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21. Nunca Diga Não (Gênesis 20:1-18)

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Introdução

Muitos cristãos se preocupam com seu “testemunho” perante o mundo, mas talvez seja por razões erradas. Apesar de ser importante que os crentes vivam de forma consistente com a vontade e a Palavra de Deus (cf. Romanos 6:1 e ss; Efésios 4:1 e ss; Colossenses 3:1 e ss; 1 Pedro 1:13 e ss), algumas vezes aplicamos mal essa verdade para fugir às nossas responsabilidades. Por exemplo, conheço pessoas que, assim como eu, são propensas a não falar sobre sua fé em Jesus Cristo por temer que seu testemunho seja tão pobre que os outros não queiram acreditar nEle. Quando a mensagem da nossa vida não condiz com a dos nossos lábios, deixamos de falar sobre a nossa fé em Cristo.

Muito embora devamos nos esforçar para viver de forma que desperte o interesse das outras pessoas por aquilo que nos torna diferentes como cristãos (Mateus 5:13-16; Colossenses 4:5-6; 1 Pedro 3:13 ss), nossas falhas não impedem, necessariamente, as pessoas de serem atraídas a Jesus Cristo como seu Salvador. Conheço um homem em nossa igreja que foi salvo pelo testemunho de um marinheiro bêbado. Esse meu amigo, na época um descrente, chamou a atenção de um cristão bêbado por causa do seu mau comportamento. O bêbado retrucou que, mesmo sendo uma desonra para o seu Senhor, sua salvação era eterna e segura. Meu amigo não conseguia imaginar como isso podia ser. Devido àquele cristão bêbado ter tanta certeza da sua segurança espiritual, meu amigo estudou as Escrituras sozinho para ver se isso seria possível. Como resultado, ele também foi salvo, até certo ponto pelo “testemunho” do marinheiro bêbado.

Ainda que esse tipo de conduta como cristão não seja recomendado, ou seja motivo de piada, a Bíblia mostra que, mesmo nos pontos mais baixos da nossa carreira cristã, Deus pode usar os Seus santos para atrair outras pessoas a Si. Tal foi o caso com Abraão, conforme registrado em Gênesis 20.

Deus tinha revelado a Abraão que ele seria pai de um filho por meio de Sara (17:15-19; 18:10). Abraão, ao saber da destruição iminente de Sodoma e Gomorra, intercedeu pelas cidades, em favor dos justos que ali habitavam (18:22 e ss). Deus lhe garantiu que se fossem encontrados pelo menos dez justos naquelas cidades, elas seriam poupadas (18:32). Apesar dos justos não terem sido encontrados e as cidades não terem sido poupadas, Ló e suas filhas foram salvos da destruição (capítulo 19). A devastação de Sodoma e Gomorra ocorreu sob o olhar vigilante de Abraão, que observava à distância (19:27-29).

Os capítulos 17 a 19 de Gênesis descrevem o ponto alto da vida do patriarca. Eis o homem de fé e intercessão que esperamos encontrar nas páginas da sagrada Escritura. O homem do capítulo 20, no entanto, está muito distante do patriarca e profeta das nossas expectativas. Comparado a ele, Abimeleque parece um santo. Apesar dessa triste situação, a graça de Deus é vista pela maravilha que ela é; não tanto a despeito do fracasso de Abraão, mas por causa dele. Abraão é uma testemunha involuntária da maravilhosa graça do Deus que salva e santifica homens e mulheres a despeito de si mesmos.

Abimeleque é Contido (20:1-7)

Por algum motivo não especificado1, Abraão deixou o Manre, indo para o sul, rumo a Cades, depois para noroeste, rumo a Gerar, não muito longe do Mar Mediterrâneo, na terra dos filisteus2. Em Gerar, Abraão voltou a cometer o mesmo pecado que tinha cometido logo no início de sua vida cristã (cf. 12:10 e ss). Uma vez mais, ele pediu a Sara para se passar por sua irmã, o que a fez ser levada para o harém de Abimeleque3, rei de Gerar4.

Críticos liberais se apressam em classificar os capítulos 12, 20 e 26 como narrativas diferentes do mesmo acontecimento. No entanto, essa posição não pode ser levada a sério: o texto é considerado fidedigno. As semelhanças são impressionantes, e são ressaltadas de propósito. Todavia, as diferenças entre os capítulos 12 e 20 são significativas. Vejamos algumas:

Capítulo 12

Capítulo 20

Lugar: Egito

Lugar: Gerar

Época: início da vida cristã

Época: vida cristã avançada

Rei: Faraó

Rei: Abimeleque

Reação de Abraão à repreensão: silêncio

Reação de Abraão à repreensão: pedido de desculpas

Consequência: Abraão deixa o Egito

Consequência: Abraão fica em Gerar

Temos todas as razões para concluir que são três acontecimentos, semelhantes em alguns detalhes, mas totalmente diferentes em muitos outros. As semelhanças têm o propósito de serem instrutivas. Mesmo cristãos maduros são atormentados por pecados do início da sua vida cristã (capítulo 20), e “a iniquidade dos pais” com certeza é visitada nos filhos (como no capítulo 26).

A situação neste ponto é bem mais crítica que no capítulo 12. Primeiramente, Deus tinha claramente revelado a Abraão e Sara que, juntos, eles teriam um filho por meio do qual as promessas da aliança seriam cumpridas. Além disso, a concepção dessa criança devia estar muito próxima, pois lhes fora dito que ela nasceria dentro de um ano (17:21; 18:10). O raciocínio humano teria considerado os perigos do capítulo 20 como coisa mínima, já que Sara há muito havia passado da idade de gerar filhos (17:17; 18:11, 13). Os olhos da fé, no entanto, teriam visto a questão sob uma ótica inteiramente diferente. Será que a fé de Abraão estava na maré baixa? Com certeza.

Abimeleque foi contido por Deus de duas maneiras. Primeira, Deus o advertiu em termos muito contundentes: “Vais ser punido de morte por causa da mulher que tomaste, porque ela tem marido” (Gênesis 20:3).

É evidente que Abimeleque só morreria se não voltasse atrás e devolvesse Sara intocada a Abraão. Deus lhe disse que ele seria um homem morto se não agisse logo e de acordo com a Sua orientação.

Segunda, Abimeleque e toda a sua casa foram fisicamente impedidos de pecar contra Sara, mesmo que quisessem:

Respondeu-lhe Deus em sonho: Bem sei que com sinceridade de coração fizeste isso; daí o ter impedido eu de pecares contra mim e não te permiti que a tocasses. Agora, pois, restitui a mulher a seu marido, pois ele é profeta e intercederá por ti, e viverás; se, porém, não lha restituíres, sabe que certamente morrerás, tu e tudo o que é teu… E, orando Abraão, sarou Deus Abimeleque, sua mulher e suas servas, de sorte que elas pudessem ter filhos; porque o SENHOR havia tornado estéreis todas as mulheres da casa de Abimeleque, por causa de Sara, mulher de Abraão (Gênesis 20:6-7, 17-18).

Por meio de uma doença física não revelada, ninguém da casa real seria capaz de conceber. Além disso, parece que toda atividade sexual foi proibida. Isso garantia a pureza de Sara, bem como impedia o nascimento de um filho de Abimeleque. A revelação recebida em sonho, portanto, explicou a ele o motivo da praga lançada sobre sua casa. Ela esclarece ainda o profundo temor dos servos de Abimeleque. Eles também sofriam com a desgraça que impedia a atividade sexual normal. Numa cultura que dava tanta importância a uma grande prole e à virilidade, a situação devia ser crítica. E era mesmo.

Apesar de ser ressaltado o perigo iminente para Abimeleque e sua casa, sua inocência também é demonstrada:

Ora, Abimeleque ainda não a havia possuído; por isso, disse: Senhor, matarás até uma nação inocente? Não foi ele mesmo que me disse: É minha irmã? E ela também me disse: Ele é meu irmão. Com sinceridade de coração e na minha inocência, foi que eu fiz isso (Gênesis 20:4-5).

Abimeleque, ao contrário de Abraão, não teve culpa nessa questão. Suas ações não foram intencionais, e foram tomadas com base nas falsas alegações de Abraão e Sara5. Deus reconheceu a inocência do rei, mas deixou bem claro que, sem a intervenção divina, ele teria cometido uma ofensa muito grave. A forma como Abimeleque cuidasse do assunto dali por diante iria determinar o seu destino. Protelar ou desobedecer significava morte certa.

Por mais estranho que pareça, Abimeleque foi muito superior a Abraão nesta passagem. Precisamos admitir que não há pecado em que o cristão não possa cair quando é desobediente e sem fé. Nessas ocasiões, os descrentes, com sua integridade e moralidade, dão um banho nos crentes (cf. 1 Coríntios 5:1 e ss).

Estranho nesta passagem não é o fato de Abraão regredir tanto no seu crescimento e maturidade como cristão. Pela minha experiência, sinto vergonha de admitir que isso é totalmente possível. No entanto, embora sua falta de fé não seja uma surpresa, a fidelidade de Deus para com ele nessa ocasião é surpreendente.

Se eu fosse Deus, a última coisa que teria pensado seria em revelar o meu relacionamento com Abraão. Mesmo se meu caráter exigisse que eu fosse fiel às minhas promessas, eu não teria dito a Abimeleque que Abraão era crente, embora carnal. No entanto, Deus mostrou que Abraão era objeto do Seu cuidado especial. Mais que isso, Abraão foi identificado como profeta (versículo 7)6. Ele era o representante de Deus e o intermediário por meio de quem Abimeleque devia ser curado.

Isso deve ter deixado Abimeleque com a pulga atrás da orelha. Como Abraão podia ser um homem de Deus e, ao mesmo tempo, um mentiroso? Abimeleque, no entanto, não teve oportunidade de tomar uma atitude punitiva, apesar dos problemas causados à casa real pela desobediência de Abraão. Abraão era a fonte do seu sofrimento, é verdade, mas era também a solução para ele. Ambos se encontravam numa situação bastante embaraçosa.

Abraão é Repreendido (20:8-16)

Abimeleque não perdeu tempo em fazer o que era certo diante de Deus. Ele se levantou bem cedinho e contou a essência do sonho àqueles da sua casa. Uma vez que todos foram afetados junto com ele, todos ficaram muito temerosos (versículo 8). Eles cuidariam para que as ordens do rei fossem seguidas à risca.

Depois de informar seus servos, Abimeleque convocou Abraão. Não foi uma situação agradável e Abraão foi severamente repreendido por sua mentira:

Que é isso que nos fizeste? Em que pequei eu contra ti, para trazeres tamanho pecado sobre mim e sobre o meu reino? Tu me fizeste o que não se deve fazer (Gênesis 20:9).

Abimeleque tinha sido ofendido por Abraão. Abraão não só errou aos olhos de Deus, mas também aos olhos dos pagãos. Ele, que devia ser fonte de bênção (12:2, 3), tornou-se uma proverbial dor de cabeça para aqueles em cuja terra ele peregrinava.

Vinte e cinco anos antes, Abraão tinha cometido um pecado quase idêntico. Naquele caso, não sabemos como faraó soube da verdade, nem há registro de um pedido de desculpas por parte de Abraão. Faraó só parecia interessado em vê-lo o mais longe possível da sua presença. Abimeleque não pediu a Abraão para partir, talvez por medo do que Deus poderia fazer pela falta de hospitalidade. O pedido de desculpas de Abraão, por mais fraco que seja, está registrado para nós:

Respondeu Abraão: Eu dizia comigo mesmo: Certamente não há temor de Deus neste lugar, e eles me matarão por causa de minha mulher. Por outro lado, ela, de fato, é também minha irmã, filha de meu pai e não de minha mãe; e veio a ser minha mulher. Quando Deus me fez andar errante da casa de meu pai, eu disse a ela: Este favor me farás: em todo lugar em que entrarmos, dirás a meu respeito: Ele é meu irmão (Gênesis 20:11-13).

Três razões são apresentadas para a farsa de Abraão, mas nenhuma delas explica satisfatoriamente sua atitude em Gerar. Primeira, Abraão estava com medo. Ele temia ser morto por causa da beleza de Sara e porque ela poderia ser tomada à força como esposa. Esse medo tinha como base uma falsa premissa teológica: Deus age apenas quando os homens estão dispostos a obedecer. Deus só poderia salvar Abraão em um lugar onde Ele fosse conhecido e temido pelas pessoas. A inferência é que onde os ímpios estão, a mão de Deus está encolhida e incapaz de salvar.

Esse tipo de teologia deve-se mais à falta de fé do que à ignorância. O temor de Abraão foi o mesmo de 25 anos antes. De acordo com sua teologia, Deus também não podia salvá-lo das mãos de faraó; mas Ele o salvou! Abraão fracassou devido à sua falta de fé, não porque estivesse desinformado.

Consequentemente, sua falta de fé desconsiderou uma revelação específica, pois pouco antes deste incidente Deus havia dito a ele duas vezes que Sara ficaria grávida e teria um filho dentro de um ano (17:19, 21; 18:10). Será que Abraão poderia encorajar Sara a ir para a cama com Abimeleque, sabendo que logo ela ficaria grávida e teria um filho? Creio que não. No entanto, se achassem que Sara estava com o “pé na cova” e não podia ter filhos, ela se tornaria parte do harém do rei, mas não seria levada à sério. Abraão deve ter pensado que Abimeleque ia fazer papel de bobo ao tomar como esposa uma mulher com idade suficiente para ser sua mãe.

Mais uma observação deve ser feita quanto aos temores de Abraão pela sua própria segurança. Sua conduta pouco difere da conduta Ló em Sodoma e Gomorra. Ló, quando convidou os estranhos para passar a noite em sua casa, garantiu-lhes sua proteção. Ao invés de quebrar esse compromisso, ele se dispôs a sacrificar a pureza das suas duas filhas virgens, entregando-as aos homens que estavam à sua porta. Abraão, temendo pela sua própria segurança, se dispôs a entregar sua esposa ao rei (ou a qualquer outro cidadão de Gerar) para se proteger.

A segunda razão para a farsa de Abraão é ainda menos satisfatória. O que ele disse, embora fosse mentira, tecnicamente era um fato. Sara era realmente sua irmã, filha de seu pai, mas não de sua mãe (versículo 12). Fatos podem ser, e frequentemente são, usados de forma a transmitir uma informação falsa. Estatísticas, às vezes, são empregadas desse jeito: sua cabeça está no freezer e seus pés no forno, mas, no geral, você está bem. Ela era mesmo sua irmã. Mas também sua esposa. Abraão tentou se defender com detalhes técnicos, não com a verdade.

Intitulei a terceira razão de “tradição”. Quando tudo o que usamos para justificar nossa forma de agir falha, podemos sempre recorrer àquele velho chavão: “Mas sempre fizemos assim”. Essencialmente, era isso o que Abraão estava dizendo. Sua atitude diante de Abimeleque não era para ser levada para o lado pessoal — era só norma da empresa. Essa norma tinha sido estabelecida muitos anos antes. Por que deveria ser mudada depois de tanto tempo?

Tendo examinado cada um dos três tópicos da defesa de Abraão, vamos considerar sua argumentação como um todo. Não há indicação de aceitação da responsabilidade pelo pecado, nem de tristeza ou arrependimento. Embora seus argumentos não nos convençam, assim como não impressionaram Abimeleque, eles pareciam satisfazer a Abraão.

Esta observação não me ocorreu imediatamente. Na verdade, foi um de meus amigos que a sugeriu depois que preguei este sermão no primeiro culto. Mas ele está absolutamente certo. Abraão, nesta passagem, se parece com um de nossos filhos quando é pego com a boca na botija. Ele fica triste por ter sido pego, mas não se arrepende do que fez.

Isso também explica a repetição deste pecado por Abraão e, tempos depois, por seu filho Isaque. Abraão não disse a si mesmo: “Não vou mais fazer isso de novo”, nem no Egito nem em Gerar. Em ambos os casos, ele escapou com a pureza da esposa intacta, e considerável lucro financeiro. Pelo que posso dizer, ele não viu sua farsa como pecado. Consequentemente, ela se repetiu nas gerações seguintes.

Não creio que Abimeleque tenha se impressionado com a explicação de Abraão. Todavia, Deus o tinha advertido severamente e ele sabia que Abraão era o único que podia interceder por ele para remover a praga que o impedia de ter filhos. Por causa disso, foi feita uma restituição.

Primeiro, Sara foi restituída ao marido, juntamente com ovelhas, bois e servos (versículo 14). Depois, foi feito um convite para Abraão se estabelecer onde quisesse naquela terra (versículo 15). Finalmente, Abraão recebeu mil peças de prata como símbolo da justificação de Sara (versículo 17). Portanto, a restituição de Sara a Abraão não foi porque ela era considerada inaceitável ou indesejável7.

Abimeleque é Curado (20:17-18)

Como deve ter sido humilhante para Abraão interceder em favor de Abimeleque. Um profundo senso de indignidade deve (ou pelo menos deveria) ter tomado conta dele. Com certeza, não foi a sua justiça que propiciou a cura divina. Como ministro do evangelho de Jesus Cristo, devo confessar que frequentemente sinto minha inadequação e indignidade. Os profetas, meus amigos, não são, necessariamente, as pessoas mais piedosas, nem os pregadores! O maior perigo enfrentado por pessoas em posição de proeminência e poder é começar a acreditar que a base da sua justiça é a sua fidelidade e grande espiritualidade. Sempre que somos usados por Deus, isso se deve única e exclusivamente à Sua graça.

Embora esta tenha sido uma época muito triste na vida do escolhido de Deus, ela foi necessária, pois preparou o terreno para o capítulo seguinte, onde o filho prometido é concedido. A promessa de Deus a Abraão foi mantida porque Deus é fiel, não porque Abraão fosse fiel. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito”, nas palavras da Escritura, são lá do alto” (Tiago 1:17). Foi assim com Isaque.

Quando Abraão orou, os ventres da casa de Abimeleque foram abertos para poderem gerar filhos novamente. Assim, o ventre de Sara também ia ser aberto. O filho prometido logo iria nascer.

Conclusão

É bem verdade que o erro de Abraão ocorreu numa cultura e numa época estranhas aos cristãos atuais. Apesar disso, seus problemas não eram diferentes dos nossos (cf. Tiago 5:17), e os princípios encontrados em Gênesis 20 são tão verdadeiros hoje quanto foram séculos atrás. Deus não mudou, muito menos o homem. Vamos dedicar alguns momentos para considerar as lições que podemos aprender com este incidente na vida de Abraão.

(1) A falibilidade dos santos. Sei que há quem ensine um perfeccionismo impecável, mas não consigo entender por quê. O velho homem, apesar de espiritualmente morto, ainda está bem vivo e ativo. Embora estejamos vivendo a vida vitoriosa de Romanos 8, a maioria de nós quase sempre se encontra no capítulo 7. Com Abraão, o amigo de Deus, não foi diferente.

Uma posição privilegiada não impede o fracasso. Abraão era um eleito, um escolhido de Deus, mas ainda tropeçava e caía. Ele era um profeta de Deus, mas isso não o tornava mais crente que os outros. Abraão prosperou tanto no Egito como em Gerar, mas não foi por ter alcançado um nível mais alto de espiritualidade. A doutrina mais perigosa para os cristãos é aquela que sugere que eles podem viver acima da tentação e do fracasso, mesmo depois de anos de serviço ou em uma posição privilegiada.

(2) Nossa desobediência quase sempre é camuflada por desculpas que todo mundo vê, menos nós. É fácil perceber que as três desculpas apresentadas por Abraão são uma farsa, mesmo assim variações desses mesmos temas ainda servem como justificativa para muita coisa errada que fazemos.

A primeira desculpa é a ética circunstancial, um sistema de ética baseado na negação da existência de Deus ou na Sua incapacidade de agir em favor do homem. O circunstancialismo sempre apresenta um dilema onde a única alternativa é agir de forma pecaminosa. Nesses casos, somos forçados a decidir com base no menor dos males.

Primeira Coríntios 10:13 afirma categoricamente que a premissa sobre a qual o circunstancialismo está fundamentado é errada. Este versículo nos ensina que Deus nunca coloca o cristão em situação em que ele ou ela deva pecar. Aquilo que tememos é sempre produto da nossa imaginação, não da realidade. Abraão temia ser morto por alguém que quisesse levar sua esposa. Isso nunca aconteceu, nem há registro de qualquer situação na qual isso fosse pelo menos uma remota possibilidade. A fé em um Deus que é soberano em todas as circunstâncias nos impede de ficar flertando com atitudes pecaminosas, as quais supostamente irão nos livrar das situações de emergência — aquelas em que a piedade deve ser deixada de lado.

A segunda desculpa é usar detalhes técnicos ao invés da verdade. A informação dada por Abraão a Abimeleque era totalmente factual (versículo 12). Sara era sua irmã. Mas o que Abraão não disse a ele tornou tudo uma mentira. Ela era sua esposa, e também sua irmã.

Muitas vezes, escondemos as coisas para permitir que as pessoas tirem suas próprias conclusões ou tenham a impressão errada dos fatos. Queremos dar a ideia de que somos espirituais, quando não somos. Tentamos parecer felizes, quando nosso coração está partido. Tentamos parecer sofisticados, quando estamos desesperados e deprimidos. Fé é enfrentar a realidade e lidar abertamente com os outros, mesmo quando a verdade parece nos colocar em perigo ou nos deixar vulneráveis.

A terceira desculpa, muito comum, é a tradição. “Mas a gente sempre fez assim”. Essa foi a desculpa de Abraão. Tudo o que ela indica é a nossa persistência em pecar. Como meu tio costumava dizer das pessoas que sempre tinham algo bom a dizer sobre os outros: “Ela diria que até o diabo é persistente”. Não é que a tradição seja errada, mas ela também não torna uma prática correta.

(3) Nossos erros nunca irão impedir alguém de ter fé em nosso Senhor. Embora Abraão não estivesse ansioso para falar a Abimeleque sobre a sua fé, Deus não hesitou em reconhecê-lo como indivíduo e profeta. Por que Deus não ficou quieto sobre seu relacionamento com Abraão? Será que o débil testemunho de Abraão não afastaria Abimeleque de Deus?

Seria de esperar que a reação de Abimeleque ao pecado de Abraão fosse como a de muitas pessoas da nossa época: “A igreja está cheia de hipócritas. Se cristianismo é isso, prefiro não ser cristão”. Esse tipo de desculpa não é melhor que a de Abraão.

O erro de Abraão deu a Abimeleque a melhor razão do mundo para ser crente em Deus: o Deus de Abraão era um Deus de graça, não de obras. O Deus de Abraão não só o salvou sem levar em conta as suas obras (cf. Gênesis 15:6; Romanos 4), como também o preservou sem levá-las em conta. A fé de Abraão estava em um Deus cujos dons e bênçãos não têm como base a nossa fidelidade, e sim a Sua. Homens e mulheres não estão à procura de uma religião água com açúcar, mas uma que lhes garanta a salvação a despeito da sua condição espiritual naquele momento. O tipo de fé que Abraão tinha é o tipo que as pessoas almejam, uma que faça as coisas mesmo quando não fazemos.

(4) A graça de Deus e a segurança eterna do crente. Isso nos leva ao nosso último ponto: o cristão está eternamente seguro apesar de seus fracassos na fé. De acordo com a Escritura, o retrocesso nunca é incentivado, nunca é contemplado e nunca é destituído de dolorosas consequências. Contudo, o retrocesso nunca custará ao cristão a sua salvação. A salvação oferecida por Deus aos homens é eterna. Se alguém deveria perder sua salvação, esse alguém era Abraão, mas ele continuou filho de Deus.

Mas que cenário o capítulo 20 é para o capítulo 21! Esperávamos que Isaque fosse concebido no ponto mais alto da vida de Abraão e Sara, mas não foi assim. Esperávamos que, pelo menos, a falta de fé de Abraão fosse desmascarada e, finalmente, superada no capítulo 20, mas isso não aconteceu. Na verdade, Abraão nem mesmo reconheceu a pecaminosidade das suas ações.

Deus abençoou Abraão, deu-lhe riqueza (Gênesis 12:16,20; 13:1-2; 20:14-16) e o filho que prometera (Gênesis 21:1 e ss). Deu-lhe também uma posição privilegiada (Gênesis 20:7, 17-18). Todas essas bênçãos foram dons da graça de Deus, não recompensas pelas boas obras de Abraão. Ao final do capítulo, devemos concluir com as palavras de Kidner:

Depois de todo seu empenho espiritual, a recaída de Abraão no mesmo esquema de falta de fé, assim como em outros momentos de anticlímax (ver 12:10 e ss e capítulo 16), traz sua própria advertência. No entanto, o episódio é principalmente de suspense: às vésperas do nascimento histórico de Isaque, a própria Promessa é colocada em risco, em troca de segurança pessoal. Se a promessa tiver de ser cumprida, terá de ser pela graça de Deus8.

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Tradução: Mariza Regina de Souza


1 Embora a partida de Abraão do Manre não seja explicada, creio que o capítulo 19 nos dá uma boa pista dos motivos da sua mudança. De alguma forma, a devastação das cidades do vale devem ter afetado sua enorme criação de gado. É provável também que a disponibilidade de grama e água tenha sido a causa das suas outras mudanças.

2 A menção dos filisteus em 21:32 tem sido alvo dos críticos. Mas isso é impossível e, portanto, um erro, pois os filisteus só ocuparam a terra depois de Moisés, dominando a Palestina por volta de 1175 aC. Parece que a melhor explicação para o problema é vermos esses primeiros filisteus como uma onda inicial de migrantes que prepararam o terreno para os imigrantes posteriores, mais hostis, identificados biblicamente como filisteus. Para uma discussão mais prolongada deste assunto, ver Harold G. Stigers, Comentário de Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 181-182. Kidner resume sucintamente a questão:

“Os filisteus chegaram em massa na Palestina no começo do século doze; o grupo de Abimeleque terá sido precursor, talvez durante um período comercial”. Derek Kidner, Gênesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 142.

3 Abimeleque é considerado o nome de um ofício, como faraó, não o nome de uma pessoa. É difícil saber ao certo se ele é um pagão virtuoso ou um verdadeiro crente no Deus de Abraão.

4 Algumas pessoas se admiram do fato de Sara ser tão atraente aos 90 anos de idade a ponto de ser desejada como esposa (ou concubina). É preciso lembrar que a vida dos homens e mulheres daquela época era mais longa do que agora. Abraão viveu até os 175 anos (25:7) e Sara até os 127 (23:1). Além disso, para poder gerar um filho, o envelhecimento normal deve ter sido retardado. O texto deixa a impressão de que Abraão temia por sua segurança por causa da beleza de Sara. Creio que devemos aceitar isso de forma literal; o que não significa que não houvesse outras razões para Sara ser levada. Abraão era um homem de riqueza e poder. As alianças eram feitas por meio de casamentos; por isso, Abimeleque tinha muitas razões para se casar com Sara.

5 Alguns sugerem que Sara não teve culpa ao confirmar as mentiras de Abraão. Dizem que ela simplesmente foi submissa e Abraão levou sua culpa e a dela. Não vejo evidência bíblica para esse tipo de afirmação. Sara é elogiada na Escritura por sua submissão obediente. A referência de Pedro, no entanto, não é à sua mentira no capítulo 20, mas à reverência para com seu marido no capítulo 18 (versículo 12). Naquele capítulo, já em idade avançada e numa época em que a promessa de um filho parecia inacreditável, ela ainda se referia a Abraão com profundo respeito, como demonstrado em suas palavras: “Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer?” (Gênesis 18:12). Além do mais, Pedro, mesmo elogiando a obediência de Sara, define cuidadosamente o tipo de obediência que é aceitável e agradável a Deus: “como fazia Sara, que obedeceu a Abraão, chamando-lhe senhor, da qual vós vos tornastes filhas, praticando o bem e não temendo perturbação alguma”. A mentira de Abraão, e a participação de Sara, era baseada em medo, e Moisés deixou bem claro que isso não era certo, mesmo aos olhos de um pagão. Embora o espírito obediente de Sara tenha sido elogiado, sua mentira não. Devemos sempre obedecer a Deus, não aos homens (Atos 5:29). Submissão é obedecer quando, em nossa opinião, a atitude é insensata; não é participar daquilo que sabemos, pela Palavra de Deus, ser errado. Na cadeia bíblica de comando, a vontade revelada de Deus é suprema, e é maior que todos os outros níveis de autoridade quando estão em conflito direto com ela.

6 Muito embora Abraão não se encaixe na concepção normal de profeta bíblico, essa designação é adequada. Ele realmente, em consonância com a palavra hebraica nabhi, serve como porta-voz ou alguém que fala por Deus (cf. Êxodo 4:16; 7:1). Além do mais, um profeta muitas vezes intercedia pelos outros (cf. Deuteronômio 9:20; 1 Samuel 7:5). Nos dois sentidos Abraão foi profeta, apesar de não ter predito o futuro.

7 Stigers sugere que 1000 peças de prata era, na verdade, o valor do gado recebido:

“Aqui são descritos os resultados do incidente apresentado nos versículos 1 a 7. No versículo 16, há a questão específica do dinheiro, que pode ser um valor homólogo ao valor dos animais e servos recebidos por Abraão expresso de forma judicial. O recebimento dos animais, de fato, é um acordo pecuniário para garantir que nenhum recurso legal seja impetrado por Abraão contra Abimeleque no futuro”. Stigers, Gênesis, p. 180. Kidner, com seu costumeiro estilo conciso, diz: “Ao oferecer uma compensação, Abimeleque reconhece seu erro (embora o termo ‘teu irmão’ saliente novamente sua inocência) e, aceitando a compensação, Abraão reconhece que o assunto está encerrado” (Kidner, Gênesis, p. 139).

8 192 Ibid., p. 137

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