dos pais visitem os filhos, isso é somente “até a terceira e quarta geração” (Êxodo 20:5). Se esse princípio tivesse sido aplicado, todos os filhos de Cam deveriam ter sido amaldiçoados.

Pela revelação profética, Noé previu que as falhas morais demonstradas por Cam seriam manifestadas em sua totalidade em Canaã e em sua descendência. Levando isso em consideração, a maldição de Deus recai sobre os cananeus por causa da pecaminosidade prevista por Noé5. A ênfase, então, está no fato de que os cananeus seriam amaldiçoados por causa do seu próprio pecado, não devido ao pecado de Cam. Creio que isso explique porque Canaã é amaldiçoado e não Cam, ou o restante de seus filhos.

As palavras de Noé, portanto, contêm uma profecia. Canaã irá refletir mais amplamente as falhas morais de seu pai, Cam. E os cananeus irão manifestar essas mesmas tendências em sua sociedade. Devido à pecaminosidade dos cananeus prevista por Noé, a maldição de Deus é proferida. O caráter daqueles três indivíduos e o destino de cada um deles será refletido corporativamente nas nações que deles emergirem.

A Tábua das Nações (10:1-32)

Muito trabalho já foi gasto neste capítulo, por isso vamos nos restringir aos pontos principais. Como já mencionamos, a confusão de Babel precede cronologicamente este capítulo.

A ordem empregada para tratar dos três filhos de Noé reflete a ênfase e o objetivo de Moisés. Jafé é abordado primeiro porque é o menos importante no tema que está sendo desenvolvido. Cam é o seguinte devido ao papel importante desempenhado pelos cananeus na história de Israel. Sem é mencionado por último porque ele é o personagem principal do capítulo. Ele é aquele por intermédio de quem virá o “descendente da mulher”. A linhagem piedosa será preservada por meio de Sem.

A tábua das nações mostra uma seletividade que também é útil para o objetivo da narrativa. Somente as nações que são descritas irão desempenhar um papel chave no desenvolvimento nacional de Israel na terra de Canaã.

Em geral, a identidade dos descendentes dos três filhos de Noé é bem conhecida. De Jafé vêm os indo-europeus, dos quais os mais conhecidos seriam os gregos. Até mesmo a história secular helênica vê Iapetos como seu antepassado6. Leupold nos diz:

... os descendentes de Jafé são vistos dispersos por uma área bem definida desde a Espanha até a Media e quase em linha direta de leste a oeste.7

A maioria de nós seria da linhagem de Jafé.

Cam foi o antepassado daqueles que construíram grandes cidades e impérios, incluindo a Babilônia, a Assíria, Nínive e o Egito. Pute, provavelmente, foi o pai dos povos negros. De Canaã vieram as nações normalmente conhecidas como os cananeus:

Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e a Hete, e aos jebuseus, aos amorreus, aos girgaseus, aos heveus, aos arqueus, aos sineus, aos arvadeus, aos zemareus, e os hamateus; e depois se espalharam as famílias dos cananeus. (Gênesis 10:15-18, cf. Deuteronômio 20:17)

O território deles era aquele diretamente ligado a Israel:

E o limite dos cananeus foi desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza, indo para Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa. (Gênesis 10:19)

Sem é o antepassado dos semitas. Precisamos ter cuidado para não confundir essa designação com os povos que falam as línguas semíticas. Estas línguas incluem tanto os povos descendentes de Sem quanto os de Cam8. Ross menciona os descendentes de Sem como “... as famílias que se estendem da Ásia Menor até as montanhas ao norte da região do Tigre, a Ur na Suméria, ao Golfo Pérsico e finalmente ao Norte da Índia”.9

O descendente mais proeminente de Sem é Éber, pai de Pelegue (10:25), antepassado de Abrão (cf. 11:14-26).

Cassuto sintetiza muito bem o objetivo do capítulo 10:

(a) mostrar que a providência divina é refletida na distribuição das nações sobre a face da terra não menos que em outros atos da criação e da administração do mundo; (b) determinar o relacionamento entre o povo de Israel e os outros povos; c) ensinar a unidade da humanidade pós-diluviana, a qual, como a raça humana antediluviana, era inteiramente descendente de um único par de seres humanos.10

Conclusão

Os capítulos 9 e 10 de Gênesis foram vitais à nação de Israel por terem precedido a ocupação da terra prometida de Canaã. A maldição de Canaã explicou a origem da depravação moral dos cananeus da sua época. Mais do que qualquer outro povo, sua depravação sexual é comprovada pelas descobertas arqueológicas. Albright escreveu:

A comparação de objetos de culto e textos mitológicos dos cananeus com os dos egípcios e mesopotâmios leva a uma única conclusão: a religião dos cananeus era totalmente voltada para o sexo e suas manifestações. Em nenhum outro país têm sido encontradas tantas estatuetas de deusas da fertilidade nuas, algumas claramente obscenas. Em nenhum outro lugar a adoração de serpentes aparece com tanta força. As duas deusas, Astarte (Astarote) e Anate, são chamadas de “as grandes deusas que concebem, mas não dão à luz”.11

Além de explicar a razão para o extermínio dos cananeus, Gênesis 10 ajuda também a identificá-los:

Aqui os cananeus são especificados, pois Moisés sabia que Israel teria muitas ligações com aqueles povos (cf. 15:16), e os israelitas precisavam saber claramente quais eram cananeus e quais não eram, pois tinham o dever de expulsá-los da terra de Canaã (Deuteronômio 20:17 e paralelos).12

Infelizmente, precisamos reconhecer que Israel deixou de aplicar totalmente o ensino desta passagem. Eles não destruíram por completo os cananeus e até se casaram com eles, para seu próprio prejuízo.

Há uma grande lição para nós nesta porção da Escritura:

Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles; porquanto está escrito: O POVO ASSENTOU-SE PARA COMER E BEBER E LEVANTOU-SE PARA DIVERTIR-SE. E não pratiquemos imoralidade, como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia, vinte e três mil. Não ponhamos o Senhor à prova, como alguns deles já fizeram e pereceram pelas mordeduras das serpentes. Nem murmureis, como alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador. Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia. (1 Coríntios 10:6-12)

Tenho pensado muito nesta passagem porque, de certa forma, ela não parecia ter grande impacto sobre a minha vida. De repente, me ocorreu que a questão é justamente a história da nudez de Noé para as pessoas da nossa época.

É muito difícil para nós ficar impressionado com o fato de Noé estar estendido nu e bêbado em sua tenda. Afinal, alguns poderiam dizer: “Será que o pecado dele prejudicou alguém? Ele não estava nu na privacidade da sua tenda?” Ficamos mais surpresos com as medidas “extremas” tomadas por Sem e Jafé do que com a nudez de Noé, é ou não é?

Devido a isso, os eruditos têm tentado encontrar algum pecado mais chocante que tenha ocorrido dentro da tenda. Alguns sugerem que Cam presenciou a intimidade sexual de seu pai com sua mãe. Outros pensam que ele teve relações homossexuais com o pai semiconsciente. Mas nada disso é exigido pelo texto.

O grande problema dos nossos dias é que quase não há mais identificação com o tipo de atitude ou ação dos dois filhos piedosos de Noé, Sem e Jafé. Nós não ficamos envergonhados, nem chocados com o que aconteceu com Noé em sua tenda. E a razão disso é o que torna esta passagem realmente chocante: fazemos parte de uma sociedade que não se envergonha, nem se escandaliza diante da indecência moral e sexual. Praticamente todo tipo de intimidade sexual é retratado nos filmes e nas telas da TV.

Mesmo condutas anormais e pervertidas têm se tornado rotineiras para nós. Sem o mínimo senso de decência, as coisas mais íntimas e particulares são anunciadas diante de nós e de nossos filhos.

Você percebe qual é o problema? Nós não nos preocupamos com a nudez de Noé porque descemos tanto no caminho da decadência que nem vacilamos diante do que aconteceu nesta passagem. Ora, meu amigo, se a condenação de Deus recaiu sobre os atos de Cam e de quem andou em seus caminhos, o que isso diz para você e para mim? Deus nos perdoe por não ficarmos mais chocados e envergonhados. Deus nos guarde dos pecados dos cananeus. Deus nos ensine o valor da pureza moral e a sermos implacáveis com o pecado. Que não deixemos o pecado habitar entre nós, como este texto ensinou a Israel.

Mas existe ainda um outro nível de aplicação. A maioria de nós tende a pensar em santidade em termos dos pecados que cometemos ou evitamos. Esta história nos diz que um dos testes do caráter cristão é a nossa reação aos pecados dos outros. Cam, aparentemente, se divertiu com o pecado de Noé, em vez de ficar horrorizado com o que viu. E não é exatamente é isso o que acontece na nossa sala de estar diante do aparelho de TV? Nós não achamos o pecado repugnante, mas engraçado.

Qual deve ser a nossa reação diante dos pecadores hoje em dia? Será que devemos acabar com eles como fez Israel com os cananeus? O Novo Testamento nos dá instruções muito claras quanto a isso:

E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as. Porque o que eles fazem em oculto, o só referir é vergonha. (Efésios 5:11-12)

Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. (Gálatas 6:1)

Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados. (1 Pedro 4:8)

Salvai-os, arrebatando-os do fogo; quanto a outros, sede também compassivos em temor, detestando até a roupa contaminada pela carne. (Judas 23)

Ao contrário de Cam, devemos aplicar o princípio da privacidade reiterado por Paulo em Efésios 5:12. Alguns pecados não devem ser esquadrinhados. Não devemos explorá-los, nem compartilhar o que sabemos com outras pessoas. Este princípio, creio, foi seguido por Moisés pelo modo como ele registrou, de forma breve e sucinta, o pecado de Noé e suas consequências. As consequências são bem salientadas, mas não as circunstâncias. Vamos aprender com isso.

Observe que nesta passagem em Efésios aprendemos a reprovar as obras infrutíferas das trevas (4:11). Mas isso não deve ser feito explorando o pecado ou vivendo nas trevas, mas vivendo como luzes, brilhando num mundo de escuridão.

... até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para o outro e levados ao redor por todo o vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. (Efésios 4:13-14)

O pecado é reprovado pela retidão, não por fazer fofoca de atos pecaminosos.

Gálatas 6:1 nos ensina a restaurar aquele que caiu em pecado. Nessa passagem Paulo ressalta a atitude de quem deve se encarregar dessa obrigação. A pessoa precisa ser dotada de espírito de brandura, e também extremamente consciente da sua própria fraqueza na mesma área.

Pedro nos ensinou que a melhor maneira de lidar com o pecado é quando ele é conhecido pelo menor número de pessoas. O amor não cobre multidão de pecados da forma como vimos em Watergate. Aquilo foi acobertar, não cobrir. Eles tentaram manter os atos ilegais longe do escrutínio público. A cobertura sobre a qual Pedro escreveu é o esforço para falar o mínimo possível sobre o pecado, de modo que os culpados encontrem perdão e reconciliação enquanto os outros não são tentados ou prejudicados pelo conhecimento desse pecado.

Finalmente, Judas nos fala sobre o ódio que devemos sentir pelo pecado e sobre o desejo de santidade de permanecer puros para a glória de Deus. Não podemos odiar o pecador, mas o pecado, sim. Não devemos nos afastar daquele que caiu, mas arrancá-lo do fogo.

Para concluir, vejo nestes três homens — Sem, Cam e Jafé, um retrato dos homens ao longo da história do relacionamento de Deus com eles. No capítulo 12 de Gênesis, vemos a linhagem pela qual virá o Salvador estreitando-se na descendência de Abraão. Os homens serão abençoados ou amaldiçoados de acordo com sua atitude para com ele (Gênesis 12:1-3).

No Calvário vemos representada a epítome do pecado do homem. Sem estava presente nos líderes religiosos judaicos que queriam o Messias morto e fora do caminho. Jafé estava presente nos romanos que se uniram aos judeus para crucificar o Senhor da glória. E Cam estava presente em Simão Cirineu, que servilmente carregou a cruz de Jesus (cf. Lucas 23:26).

Temos uma escolha a fazer, pois podemos experimentar as bênçãos de Jafé ou a maldição de Canaã. A descendência justa finalmente culminou na vinda do Messias, o descendente da mulher (Gênesis 3:15), o descendente de Sem (Gênesis 9:26) e de Abraão (12:2-3). Em Cristo, pela fé e submissão a Ele como meio de Deus para dar perdão e justificação aos pecadores podemos experimentar a bênção de Jafé. Desprezando e rejeitando a Cristo — permanecendo em nossos pecados, ficamos sujeitos à maldição de Canaã por toda a eternidade.

Queira Deus ajudá-lo a encontrar salvação e bênção em Jesus Cristo.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 Alguns acusam Cam de praticar um ato homossexual com Noé, enquanto este estava no torpor da bebedeira. Nosso texto diz que Cam “viu a nudez de seu pai” (versículo 22). Embora a expressão “descobrir a nudez de outrem” possa ser um eufemismo para relações sexuais (cf. Levítico 18:6 e ss), esta não é a linguagem empregada no nosso texto. Além do mais, há nesta passagem, um contraste entre Cam, que viu a nudez de Noé, e sem e Jafé, que não viram (Gênesis 9:23). A descrição de como eles viraram o rosto para não ver a condição de Noé é uma implicação muito forte de que ver ou não ver era o xis da questão. A sugestão de que Cam viu Noé e sua mãe no meio de uma relação sexual tem o mesmo ponto fraco.

2 A expressão “servo dos servos” (versículo 25) é similar às expressões “Senhor dos senhores” e “Rei dos reis”. É uma maneira enfática de expressar soberania ou servidão extrema.

3 “Tanto os antigos quanto os modernos eruditos consideram essa palavra com sentido de “engrandecer”, com base no seu uso aramaico... e essa parece ser a interpretação correta.” U. Cassuto, Comentário do Livro de Gênesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, pp. 168-169.

4 Sem significa “nome” e é provável que também seja um jogo de palavras.

5 Esta é a conclusão de Leupold, que escreve: “Mas, e quanto à justiça no desenrolar desta história? Do nosso ponto de vista, a maioria dos problemas já foi resolvida. Nós interpretamos “maldito é Canaã”, e não “seja Canaã” (A. V.); e “ele será servo dos servos”, e não no sentido opcional “talvez seja”. O traço perverso revelado por Cam nesta história, foi, sem dúvida, visto por Noé como algo mais marcante em Canaã, filho de Cam. A raça toda de Canaã irá demonstrar esse traço muito mais que qualquer outra raça na terra. Predizer não implica em qualquer injustiça. O filho não é punido pela iniquidade do pai. Sua própria depravação moral miserável, que ele mesmo desenvolve e mantém, é predita.” H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 350.

6 “O primeiro ancestral desses povos foi Helena, uma descendente de Prometeu, cujo pai foi o titã Iapetos (Jafé).” Allen Ross, A Tábua das Nações (dissertação de doutorado não publicada: Seminário Teológico de Dallas), 1976, p. 365, citando Neiman, “Data e circunstâncias da maldição de Canaã”, p. 126.

7 Leupold, Gênesis, I, p. 362.

8 Para uma análise mais detalhada, cf. Ross, pp. 371 e seguintes.

9 Ross, p. 375

10 Cassuto, II, p. 175

11 William F. Albright, “Recentes Descobertas nas Terras da Bíblia”, Young´s Analytical Concordance to the Bible, 20ª ed., p. 29, como citado por Louis B. Hamada, Implicações proféticas da maldição de Noé sobre Canaã (tese não publicada: Seminário Teológico de Dallas, 1978), p. 24.

12 Leupold, Gênesis, I, p. 372.

Report Inappropriate Ad