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23. Prova Final (Gênesis 22:1-24)

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Introdução

Quando me inscrevi para entrar no Seminário Teológico de Dallas (Texas, Estados Unidos), ao preencher o formulário de admissão, tive de responder algumas perguntas. Uma delas dizia respeito a uma área de interpretação bíblica em que há muita discordância entre os cristãos. Lembro-me de ter escrito que, embora concordasse pessoalmente com a opinião do seminário, não achava que a passagem citada desse embasamento a ela. Durante três anos ninguém disse nada. No que me dizia respeito, a questão estava encerrada.

Pouco antes do início do meu último ano no seminário, fui chamado à sala do reitor para um pequeno debate. Para meu espanto, a questão da diferença de opinião entre mim e a escola foi levantada. Caso interesse saber, minha posição pouco mudou, mesmo depois de anos de estudo e um pouco mais de aprendizado das línguas originais da Bíblia. Até certo ponto satisfeito com minhas respostas, o seminário me permitiu continuar o programa de estudos e me formar no ano seguinte.

O ponto onde quero chegar com essa ilustração é que, embora tenham permitido que a diferença de interpretação persistisse, houve uma época em que ela se tornou uma questão importante. Creio que, muitas vezes, Deus faça a mesma coisa. Ele permite que um determinado problema continue durante algum tempo, mas, mais cedo ou mais tarde, ele se tornará uma questão importante, e terá de ser resolvido.

Foi isso o que aconteceu com Abraão. Bem no início de seu relacionamento com Deus, ele recebeu uma ordem muito clara a respeito da sua família:

Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei (Gênesis 12:1, ênfase do autor).

Sabemos, no entanto, que se passaram muitos anos até Abraão ser separado de seu pai; e quando isso realmente aconteceu, foi em consequência de morte, não de obediência de fato. Depois, foi sua relutância em se separar de Ló. No capítulo 21, foi o doloroso ato de ter de despachar Ismael, seu filho tão amado. No capítulo 22, Abraão chegou à sua última prova. Ele já era bem idoso e Sara logo iria morrer. Seu amor era dedicado a Isaque, o qual, após o capítulo 21, se tornou seu único filho (22:2). Deus levou Abraão a um ponto em que ele precisou dar prioridade à sua fé ou à sua família. Por isso, no capítulo 22, ele se defrontou com a maior prova da sua fé.

A Ordem (22:1-2)

Não sabemos exatamente em que época se deu esta última prova na vida de Abraão, só que ocorreu após os acontecimentos do capítulo 21. Pessoalmente, creio que foi uns dez anos depois, o que faria de Isaque um garoto mais ou menos da mesma idade de Ismael quando este foi mandado embora. Isso daria bastante tempo para a afeição de Abraão pelo primeiro filho ser transferida para o segundo, Isaque. Portanto, Isaque é, acertadamente, chamado de seu “único filho” e o filho a quem Abraão amava (versículo 2).

Contrariamente à conotação do termo “tentado”, empregado pelos tradutores da Versão King James no versículo dois, Deus provou Abraão para demonstrar sua fé em termos tangíveis. De acordo com a Escritura, sabemos que, embora Deus teste os homens para provar seu caráter santo, Ele nunca os leva a pecar (cf. Tiago 1.12-18). É por isso que, em Tiago 2, o apóstolo pode apontar para este acontecimento na vida de Abraão como evidência de uma fé viva:

Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? (Tiago 2.21).1

A ordem de Deus deve ter pego Abraão totalmente desprevenido:

Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei (Gênesis 22.2).

A maior dificuldade que encontro neste capítulo não é a conduta de Abraão, mas a ordem de Deus. Como pode um Deus de sabedoria, misericórdia, justiça e amor ordenar a Abraão que ofereça seu único filho como sacrifício? O sacrifício de crianças era praticado pelos cananeus, mas foi condenado por Deus (cf. Levítico 18.21; Deuteronômio 12.31). Além disso, esse tipo de sacrifício não tinha valor algum:

Agradar-se-á o SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma? (Miqueias 6.7)

Dizer que Deus interrompeu Abraão pouco antes da execução não resolve o problema. Como, em primeiro lugar, Ele poderia dar uma ordem como essa, se ela era imoral? Sustentar que Deus poderia ordenar a Seus filhos fazer algo errado, mesmo como um teste, é abrir as obras a todo tipo de dificuldade.

Vários fatores devem ser considerados para entendermos esta prova da forma apropriada. Em primeiro lugar, é preciso admitir um forte viés nesse assunto. Nós, que somos pais, sentimos repulsa só de pensar em sacrificar nossos filhos num altar. Por isso, projetamos nossa aversão em Deus, supondo que Ele também nunca pensou nisso. Em segundo lugar, vemos essa ordem do ponto de vista da cultura daquela época, que realmente praticava o sacrifício infantil. Se os pagãos praticavam, e Deus os condenava por isso, a prática tem de ser errada em qualquer contexto.

Mas somos forçados a concluir que o sacrifício de Isaque não poderia ser errado, quer fosse apenas tentado quer fosse realizado, pois Deus é incapaz de praticar o mal (Tiago 1.13 e ss; 1 João 1.5). Muito mais que isso, não poderia ser errado sacrificar um filho único porque Deus realmente sacrificou Seu único Filho:

Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos… Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos (Isaías 56.3, 10).

Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (João 3.6; cf. Mateus 26.39, 42; Lucas 22.22; João 3.17; Atos 2.23; 2 Coríntios 5.21; Apocalipse 13.8).

Nesse sentido, Deus não pediu a Abraão para fazer algo que Ele mesmo não faria. De fato, a ordem de Deus tinha como objetivo preanunciar aquilo que Ele faria séculos depois na cruz do Calvário.

Só compreendendo a importância tipológica do “sacrifício de Isaque” podemos entender que a ordem de Deus é santa, justa e pura. A disposição de Abraão em renunciar ao seu único filho ilustrou, humanamente, o amor de Deus pelo homem, o qual O levou a dar o Seu Filho unigênito. A profunda agonia experimentada por Abraão refletiu o coração do Pai diante do sofrimento de Seu Filho. A obediência de Isaque tipificou a submissão do Filho à vontade do Pai (cf. Mateus 26.39, 42).

Deus interrompeu o sacrifício de Isaque por duas razões. Primeira, seu sacrifício não teria beneficiado outras pessoas. O cordeiro precisava ser “sem defeito”, sem pecado, inocente (cf. Isaías 53.9). Essa é a verdade implícita em Miqueias (6.7). Segunda, a fé de Abraão foi amplamente demonstrada no fato de ele estar totalmente disposto a cumprir a vontade de Deus. Sem sombra de dúvida, se Deus não tivesse intervindo, Isaque teria sido sacrificado. Na prática, Isaque já tinha sido sacrificado, por isso o ato era desnecessário.

A segunda dificuldade está no silêncio de Abraão. Um de meus amigos diz o seguinte: “Como é possível que Abraão tenha intercedido junto a Deus por Sodoma, mas não por seu filho, Isaque?” Precisamos nos lembrar de que as Escrituras são seletivas quanto ao que registram, preferindo omitir aquilo que não é essencial ao desenvolvimento do argumento da passagem (cf. João 20.30-31; 21.25). Neste capítulo de Gênesis, por exemplo, sabemos que Deus indicou um lugar específico para o “sacrifício” de Isaque (versículo 2) e que Abraão foi àquele local (versículo 9), mas não sabemos quando Deus revelou isso a ele.

Creio que Moisés, sob a orientação e supervisão do Espírito Santo, omitiu a reação inicial de Abraão à ordem de Deus para ressaltar sua resposta final — a obediência. Pessoalmente (embora não haja base na Escritura para sustentar minha suposição), creio que Abraão discutiu com Deus e implorou pela vida de seu filho, mas Deus preferiu não registrar esse ponto porque seria de pouco incentivo para nós. Sei que muitos crentes também não gostariam que Deus registrasse sua primeira reação a situações desagradáveis; é a reação final que importa (cf. Mateus 21.28-31).

Isso me ajuda quando leio, no Novo Testamento, a avaliação dos santos do Antigo Testamento. Não fossem as palavras de Pedro, eu nunca teria considerado Ló como um homem justo (2 Pedro 2.7-8). Em Hebreus 11 e Romanos 4, Abraão é retratado como um homem sem falhas ou defeitos, no entanto, o livro de Gênesis registra claramente suas fraquezas. A razão, creio, é porque os escritores do Novo Testamento veem aqueles santos como Deus os vê. Por causa da morte sacrificial de Cristo na cruz do Calvário, os pecados dos santos não são apenas perdoados, são também esquecidos. A madeira, o feno e a palha do pecado serão consumidos, deixando apenas o ouro, a prata e as pedras preciosas (1 Coríntios 3.1-15). Os pecados dos santos não são ignorados; eles são cobertos pelo sangue de Cristo. Quando esses pecados são registrados, é apenas para nossa admoestação e instrução (1 Coríntios 10.1 e ss, especialmente o versículo 11).

A Obediência de Abraão (22:3-10)

A despeito das lutas não relatadas de Abraão, ele se levantou de manhã bem cedo para começar a jornada mais longa da sua vida.

Levantou-se, pois, Abraão de madrugada e, tendo preparado o seu jumento, tomou consigo dois dos seus servos e a Isaque, seu filho; rachou lenha para o holocausto e foi para o lugar que Deus lhe havia indicado (Gênesis 22.3).

Já disse que, embora levantar-se de madrugada possa refletir a determinação de Abraão em fazer a vontade de Deus, isso também pode conter alguns fatores humanos. Primeiro, imagino que o sono tenha fugido de Abraão naquela noite, especialmente após Deus ter ordenado claramente o sacrifício de Isaque. Algumas pessoas se levantam cedo por não terem esperança de pegar no sono novamente. Além disso, eu também não gostaria de deixar que Sara desconfiasse dos meus planos para os próximos dias. Enquanto Abraão estava resignado a fazer a vontade de Deus, Sara nem sabia o que ia acontecer (pelo menos, até onde vai o registro das Escrituras). 

Depois de uma dolorosa jornada de três dias, a montanha do sacrifício é avistada. Nesse ponto, Abraão deixa seus servos e segue sozinho com Isaque:

Então, disse a seus servos: Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós. Tomou Abraão a lenha do holocausto e a colocou sobre Isaque, seu filho; ele, porém, levava nas mãos o fogo e o cutelo. Assim, caminhavam ambos juntos (Gênesis 22.5-6).

Mesmo em meio à grande angústia da alma, há uma bela expressão de fé e esperança no versículo 5:

Então, disse a seus servos: Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, (nós) voltaremos para junto de vós (ARA, ênfase do autor).

Não creio que essas palavras foram ditas em vão, mas que refletiram uma profunda confiança em Deus e nas Suas promessas. O Deus que ordenara o sacrifício de Isaque também prometera que dele nasceria uma grande nação (17.15-19; 21.12).

Enquanto os dois sozinhos subiam a montanha, em direção ao lugar do sacrifício, Isaque fez uma pergunta que deve ter cortado o coração de Abraão: “Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” (versículo 7).

A resposta deve ter sido muito penosa para Abraão; no entanto, ela não é apenas deliberadamente vaga, ela também contém um quê de esperança: “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos” (versículo 8).

A cada passo, Abraão deve ter esperado que houvesse alguma mudança de planos, alguma alternativa. Eles chegaram ao local, o altar foi construído e a lenha arrumada. Finalmente, não havia mais nada a fazer, a não ser amarrar Isaque, colocá-lo sobre a lenha e cravar o cutelo em seu coração.

A Provisão de Deus (22.11-14)

Somente quando o cutelo já estava no alto, reluzindo ao sol, Deus impediu Abraão de oferecer seu filho em sacrifício:

Mas do céu lhe bradou o Anjo do SENHOR: Abraão! Abraão! Ele respondeu: Eis-me aqui! Então, lhe disse: Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não me negaste o filho, o teu único filho (Gênesis 22.11-12).

No último minuto ficou claro que Abraão estava disposto a renunciar a tudo, até mesmo ao filho, seu único filho, por amor a Deus. Embora Deus já conhecesse seu coração, a reverência de Abraão agora foi evidenciada pela prática.

Foi também no auge da sua obediência que veio a provisão de Deus. Deus não interrompeu o ato de sacrifício; Ele providenciou um carneiro como substituto de Isaque:

Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos; tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho (versículo 13).

Por essa experiência, vemos que a fé de Abraão na provisão de Deus para a oferta sacrificial (versículo 8) foi honrada e que Deus realmente proveu:

E pôs Abraão por nome àquele lugar - O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá.

A Promessa de Deus (22.15-19)

Além da intervenção de Deus para evitar que Abraão sacrificasse seu filho, houve também a confirmação das Suas promessas por meio de Isaque:

Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do SENHOR a Abraão e disse: Jurei, por mim mesmo, diz o SENHOR, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos, nela serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz. Então, voltou Abraão aos seus servos, e, juntos, foram para Berseba, onde fixou residência (Gênesis 22.15-19).

Há pouca coisa nova nesta confirmação divina2, embora haja uma mudança impressionante. Nas ocasiões anteriores, estas promessas foram feitas de forma incondicional (cf. 12.1-3; 15.13-16; 18-21). Aqui, as bênçãos são prometidas a Abraão porque ele obedeceu a Deus nesta prova (22.16, 18).

No entanto, a mudança não é tão dramática quanto possa parecer a princípio. No capítulo 17, Deus reafirmou Suas promessas, começando com estas palavras: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança…” (versículos 1 e 2).

Além disso, Abraão foi instruído a “guardar a Minha aliança” (17.9, 10, 11). E, depois, no capítulo 18, lemos:

… visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito (18.18-19).

Precisamos entender que o fato de Deus ter escolhido Abraão incluía não só o fim proposto por Ele (as bênçãos), mas também os meios (fé e obediência). Depois da sua última prova no monte Moriá, Deus pôde dizer que as bênçãos eram resultado da obediência decorrente da fé. Essa mesma sequência é muito clara no Novo Testamento:

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. (Efésios 2.8-10)

Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou (Romanos 8.28-30).

A obra de Deus começa com uma promessa que precisa ser aceita pela fé. Depois, essa fé, se for genuína, será demonstrada por boas obras (cf. Tiago 2). As promessas de Deus são uma certeza para todos os crentes, pois Deus é soberano em cada etapa — da fé à obediência, da obediência à bênção.

Conclusão

Este incidente na vida de Abraão teve diversas consequências para ele.

(1) Cuidou de um problema que atormentou Abraão durante toda a sua vida — o vínculo prejudicial com sua família. Foi aqui que Abraão teve de escolher a quem colocar em primeiro lugar: Isaque ou Deus. Sua obediência, finalmente, deu um jeito nesse problema.

(2) Sua obediência à vontade revelada de Deus comprovou sua profissão de fé:

Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a minha fé. Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem. Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus (Tiago 2.17-23).

Nestes versículos, Tiago não está discordando de Paulo. Ele concorda que uma pessoa é salva pela fé, não pelas obras (cf. Romanos 4), mas ele defende que uma fé salvadora é uma fé operante. Uma fé professada, mas não praticada, é uma fé morta. Embora Abraão tenha sido justificado diante de Deus por crer nas Suas promessas (Gênesis 15.6; Romanos 4.3), ele foi justificado diante dos homens por sua obediência (Gênesis 22; Tiago 2). Deus podia examinar o coração de Abraão e ver que sua fé era genuína; nós precisamos olhar para a sua obediência para ver que sua profissão de fé era sincera.

(3) A obediência de Abraão resultou em crescimento espiritual e numa compreensão mais profunda da pessoa e das promessas de Deus. Nenhuma outra experiência na vida de Abraão deixou mais evidente a pessoa e a obra de Cristo. É por isso que nosso Senhor pôde dizer aos judeus da Sua época: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8.56). Ainda hoje, os tempos de provação também são tempos de crescimento na vida dos crentes.

(4) A provação de Abraão no monte Moriá o preparou para o futuro. Não é surpresa alguma que o capítulo seguinte (23) trate da morte de Sara. O que precisamos entender é que Deus usou o oferecimento de Isaque para preparar Abraão para a morte de sua esposa. Pelas palavras de Abraão (22.5), e por sua interpretação pelo escritor aos Hebreus (11.19), sabemos que a fé demonstrada por ele no monte Moriá era uma fé no Deus que podia ressuscitar homens e mulheres da morte (cf., ainda, Romanos 4.19). Embora Abraão só tivesse de enfrentar a morte no capítulo 23, ele lidou com ela no capítulo 22. Os testes de Deus, com frequência, são preparatórios para coisas maiores que estão por vir (cf. Mateus 4.1-11).

Além de cuidar de Abraão, Deus também usou este incidente no monte Moriá para instruir a nação de Israel, a qual recebeu este livro, bem como os outros quatro livros da lei, da pena de Moisés. Para aqueles que tinham acabado de receber a lei, com seu complicado sistema sacrificial, este acontecimento na vida de Abraão proporcionou uma compreensão mais profunda do significado do sacrifício. Eles deviam perceber que o sacrifício era substitutivo. O animal devia morrer no lugar do homem, exatamente do mesmo jeito que o carneiro foi provido para o lugar de Isaque. Mas eles também deviam perceber que um Filho, um Filho único, devia pagar o preço pelo pecado, o qual nenhum animal poderia pagar. Contra o pano de fundo do sacrifício no monte Moriá, todo o sistema sacrificial da Lei foi visto com um significado mais profundo e mais completo.

Este incidente na vida de Abraão também foi destinado à nossa edificação e instrução (1 Coríntios 10.6; 11). Permitam-me sugerir algumas coisas que devemos aprender com a vida de Abraão, como descrita no capítulo 22.

(1) Este acontecimento é uma bela prefiguração, um tipo, da morte de nosso Senhor Jesus Cristo. Abraão representa Deus Pai, O qual, por amor ao ser humano, deu Seu único Filho como sacrifício pelos pecadores (João 3.16). Isaque é um tipo de Cristo, O qual Se submete à vontade do Pai. Isaque carregou a lenha para o holocausto da mesma forma que nosso Senhor carregou Sua cruz (Gênesis 22.6; João 19.17). Foram três dias desde a partida de Abraão para o sacrifício até ele e seu filho voltarem juntos. Depois de três dias, Abraão recebeu seu filho de volta (Hebreus 11.9). Depois de três dias nosso Senhor ressurgiu dos mortos (João 20; 1 Coríntios 15.4).

Além de tudo isso, Isaque foi “sacrificado” no mesmo lugar onde nosso Senhor daria Sua vida séculos mais tarde, no monte Moriá, nos arredores de Jerusalém. De acordo com 2 Crônicas 3.1, sabemos que foi nesse lugar que o Senhor apareceu a Davi e onde Salomão construiu o templo. Assim, Abraão levou seu filho ao monte próximo a Jerusalém para oferecê-lo como sacrifício no mesmo lugar (ou próximo dele) onde nosso Senhor iria morrer anos depois. Que bela ilustração da infinita sabedoria de Deus e da Sua inspiração nas santas Escrituras!

(2) Esta passagem também nos lembra da importância da obediência para os cristãos. Foi devido à obediência de Abraão que as bênçãos prometidas foram confirmadas no clímax da nossa passagem (versículos 15 a 18). Muito embora o homem não seja salvo por suas obras, a fé salvadora inevitavelmente deve ser manifesta em boas obras (Efésios 2.8-10). Crer e obedecer são o caminho do cristão.

(3) Vemos também que a vida cristã é paradoxal. Parece que ela é meio contraditória. Abraão ganhou seu filho quando o entregou a Deus. Somos exaltados aos olhos de Deus quando consideramos os outros superiores a nós mesmos (Mateus 23.11; Filipenses 2.5 e ss). Somos líderes quando servimos; salvamos nossa vida quando a perdemos (Mateus 16.25). Os caminhos de Deus não são os caminhos do homem.

(4) A vida cristã não é vivida sem razão ou sem racionalidade. Tenho muito receio de que algumas pessoas leiam esta narrativa da vida de Abraão e concluam que Deus nos prova levando-nos a fazer algo que é totalmente irracional.

O perigo é a tendência que temos em presumir que qualquer coisa que não faça sentido para nós deve ser a vontade de Deus. Muitos críticos têm sugerido que cristãos são aqueles que tiram o chapéu, e a cabeça, quando entram na igreja. Mas não é assim.

Por outro lado, precisamos reconhecer que aquilo que Abraão foi ordenado a fazer parecia sem sentido. Por meio de Isaque ele deveria ser o pai de multidões. Como isso poderia acontecer se Isaque estivesse morto? Sacrificar um filho deve ter parecido totalmente contrário ao caráter de Deus. Será que Deus estava lhe pedindo para agir com fé irracional? Observe o que diz o escritor aos hebreus:

Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também, figuradamente, o recobrou. (Hebreus 11.17-19, ênfase do autor)

A palavra grega utilizada aqui, logizomai, expressamente claramente o fato de Abraão ter agido com a cabeça3. Não foi uma “fé cega”, como se costuma dizer. A fé sempre age com base nos fatos e na razão.

O que quero dizer é simples. O mundo gosta de acreditar que age usando a cabeça, enquanto os cristãos agem sem pensar. Mas esta é uma premissa totalmente falsa. A verdade é que existem dois tipos de raciocínio: o pensamento secular e o pensamento cristão. Pedro, quando censurou nosso Senhor por falar da Sua morte sacrificial, estava pensando humanamente:

Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens. (Mateus 16.23)

Existem dois tipos de mentalidade: a cristã e a secular:

Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. (Romanos 8.5-7)

O apelo de Paulo em Romanos 12 é dirigido tanto às nossas emoções quanto às nossas mentes:

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. (Romanos 12.1-3)

O que devemos oferecer como sacrifício a Deus é o nosso corpo vivo, ou seja, o nosso ato de culto lógico ou racional (do grego logicos). Isso é realizado pela renovação da nossa mente (versículo 2). O ser humano inteiro foi afetado pela queda: suas emoções, seu intelecto e sua vontade. Portanto, tudo precisa passar por uma transformação radical a fim de sermos conformados à semelhança de nosso Senhor Jesus Cristo. Em Romanos 12.3 somos chamados a pensar, pensar, pensar. É para isso que serve a nossa mente renovada. O cristianismo é racional, mas de uma forma totalmente diferente da forma do mundo.

O raciocínio cristão tem como base a convicção de que há um Deus, O qual é o nosso criador e redentor (Hebreus 11.1 e ss). O raciocínio cristão tem como base a convicção de que a Palavra de Deus é absolutamente verdadeira e digna de confiança. Deus tinha prometido a Abraão um filho por meio de Sara e por meio do qual as bênçãos seriam recebidas. Abraão creu em Deus (Gênesis 15:6). Deus também lhe disse para sacrificar esse filho. E Abraão pôs sua fé em Deus e O obedeceu, apesar do raciocínio humano questionar a sabedoria disso.

O raciocínio de Abraão também tinha como base sua experiência com Deus ao longo dos anos. Continuamente, Deus tinha provado ser seu provedor e protetor. O poder soberano de Deus tinha sido repetidamente demonstrado, mesmo no meio de pagãos como faraó e Abimeleque. Embora Abraão e Sara estivessem “praticamente mortos”, no que se referia a gerar filhos, Deus lhes deu o filho prometido (Romanos 4.19-21).

Talvez Abraão não compreendesse porque recebera uma ordem para sacrificar seu filho, e nem como Deus iria cumprir Suas promessas se ele obedecesse, mas ele conhecia Aquele que lhe dera a ordem. Ele sabia que Deus era santo, justo e puro. Ele sabia que Deus era capaz de ressuscitar os mortos. Com base nessas convicções, contrárias à sabedoria humana, mas totalmente baseadas no raciocínio cristão, ele obedeceu a Deus. O raciocínio cristão tem suas razões. Podemos não saber como ou porque, mas sabemos Quem e o quê. E isso é suficiente!

(5) Nosso texto nos ensina um belo princípio: “... No monte do SENHOR se proverá” (versículo 14).

No versículo 8, Abraão assegurou a Isaque que Deus proveria o cordeiro, e assim o Senhor fez (versículo 13). O princípio não é que Deus proverá em determinado lugar, e sim que proverá sob certa condição. Num momento de fé e obediência, num momento de desamparo e dependência, Deus proverá. Muitas vezes, creio, não vemos a provisão de Deus porque não chegamos ao ponto de desespero.

Lembro-me da história de dois marinheiros que, sozinhos, sobreviveram a um naufrágio. Eles ficaram à deriva no mar em uma jangada improvisada. Quando já tinham perdido todas as esperanças de serem resgatados, um disse ao outro que eles deveriam orar. Ambos concordaram e, quando um deles começou a clamar a Deus por ajuda, o outro o interrompeu, dizendo: “Espera aí, nem se incomode, acho que estou vendo um barco”.

Às vezes, Deus nos leva ao mesmo ponto a que levou Abraão no monte Moriá — a depender totalmente Dele. É nesse ponto que precisamos reconhecer Sua provisão. É aí que homens e mulheres devem chegar para serem salvos. Eles precisam ver a si mesmos como pecadores perdidos, merecedores da eterna ira de Deus. Eles precisam abandonar qualquer fé em si mesmos e qualquer obra que possam fazer para receber o favor de Deus. Eles precisam voltar-se somente para Ele para lhes prover o perdão de pecados e a justiça necessária para a salvação. A provisão de Deus já foi feita pela morte de Seu Filho sem pecado, Jesus Cristo, na cruz do Calvário, há mais de 2.000 anos. Meu amigo, se você atingiu o ponto de desespero, gostaria que soubesse que esse é também o ponto de auxílio e salvação. Lance toda a sua esperança sobre o Cristo do Calvário e, com certeza, você encontrará a salvação.

(6) Finalmente, esta passagem tem sido usada com um fim trágico, o sacrifício de nossos filhos e filhas sob o pretexto de obedecer a uma ordem divina. Deus nunca disse aos Seus santos para sacrificar suas famílias em prol de qualquer ministério ou chamado. É verdade que precisamos colocar Deus em primeiro lugar (Mateus 10.37), mas a obediência a Ele requer a provisão e instrução da nossa família (cf. 1 Timóteo 5.8; Efésios 6.4; 1 Timóteo 3.3-4, 12).

Muitos pais, como Abraão, pensam no futuro como algo ligado exclusivamente a seus filhos. Querem manipular suas vidas para que possam viver neles seus sonhos e esperanças. Precisamos entregar nossos filhos ao Senhor e submetê-los, e a nós também, ao Seu cuidado e providência. Só então, nós, e eles, encontraremos as bênçãos de Deus.

É com tristeza que devo admitir que o problema de Abraão é um tanto estranho à nossa época. Quase não precisamos nos preocupar com o apego exagerado aos filhos numa época em que a prática do aborto está desenfreada e pais e mães abrem mão de suas famílias por um estilo de vida mais livre. É nesse sentido que vemos a profecia sobre o fim dos tempos sendo cumprida em nosso meio:

Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes. (2 Timóteo 3.1-5)

No versículo 3, a primeira palavra, “desafeiçoados”, significa literalmente “sem amor pela família”. Esta é uma época em que a afeição natural dos pais está se tornando rara. Com certeza a volta do Senhor está próxima. Que Deus nos capacite a amar nossos filhos a tal ponto que entreguemos suas vidas nas mãos Dele.

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Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza


1 Neste capítulo, Tiago não está debatendo a teologia de Paulo, e sim ressaltando uma verdade complementar: embora as obras não possam salvar, uma fé operante realmente pode. A justificação sobre a qual Tiago fala no capítulo 2 não é diante de Deus, mas diante dos homens. A fé que uma pessoa tem em seu coração a justifica diante de Deus, mas a fé demonstrada em sua vida justifica sua profissão de fé diante dos homens.

2 As observações de Stigers, no entanto, são dignas de reprodução: “A frase “a cidade dos seus inimigos” (versículo 17) tem uma abrangência importante para o futuro do plano redentivo de Deus. Os outros elementos desse juramento/promessa, a numerosa descendência e a bênção sobre as nações, são os mesmos encontrados em 12:1-3; no entanto, a frase “a terra que te mostrarei/darei” agora é substituída por “possuirá a cidade dos seus inimigos”. Isso amplia o significado da promessa referente à terra: o de assumir o lugar e o poder dos povos anteriores. No entanto, a promessa não é limitada; pode ser qualquer inimigo, de qualquer época; a menos que Israel negue seu Deus (cf. Salmo 89:30-33). A frase denota a vitória final da santidade sobre todas as coisas, compartilhada pelo povo de Deus”. Harold Stigers, Comentário em Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 190-191.

3 “Portanto, logizomai significa: a) considerar, ponderar, julgar, calcular; b) considerar, deliberar, compreender, chegar a uma conclusão lógica, decidir”. J. Eichler, “Logizomai,” Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (Grand Rapids: Zondervan, 1978), III, p. 822-823.

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