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12. O Chamado de Abrão (Gênesis 11:31 - 19:9)

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Introdução

O capítulo 12 inicia uma nova divisão no livro de Gênesis. Os primeiros onze capítulos costumam ser chamados de “história primitiva”. Os últimos capítulos são conhecidos como “a história dos patriarcas”. Enquanto o efeito do pecado do homem se tornou cada vez mais abrangente, o cumprimento da promessa de Deus de Gênesis 3:15 se tornou cada vez mais seletivo. O Redentor devia vir do descendente da mulher (Gênesis 3:15), depois dos descendentes de Sete, de Noé e então de Abraão (Gênesis 12:2-3).

Teologicamente, Gênesis capítulo 12 é uma das passagens-chave do Antigo Testamento, pois contém aquilo que é chamado de a Aliança Abraâmica. Esta aliança é a linha que une todo o Antigo Testamento. Ela é crucial para o entendimento correto das profecias da Bíblia.

Em Gênesis capítulo doze não só chegamos a uma nova divisão e a uma importante aliança teológica, mas, acima de tudo, a um grande e piedoso homem — Abraão. Quase um quarto do livro de Gênesis é dedicado à vida deste homem. Mais de 40 referências são feitas a ele no Antigo Testamento. É interessante observar também que o Islã considera Abrão o segundo homem mais importante depois de Maomé, sendo que o Alcorão se refere a ele 188 vezes1.

O Novo Testamento também não diminui a importância da vida e do caráter de Abraão. Há cerca de 75 referências a ele no Novo Testamento. Paulo o escolheu como o melhor exemplo de um homem que é justificado diante de Deus pela fé e não pelas obras (Romanos 4). Tiago se refere a ele como um homem que demonstrou sua fé diante dos homens por suas obras (Tiago 2:21-23). O escritor aos Hebreus o cita como exemplo de alguém que andou pela fé, dedicando mais espaço a ele do que a qualquer outro indivíduo no capítulo onze (Hebreus 11:8-19). Em Gálatas, capítulo 3, Paulo escreve que os cristãos são “filhos de Abraão” pela fé, e por isso, herdeiros legítimos das bênçãos prometidas a ele (Gálatas 3:7-9).

Ao voltar nossa atenção para o capítulo 12 de Gênesis, vamos fazê-lo com o objetivo de ver Abraão como um exemplo de quem anda pela fé. Em especial, quero ressaltar o processo empregado por Deus para fortalecer sua fé e fazê-lo o homem temente que ele se tornou. Muitos dos erros mais comuns nos círculos cristãos a respeito da natureza de uma vida de fé podem ser corrigidos com o estudo da vida de Abraão.

As Circunstâncias Envolvidas no Chamado de Abrão (Josué 24:2-3, Atos 7:2-5)

Moisés não nos dá todas as informações necessárias para compreendermos totalmente a importância do chamado de Abrão, mas isso está registrado na Bíblia para nós. Estêvão esclarece a época em que Abrão recebeu o primeiro chamado de Deus. Não foi em Harã, como uma leitura casual de Gênesis pode nos levar a crer, mas em Ur. Quando Estêvão estava diante de seus incrédulos irmãos judeus, ele recontou a história do povo escolhido de Deus, começando pelo chamado de Abraão:

Estêvão respondeu: Varões, irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu à Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei.  (Atos 7:2-3)

Apesar de nem todos os estudiosos da Bíblia concordarem com a localização de Ur2, a maioria aceita a Ur da Mesopotâmia meridional, onde costumava ser a costa do Golfo Pérsico. O sítio da grande cidade foi descoberto em 1854, e desde aquela época tem sido escavado, revelando muitas coisas sobre os tempos de Abrão3. Embora o verdadeiro período de sua vida em Ur possa ser matéria de discussão, podemos dizer com certeza que a ostentação da cidade como uma civilização altamente desenvolvida era justificada. Existem amplas evidências de grandes fortunas, artesanato elaborado e ciência e tecnologia avançadas4. Tudo isso nos diz alguma coisa sobre a cidade que Abrão recebeu ordens para deixar. Nas palavras de Vos,

Independentemente de quando Abraão saiu de Ur, ele deu as costas a uma grande metrópole, iniciando sua jornada de fé para uma terra sobre a qual pouco ou nada sabia e que, provavelmente, tinha muito pouco a lhe oferecer do ponto de vista material5.

Se a cidade onde Abrão vivia era grande, o lar que ele deixou pra trás parece não ter sido muito piedoso. Poderíamos presumir que Terá fosse um homem temente a Deus, que educou seu filho, Abrão, para crer no único Deus, diferente das pessoas da sua época; mas as coisas não foram bem assim. No final da sua vida, Josué, em suas palavras de despedida, nos dá uma compreensão melhor do caráter de Terá:

Então, disse Josué a todo o povo: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Antigamente, vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates e serviram a outros deuses. (Josué 24:2)

Portanto, até onde podemos dizer, Terá era idólatra, tal como as outras pessoas da sua geração. Não é de admirar que Deus tenha mandado Abrão deixar a casa de seu pai (Gênesis 12:1)!

A idade de Abrão também não era um fator favorável para deixar Ur e ir para um lugar desconhecido. Moisés nos diz que ele tinha 75 anos quando entrou em Canaã. Pense nisso. Abrão já devia estar no seguro social há mais de dez anos. Para ele, a “crise da meia idade” era coisa do passado. Em vez de pensar numa nova terra e numa nova vida, a maioria de nós estaria pensando em termos de uma cadeira de balanço e uma casa de repouso.

Não somos propensos a nos impressionar com a idade de Abrão devido à longa vida dos homens dos tempos antigos, mas Gênesis capítulo onze nos informa que a longevidade do homem tinha sido muito maior no passado do que era na época de Abrão. Ele morreu com 175 anos (25:7-8), pouco mais do que Sem (11:10-11) ou Arfaxede (11:12-13). Um dos propósitos da genealogia do capítulo onze é informar que os homens estavam vivendo menos e tendo filhos mais jovens. Abrão não era, em linguagem coloquial, algum “franguinho” quando deixou Harã e foi para Canaã.

Tudo isto nos leva a pensar nas objeções e empecilhos que deviam estar em sua cabeça quando ele recebeu o chamado de Deus. Ele partiu de Harã não porque fosse a coisa mais fácil a fazer, mas porque esse era o intento de Deus. Com isso, não desejo glorificar a fé de Abrão, pois, como veremos, no começo ela era muito fraca. Nos estágios iniciais da sua vida, a maioria dos obstáculos foram superados pela iniciativa de Deus. E é isso o que veremos.

A Ordem de Deus

O chamado de Abrão está registrado em Gênesis 12:1: “Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei”.

Uma interpretação melhor da primeira sentença deste chamado se encontra nas versões King James e Nova Versão Internacional6, onde se lê: “O Senhor dissera a Abrão...”

A diferença é importante. Sem ela somos levados a pensar que o chamado de Abrão veio em Harã, não em Ur. Mas nós sabemos, pelas palavras de Estêvão, que seu chamado ocorreu em Ur (Atos 7:2). O passado mais que perfeito (dissera ou tinha dito) é tanto gramaticalmente correto quanto exegeticamente necessário. Ele nos diz que os versículos 27 a 32 do capítulo 11 são parentéticos7, e não estão estritamente em ordem cronológica.

O chamado de Abrão ocorreu juntamente com uma aparição de Deus8. Embora Moisés só mencione essa aparição quando Abrão já estava em Canaã (12:7), Estêvão nos diz que Deus apareceu a ele ainda em Ur (Atos 7:2). Mesmo com todas as objeções que poderiam ser levantadas por Abrão, essa aparição não devia ser incomum. Deus também apareceu a Moisés na época do seu chamado (Êxodo 3:2, etc).

Em certo sentido, a ordem de Deus a Abrão foi muito específica. Ele recebeu instruções detalhadas do que precisava deixar pra trás. Ele precisava deixar sua terra, seus parentes e a casa de seu pai. Deus ia formar uma nova nação, não só dar um jeito em alguma já existente. Quase nada da cultura, religião ou filosofia do povo de Ur faria parte daquilo que Deus planejava fazer com Seu povo, Israel.

Por outro lado, a ordem de Deus também foi deliberadamente vaga. Enquanto o que precisava ser deixado pra trás ficou muito claro, o que estava por vir era dolorosamente desprovido de detalhes: “... para a terra que eu te mostrarei”.

Abrão não sabia nem mesmo onde se estabeleceria. Como o escritor de Hebreus coloca: “...e partiu sem saber para onde ia” (Hebreus 11:8).

A fé à qual somos chamados não é em algum plano, mas em uma pessoa. Mais importante do que onde ele estava, Deus estava interessado em quem ele era, e em Quem confiava. Deus não Se preocupa tanto com geografia quanto com santidade.

A relação entre a ordem de Deus a Abrão no versículo um e o incidente em Babel no capítulo onze não deve passar em branco. Em Babel, os homens preferiram desprezar a ordem de Deus para se dispersar e povoar a terra. Eles se esforçaram para encontrar segurança e renome juntando-se e tentando construir uma grande cidade (11:3-4). Eles buscaram bênção no fruto do seu próprio labor em vez de buscarem na promessa de Deus.

A ordem de Deus a Abrão, na verdade, é uma reversão daquilo que o homem tentou fazer em Babel. Abrão estava seguro e confortável em Ur, uma grande cidade. Deus o chamou para deixar aquela cidade e trocar sua casa por uma tenda. Deus lhe prometeu um grande nome (aquilo que as pessoas de Babel procuravam, 11:4) em consequência de sair de lá, deixar a segurança da sua parentela e confiar somente nEle. Como são diferentes os caminhos do homem dos caminhos de Deus!

A Aliança com Abrão (12:2-3)

Tecnicamente, a aliança com Abrão não se encontra no capítulo 12, mas nos capítulos 15 (versículo 18) e 17 (versículos 2, 4, 7, 9, 10, 11, 13, 14, 19, 21), onde a palavra aliança aparece. É lá que os detalhes específicos são enunciados. Aqui, no capítulo doze, são apresentadas apenas suas características gerais.

Há três promessas principais contidas nos versículos 2 e 3: uma terra, uma descendência e uma bênção. A terra, como já dissemos, está implícita no versículo 1. Na época do chamado de Abrão, ele não sabia onde ficava essa terra. Em Siquém, Deus prometeu-lhe dar “esta terra” (12:7). Até o capítulo 15 não havia uma descrição detalhada da terra que ele recebeu:

Naquele mesmo dia, fez o Senhor aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates... (Gênesis 15:18)

A terra não pertenceu a Abrão em vida, conforme Deus tinha dito (15:13-16). Quando Sara morreu, ele teve de comprar um pedaço de terra para sua sepultura (23:3 e ss). Agora, aqueles que primeiramente leram o livro de Gênesis estavam prestes a tomar posse do lugar prometido a Abrão. Como deve ter sido emocionante para as pessoas dos dias de Moisés ler a promessa e perceber que o tempo de possuir a terra tinha chegado.

A segunda promessa da aliança Abraâmica era que uma grande nação viria de Abrão. Já mencionamos a importância do Salmo 127 com relação aos esforços do homem em Babel. Bênçãos verdadeiras não vêm do trabalho árduo e das horas penosas de labor, mas do fruto da intimidade, ou seja, dos filhos. A bênção de Abraão seria vista mais amplamente em seus descendentes. Eis o fundamento para o “grande nome” que Deus lhe daria.

Essa promessa exigia fé da parte de Abrão, pois era óbvio que ele já era idoso e Sarai, sua esposa, não podia de ter filhos (11:30). Ainda se passariam muitos anos até Abrão entender totalmente que o herdeiro prometido por Deus viria de sua união com Sarai.

A última promessa era a da bênção — bênção para ele e bênção por meio dele. Muitas das bênçãos de Abrão viriam na forma da sua descendência, mas havia também a bênção que viria na forma do Messias, O qual traria salvação para o povo de Deus. A respeito dessa esperança, nosso Senhor, o Messias, disse: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8:56).

Além disso, Abrão estava destinado a se tornar bênção para pessoas de todas as nações. A bênção viria por meio dele de várias formas. Quem reconhecesse a mão de Deus sobre ele e seus descendentes seria abençoado pelo contato com eles. Faraó, por exemplo, foi abençoado por exaltar José. Pessoas de todas as nações seriam abençoadas pelas Escrituras que, em grande parte, vieram pela instrumentalidade do povo judeu. Finalmente, o mundo todo seria abençoado pela vinda do Messias, O qual veio salvar pessoas de todas as nações, não só os judeus:

Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão (Gálatas 3:7-9).

A Complacência de Abrão (Gênesis 11:31-32, 12:4-9)

Fico muito preocupado com a exaltação de heróis, principalmente de heróis cristãos. Os gigantes da fé parecem ser personagens excelentes, sem nenhuma falha evidente, como máquinas de disciplina e fé infalível. Não encontro esse tipo de gente na Bíblia. Os heróis da Bíblia são homens “sujeitos a paixões” (Tiago 5:17) e com pés de barro. Este é o meu tipo de herói. Posso me identificar com homens e mulheres assim. E, o mais importante, posso encontrar esperança para uma pessoa como eu. Não é de admirar que homens como Pedro, e não Paulo, sejam nossos heróis, pois podemos nos ver neles. 

Abrão era um homem como você e eu. O relato de Moisés de seus primeiros passos na fé deixa claro que ele deixou muito a desejar e que muita coisa poderia ser desenvolvida nele. Deus o chamou em Ur, mas ele não deixou a casa de seu pai ou sua parentela. Depois, ele saiu de Ur e foi para Harã, mas, ao que me parece, foi só porque seu pai pagão decidiu sair de lá. Talvez fatores políticos ou econômicos tenham influenciado na mudança, sem qualquer conotação espiritual.

Os primeiros passos de Abrão não foram decididos ou piedosos, foram mais uma reação passiva a forças externas. Deus providencialmente levou Terá a arrancar suas raízes de Ur e se mudar para Canaã (11:31). Por algum motivo, ele e sua família fizeram uma parada perto de lá e acabaram ficando em Harã. E, já que Abrão não queria, ou não podia, deixar a casa de seu pai, Deus levou seu pai à morte (11:32). Assim, Abrão obedeceu a Deus pela fé e entrou em Canaã, mas só depois de algumas medidas consideráveis terem sido tomadas por Deus.

Não estou dizendo que Abrão não obedeceu a Deus pela fé, mas foi uma fé muito fraca, e muito tardia. Contudo, será que essa afirmação contradiz as palavras da Escritura? Seria inconsistente com as palavras do escritor aos Hebreus?

Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber aonde ia. (Hebreus 11:8)

Pelo menos duas coisas precisam ser ditas em resposta a essa questão. Primeiro, a ênfase de Hebreus 11 está na fé. O escritor queria ressaltar os aspectos positivos da jornada cristã, não suas falhas. Portanto, as falhas não são mencionadas. Segundo, coerente com esta abordagem, o autor não diz quando Abrão obedeceu. Ele simplesmente escreveu: “...Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir”. É preciso lembrar que Abrão realmente foi para Canaã, assim como Moisés foi para o Egito, mas não sem uma considerável pressão da parte de Deus.

Não devemos achar que isso seja desanimador, e sim compatível com a nossa própria relutância em arriscar o nosso futuro com uma fé ativa, agressiva e inquestionável. Abraão foi um homem de grande fé — após anos de provações dadas por Deus. Contudo, na época do seu chamado, ele era um homem cuja fé era muito pequena; verdadeira, mas pequena. E, se formos honestos conosco mesmos, é exatamente assim com a maioria de nós. Em nossos melhores momentos, nossa fé é vibrante e cheia de fervor, mas nos momentos de provação, é fraca e cheia de falhas.

Uma vez em Canaã, a rota tomada por Abrão é digna de nota. Em primeiro lugar, é preciso dizer que era uma rota esperada se ele fosse naquela direção. Uma olhada no mapa do mundo antigo do tempo dos patriarcas indica que ele viajou por estradas bem movimentadas da sua época9. A rota tomada por ele era muito utilizada pelos comerciantes daqueles dias.

Creio ser esta uma observação importante, pois muitos cristãos parecem sentir que o jeito de Deus é meio bizarro ou incomum. As pessoas não esperam que Deus as guie de forma normal e previsível. A lição a ser aprendida é esta: muitas vezes a maneira como Deus quer que façamos as coisas é a mesma que, de qualquer forma, teríamos escolhido usando o bom senso. Só quando Ele quer nos afastar do esperado é que devemos buscar orientação espetacular ou incomum10.

Cassuto sugere que os lugares mencionados (Siquém, Betel e o Neguebe) são muito importantes. Ele acredita que a terra foi, então, dividida em três regiões: a primeira estendendo-se da extremidade norte até Siquém, a segunda, de Siquém a Betel, e a terceira, de Betel ao limite sul.

Jacó, depois de retornar de Padã-Harã, primeiro foi a Siquém (33:18). Depois, foi instruído a subir a Betel (35:1, cf. versículo 6). Tanto em Siquém quanto em Betel ele edificou altares, como Abrão, seu avô (33:20, 25:7).

Quando Israel entrou em Canaã, para tomar posse da terra sob a liderança de Josué, essas mesmas cidades-chave foram capturadas.

Assim Josué os enviou, e eles se foram à emboscada, colocando-se entre Betel e Ai, ao ocidente de Ai; porém Josué passou aquela noite no meio do povo. (Josué 8:9)

Então, Josué edificou um altar ao Senhor, Deus de Israel, no monte Ebal. (Josué 8:30)

Cassuto conclui que a jornada errante de Abrão delineou o território que iria pertencer a Israel, e os lugares onde ele parou prognosticaram a conquista da terra11. Em um comentário adicional, ele acrescenta que esses lugares também foram centros religiosos da adoração dos cananeus12. Na verdade, ao erigir os altares e proclamar o nome do Senhor, Abrão profetizou o tempo em que a verdadeira adoração iria sobrepujar a religião pagã dos cananeus. Muito embora o exato significado da expressão “invocou o nome do Senhor” não seja conhecido, com certeza é uma descrição de adoração. É difícil acreditar que o ato público de adoração feito por Abrão não tenha sido visto ou observado com especial interesse pelos cananeus. Pessoalmente, creio que Abrão desempenhou um certo tipo de papel missionário. Como tal, esse teria sido um ato decorrente da fé.

Conclusão: Características de uma Vida de Fé

Desses primeiros estágios do crescimento de Abrão na graça de Deus, podemos encontrar muitos princípios que representam a jornada da fé em todas as gerações, e com certeza na nossa também.

(1) A fé de Abrão começou pela iniciativa de Deus. A soberania de Deus na salvação é belamente ilustrada no chamado de Abrão. Abrão veio de um lar pagão. Pelo nosso conhecimento, ele não tinha nenhuma qualidade espiritual que levasse Deus a ele. Deus, em Sua graça eletiva, escolheu Abrão para segui-lO enquanto ele ainda andava em seus próprios caminhos. Abrão, como Paulo, e os verdadeiros crentes de todas as épocas, reconheceu que foi Deus Quem o buscou e o salvou, com base na Sua graça.

(2) A obra soberana de Deus continuou ao longo da vida espiritual de Abrão. Deus não é soberano somente na salvação, mas também no processo de santificação. Se a vida espiritual de Abrão dependesse somente da sua própria fidelidade, sua história logo teria chegado ao fim. Após chamar Abrão, foi Deus quem, pela Sua providência, o levou a deixar sua casa e sua terra natal e entrar em Canaã. Graças a Deus porque nossa vida espiritual, no final das contas, depende da Sua fidelidade e não da nossa!

(3) A jornada cristã é uma peregrinação. Abraão viveu como peregrino, esperando a cidade de Deus:

Pela fé, peregrinou na terra da promessa como em terra alheia, habitando em tendas com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11:9-10)

Nosso lar permanente não se encontra neste mundo, mas naquele por vir, na presença de nosso Senhor (cf. João 14:1-3). Esta é a mensagem do Novo Testamento (cf. Efésios 2:19, I Pedro 1:17, 2:11).

A tenda, portanto, é o símbolo do peregrino. Ele não investe naquilo que não vai durar. Não ousa ficar muito ligado ao que não pode levar consigo. Nesta vida não podemos esperar ter plenamente aquilo que se encontra no futuro, só um pequeno vislumbre. A vida cristã não é conhecer exatamente o que o futuro reserva, mas conhecer Aquele que é dono do futuro.

(4) A jornada cristã tem suas raízes na confiabilidade da Palavra de Deus. Quando paramos para pensar, vemos que Abrão não tinha qualquer prova concreta, tangível, de uma vida de bênçãos à sua frente, fora de Ur e longe da sua família. Tudo o que ele precisava era confiar em Deus, O qual Se revelara a ele.

No final das contas, isso é tudo que qualquer um precisa. Existem, é claro, evidências para uma fé racional, mas no fundo, no fundo, precisamos simplesmente acreditar no que Deus nos diz em Sua Palavra. Se Sua “Palavra não é verdadeira e confiável, então, nós, somos os mais infelizes de todos os homens”.

Mas seria isso suficiente? Que mais poderíamos querer além da Palavra de Deus? Outro dia ouvi um pregador colocar isso de forma muito clara. Ele citou o tão batido: “Deus disse. Eu acredito. É assim”. Ele disse que poderia até ser mais conciso: “Deus disse, é assim, acredite ou não”. Gosto disso. A Palavra de Deus é suficiente para a fé do homem.

Deus disse que todos os homens são pecadores, merecem o castigo eterno e estão destinados a ele. Deus enviou Seu filho Jesus Cristo, Aquele esperado por Abrão no futuro, para morrer na cruz e sofrer o castigo pelo pecado humano. Somente Ele pode dar ao homem a justificação necessária para a vida eterna. Deus disse. Você crê?

(5) A jornada cristã é simplesmente fazer aquilo que Deus nos diz para fazer e crer que Ele nos guia enquanto fazemos. Deus disse a Abrão para partir sem saber para onde o caminho da obediência o levaria, mas crendo que Ele iria guiá-lo por onde ele fosse. Não espere que Deus indique cada curva da estrada com uma sinalização clara. Faça aquilo que Ele lhe diz para fazer da forma mais sensata possível. A fé não é desenvolvida quando se vive utilizando algum tipo de mapa, mas quando se utiliza a Palavra de Deus como bússola, a qual nos aponta a direção certa, mas nos desafia a andar pela fé e não pela vista.

Enquanto Abrão ia de um lugar para o outro, a vontade de Deus deve ter parecido como um enigma. No entanto, quando nos recordamos disso, podemos ver que Deus o esteve guiando o tempo todo. Nenhuma parada ao longo da jornada foi irrelevante ou sem propósito. E conosco será da mesma forma quando olharmos para o nosso passado.

(6) A jornada cristã é um processo de crescimento na graça de Deus. Muitas vezes, quando lemos a história de Abraão, um homem de fé, achamos que ele sempre foi assim. Espero que nosso estudo do período inicial de sua vida nos mostre o contrário. Há quanto tempo, meu amigo, você é cristão? Um ano? Cinco? Vinte anos? Percebe que provavelmente se passaram muitos anos desde o chamado de Abrão até ele terminar em Canaã? Sabia que só depois de vinte e cinco anos em Canaã ele teve seu filho, Isaque? Consegue imaginar que, após deixar Harã e seguir para Canaã, Deus trabalhou na vida de Abrão durante cem anos? A fé cristã cresce. Cresce com o tempo e com as provações. Foi assim na vida de Abrão13. E é assim com todos os crentes.

Que Deus nos ajude a crescer na graça enquanto andamos no caminho que Ele ordenou, e continuamos a estudar o crescimento da fé de Abrão ao longo de muitos anos.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


1 S. Schultz, “Abraão”, The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), I, p. 26.

2 Cyrus Gordon sugere que a verdadeira Ur de Gênesis 11:31 deve ser encontrada ao norte da Mesopotâmia, provavelmente a nordeste de Harã. Seu ponto de vista é discutido, mas rejeitado por Howard F. Vos, Genesis and Archaeology (Chicago: Moody Press, 1963), pp. 63-64. E é sustentado por Harold G. Stiflers, A Commentary on Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), pp. 133-134.

3 Cf. Vos, Genesis and Archaeology, pp. 58-64.

4  “A cidade de Ur, no baixo Eufrates, foi um grande centro populacional, e gerou enorme quantidade de informações das tumbas reais que foram escavadas sob a direção de Sir Leonard Wooley, e patrocinadas pelo Museu Britânico e pelo Museu da Universidade da Pensilvânia. Embora não haja evidência direta disponível sobre a moradia de Abraão, é significativo que a cidade de Ur indique uma longa história anterior à sua época, com um elaborado sistema de escrita, instalações educacionais, cálculos matemáticos, registros religiosos, de negócios e de arte. Isso aponta para o fato de que Ur possa ter sido uma das maiores e mais abastadas cidades na região do Tigre-Eufrates quando Abraão emigrou para o norte em direção a Harã”. Schultz, “Abraão”, ZPEB, I, p. 22.

5 Vos, p. 63.

6 NT: em inglês, pois em português, tanto a NVI como a ARA, ARC e a Fiel não traduzem dessa forma.

7 Embora possa parecer, por uma leitura superficial de Gênesis (11:31-12:1), que Deus tenha chamado Abrão enquanto ele estava em Harã, contrariando, dessa forma o relato de Estêvão de que Deus o chamou na Mesopotâmia, antes dele viver em Harã, os dois relatos podem ser harmonizados observando-se que Gênesis 11:27-32 é uma narrativa parentética da geração de Terá, introduzida por um waw disjuntivo, e que Gênesis 12:1, introduzido por um waw consecutivo, continua a narrativa principal interrompida em Gênesis 11:26”. Bruce Waltke, Unpublished Class Notes, Dallas Theological Seminary, pp. 14-15.

8 Cassuto, o grande erudito judeu, discorda. Ele diz em seu comentário de Gênesis 12:7:

“Fora da Terra, Abraão só pôde ouvir a voz divina (v. 1); mas aqui, na terra destinada a ser dedicada especialmente ao serviço do Senhor, a ele foi concedido também o privilégio de uma visão divina". U. Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis (Jerusalem: The Magnes Press, 1964), II, p. 328. Precisamos lembrar que Cassuto, um judeu, não considerava o Novo Testamento como autoritativo. Portanto, ele parece rejeitar, sem maiores rodeios, as palavras de Estêvão.

9 Harã, por exemplo, em assírio (harranu) significava “estrada principal”. Waltke, anotações de aula, p. 14.

10 Cassuto, Gênesis, II, p. 304.

11 “Agora podemos entender porque a Torá destacou, nos mínimos detalhes, as jornadas de Abrão para entrar na terra de Canaã, primeiramente a Siquém, e depois a Ai-Betel. Aqui a Escritura tinha o propósito de nos apresentar, por meio da conquista simbólica de Abrão, uma espécie de previsão daquilo que mais tarde aconteceria a seus descendentes”. Cassuto, Genesis, II, pp. 305-306.

12 Ibid, p. 306.

13 “… O início da história de Abrão é, em parte, a respeito de seu gradual desligamento da sua terra, da sua parentela e da sua casa, um processo que só foi concluído no fim do capítulo 13”. Derek Kidner, Gênesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 113.

“A vida de Abrão é um crescimento na fé desenvolvido sob o demorado cumprimento das promessas divinas. Foi-lhe prometido um descendente e, quando esse descendente demorou a chegar, ele precisou, de alguma forma, ver o significado daquela demora e aprender a ter fé em Deus. Quando lhe foi prometida uma terra, e esta não lhe foi dada, ele precisou olhar para além da promessa, para Aquele que a fez, a fim de poder compreender. Quando lhe foi ordenado sacrificar Isaque, ele precisou obedecer com um coração cheio de amor, para de alguma forma ver a relação entre a ordem e a promessa da descendência de uma nação, deixando o resultado por conta de Deus e encontrando nEle toda suficiência. Por meio de todas as suas experiências ele precisou ver em Deus a origem de tudo o que iria enfrentar”. Stagers, Genesis, p. 135.

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